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No livro Dialética da Colonização, o crítico literário Alfredo Bosi estuda as

especificidades das dinâmicas culturais do Brasil durante seu processo de formação


sócio-histórica. Partindo da etimologia da palavra cultus (aquilo que se trabalha na terra, e sob a
terra) Bosi pensa o cultivar e o culto como “A possibilidade de enraizar no passado a experiência
atual de um grupo (que) se perfaz pelas mediações simbólicas.” (BOSI, 1992, p 15) Não
obstante, o exercício dessas diferentes formas de mediações promovem um “(...) laço da
comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade.” (BOSI,
1992 p 15)
Nessa esteira, além de reter-se no significado de aculturação, o autor busca demonstrar
seus diferentes métodos utilizados na colonização portuguesa. Atento para as particularidades de
cada tempo histórico, o autor dedica um dos primeiros capítulos para Anchieta e seu teatro
jesuítico. Nele, reconhece uma profunda e original situação histórica, onde o poeta procura no
interior do código tupi uma maneira de moldar a língua para uma forma poética similar ao que os
trovadores ibéricos traziam nas variantes populares (BOSI, 1992 p 64)
Na busca de paralelos da cultura tupi com a cultura cristã, Anchieta elaborou
correspondências por atalhos incertos. De forma que um sistema de crenças ficou traduzido – e
por sua vez registrado – de forma tendenciosa, presente em paralelos de arbitrárias equações,
como Tupã-Deus, Anhangá-Demônio. Algo que possibilitou desatribuir aos significados
originais dos ritos para uma representação binária e maniqueísta. Como coloca Alfredo Bosi:
“Aculturar também é sinônimo de traduzir.” (BOSI, 1992 p 65)

Dessa forma, diferentes práticas ritualísticas coerentes daquela organização social


geradora de experiências comunitárias era vista pelo ângulo teológico como hábitos a serem
demonizados. Entre a poligamia, a embriaguez pelo cauim e a inspiração de fumo causado pelos
maracás, a antropofagia chocou os jesuítas. Em suas limitações não conseguiram ve-la como
“(...) um bem substancial para a vida da comunidade, sendo um ato de teor eminentemente sacral
que dava a quantos o celebravam nova identidade e novo nome” (BOSI, 1992 p 67) Mas como
um mal hábito feito a partir da possessão de criaturas que faziam os indígenas praticarem
ato-coisas perversos (BOSI, 1992 p 73)
Séculos depois, a antropofagia seria resgatada por Oswald de Andrade, que observaria na
materialidade artística brasileira a capacidade dialética de ser contaminado por novas culturas e
assimilar uma autêntica nova organização. Segundo Zé Celso, a antropofagia caracterizada por
Oswald de Andrade o fez descobri-la como o rito da origem do teatro. (COSTA, 1999, p 52)
Onde uma nova identidade é criada a partir de toda uma performática coletiva
.
De todo jeito, e apesar disso, era necessário que a cultura indígena fosse demonizado para
que a mesma pudesse aderir ao seu monoteísmo. Voltado para a mudança dos hábitos e costumes,
o teatro era um instrumento para a catequese. Não apenas por conversar em uma linguagem oral
e representativa, mas por ser um aparelho cultural que cria vínculos através da participação e dos
elementos sedutores de sua apresentação. Segundo José Arrabal e Mariângela Alves Lima:
“Dentro dos objetivos da catequese o teatro não é apenas um meio adequado, mas é o melhor
instrumento disponível para a tarefa no momento. E só nesse sentido é uma
escolha.”(ARRABAL e ALVES, 1982 p 11)
Através de esquemas alegóricos, as peças de Anchieta eram um aparelho cultural e
ideológico parte de um complexo muito maior do cristianismo representado pela Companhia de
Jesus do século XVI. De uma maneira muito semelhante, podemos olhar na contemporaneidade
brasileira a predominância e o sucesso popular de teledramaturgias bíblicas, – publicadas pelo
canal aberto da Rede Record, que pertence a Igreja Universal do Reino de Deus – como um
sistema equiparável.
Apesar das diferenças formais e estéticas de diferentes mídias, ambos os materiais
buscam a conversão. Em conjunto com a instituição religiosa a teledramaturgia bíblica e o teatro
de catequese se associam como aparelhos ideológicos – tal como coloca Althusser – formadores
de vínculos, com o compromisso de constituir emoções por distribuição e abertura de afetos.
Com a consolidação desde os anos 1990 no Brasil de uma “burguesia da fé” que utiliza-se
do neopentecostalismo para promover uma “teologia da prosperidade” onde o sucesso dos fiéis
está associado com suas doações para a igreja, que serviu de base para ramificar diversas igrejas
além de negócios em diferentes áreas de serviço. Entre elas, um complexo midiático espalhado
em diversos países com investimento em teledramaturgias de temática bíblica.
Em um artigo sobre a teledramaturgia bíblica da Record escrito pelo antropólogo Jorge
GOMES, as novelas são definidas como “(...) produtos da indústria cultural imbricados, desde o
seu começo, em tensões e discussões a respeito das lógicas que fundamentam a demarcação de
fronteiras entre o domínio do religioso e do entretenimento”(Meyer; Moors, 2006 apud GOMES,
2017, p47)
Comprada pelo pastor Edir Macedo em 1980, a Record é desde 2007 a segunda maior
emissora de audiência e faturamento. A partir da compra dessa instância de comunicação em
massa, o canal torna-se fio-condutor de programas relacionados a própria instituição da Igreja
Universal do Reino de Deus (GOMES, 2017, p 50) Entre os programas citados pelo autor, “(...)
foram privilegiados os sermões performados por pastores e bispos, a transmissão de cultos, os
debates de cunho moral religioso, os programas que enfocavam as trajetórias de vida dos adeptos
(...)” Entre suas estratégias midiáticas, estavam em fazer programas curtos antes de exibições de
temática mediúnica na televisão. Para aproveitar a audiência desses programas, a Record oferecia
programas em temas que abordaram “(...)temas como o mal causado pelas ‘‘macumbas’’ e os
pactos com os ‘‘demônios’’ bem como as formas de vencê-los, inclusive por meio da conversão à
Igreja.” (GOMES 2017 p 52) Em determinado momento, passou-se a investir em uma
teledramaturgia que representasse todo o caráter ideológico da Universal.
Iniciada nos anos 1997 porém retomado novamente a partir do ano de 2012, às novelas
com temáticas religiosas fizeram parte da programação com recordes de audiência e adesão do
público. Não obstante, a partir de 2012 há em média uma novela bíblica ao ano, em um mesmo
momento onde há aumento de praticantes e igrejas evangélicas por todo o país.
Na maior parte das tramas, há um tom épico de raiz religiosa baseada em um cânone
bíblico. Ao mesmo tempo, a trama utiliza-se de uma linguagem de folhetim das novelas e
minisséries onde heróis bíblicos são ficcionalizados em histórias de amor e realização pessoal.
Voltado para a identificação de um grande público a narrativa bíblica incorpora elementos que
segundo o autor do artigo, nos deixa “diante de um ponto de indefinição no qual o mito, o
religioso, a narrativa de entretenimento de tom épico e o folhetim romântico habitam o mesmo
objeto.” De certa forma, essa indefinição inconscientemente remete ao hibridismo antropofágico
tão característico das obras brasileiras
O autor também coloca que “Por meio dessa produção, os grupos religiosos podem
difundir formas e elementos religiosos na ‘‘cultura pública’’ – uma situação de difícil controle ou
regulação, que recoloca novos desafios de autoridade em jogo, em especial em relação a
expectativas de laicidade promovida por agentes estatais seculares.” (GOMES, 2017, p 50)
Através de sua indústria cultural associada com forças de entretenimento, o canal forma vínculos
além de borrarem as fronteiras entre entretenimento, religião e arte/folhetim, também confundem
a divisão entre comércio e religião” (GOMES, 2017 p 63)

Essa programação não apenas aumentou o número de adeptos no Brasil, como também
teve sua produção exportada para países no qual a IURD se faz presente. Com o instrumento de
teledifusão, a programação das novelas está presente em países como Japão, Moçambique, Cabo
Verde, EUA (traduzida em espanhol, para um público hispânico) e em outros lugares onde Igreja
Universal infiltra-se ideologicamente no meio religioso sem deixar de difundir sua “teologia da
“prosperidade”
De forma similar, a economia escravocrata que se estabelecia no Brasil do período
colonial, necessitava de um órgão ideológico que não apenas justificasse sua missão, mas que
servisse para converter adeptos ao seu projeto colonial. Bem como era feito uma publicidade
institucional, em reportagens de pessoas dizendo como a IURD modificou suas vidas, o teatro
jesuítico representava e seduzia os indígenas para uma escolha de resignação. Através da
representação da a linguagem visual e oral que intenta produzir uma coerência entre as obras e o
interesse do qual elas representam.

Podemos pesquisar essa inter relação no teatro desde as tragédias gregas que serviam de
dever cívico e religioso para a população. Como cita Schola: (...) a religião e a mídia sempre
estiveram implicadas uma na outra. Ao longo da história, de muitas formas, a comunicação com
e sobre “o sagrado” foi empreendida através de diversas culturas materiais e formas de mídia,
começando com a própria linguagem (Stolow, 2014: 150 apud SCHOLA, 2017, p 49). A
constituição da religião encontrou diferentes formas de se demonstrar ao longo da história. Nem
sempre a religião e o teatro foram determinados como produtos.
Em razão da riqueza do assunto e da possibilidade de conexões e divergências que as
obras de cada uma dessas mídias possam trazer vejo que o assunto não se encerra nesse texto ou
em meus pensamentos. Acredito que uma pesquisa sobre esse paralelo pode render interessantes
sínteses. A partir de análises das obras, poderemos tratar dos discursos dessas obras que buscam
a implantação de uma nova cultura. Ver as heranças das forças dominantes em aculturar nossas
expressões nativas. Entender a mudança cultural em seus avanços e desníveis. Entre sua
resistência e contaminação, entre seu hibridismo e sua busca por uma verdade única.
Utilizando a crítica literária presente em Dialética da Colonização podemos traçar novos
meios para compreender as dinâmicas autênticas que a América do Sul produziu em seu processo
sócio-histórico. Para examinar como um complexo ideológico fomenta vínculos coletivos em
prol de seu projeto. Essa pesquisa faz-se necessária para pensar os processos neocoloniais a
partir dos processos históricos em um método científico que não apenas busca análises, mas
soluções para a materialidade.

Bibliografia:

ARRABAL, José e ALVES, Mariângela – O Nacional e Popular na Cultura Brasileira, Cap 2:


Você é Índio. 1982
BOSI, Alfredo – Dialética da Colonização, Companhia das Letras, São Paulo, 1992.
COSTA, Lara Valentina Pozzobon da – Na Boca do Estômago. Conversa com J.C. Martinez
Correia – Nuevo Texto Crítico, Año XII, Número 23/24, Enero-diciembre 1999, pp. 49-60
(Article)
GOMES, Jorge, H. S. – A teledramaturgia bíblica pela TV Record: sentidos e mediações a partir
da produção da mensagem –Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto
Alegre, ano 19, n. 27, p. 47-71, dezembro de 2017.
PRADO, Décio Almeida – As Raízes do Brasil, O Teatro Jesuítico, Editora Perspectiva SA,
2012.

Vídeos:
Os Aparelhos Ideológicos/ Entrevista de Mascaro à TV 247.
Disponível em: (3) OS APARELHOS IDEOLÓGICOS | Entrevista de Mascaro à TV 247 -
YouTube

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