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Lapa de Makemba Notas Etnologicas Sobre Uma Viagem Musica Africana Do Brasil Adentro
Lapa de Makemba Notas Etnologicas Sobre Uma Viagem Musica Africana Do Brasil Adentro
Notas etnológicas sobre uma longa viagem música africana do Brasil adentro
(Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Milho Verde-MG / Foto de Spírito
Santo -Jan 2009)
Depois de ansiosos dias, parti em 02 de janeiro deste 2009, de mala e cuia para o
alto da
Serra do Espinhaço, MG, na região do antigo Serro Frio (Diamantina e adjacências).
Voltei lá
quase 30 anos depois, desta vez a convite do documentarista paulista Cassio Gusson,
para
coordenar a pesquisa que subsidiará um filme longa-metragem sobre os ‘Vissungos do
Tijuco’,
protagonizado por seus cantadores remanescentes (e seus eventuais sucessores) todos
descendentes de escravos e quilombolas mineradores de diamante trazidos de Angola
para cá,
a maioria a partir de meados do século 18.
A viagem, com origem em São Paulo (Cassio Gusson, o diretor, Felipe Mantovan, o
camera-
man e Paulo Genestreti, fotógrafo) e Rio de Janeiro (eu mesmo) cobriu um extenso
roteiro no
qual, depois de nos encontrarmos em Belo Horizonte, cruzamos de carro pequenos
trechos de
estrada asfaltada, descambando num sem fim de barrentas estradas vicinais,
atoleiros,
córregos e – a pé – trilhas de montanha, cruzando desconjuntadas porteiras que se
abriam
para o não-sei-o-que que avidamente procurávamos: As sobrevivências dos cantos
africanos
denominados Vissungos.
Um dos momentos sem dúvida mais emocionantes desta viagem – fantástica em todos os
sentidos – foi mostrar a foto que havia tirado há 27 anos atrás de uma dupla de
moradores do
quilombo de Quartel de Indaiá, a uma alegre senhora de São João da Chapada
conhecida como
‘Miúda’ (a primeira pessoa que me recebeu à porta) e vê-la sair correndo atrás dos
óculos, já
com os olhos marejados exclamando:
Coincidência, acaso ou obra de Deus? O que eu sei é que foi mesmo de chorar vê-la
se
embrenhando pela casa, a esta altura apinhada de parentes, todos envolvidos com a
folia de
Reis que brincava o seu último dia deste ano (6 de janeiro), mostrando a foto que
passando de
mão em mão, ensejava novas emocionadas exclamações:
Soube ali que Chico Xavier (na foto, à direita, cabisbaixo e Paulo, seu parceiro
numa caçada
que faziam na ocasião) ambos, de algum modo quilombolas e vissungueiros, tinham
falecido
há tempos e as famílias não tinham nenhuma imagem deles para avivar as lembranças.
Viviam todos em 1981 ainda em Quartel de Indaiá, pequena povoação formada por
quilombolas que, liderados em certa época (presume-se que, mais ou menos ali pelo
início do
século 19) por um tal de Makemba, dominavam as elevações do pedregoso relevo da
área,
gretado de lapas (grutas) de onde atacavam as tropas de mulas (carregadas de
víveres, ouro e
diamantes) escoltadas por tropas do exército colonial (‘dragões’).
Ele fazia o túnel que saia na beira da estrada. Da estrada saia para
a beira do rio e de lá
era tocado no mato do Makeba. Assim assaltavam a tropa. O
carregamento de diamante
era jogado dentro do túnel. Quando o tropeiro chegava, o dono da
tropa, ao local todo o
carregamento já estava vazio.
_ ...”A tropa envinha com a 'madrinha da tropa' à frente, trazida pelo moleque
campêro. Os
povo de makemba fazia um buraco, escondido no mato num canto do caminho
e...prucutu,
caçava o moleque e jogava lá dentro... A 'Madrinha', meio assim desnorteada voltava
pra trás
e a tropa inteira se desembestava. Daí é que o pessoá de makemba atacava,
espingardeava os
soldado e roubava o que dava, manta de carne seca, baú de ouro, diamante, o que
desse...”
_ 'Que moça nada, menino! A madrinha era uma mula, gente! Uma mula guia, que ia
guiando
as outras mulas pelo caminho, tocada pelo menino.”
Com efeito entre as práticas e modos de transportar cargas naquela época devia
haver este
modo tão peculiar, um procedimento militar, talvez o qual, logo depois pude
confirmar
analizando uma prancha de Johan Moritz Rugendas (veja ilustração abaixo)
descrevendo,
exatamente uma tropa assim a caminho de Diamantina.
A gruta (ou túnel) suposta morada de Makemba e seu grupo, descrita de forma mítica
naquilo
que antes pensávamos ser apenas uma lenda, só não foi visitada porque seu acesso
estava
inteiramente coberto pela mata (segundo os informes, o corpo de Makemba teria sido
sepultado dentro da gruta após ter sido morto pela tal emboscada armada pelos
Dragões da
Real Extração).
(Serra do Makemba. Imediações de Quartel de Indaiá –MG. Foto Spírito Santo 2009)
O empecilho não impediu, contudo que a equipe visitasse e filmasse uma gruta
(‘lapa’ como se
diz por lá) idêntica que, por mais incrível que possa parecer, foi habitada durante
18 anos (!)
pelo nosso guia, o sereno mestre de folia de reis Pedro ‘da Miúda’ (ela mesma, a
irmã de
Chico, o Vissungueiro sonso e cabisbaixo da foto de 1981, aquela que, não
resistindo à emoção
que a saudade do tempo da gruta lhe suscitava, de novo ficou com os olhos
marejados.)
Que viagem!
(Maria ‘Miúda’ - olhos marejados- e Pedro da ‘Miúda’. Foto Spírito Santo, Janeiro
2009)
Kurima de Vera
Lavra de Vissungos e diamantes
Ao que nos consta, por tudo que podemos reunir sobre o assunto (e a despeito de ser
esta
uma afirmação ainda hoje discutível) Os cânticos dos Vissungos são mesmo uma
prática
musical rigorosamente, africana.
A época é indicada como sendo, aproximadamente a da fixação dos Bakongo nas margens
do
Rio Kongo, povo do ramo etnolinguístico bantu, que descendo da região do Camarões,
se
tornou a matriz étnica de quase todos ‘reinos‘ da região do antigo Kongo (entre os
quais o
chamado ).
Este fator (a integridade ancestral da cultura destes povos) também pode ter
contribuído
bastante para a longevidade, quase perenidade, da manifestação dos Vissungos entre
nós.
Foram exatamente estes grupos que, com a extinção do trabalho escravo passaram a se
dedicar à prática do garimpo clandestino ou qualquer outra forma de economia de
subsistência
ou sobrevivência, independente da economia convencional da área, mantendo-se,
culturalmente arredios até uma ocasião próxima aos nossos dias (na verdade até
hoje, como
podemos constatar na coleta de campo atual – veja as fotos).
Secando a água
A lavra nunca será de todo lavrada
Nosso objetivo estava focado em dois eixos geográficos principais que conciliavam
os
interesses dos documentaristas paulistas (orientado para os apelos e supostas
facilidades de
uma área que eles já conheciam muito bem, por conta da locação de seus filmes
anteriores) e
os meus, numa segunda área também muito familiar para mim, magistralmente coberta
por
Aires da Mata Machado Filho e seus assistentes na década de 1930 e, sabe-se lá
porque, quase
nunca mais priorizada a partir de então, pelos esquadrinhadores que se seguiram.
Contudo – verdade seja dita – foi exatamente naquela área mais assediada que os
bravos
rapazes documentaristas tiveram, pela primeira vez, contato com os ‘estranhos’
cantos em
língua africana, que ouviram imiscuídos às cantigas de Catopês, manifestação afro-
católica que
filmavam. Foi este contato fortuito que culminou, muito providencialmente no nosso,
não
menos fortuito encontro pela internet.
(Sim porque, acredite quem quiser – coisa de loucos! – todo o meticuloso
planejamento desta
quase saga, foi feito na imponderabilidade absoluta da internet, sem que um
conhecesse
sequer o ‘focinho’ dos outros)
Como veremos a seguir, a abandonada lavra do nosso segundo eixo (talvez pela
simples e
evidente razão de ter sido subestimada pela maioria das pesquisas mais modernas)
foi onde o
cascalho bruto mais diamantes puros revelou.
Seguindo a pista das fontes primárias mais importantes, sabemos, por exemplo, que
no século
20, da época da coleta de Luiz Corrêa de Azevedo em diante, só se teve notícia de
uns poucos
registros originais de Vissungos do Tijuco, entre eles no fim da década de 1970, o
do
etnomusicólogo austríaco Gerhard Kubik.
“6/05/1979 –Quartel de Indaiá: Gravação de um ‘Vissungo’, parte em
português, parte,
na língua de Angola ‘banguela’, acompanhado por uma ‘caixa’ (tambor
de marcha). O
cantor e informante é o Sr. Cecílio Assunção Bela Guarda, 60 anos,
enquanto era
entrevistado acerca da “língua banguela’.”
O material recolhido por Kubik em áudio, ao que parece, contém apenas uma cantiga
de
Vissungo, gravada por Cecílio Assunção da Bela Guarda. Da mesma época, haviam
também os
breves registros realizados pelo autor deste artigo (um ponto de ‘Pádi Nosso’)
cujas fitas k7
recolhidas no mesmo Quartel de Indaiá em 1981 foram dadas como perdidas,
misteriosamente
(sobravam, galhardamente os registros fotográficos da ocasião) mas foram
reencontradas, do
mesmo modo misterioso enquanto elaborávamos estas conclusões quase finais da
pesquisa.
“Ê conga,
ererê conga auê
Ê conga Maria Gombê,
erê rê conga”
(Na verdade, como poderemos observar mais adiante, a exata compreensão do que
sejam,
exatamente os chamados ‘Vissungos do Tijuco’, pode ser um enigma ainda bem distante
de ser
decifrado).
Estas nossas considerações ainda muito recentes e inéditas, sugerem que talvez haja
muito
que se levantar para que se possa compreender, em sua exata medida, as intrínsecas
e
simbióticas relações anteriormente ocorridas entre as culturas bakongo e portuguesa
ao longo
de tantos séculos, relações estas que, evidentemente se refletiram, profundamente
na cultura
negra trazida para o Brasil com os escravos daquela região.
“Ocê” entende a língua dos outros. Arruma um goro par eu ir pro meu
anjó.
Pega seu cavalo na estaca, passa a perna nele, vem embora. Pronto.
Mas aqui,
não, sabe? Mas aqui quem falou com ela? Arruma um goró pra eu ir pro
meu
anjó! E isso aqui, como é que chama? Bom, isso aqui é um boné, né?
Não é
lugar de chapéu. Entendeu? Por que o chapéu chama quipum Aí, é,
feijão:
pipoquê, arroz: maçan; passarinho: canjirauê. Cachaça: oranganja.
Cachaça, chita. Galinha: araçangue Boi, ongombe. Carne de boi chama
chita de
ongombe. A carne de porco: chita de omburo. E o toicinho? Oréra de
Omburo
E a estrada? Ogira. Ah, entendeu? Isso, do lado do meu pai não trouxe
essa
língua. Isso tá pra o lado da minha mãe. Porque eles já são um outro
lado. Eu
sei isso aí. E a coisa é mesmo assim. Não é tirar a cabeça, não.
Falar o que tá
escrito. Entendeu? Está escrita essa palavra,existiu. É, tanto que
chama dialeto.
Não é, moça nova? Kaimina. Mulher velha? Macuca.”
O veneno da memória
A ressuscitação dos mortos vivos
O outro fato que chama a atenção – este sobre muitos aspectos, lamentável – é o
caráter,
culturalmente invasivo destas coletas, no sentido de que, talvez se devesse ter
avaliado melhor
o impacto negativo que poderia resultar da enorme quantidade de trabalhos de campo,
lançada
no âmbito de uma manifestação cultural tão inestimável quanto frágil, com um grau
de assédio
quase predatório (quiçá insuportável) sobre informantes locais, aspecto que
detectado na
coleta atual, produziu efeitos importantes que deveriam ser melhor avaliados e
considerados
nas pesquisas futuras na região, principalmente pelas instancias acadêmicas
incumbidas de
coordenar ou orientar pesquisas de campo neste caso.
“… ninguém viria de tão longe, para um local tão escondido á cata de Vissungos se
não fosse
pra ganhar muito dinheiro”.
Forçoso se faz relatar também (senão como uma característica das táticas destas
coletas a ser
criticada ou lamentada, pelo menos como uma constatação incontornável) que o
trabalho de
coleta etnológica neste como em vários outros casos, efetivamente interferiu no
desenvolvimento da manifestação que – não raro, ao contrário do alegado ou
pretendido –
supostamente visava preservar, contribuindo de algum modo, mesmo involuntariamente,
para
apressar a sua extinção.
Com efeito, no caso dos Vissungos, a se julgar pela maioria dos depoimentos obtidos
na
presente coleta, o intenso assédio de inúmeros pesquisadores de campo
(antropólogos,
musicólogos, mestrandos, doutorandos, etc.) sobre esta algo exótica manifestação,
infelizmente se deu por meio de diversas – e nem sempre sutis – táticas de
convencimento e
aliciamento, num processo que poderíamos chamar de corrupção das fontes, com todas
as
implicações advindas da contaminação dos dados obtidos por diversos tipos de
falseamento
possível (inclusive, presume-se, com a possibilidade de se estimular no futuro, o
fornecimento
de depoimentos forjados por supostos conhecedores).
Além desta não ser ainda, nos meios acadêmicos (do ponto de vista ético)
considerada uma
prática condenável, o grande valor etnológico do tema e as condições de extrema
penúria em
que vivem as pessoas da região, por si só já justificariam o oferecimento de algum
tipo de
contrapartida material em troca de informações que mesmo, indiretamente vão acabar
se
transformando em algum tipo de vantagem pecuniária evidente para os pesquisadores -
sob a
forma de títulos e promoções acadêmicas, direitos autorais por textos publicados,
prêmios,
etc.)
Complementando a proposta embutida no justo questionamento do membro daquela
associação, o que se sugere enfim é que a natureza destas transações quando,
totalmente
indispensáveis, envolva algum tipo de salvaguarda ética que impeça a bastardização
dos
registros e a consequente deformação da manifestação original, que se arrisca a ser
transformada neste processo, em pobre pastiche ou mistificação de si mesma.
Estas manifestações musicais estariam abrigadas sob a mesma denominação apenas por
conta
de serem praticadas pelo mesmo grupo de indivíduos (ainda não exatamente
identificado na
ocasião), mas com características que permitiam já classificá-lo como tendo, mais
ou menos, o
mesmo traço étnico (ou, pelo menos, representando hábitos culturais, relações
inter-étnicas
etc. pré-estabelecidas antes de sua chegada ao Brasil).
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Acabo de conhecer e acessar o jovem blogueiro angolano Gociante Patissa cujo blog é
escrito
todo na língua Umbundo (!).
Patissa passa agora a integar a nossa equipe como colaborador do futuro filme e já
me manda
contributos essenciais sobre as palavras angolanas para as quais tentei alguma
tradução:
_ ‘Limi (ou elimi) lya ngombe (pode variar o sentido dentro do contexto da variante
em causa).
Naquilo que domino, “elimi”, não “rimi“, refere-se à língua como idioma, enquanto
que
“elaka” é língua no sentido biológico. Vale acrescentar que a letra “R” raramente é
utilizada
em Umbundu.’
3. (Sobre Anganazambi)
_‘Receio que o correcto seja Ngana (e não Nganga) Zambi, que em kimbundu significa,
como
o amigo Spirito Santo diz e com razão, Senhor Deus.’
(Cachoeira vista da lapa de Pedro da ‘Miúda’– Foto de Spírito Santo, Janeiro 2009)
Caminhar até a lapa de Pedro e ‘Miúda’ foi assim como caminhar no paraíso. Parecia
ser uma
graça obtida por termos seguido tão contritos – apesar de surpresos, a Folia de
Reis
comandada por Pedro da Miúda, mas, não. Aquilo era muito mais do que uma graça.
Primeiro que, graça mesmo quem tinha obtido era ele, Pedro, o sortudo que além de
ter a
alegria companheira de ‘Miúda’ e a euforia divina da folia, tinha – digamos assim –
certa
independência financeira representada pela casinha própria, de alvenaria
industrializada (coisa
rara por ali) e do bem abastecido bar que, proprietário feliz (e sóbrio) administra
tudo isto
obtido – segundo ele diz jurando de pés juntos – pela graça suprema de ter achado,
há pouco
tempo atrás, o mais valioso diamante de toda a sua vida.
Delírios à parte, pobre como manda o figurino de uma folia de reis de vera, a do
Pedro tinha
um jeitão assim, inacreditavelmente autêntico, com um ar de folia ‘á moda antiga’
mesmo –
pelo menos como eu podia imaginar – ou vagamente lembrar – que fossem as folias de
reis da
minha infância.
Seria mais incrível ainda enxergar toda esta autenticidade, esta veracidade tão
inusitada na
folia do Pedro, se considerássemos que a manifestação esteve extinta em São João da
Chapada durante quase 30 anos (o mesmo incrível tempo que demorei para voltar ao
lugar).
(Só pra vocês terem uma ideia do quanto a folia deles é insólita, nela não tem nem
sombra
daqueles ‘palhaços’ nossos conhecidos, os mesmos que o Fernando Ortiz viu no El dia
de Reyes
de Cuba, algo inspiradas segundo ele nos ensina, em sociedades secretas típicas da
África, com
o nome de ‘Diablitos Ñañigos).
Vocês sabem de quais palhaços estou falando? Isto mesmo. Aqueles com as
aterrorizantes
máscaras peludas, fedidas, que muitos de nós no Brasil cansamos de ver por aí a
fora (as
favelas mais antigas do Rio de Janeiro tinham, antigamente, folias de Reis
clássicas).
Irrelevâncias à parte, o fato é que eu nunca havia ouvido falar também, em nenhuma
outra
Folia de Reis, do pitoresco entrecho dançante chamado de ‘Chula’ que a Miúda,
agitadamente,
lá pelas tantas, nos anunciou. Você já havia ouvido falar disso?
Até o momento em que ‘Miúda’ de Pedro, excitada com a hora de organizar o tal
entrecho (do
qual ela se declarou a ‘chefe’) eu não fazia mesmo a menor ideia do que fosse. Juro
por Deus.
Ah sim! ‘Chula’ – pude logo deduzir, mesmo antes de ver – um nome recorrente em
nossa
cultura popular, sempre relacionado a certo contexto. No caso, “chula’ de vulgar
(no sentido de
insólita, profana) em relação à catolicíssima Folia. Fora esta tentativa chinfrim
de conceituar
alguma coisa, a ‘Chula’ da Miúda era um grande mistério para mim.
E como era insólita esta chula da ‘Miúda’! Nada a ver com a folia em si. Ela era um
entrecho
mesmo, um ‘interregno’, um ‘intermezzo’, a mais pura e rasgada dança, enfiada na
pudica
Folia.
(A dança da ‘Chula’. Entrecho dançante – só para mulheres- da tradicionalíssima
Folia de Reis de SãoJoão
da Chapada – Foto Spírito Santo, Janeiro 2009)
E mais: só havia mulheres dançando. Todas, das mais antigas (como ‘Miúda’ e Maria
‘Macarrão’) as mais pequetitinhas, todas graciosamente meninas, terçando passos de
pura
alegria feminina.
(No dia seguinte, já em Quartel de Indaiá, soubemos que por lá ainda praticavam
duas outras
danças também, absolutamente desconhecidas para mim (estas com muita pinta de serem
espécies de lutas marciais quilombolas, de machos por se assim dizer): O ‘Lundu de
Pau’ e a
‘Pomba chorou’, ambas baseadas em estripulias agressivas, ritmadas com longos
porretes
(errou, paulada levou).
E foi assim que no dia seguinte Pedro da ‘Miúda’, por conta das várias emoções que
trocamos
nos deu então honra de nos levar a conhecer a sua lapa querida, distante 3 horas a
pé de São
João, montanha a dentro e, no dia seguinte, a casa-mocambo de Pedro Lucindo, o
Vissungueiro, que evasivo e reticente como que (por conta talvez de ter sido já por
demais
assediado nos últimos tempos, quando até um filme sobre ele andaram fazendo) falou,
falou,
mas, nenhum ponto de vissungo cantou (alegou a dor da perda do irmão Paulo, seu
parceiro
mas, talvez – sussurou alguém da família – se rolasse uma ‘ajudazinha’, quem sabe…)
Nem
precisava.
Sorte nossa que queríamos ouvir mesmo – e gravar – muito mais o que ele falou,
falou (a
agonia, o assédio, o processo da memória dos vissungos se apagando) do que dos
‘pontos’ que
porventura cismasse de cantar. Tínhamos já toda uma coleção de registros, pelo
menos desde
1942, além do acesso já garantido à inúmeras fontes seguras, em acervos públicos,
onde
outras gravações essenciais se acham também preservadas, acessíveis a qualquer
interessado.
Pedro Lucindo não sabe (ou não liga) ainda, mas, cultura oral é memória cega, vaga,
imagem
que se distorce ou se apaga com o tempo. Tem valor inestimável apenas enquanto não
virar
registro perene. Antes disto ninguém sabe direito o valor que tem, como um caco de
imagem
sem rosto, um fragmento de canção sem sentido (ainda mais se for coisa rarefeita
como são os
diamantes e os Vissungos).
Quem dá mais por uma remota lembrança íntima, pessoal? Quanto vale uma cantiga
estranha
entoada no enterro do seu avô? Quanto estaríamos dispostos a pagar pela tradução de
uma
(Cecílio Assunção Bela Guarda em foto de G.Kubik:...’uma das poucas pessoas que
podem
cantar vissungos e conhecem alguns vocábulos do idioma benguela’, provavelmente.
é parente
de José Paulino de Assunção cantor do ponto de Vissungo recolhido por Luiz Heitor
Correa de
Azevedo em 1942)
Zélia do Baú, uma das quilombolas entrevistadas, franca, alegre, porém, incisiva
nos contou
que entre as suas lembranças mais pungentes do tempo de criança, estava a fome,
esperando
noite a dentro, muitas vezes em vão, que o pai retornasse de Milho Verde com
algumas
‘pouquinhas coisas de comer’.
_”Os homens viviam do garimpo de umas poucas pedrinhas. Com o que achavam, iam para
Milho Verde, onde eram ludibriados pelos intermediários dos compradores, mas, mesmo
assim
felizes, se embebedavam. Às vezes nem voltavam. Ficavam caídos pela lama da
estrada, sem
um tostão”.
Pedro Lucindo, precisa mesmo saber, antes que seja tarde, que o que vale ‘algum
dinheirinho’
é o registro, a coisa física, a memória franca tornada concreta num filme, num CD,
a memória
tornada produto, documento visível, audível para todos.
Talvez seja por não saber disto ainda que, convencido pela força do assédio de
alguns espertos
esquadrinhadores, tenta vender os fragmentos de sua memória, já meio embaçadas
lembranças, não mais tão pepitas de diamante como eram, por exemplo, as de João
Tameirão
(registrado por Aires da Mata em 1930), as de José Paulino de Assunção (gravado por
Corrêa
de Azevedo em 1942) ou mesmo as lembranças do último mestre Vissungueiro real,
Crispim
Viríssimo (adepto da difusão incondicional dos cantos) que, mesmo assim, como as
lembranças
de todos os outros antecessores, inapelavelmente morreram, foram para o kalunga.
Em memória do falecido
Por uma genealogia dos Vissungos
Por este ponto de vista, a maior parte dos cantos teria outras especificidades,
usados que
seriam enfim para finalidades as mais diversas, entre as quais a marcação do ritmo
de
atividades laborais tais como ‘secar água’, ‘subir ladeiras’, anunciar a ‘hora do
almoço’ ou o fim
do dia de labuta (cantos de trabalho clássicos).
Com efeito, a palavra parece servir em Angola até hoje em dia, para designar hinos
religiosos
especiais (como os ‘benditos’ e ‘incelenças’ de expressão portuguesa) utilizados
talvez em
missões apostólicas, tanto católicas quanto protestantes, notadamente na região do
Benguela,
local onde a disseminação deste tipo de missionarismo ocorreu, com alguma
regularidade, de
meados do século 18 até o início do século 20.
Nesta linha de raciocínio, genericamente como tem sido feito, seriam também
‘Vissungos’
alguns tipos de pontos de jongo, de congada, de candombes e moçambiques, assim como
de
catupês (ou catopés) e diversos outros gêneros de música tradicional de inspiração
angolana
existentes no Brasil, principalmente em Minas Gerais.
É mesmo provável que, num fenômeno ainda pouco estudado ou observado no Brasil,
práticas
musicais ancestrais trazidas pelos escravos da África como uma todo, após a
extinção das
práticas sociais que as consubstanciavam, tenham tido como destino natural, a
migração para
o repertório de outras manifestações de caráter mais, claramente profano (ou
festivo, artístico
enfim) ganhando deste modo uma sobrevida, até se incorporarem, muitas vezes
imperceptivelmente, no âmbito do que chamamos de Música Brasileira de uma maneira
geral.
(Dois Pedros...e duas medidas: Pedro de 'Miúda' e Pedro Lucindo. Até hoje e para
sempre
garimpeiros de diamante)
Sem choro nem vela, do ponto de vista etnomusicológico a importância dos ‘vissungos
do
Tijuco’ seria por estas hipóteses, maior ainda do que se imaginava, abrindo novas
possibilidades para uma melhor compreensão das especificidades de toda a música
africana
praticada no Brasil, bem além das reiterações e dos lugares comuns ainda em voga.
A natureza tão especial destas circunstâncias como vimos está, por ordem de
importância,
ligada, muito provavelmente, às opções estratégicas adotadas pelas autoridades
coloniais
portuguesas, no sentido de transferir para as minas de ouro (e, em seguida
diamantes)
descobertas na região do Serro e, posteriormente, São João da Chapada em Diamantina
(Arraial do Tijuco) no início do século 18, escravos oriundos de certa região de
Angola (o Reino
do Benguela) onde a mineração já era praticada pelos habitantes locais, de forma
especializada
e sistematizada (de forma talvez até mais intensa, na época, do que no resto do
território sob
o jugo de Portugal).
Ou seja, a questão crucial que se impõe às pesquisas atuais sobre este entre outros
assuntos
do gênero, talvez seja esclarecer como e porque a prática de se cantar vissungos
teria,
excepcionalmente, durado tanto tempo, a ponto de ainda ser lembrada, na maioria dos
seus
muitos detalhes ainda em 1928, havendo permanecido, estranhamente, íntegra, imune
às
naturais influências do seu meio brasileiro, por mais de um século depois de ter
sido iniciada
por aqui. Parece evidente também neste caso, que o foco destas pesquisas deva ser
ajustado
para dois pontos, ainda negligenciados da questão, a saber:
1- Muito mais do que na cultura urbana e rural (ou ‘suburbana’) acessível e visível
em
manifestações culturais comuns e recorrentes, como terreiros de candomblé e umbanda
e
festas periódicas tais como Congadas, Maracatus e Marujadas, por exemplo, as chaves
mais
elucidativas do ponto de vista etnológico, no que diz respeito á cultura brasileira
de origem
africana, parecem estar naquelas manifestações bem recônditas e obscuras, como as
praticadas em lugarejos ainda existentes no interior dos estados do Rio de Janeiro
e São Paulo
(como o Jongo mais ‘primitivo’), além de certos lugares remotos em Minas Gerais
onde ainda
se conhece os Vissungos (antigos quilombos ou lugarejos surgidos em torno de lavras
de
garimpo clandestinas, principalmente). Verdadeiros sítios etnológicos onde
fragmentos
essenciais desta história oral, eventualmente estão preservados na memória dos
habitantes,
há que se estabelecer um conceito de ética (acadêmica ou não acadêmica), no trato
da
questão ‘pesquisa de campo‘ nestes locais.
Pois foi assim – era uma vez enfim – sem tirar nem por, que a viagem aos falecidos
Vissungos
do Tijuco se deu (infelizmente, como a vida, toda viagem tem um fim).
Nem pau nem pedra. Nem oito nem oitenta (como já se viu esta história – quase um
filme –
tem dois Pedros e duas medidas). Pode estar nela a chave para a elucidação de
diversas outras
ainda mal traçadas linhas de nossa pujante – e ainda tão pouco reconhecida –
diversidade
cultural brasileira.
“_ Juro por tudo neste mundo que esta voz é do meu sangue, da minha família!” – “
Disse Ivo Silvério, ao ouvir, arrepiado, a voz do seu tio José Paulino cantando um
ponto de
Vissungo na gravação da Library of Congress de 1942.
Spírito Santo
Janeiro de 2009
(Com notas suplementares em Julho de 2010)