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CARVALHO, L.R. Ação Missionária e educação. In: HOLLANDA, S.B.

História
geral da civilização brasileira. Tomo I, v.. 1, livro 3º., cap. IV, 1995, p. 138-144

Conforma conta Carvalho (1995, p. 138), ainda nos 1500, no chamado “Brasil
Colônia”, surgiram nestas terras as primeiras Escolas. Tratavam-se de instituições
introduzidas pela ordem religiosa dos Jesuítas pelo intermédio da chamada Companhia
de Jesus, cujo propósito, pelo menos inicialmente, era missionário, no sentido de que se
tratava de converter à fé cristã católica os indígenas então aqui residentes tanto por meio
da catequização, como pela instrução, isto é, pelo ensino da leitura, da escrita e da
gramática. Tal projeto, no entanto, observa o autor, não era restritamente religioso, visto
que em alguma medida se subscrevia ao projeto colonizador de Portugal, então regido
por D. João III.
Vale notar que, mesmo no que o projeto jesuítico tinha de independente do
projeto colonizador, ele não era exclusivamente religioso. Demonstra isto a “política de
posse da terra e de escravos” do destacado Padre Manuel da Nóbrega (idem, p. 158).
Nesta convergência de projetos resulta não apenas a conversão religiosa dos indígenas,
mas, é claro, o estabelecimento de posses. Emblemático disto é o caso, citado pelo
autor, em que a Confraria dos Meninos de Jesus de São Vicente incorpora propriedades
de Pero Correia e de Brás Cubas. Tal política de posses, no entanto, é obstaculizada
formalmente pelos "textos canônicos" jesuíticos, a saber, as chamadas Constituições da
Companhia de Jesus, que exigiam dos componentes da Companhia, por exemplo, "voto
de pobreza" – algo incompatível com a manutenção seja de renda ou de posses (idem, p.
159). Em alguma medida, mostra o autor, isto inviabiliza o projeto missionário jesuítico
original. Exceção aos limites impostos pelas Constituições eram, no entanto, os
"colégios e os estabelecimentos de noviciado", o que estimula a criação destas
instituições. Verifica-se também neste momento certa aproximação da Companhia de
Jesus ao projeto colonizador (idem, p. 159 – 160). Com efeito, institui-se a chamada
"redízima", que estabelecia um dízimo a ser pago pelo Rei para a manutenção das
instituições jesuíticas, dando então garantia de recursos à elas e, portanto, financiando
tanto os Colégios já existentes (os da Bahia, de Rio de Janeiro e de Olinda, por
exemplo) como a construção de novos. Progressivamente, então, a Companhia instala
Colégios "de catequese, de ensino e formação sacerdotal." (idem, p. 160). Note-se que,
segundo o autor, citando o Padre Serafim Leite, ainda que tais colégios fossem
"gratuitos e públicos", não tinham propriamente finalidade de ensino, nem de ensinar “a
todos indiscriminadamente", mas sim missionária, isto é, de "formar Sacerdotes”, que
trabalhariam na evangelização do Brasil (idem, p. 161). Por fim, digno de nota é que a
forma de tais Colégios deveria obedecer, de modo geral, as Constituições da ordem, e,
especificamente, as prescrições do Ratio Studiorum, que determinavam de maneira
sistemática e minuciosa as regras tanto pedagógicas quanto de organização institucional
a serem seguidas. Tal orientação dos Colégios, no entanto, é “bruscamente interrompida
com a expulsão dos jesuítas.” (idem, 162). Deste ponto, o ensino no Brasil passa por
diversas reformas.
PAIVA, J.M. Igreja e educação no Brasil colonial. In: STEPHANOU, M; CÂMARA
BASTOS, M.H. (Orgs.) Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Petrópolis:
Vozes. 2004. v.I, p.77-92.

Em sua análise da educação no Brasil no período colonial, Paiva (2004, p. ?)


parte do pressuposto de que as letras são um registro cujo estudo serve não tanto à
inteligibilidade da própria escrita, mas daqueles que a escreveram. Trata-se, portanto, de
conhecer pela escrita as experiências dos humanos de certo contexto histórico. O
contexto abordado será o da Idade Média europeia. Neste, as letras traduziriam uma
experiência de mundo religiosa, que tinha o Deus cristão como referência.
Segundo o autor, progressivamente, pelo menos desde o século XII até o XVI,
operam-se transformações históricas, como, por exemplo, a emergência do comércio
internacional, que reconfiguram a experiência religiosa – logo, também as letras – em
favor de uma experiência mercantil. A dimensão do religioso não é negada, mas, por
desdobramentos complexos, diz ele, reinterpretada em conformidade com tais mudanças
(idem, p. ?).1 Um exemplo desta convergência complexa entre o mercantil e o religioso,
mostra Paiva (p. ?), verifica-se na emergência do Estado português: não obstante busque
satisfazer as demandas comerciais da expansão mercantil, as administrativas da
população emergente e as diplomáticas das relações concorrenciais entre os diferentes
Estados, conserva o compromisso religioso de salvação do povo.
Outro exemplo, objeto de maior interesse no texto, é o da Companhia de Jesus.
Segundo o autor, ressonando a ampliação da função então quase exclusivamente
religiosa das letras, para uma função também mercantil – ampliação que se verifica, por
exemplo, na adequação das escolas europeias, até então restritas ao clero, às novas
demandas do trabalho, que exigiam dar a um novo público acesso às letras -, será
exemplar o fato de que os Colégios da Companhia de Jesus adaptem seu currículo de
modo a atender as necessidades também do mundo leigo, oferecendo uma formação,
além de religiosa, também secular. Conforme Paiva (idem, p. ?), a própria noção de
"Companhia" remete às iniciativas comerciais da época. Também o propósito de “ação
junto à sociedade” e o “linguajar de convencimento”, ao expressar uma atitude “ativa” e
não, como nas outras ordens, “contemplativa”, sugeriria certa aderência à racionalidade
mercantil vigente (idem, p. ?). Seja como for, conforme mostra o autor, verifica-se um
vínculo estreito entre ensino e religiosidade, explicado por uma relação originária entre
Escola e Igreja. Uma vez que, em consonância com a experiência religiosa da
sociedade, coloca-se a necessidade de ensinar a fé, instituem-se as escolas como o lugar
de fazê-lo (idem, p. ?).
No que concerne ao Brasil em via de colonização e inserido naquele contexto, as
escolas emergem da seguinte maneira. Uma vez que seria então função religiosa do Rei
(D. João III) a salvação das almas, este a cumpre transferindo-a para a Companhia de
Jesus, comprometendo-se em subsidiá-la. Institui-se, então, como missão régia aos
clérigos letrados a função de “acrescentamento da fé”, missão que estará estreitamente
vinculada ao ensino das letras. Na medida em que se entende que a cristianização

1
Paiva (p. ?), ainda que não explicitamente, sugere que as letras não apenas expressam as experiências,
mas às produzem: “Fizeram-se instrumento eficaz no desenvolvimento mercantil, [...] mas, para além
disso, propondo e alimentando uma mentalidade racional [...]."
depende de letrados e que a existência de letrados depende de Colégios que os formem,
logo, surge a necessidade de colégios na colônia (idem, p. ?). Note-se que os Colégios
serviam então simultaneamente ao projeto missionário dos jesuítas, como às demandas
da Coroa portuguesa de promoção da cultura na Colônia. Portanto, além de servir à
tarefa missionária de salvação das almas, "O colégio era sentido como o garante de
normalidade, do estar bem, de estar tudo no lugar." (idem, p. ?). Em vista disto, afirma o
autor que os Colégios operavam uma “reforma dos costumes” na Colônia: "Educar
significava primeiramente formar os alunos na fé, nos bons costumes, na virtude, na
piedade, isto é, na religião.".2
As diretrizes de ensino destes colégios serão fixadas no Ratio Studiorom,
documento que expressamente mostra a compreensão social de que a função da escola é
formar nos bons costumes cristãos. Como princípio norteador, desde a dimensão
organizacional à prática docente, estabelece-se a glória a Deus. Os objetivos principais
do ensino serão a virtude (conformação do caráter à vontade de Deus), a piedade
(dimensão prática da fé; vivência em respeito ao religioso) e os bons costumes
(“comportamentos que traduzem a compreensão, à época, do que agradava a Deus”). E
ainda que as letras e a ciência fossem objeto de estudo, aquilo teria primazia em relação
a estas.
Paiva (idem, p. ?) conclui destacando que, a partir do século XVII, mudanças
históricas (como, por exemplo, a secularização promovida pela ciência) desdobram a
experiência social do real. Seguindo tais deslocamentos, as instituições se adequam à
nova experiência - inclusive escola: ainda que, por razões relacionadas à tradição,
ordens religiosas continuem responsáveis por elas, a primazia do ensino será posta
progressivamente antes na ciência do que na religião. No que se refere aos jesuítas, com
ascensão do ideário iluminista e, oficialmente, com a promulgação da lei de 3 de
Setembro de 1759, são, depois de mais de 200 anos responsáveis pelo ensino, ao cabo
expulsos do Brasil.

2
Neste ponto, contraditoriamente ao que o autor vinha afirmando (que o “sentir comum” era então
fundamentalmente mercantil), a partir deste ponto se verifica expressa primazia do religioso. Corrobora
isto o próprio autor, ao dizer por exemplo, que "A cultura portuguesa era religiosa" e que "Deus, a
referência" (PAIVA, 2004, p. ?). Também o Ratio Studiorum não parece corroborar o destaque ao
mercantil. Neste documento o ensino tem uma função acima de tudo religiosa – mesmo os chamados
“alunos externos”, por exemplo, que buscariam o colégio para “se instruir [...] nas artes liberais”, seriam
formados “com todo cuidado [...] na piedade e nas outras virtudes.” (Cf. “Regras dos alunos externos da
Companhia”, § 1 “Aliança da ciência à piedade”). Por fim, note-se que o próprio Paiva ( idem) reconhece
que o Ratio estabelece a universalidade e necessidade e, portanto, incondicionalidade dos princípios da fé:
“Os bons costumes não se devem mudar. Estão fundados na fé.”. Por isso, parece equivocada a afirmação
de que as instituições religiosas “sublimam” ou “ressonam” o “sentir comum” mercantil (idem, p. ?),
como também a de que se interpretam "os princípios eternos" segundos as "circunstâncias novas" (idem,
p. ?).
FRANCA, L. O Método Pedagógico dos Jesuítas (Ratio Studiorum). Rio de Janeiro:
Agir, 1952

Como informa Paiva (2004, p. ?), no Ratio são estabelecidas, de maneira


sistemática, minuciosa e com vistas à padronização, as diretrizes de ensino e
funcionamento dos Colégios da Companhia de Jesus. Determinam-se ali prescrições
pontuais de caráter tanto pedagógico quanto organizacional, desde o currículo até a
gestão dos recursos. Não convém uma análise das diferentes partes do documento, mas
vale a pena que se faça alguns destaques no que concerne ao seu conteúdo.
O ensino ali proposto é expressamente doutrinário, como indicam os recorrentes
menções à “glória de Deus”, seja entendida como princípio regulador ou como objetivo
a se realizar. Afinado com este propósito, destaca-se a preocupação em evitar
embaraços teóricos ou morais à doutrina cristã. A título de exemplo, estabelece-se ao
professor de filosofia que se “inclinado a novidades ou demasiado livre nas opiniões”,
deve ser afastado “sem hesitações” (p. 2, § 2. 16) e, mais adiante, se determina ao
Prefeito que se “não suprima nenhum costume estabelecido, nem introduza novos” (p.
15, § 2).
É marcante também a atenção à disciplina, tanto dos professores como,
principalmente, dos estudantes, indicada pela alusão recorrente à mecanismos
disciplinares. Vale a pena mencionar alguns exemplos. Rigidez e regularidade dos
horários: “Determine as horas em que durante o ano [...] deverão começar e terminar as
aulas; o que for uma vez determinado, mantenha-se sem mudança.” (p. 4, § 20); nas
regras “Divisão do tempo” determina-se com exatidão o que os professores devem fazer
em cada hora de aula (às vezes em cada quarto de hora) (p. 23, § 2). Vigilância aos
professores e alunos: “De quando em quando, ao menos uma vez por mês, assista às
aulas dos professores; leia também, por vezes, os apontamentos dos alunos.” (p. 7, §
17); nas missas, diz-se que os alunos devem ser “dispostos com correção e ordem” e
observados pelos professores (p. 18, § 45). Presença de disciplinadores: o pretor, que
“[...] terá o direito de impor com a aprovação do mestre, algumas penas menores aos
companheiros.” (p. 17, § 37); mas se este não for o suficiente para corrigir os que
“faltarem ou na aplicação ou em pontos relativos aos bons costumes a aos quais não
bastarem as boas palavras e exortações, nomeie-se um Corretor, que não seja da
Companhia.”, ao qual se permite o castigo físico, que possui regra específica (p. 22, §
40). Prescreve-se que se evite o ócio nas aulas com “exercícios” (p. 23, § 5). Busca-se,
em tudo, obediência rigorosa às regras: a disciplina, aliás, deve ser assegura pela
exigência de “observância das regras” (p. 22, § 39); regras estas que “deverão ser
afixadas onde possam ser lidas pelo público, e também em cada aula” (p. 18, § 49); tudo
isto com o propósito de que, seja na sala de aula ou nos pátios, se mantenha a disciplina
e a ordem (p. 22, § 43; p. 18, § 43).
No que concerne à dimensão pedagógica, é digno de nota a primazia dada à
implicação ética do ensino, no sentido de que os “alunos aproveitem não menos na
virtude do que nas letras” (p. 15, § 1). Esta ideia é recorrente no documento. Nas
“Regras Comuns aos Professores das Classes Inferiores”, por exemplo, se diz: “Aos
jovens confiados à educação da Companhia forme o Professor de modo que aprendam,
com as letras, também os costumes dignos de um cristão. Concentre de modo especial a
sua intenção, tanto nas aulas quando se oferecer o ensejo corno fora delas, em moldar a
alma plástica da juventude no serviço e no amor de Deus, bem como nas virtudes com
que lhe devemos agradar.” (p. 19, § 1). Também a primeira regra aos estudantes
estabelece como prioridade para estes busquem “conservar a pureza da alma” e
“intenção reta” (p. 29, § 1). Até mesmo aos chamados “estudantes externos”, que
ingressam nos Colégios apenas para “se instruir”, avisa-se que s e “empregará todo o
cuidado para que sejam formados não menos na piedade e nas outras virtudes do que
nas artes liberais.” (p. 30, § 1).3 Digno de nota é o recurso à “confissão” para alcançar
este propósito (p. 18, § 46).
Em consonância com a tradição medieva, o método de ensino é o escolástico,
marcado, por exemplo, pelas chamadas “disputas” (p. 9, § 14, 17, 18; p. 14, § 20).
Também muito se enfatizam as “repetições” das lições e a necessidade de exercitar a
“memória” (p. 9, § 11, 12; p. 20, § 19). Além disso, prescreve-se que se valha do
recurso a “prêmios”, sejam os “públicos”, como também que “além dos prêmios
públicos, os professores estimulem em suas aulas os alunos com pequenos prêmios
particulares, ou outros símbolos de vitória”, “merecidos por quem venceu o adversário,
repetiu ou aprendeu de cor um livro, ou realizou algum outro esforço notável.” (p. 17, §
36). Tal estímulo à excelência (p. 6, § 14; p. 33, § 5, 6), caracteriza o ensino como
marcadamente meritocrático.
Por fim, vale mencionar alguns dos aspectos menos recorrentes. Prescreve-se às
atividade certa “solenidade”, como também “brilho e aparato”, com a finalidade de
“despertar um entusiasmo proveitoso nos estudos” (p. 14, § 19). Também se nota no
documento uma delicada preocupação com a estima dos estudantes. Fala-se, por
exemplo, em punir "com espírito de doçura" (p. 18, § 41), como também em evitar
"detrimento moral e intelectual" dos alunos nas premiações (p. 6, § 14). Prescreve-se
que se “Ore muitas vezes a Deus pelos seus discípulos” (p. 20, § 10). E, ainda mais
sugestivamente, diz-se para que o Professor “não se mostre mais familiar com um aluno
do que com outros; não despreze a ninguém; vele igualmente pelos estudos dos pobres e
dos ricos; procure em particular o progresso de cada um dos seus estudantes.” (p. 10, §
20).

3
Vale a pena esta nota: avisa-se aos “externos” que “se devem abster” de tudo “quanto possa ofender a
honestidade dos costumes”; se, “no que se refere ao estudo e à disciplina”, forem desajustados,
“recorrerão os Professores ao corretor para puni-los.” (p. 30, § 6 e 7)

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