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Brazilian Journal of Development 114675

ISSN: 2525-8761

Perspectivas midiáticas e construção de mitos: Olhares a partir do


sebastianismo em padre Antônio Vieira

Media perspectives and myth construction: Looks from sebastianism


in padre Antônio Vieira
DOI:10.34117/bjdv7n12-303

Recebimento dos originais: 12/11/2021


Aceitação para publicação: 01/12/2021

Fabrício Pinheiro da Silva


Graduado em Letras com habilitação em Língua Portuguesa, Inglesa e Literatura pela
Faculdade de Educação de Costa Rica/FECRA, graduado em Teologia pela Faculdade
Dehoniana e possui especialização em formadores de seminários e casas de formação
pela Faculdade Dehoniana.
E-mail: pefabri.pinheiro@hotmail.com

RESUMO
Os mitos sociais contemporâneos apresentam base constitutiva e inferências nas
perspectivas midiáticas. A partir da correlação referencial do sebastianismo em Padre
Antônio Vieira, pauta-se em um processo metodológico seguindo a base vieiriana sobre
a composição literária do sebastianismo no Brasil, o messianismo vieiriano, a cultura
midiática e a construção de mitos atuais. Discute-se também a posição das ferramentas
da mídia na estruturação das imagens, dos mitos e da percepção social das pessoas às
imagens simbólicas entre o produto e o desejo, pelo dinamismo da relação poder-
dependência aos mitos contemporâneos.

Palavras-chave: Mitos. Mídias. Sebastianismo.

ABSTRACT
Contemporary social myths have a constitutive base and inferences in media perspectives.
Based on the referential correlation of sebastianism in Padre Antônio Vieira, a
methodological process is conducted following the Vieirian base on the literary
composition of sebastianism in Brazil, Vieirian messianism, the media culture, and the
construction of current myths. The position of media tools in the structuring of images,
myths and the social perception of people to symbolic images between product and desire
is also discussed, by the dynamism of the relationship power-dependence to
contemporary myths.

Keywords: Myths. Media. Sebastianism.

1 INTRODUÇÃO
Um homem que gostava de tratar de assuntos que poucos discutiam durante o
ofício, orador, intuitivo, visionário e, ao mesmo tempo, imbuído de pedagogia: este era

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Antônio Vieira. Era padre, porém envolvido em assuntos políticos. Criticava a cultura e
a política de modo polêmico e sarcástico, tornou-se odiado pela corte portuguesa, pelos
colonos, pelos dominicanos e por tantos outros. No entanto, Padre (Pe.) Antônio Vieira
tem imensa importância para nossa literatura e educação.
Os pensadores Bauman e Mazzeo (2020) expressam, em um diálogo entre a
sociologia e a literatura, que esta última é extraordinária em sua capacidade de interpretar
nossas existências e acontecimentos de nossa época, e uma possibilidade de interpretação
de fatos das mídias sociais na construção dos mitos atuais. Por intermédio da perspectiva
crítica desses escritores, podemos posicionar as contribuições de raciocínio desse célebre
jesuíta, Padre Antônio Vieira, quando do seu ofício utilizava-se do púlpito para assuntos
políticos.
Pe. Antônio Vieira era jesuíta e contribuiu muito com a educação. Além de sua
função religiosa, muitas atividades que ele e outros religiosos exerciam entre os
portugueses constituíam uma forma de reforçar a sua posição política. Tinha presente em
sua maneira de agir o respeito pelo governo espiritual, que visava à salvação do homem
por meio da religião ou moral, também se referia àquilo que era sobrenatural; e o governo
temporal, poder do Estado como organização institucional privilegiada de comunicação
da vontade humana, também daquilo que era terreno, mundano, natural e político. Esse
era um estilo próprio dos inacianos: pessoas que valorizavam o político como expressão
fundamental da ação de Deus.
Na fase colonial do Brasil, a educação regida pelos jesuítas foi uma importante
obra realizada no que diz respeito às consequências para a nossa cultura. Além disso,
também implantaram instrumentos na propagação da cultura europeia por meio da
catequese aos índios nas aldeias, sempre fundamentada em uma educação religiosa. Eles
ficaram dois séculos à frente do ensino brasileiro e, conforme relata Olinda (2003), as
escolas fundadas pelos jesuítas iniciaram uma política educativa de disseminação da fé e
da obediência e, assim, não somente catequizavam, mas levavam a fé e a cultura ao povo
nativo.
Cabe mencionar ainda que a literatura nacional no período colonial entrecruza
diversos estilos, entre eles: barroco, arcádico e neoclássico. O Pe. Antônio Vieira é a
materialização dessa literatura nesse momento histórico. A colônia brasileira começa a
assumir a sua própria produção e estabelece certa competição com os portugueses.
Tal literatura, a brasileira, expressada com características portuguesas mesmo
tendo rivalidades existentes, pois não possuía um instrumento linguístico autônomo, se

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utilizava da língua trazida para o Brasil pelos colonos europeus. Por sua vez, essa língua,
a portuguesa, se sobrepôs às indígenas (nativas) como língua de cultura.

2 COMPOSIÇÃO LITERÁRIA DO SEBASTIANISMO NO BRASIL


No aspecto político, Portugal vivia sob o domínio espanhol e o Brasil constituía-
se como uma terra imensa e cheia de riquezas, localizada do outro lado do oceano
Atlântico, para onde partiram muitos portugueses em busca dessa fortuna e do sonho de
uma vida melhor. Para o país português, o Brasil era uma colônia e, em virtude dessa
característica, a literatura brasileira já nasce adulta.
Assim sendo, a literatura, a cultura e a política ficaram condicionadas e foram
guiadas em suas escolhas estéticas pelo modelo português e, gradativamente, a cultura
indígena foi substituída pelo padrão jesuítico.
No século XVI, os problemas econômicos, políticos, culturais e sociais em
Portugal precisavam de respostas e, nesse mesmo período, Pe. Antônio Viera começou a
ter uma influência literária. Além de seu ofício, ele era escritor e teve como missão
alimentar o povo com a esperança de que surgiria alguém que seria capaz de modificar a
realidade. Suas palavras no púlpito apresentavam um poder impressionante de renovação,
sempre proferidas com a intenção de transformação social; tentava atingir os estarrecidos
que, perante a ameaça de sérias opressões sociais, corriam o risco de perder a fé, o sonho
e o desejo.
Em meio às crises econômicas, para manter o padrão de uma vida luxuosa da
nobreza portuguesa, o governo sobrecarregava a população com a cobrança de impostos.
Isso gerou revoltas e tentativas de golpes. Dessa maneira, inicia-se um período de
perseguição aos cristãos-novos.
Existem diversos escritores que alimentam a esperança do povo por meio de
mitos. Nesse prisma, Bosi (1977) relata que os estudos sobre o sebastianismo português
estão relacionados ao messianismo rústico e as situações de crise e de opressão
desencadeiam forças profundas de resistência que geraram movimentos sociais e formas
simbólicas mito-poéticas.
Os textos da Idade Média são cheios de fantasia e de uma natureza severa, assim
como as raízes da literatura brasileira, que não segue o mesmo caminho da literatura
portuguesa. Ela começa a divergir desde o início do século XVI, e isso se deve ao fato da
distância e do primitivismo da nova terra descoberta e nesse período não existirem muitos
leitores e poucas eram as fontes de alimento intelectual.

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O estudioso Bosi (1977) aborda os temas do mito, do rito e do sonho. O primeiro


é uma longa estrada que percorre as voltas da memória e surpreende as analogias novas
que formam o centro dos seus procedimentos simbólicos. Ele trata da poesia e do universo
mágico que os novos períodos renegam. O discurso mitopoético tenta reviver a grandeza
heroica e sagrada dos tempos originários, unindo lenda e poema, mythos e epos.
A verdadeira poesia inventou mitologias libertadoras como resposta às tensões de
violência. A poesia do mito e do sonho torna-se pública e universal. Os grandes mitos
funcionais não coincidem concretamente com as imagens que os poetas evocam para
esconderem a opressão e não convergem para aquele sentido vivo e encantador que as
figuras da infância ou da tradição popular assumem no contexto do poema. Assim, têm-
se a poesia e os poetas como resposta ao desencantamento do mundo, algo que tem
marcado a história de todas as sociedades capitalistas. O espírito poético pode
“reencontrar, no meio das complicações preexistentes da vida moderna, a independência
individual perdida” (BOSI, 1977, p. 153), ou seja, a resistência da poesia como uma
possibilidade histórica.
Nesse contexto, Alcântara (2009) relata que após tantas crises sucessórias entre os
reinos da Península Ibérica, o saudosismo começou a ressurgir em Portugal. Entre os
precursores, achava-se um sapateiro de Trancoso apelidado de Bandarra (1545), que se
propôs a ler a Bíblia em português e, apaixonado pelo que lia e livremente interpretava,
começou a fazer trovas que no futuro inspiraram Pe. Antônio Vieira e Fernando Pessoa.
Bandarra era a ligação profética e poética que, mesmo sem o saber formal, propagava o
espírito da Reforma. Segundo Neves (2009), nas trovas de Bandarra estava presente o
sebastianismo que previa levantar o Quinto Império.

3 MESSIANISMO VIEIRIANO
O saudosismo vieiriano foi praticamente messiânico e esse messianismo de Pe.
Vieira foi a metafísica escolástica animada pela fé. A metafísica na filosofia estudava as
coisas que existiam no mundo utilizando-se de raciocínios e argumentos. Por seu turno,
a escolástica foi a produção filosófica na Idade Média entre os séculos IX e XIII. Cabe
ressaltar que a escolástica foi um período de intenso domínio católico na Europa e sua
estrutura está relacionada ao seu tempo.
Já o messianismo, profetismo, está na base da parenética (do grego parainetikós),
na coleção dos sermões ou discursos morais da época e previa um império e um rei.
Bandarra (1545) profetizava a volta de Dom Sebastião: um homem que tinha perdido o

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pai duas semanas antes do seu nascimento e havia recebido uma educação religiosa,
tornando-se um católico fervoroso. Isso reforçou o desejo do nascimento de um príncipe
que continuasse o governo. Ele assumiu o trono aos 14 anos e Portugal teve um período
de glória. Diziam que ele era teimoso e isso parece ter fundamento, pois seu tio, o rei
Felipe II da Espanha, tentou convencê-lo a não declarar guerra no Marrocos contra os
Mouros, mas não adiantou. Dom Sebastião tinha 24 anos quando seu exército enfrentou
as tropas do sultão Ahmed Mohammed, perto da cidade de Alcácer-Quibir, no Marrocos,
país localizado ao norte da África. Ele desapareceu após essa batalha, em agosto de 1579.
Com isso, estava aberta a longa e aflita temporada de espera pela volta do rei.
De acordo com Tucci (1984), a figura real e o mito do sebastianismo se misturam
com a pessoa do rei Dom Sebastião. Sua volta à pátria foi aguardada por décadas, mesmo
após a impossibilidade de ele estar vivo. A ausência do corpo fortaleceu as lendas e a
espera do povo português pelo retorno do seu líder. Era a mesma esperança que alguém
viria para salvar Portugal das suas crises econômicas e políticas. Dessa maneira, ele se
transformou em uma lenda de salvação do país.
Pe. Vieira lia as profecias de Bandarra, mas as interpretava de forma diferente.
Vieira tinha uma tendência mística sustentada pela leitura de vários livros da Bíblia, assim
como Bandarra. A influência era tida de modo particular pelos livros de Daniel, Ezequiel,
Zacarias e Apocalipse. Dessa forma, o mito do Quinto Império foi construído, tornando-
se uma característica do Sebastianismo.
O pesquisador Storniolo (2007) descreve que o profeta Daniel, livro e
personagem bíblico, tentou interpretar os sonhos do rei Nabucodonosor. Em um deles, o
rei, que é símbolo do imperialismo, sonhou com uma estátua formada por diversos
materiais, como ouro, prata, bronze e ferro-barro, que significavam, respectivamente, os
seguintes impérios: babilônico, medo, persa e grego. É importante salientar que o barro
estava misturado com o ferro. Nesse sentido, ele estava se referindo ao tempo conflitivo
que estava vivendo: era firme como o ferro, mas também frágil como barro. Pe. Vieira
fazia uma interpretação teológica dessa passagem afirmando que o Quinto Império seria
o universalismo da Igreja Católica, como governo espiritual, e o domínio monárquico de
Dom João IV, como governo temporal.
Para Pe. Vieira, o mítico Quinto Império seria de domínio universal. Esse mito
surgiu para alimentar os portugueses ao desejo de serem criadores de civilização. Muito
provavelmente, essa ideia chegou ao Brasil com a contribuição de Pe. Vieira, porém com
uma nova roupagem. Segundo Tucci (1984), o império, na concepção de Vieira, seria o

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judaico-cristão, formado numa dinâmica espiritual que pudesse contemplar toda a


humanidade e o rei salvador não seria Dom Sebastião, mas Dom João IV, que era
conhecido também como João IV de Portugal e II de Bragança. O rei nasceu em 1604 e
faleceu em 1656, foi rei de Portugal e fundador da Casa de Bragança, além de grande
responsável pela restauração da soberania portuguesa, até então dominada pelo reino
espanhol. Pe. Antônio Vieira era bastante reconhecido do monarca Dom João IV, que o
teve como interlocutor, conselheiro e amigo.
Segundo Marques (2015), Pe. Vieira pregou na Igreja Catedral da cidade da Baía,
em 16 de dezembro de 1688, o Sermão de Ação de Graças pelo nascimento do Príncipe
Dom João IV:

[...] primogénito de suas Magestades, que Deus guarde Dom Henrique, como
Fénix nasceu Dom João ressuscitado; e Dom Sebastião concorreu com as suas
cinzas para a vida do mesmo Rei; porque debaixo das cinzas del-Rei Dom
Sebastião morto se conservou Dom João vivo (MARQUES, 2015, p. 228).

Nessa perspectiva, o mito reflete o tempo histórico e revela questões econômicas,


políticas e sociais, assim como mostra quais eram as apreensões da sociedade e as
preocupações do ser humano. O Sebastianismo foi um dos mitos mais divulgados na
Europa oitocentista, reacendendo a esperança do povo português em situação de
problemas financeiros, políticos e culturais, era o medo de uma nação falida.
Bosi (1977) faz uma análise do profeta Isaías, o qual podemos associar ao profeta
Daniel quando entende o messianismo como o momento subversivo do pensamento
religioso, como signos do futuro, do poema utópico e do poema político.
Pe. Vieira quase foi expulso da Companhia de Jesus devido a sua fidelidade a D.
João IV, pois ele tinha o prazer de fundar a sua vida na amizade com o monarca. Sofreu,
então, as penas regimentares da instituição e foi enviado à capitania brasileira do
Maranhão. Além disso, ficou desprotegido depois que o rei morreu e acabou caindo nas
amarras da Santa Inquisição.
Franco (2009) relata que a solução de Pe. Vieira para os problemas do mundo não
passava da instituição do amor de Cristo que deveria transformar todas as instituições.
Padre Antônio Vieira procurou responder às contradições do seu tempo com a palavra
utópica que, de algum modo, semeou os projetos práticos de reforma de seu país. Teve,
ainda, a audácia de pensar na imperiosa união dos povos com objetivos comuns e sentir
a necessidade de construir a harmonia universal. Seu sonho não era loucura. Essa utopia
é uma exigência do serviço político que precisa de autoridade universal para assegurar a

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paz, a reconciliação e a solidariedade entre os homens. O Quinto Império, portanto, é o


nome simbólico de todas as aspirações de unidade, de paz e comunhão entre os seres
humanos e simboliza a urgência da efetiva humanização do mundo.

4 PARENÉTICA VIEIRIANA: CULTURA MIDIÁTICA E MITOS ATUAIS


O filósofo Lévi-Strauss (2017) escreve que a mitologia pode ser considerada um
reflexo da estrutura e das relações sociais e que o objetivo próprio dos mitos é oferecer
uma derivação para os sentimentos mais recalcados. Alguns afirmam que os mitos
expressam sentimentos fundamentais como o amor, o ódio ou a vingança de cada
sociedade. A mitologia sofre com os métodos de estudo, muitas vezes com interpretações
ultrapassadas conduzidas ao longo de décadas.
Vale ressaltar que o mito se define por um sistema temporal, pois sempre se refere
a eventos passados, mas o valor intrínseco a ele atribuído provém do fato de os
acontecimentos que se supõe ocorrer também formam uma estrutura permanente, que se
refere, simultaneamente, ao passado, ao presente e ao futuro. Segundo Lévi-Strauss
(2017), nada se parece mais com o pensamento mítico do que a ideologia política. Em
nossas sociedades contemporâneas talvez ela apenas o tenha substituído.
No período colonial, o mito do sebastianismo vieiriano ajuda a interpretar a
estrutura de nosso tempo presente e a discutir a publicidade contemporânea para apontar
luz aos homens de hoje para verem caminhos de uma aldeia global mais humanizada. Pe.
Vieira defendia o que ele denominava de “Império do Amor” e não era um sonho de
ignorantes, pois se fosse assim ele não seria considerado o “Imperador da Língua
Portuguesa”, referência dada por Fernando Pessoa (1992), ou ainda, um padre que
“pregava de encostar as orelhas na boca do bárbaro”, conforme descreve Manoel de
Barros (2015). Esse sonho era de homens inteligentes.
Nesse contexto, o sebastianismo é lembrado por alguns renomados escritores
brasileiros, como José Lins do Rego, Ariano Suassuna e Euclides da Cunha, no tocante à
capacidade mitológica de reacender a esperança do povo brasileiro em situação de
grandes problemas financeiros, políticos e culturais.
Atualmente, a cultura comum que forma o ser humano na tecnologia produz seus
mitos por intermédio da mídia. A publicidade também põe à disposição alguns
equivalentes funcionais do mito. Ambas solucionam contradições sociais e enaltecem a
ordem social vigente. A harmonia de convivência social prevalece na cultura midiática.

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Segundo Kellner (2001), a propaganda fornece um repertório de mitologias


contemporâneas e constrói um símbolo cultural identificável. As figuras simbólicas na
publicidade tentam criar uma associação entre o produto e o desejo. As imagens da
natureza são mitológicas nesse mundo da propaganda e encobrem o perigo; as ilustrações,
os textos e os anúncios camuflam contradições publicitárias, indutoras entre o objeto e a
vontade.
No messianismo anunciado por Padre Antônio Vieira, os conteúdos também
desvelavam símbolos culturais identificáveis: o poder da Igreja Católica e a obediência
ao Papa como legítimo representante da Igreja e um único império simbolizado pelo
monarca Dom João IV. Eram os poderes temporal e espiritual. Pe. Vieira era alguém de
tanta inteligência que tinha acesso aos dois. O produto seria a salvação das almas ou a
moral cristã. Já o desejo seria manifesto por meio da eloquente retórica, da catequese ou
da instrução.
Nesse prisma, atualmente, o celular, a televisão e o computador são o púlpito. A
publicidade, a propaganda e o entretenimento ocupam a figura do pregador. O império
português do passado se materializa no domínio norte-americano ou no chinês. A
estrutura de poder desloca-se em novos arranjos.
O mito do retorno de Dom Sebastião criava nas pessoas o desejo. O recurso mito-
poético teve o objetivo de unir os indivíduos em vista da reconstrução política e
econômica, como uma espécie de domínio visando a libertação.
No mundo contemporâneo, as possibilidades de dominação e opressão mediante
a aplicação midiática acontece sutilmente na manipulação da consciência revestida da
falsa ideia de ampliação da liberdade. As instituições estão fragilizadas em relação às
escolhas individuais, a indiferença social e a crise argumentativa das autoridades integram
essas práticas relacionais.
A relação humana existente entre os dominadores e os dependentes constitui
apenas uma dimensão conflitiva divisora das pessoas. O ser humano não possui apenas
uma perspectiva existencial, possui diversas, e os meios digitais invadem todas as demais,
como a física, a espiritual, a intelectual e a afetiva. As tecnologias digitalizadas virtuais
estão estabelecendo um processo transformador na relação mútua entre dominantes e
subalternos.
A cultura do Padre Antônio Vieira utiliza-se de um instrumento tradicional, em
que o púlpito é a ferramenta de poder. Hoje a parenética que soa da tribuna não é tão

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poderosa quanto em tempos de outrora. O poder do púlpito desloca da oralidade para,


literalmente, as hábeis mãos que manipulam o teclado dos dispositivos tecnológicos.
Um grande número de usuários dos meios de comunicação quer se expressar, quer
ter razão, deseja manifestar a própria opinião. Segundo Sodré (2002), não estamos lidando
com a mídia tradicional ou linear, mas com ambientes digitais da nova mídia, onde o ser
humano pode participar e viver a cena. A vida torna-se virtual também. Isso implica em
um novo tipo de relacionamento, novas antropologia, política, educação, sociedade e um
púlpito moderno.
O mundo tecnológico é indiferente ao tempo cronológico, pois as informações
chegam de forma muito rápida. As pessoas precisam de tempo para discernir e decidir, e
nem sempre isso é respeitado no processo tecnológico, o que torna difícil essa relação ao
tempo originário. A fluidez dos processos sociais acontece no decorrer do tempo, mas a
velocidade, a aceleração e a rápida transmissão de dados são os discursos inovadores
presentes no universo midiático.
Sendo assim, as pessoas que tem o poder de manipular as ferramentas da
informação pelas mídias apresentam um universo mercadológico dominador muito vasto
com diferentes instrumentos de poder e de construção de mitos. A formação da
consciência crítica no uso das mídias permite que os indivíduos utilizam os dispositivos,
mas não os outros sujeitos. Existe aí a sensível fronteira entre o real, o virtual e a própria
criação de mitos sociais, sendo essa característica a maior dificuldade de estabelecer
critérios na ética do relacionamento.

5 O PODER-DEPENDÊNCIA NA CULTURA MIDIÁTICA


Essencialmente, a proposta de discussão a ser exercitada aqui é o mito do
sebastianismo e, também, estabelecer uma hermenêutica dessa linguagem vieiriana no
mundo contemporâneo. Assim, cabe mencionar que o mito do sebastianismo era usado
pelo poder religioso e político de Pe. Vieira na relação de pregador e ouvinte. Hoje, com
outros personagens e construtores simbólicos, o mito está sendo reinventado numa
relação de produto e consumidor. Cria-se o desejo de poder e de fantasia por meio dos
objetos.
As mídias não servem apenas para informações, mas são instrumentos a serviço
da integração humana. Por sua vez, o mito contemporâneo tem a missão de interligar as
fronteiras geográficas, humanas e existenciais. Os símbolos e as imagens no período

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colonial eram usados para fomentar o desejo na sociedade, atualmente, a mídia cria o
mesmo sentimento por meio da publicidade.
O mito é usado na experiência política nos diversos setores comunitários, levando
em consideração o poder indivualista e a relação de poder-dependência. Existe uma
fronteira muito sensível geradora de dependência entre o produto e o consumidor. O
discernimento como fonte de decisão e de crítica permite interpretar adequadamente a
relação do ser humano, examinando seriamente todas as suas dimensões, a fim de
estabelecer uma forma mediadora madura na atitude relacional, que aproxima a pessoa
de toda sua integralidade, tornando-a menos alienada possível.
Segundo Marques (2015), no “Sermão da Epifania” pregado à Rainha Regente na
menoridade de el Rei, na ocasião em que a Companhia de Jesus chegou a Lisboa expulsa
das missões do Maranhão por defenderem os injustos cativeiros e a liberdade dos índios,
Pe. Vieira afirmou que era obrigação deles servirem aos índios, e não os nativos servirem
a eles, como estava acontecendo. Os indígenas levavam os padres em uma canoa, a
qualquer hora do dia ou da noite, quantas léguas fossem necessárias e a atitude relacional
que se desejava criar com aqueles que vinham de Portugal para o Brasil era de extrema
alienação.
O mito, hoje, está além de uma lenda contada e propagada, como acontecimento
histórico ou não, tentando unir passado e futuro. O universo midiático torna o ser humano
subjetivo. A cultura contemporânea transforma a prática relacional. O mito invade os
valores definidos pelos juízos morais àquilo que diz respeito aos seus interesses pessoais,
às suas relações privadas. Por meio de escolhas individualistas, o indivíduo coloca em
detrimento a adequação da ordem social, e classifica como secundário o que é público ou
comum.
A forte emotividade individual prevalece sobre o comunitário. A cultura atual
aponta para um relacionamento individualista e para a busca de poder. Esse caminho faz
o relacionamento individual egoísta dentro de qualquer ambiente social. A primeira
pessoa do plural é quase que inexistente. O mundo do entretenimento está invadindo as
experiências escolares, profissionais e recreativas; a dimensão da partilha e da vida
coletiva está fragilizada e, assim, a perspectiva relacional fica desintegrada.
Nesse sentido, a propaganda fornece uma gama enorme de mitologias
contemporâneas, cria imagens simbólicas na relação entre produto e desejo. Ter
consciência de que as pessoas não são objetos estabelece uma posição crítica diante da
cultura pós-moderna e se concretiza depois de um amadurecimento da própria identidade.

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Ao identificar o dinamismo da relação poder-dependência do ser humano em vista


do seu crescimento pessoal é possível ajudar a trilhar seu caminho de libertação sem se
deixar manipular pelas mídias sociais digitais, analisando os aspectos conflitivos
existentes no mundo real e virtual.
A relação do ser humano nas mídias sociais tem deixado as pessoas expostas,
considerando-se a capacidade de impacto em suas vidas quanto ao poder de filmar, gravar
e registrar qualquer gesto ou expressão cotidiana. Isso demonstra um grande acesso à
informação, mas desnuda a vulnerabilidade do homem.
O problema evidenciado pela situação da desintegração humana reflete um sinal
de alerta na manipulação dos recursos midiáticos, dos mitos e símbolos produzidos. Nesse
paralelo com a utopia do retorno de D. Sebastião ou de D. João IV na construção de mitos
por Pe. Vieira, atualmente, as inúmeras imagens utópicas tentam seduzir as pessoas ao
consumo exagerado de informações e entretenimento, pois as visões medievais ou
barrocas são convertidas em imagens e slogans da indústria cultural. As estruturas de
dominação são facilmente substituídas por novas ferramentas e o contato com a realidade
virtual faz o poder dominador concentrar-se nas mãos de poucos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Padre Antônio Vieira teve como objetivo a defesa dos injustiçados, notadamente,
os pretos, índios e judeus, em um projeto cultural e político denominado “Império do
amor universal” que seria implantando em seu mundo temporal. Ele lutou
incansavelmente ao enfrentar o tratamento desumano dado aos nativos que vinham da
África para serem escravizados. Além disso, enfrentou o servilismo humilhante dos
indígenas e alimentou a convicção de uma crença messiânica que contornaria a
escravidão, em favor da liberdade dos oprimidos.
A tentativa de atualização da crença messiânica de Pe. Vieira é, na verdade, esse
olhar crítico da utopia imputada nas mentes brasileiras, de passado marcado pela
escravidão de grande parte da população que foi privada de seu protagonismo. Por essa
estrutura colonial de dominação presente na cultura nacional, Padre Antônio Vieira
insistia, em diversos sermões, na necessidade de questionar a realidade, afirmando que os
olhos tinham um papel muito importante, porém, advertia para o perigo de não se perder
através da visão. De acordo com Marques (2015), no prólogo do “Sermão da quinta terça-
feira da quaresma” pregado em Roma na língua italiana à Sereníssima Rainha da Suécia,

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Pe. Vieira expressou que o desejo natural do ser humano de ver era muito grande, mas o
apetite de ser visto, de ser reconhecido, era muito maior.
Na coleção completa das obras de Vieira (MARQUES, 2014), o púlpito desse
padre era considerado a única tribuna com certa liberdade em uma época que nem as
instituições parlamentares se comunicavam com tão grande público e com tanta eficácia.
Ele se utilizava desse instrumento com responsabilidade e competência, fazendo desse
local um espaço destinado a abater poderosos, a combater injustiças e, assim, refutar os
erros doutrinários.
Nesse sentido, ressalta-se que o dominador oprime a consciência do dependente
de forma monstruosa e violenta. Hoje, o mundo virtual envolve as vítimas da sua própria
falsidade. As violências aumentam cada vez mais, visto que a humanização passa
despercebida no processo midiático. Sendo assim, as mídias poderiam oferecer serviços
com essa mesma intencionalidade, estimulando, pelo seu amplo e eclético poder
disseminador, mais fraternidade e amor à humanidade, princípios aos quais o Padre
Antônio Vieira defendeu por toda a sua vida.

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REFERÊNCIAS

ALCÂNTARA, Maria Beatriz Rosário de. O saudosismo, Pe. Antônio Vieira e o quinto
império. In: NEVES, João Alves das (org.). 400 anos: padre Vieira “Imperador da língua
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