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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LETÍCIA KATIANE MARTINS

A INSUFICIÊNCIA CARDÍACA E OS DESAFIOS DA ADESÃO AO TRATAMENTO:


UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA POLÍTICA DE COMBATE ÀS DOENÇAS
CRÔNICAS NÃO TRANSMISSÍVEIS

CURITIBA
2022
LETÍCIA KATIANE MARTINS

A INSUFICIÊNCIA CARDÍACA E OS DESAFIOS DA ADESÃO AO TRATAMENTO:


UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA POLÍTICA DE COMBATE ÀS DOENÇAS
CRÔNICAS NÃO TRANSMISSÍVEIS

Trabalho apresentado à disciplina de


Políticas Públicas em Saúde do Programa
de Pós-graduação em Enfermagem da
Universidade Federal do Paraná como
requisito para obtenção de nota.
Linha de pesquisa: Processo de cuidar em
Saúde e Enfermagem
Orientador: Dra. Nen Nalú Alves das Mercês

CURITIBA – PR
2022
REFLEXÃO TEÓRICA

A Insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome que pertence ao grupo das


doenças cardiovasculares (DCV). Estas são consideradas doenças crônicas não
transmissíveis (DCNT) e constituem um grupo de doenças de grande relevância
mundial, devido às altas taxas de morbimortalidade da população, principalmente
àquelas mais vulneráveis, como idosos e pessoas de baixa renda e escolaridade
(BRASIL, 2021).
Além de ser a principal causa de morte em todo o mundo, as DCV e a IC
acarretam em diminuição e/ou perda da qualidade de vida, mortes prematuras, e
diversos impactos individuais, econômicos e sociais tanto para o indivíduo, quanto
para sua família e comunidade (OLIVEIRA, 2021). A IC é uma patologia grave,
progressiva, que aumenta conforme a faixa etária e o número de comorbidades
associadas. É a consequência final de inúmeras patologias cardíacas (PAULUS,
W.J.; TSCHOPE, C.; 2013; ROHDE, L. E. P.; 2018). É marcada por sinais e
sintomas emocionais e físicos muitas vezes incapacitantes, sensibilizando a
qualidade de vida do indivíduo. O declínio funcional, mudanças de papeis sociais,
depressão, episódios de exacerbações e consequentes hospitalizações geram o
agravamento da vida do paciente e da família (HRITZ, 2018).
O tratamento da IC está intimamente ligado aos fatores fisiopatológicos das
complicações da doença. O tratamento se dá pela associação do tratamento
farmacológico com o não farmacológico, sendo ambos o padrão-ouro para o
tratamento de pacientes com IC. A equipe multidisciplinar é a mediadora entre o
paciente e o cuidados, devendo haver acompanhamento regular deste paciente e
família (ROHDE, et al., 2018). As mudanças de hábitos de vida incluem,
principalmente, a alimentação adequada na redução de sódio, gorduras e alimentos
processados; ingesta hídrica adequada (WOJNOWICH; KORABATHINA, 2016;
ROHDE, et al., 2018); controle de peso (ROHDE, et al., 2018); cessação do
tabagismo e consumo adequado de álcool e atividade física de acordo com as
condições do indivíduo (ROHDE, et al., 2018).
Devido aos episódios de exacerbações, a IC é a principal causa de
hospitalização por DCV. Bocchi e colaboradores (2012) afirmam que o principal
motivo causador é a má adesão da terapêutica básica, onde incluem-se o excesso
de sódio e de líquidos, controle inadequado de pressão arterial, isquemia
miocárdica, arritmias, introdução de novos medicamentos, infecções por pneumonia
ou outros vírus, tromboembolismo pulmonar, anemia e abuso de álcool ou drogas,
sendo que a maioria destes fatores poderiam ser evitáveis (OGBEMUDIA et al.,
2016). Vale ressaltar que o Brasil é o país que apresenta uma das mais elevadas
taxas de mortalidade intra-hospitalar em indivíduos com IC, pois ainda apresenta
monitoramento e controle inadequado de hipertensão arterial e diabetes (BOCCHI et
al., 2013).
A fim de compreender o processo e as expectativas da IC, é necessário a
compreensão das DCNT e características demográficas do país e do mundo.
Observa-se um aumento progressivo na expectativa de vida e aumento da
proporção de idosos nos próximos anos, variando entre as diferentes regiões do
país, de acordo com as diferenças socioeconômicas, culturais, urbanização e de
acesso ao serviço de saúde (BRASIL, 2021).
Considerando que os idosos são os principais acometidos por DCNT e, tendo
em vista a intensa transição demográfica, na qual há uma inversão da pirâmide
etária devido a diminuição das taxas de fecundidade e consequente crescimento da
população idosa nos próximos anos, é indiscutível que a tendência é que ocorra um
aumento importante da prevalência das DCNT no mundo e, também, das DCV e IC
(LEITE-CAVALCANTE, 2009; BRASIL, 2021; OLIVEIRA, et al., 2021).
Por isso, é necessário buscar planos e estratégias para minimizar os impactos
do envelhecimento e adoecimento da população, partindo do nível individual para o
coletivo. Considerando que o motivo para as hospitalizações de IC é a
descompensação cardíaca, é necessário pensarmos nos fatores que podem estar
ligados a essa descompensação, e a não adesão a terapêutica básica é um destes
fatores (BOCCHI et al, 2012).
No ponto de vista pessoal, a não adesão à terapêutica pode estar ligada à
diversos fatores, inter-relacionados ou não, que incluem: falta de acesso aos
serviços; falta de entendimento das orientações; polifarmácia; baixa escolaridade;
condições socioeconômicas; hábitos socioculturais perpassados a cada geração.
Tavares e colaboradores (2016) retratam em seu estudo, que fatores
socioeconômicos como renda e escolaridade estão relacionados à baixa adesão ao
tratamento de doenças crônicas, além de haver uma associação significativa entre o
maior número de doenças crônicas e baixa adesão, contribuindo para a polifarmácia
e multicomorbidades. Tendo em vista que o perfil de pessoas acometidas pela IC
são idosos, mulheres, com múltiplas comorbidades associadas (hipertensão,
fibrilação atrial, doença coronariana, diabetes, doença renal crônica e doença
respiratória obstrutiva crônica) (ZAKERI; COWIE, 2018), é perceptível a relação
entre os fatores identificados pelo estudo de Tavares (2016), principalmente no que
se relaciona ao maior número de comorbidades. Dessa forma, a maioria destes
indivíduos precisam conviver com os sintomas e realizar o tratamento das outras
patologias, estas que, por si só já contribuem para a baixa adesão.
Contudo, para melhor compreensão do assunto, é necessário pensar no
sujeito na busca pelo autocuidado com ou sem um processo de adoecimento. Ao
refletir sobre o tratamento, os sintomas que o indivíduo experimenta, as mudanças
no seu estilo de vida, seus hábitos e aspectos culturais, crenças, valores e
princípios, bem como a realidade em que está inserida, dá-se o primeiro passo para
entender o que aquela doença significa para cada um, sendo possível deflagrar
sobre a sua adesão ao tratamento, em busca da promoção da saúde e autocuidado.
Este pensamento também é compartilhado por Baran (2016), quando afirma que a
compreensão do contexto sociocultural de cada sujeito é importante para o
entendimento da forma como cada pessoa realiza os cuidados à saúde.
Diante disso, considerando os diversos fatores de risco para DCNT
modificáveis, como obesidade, hábitos alimentares inadequados, sedentarismo,
tabagismo, etilismo, poluição ambiental e saúde mental (BRASIL, 2021), é evidente
que a mudança de hábitos de vida (MEV) é uma medida eficaz e urgente para
indivíduos com alguma DCNT - neste caso a IC -, não só como medida de
prevenção da doença e agravos, mas de melhoria da qualidade de vida, melhor
prognóstico e controle da progressão da doença. Não se limitando apenas à ações,
mas também ao contexto pessoal de cada indivíduo que o leva a praticar hábitos
inadequados de saúde.
Também é vital que se compreenda como a doença interfere na vida do
indivíduo, como seus hábitos impactam na sua qualidade de vida e progressão da
doença, de que forma o indivíduo visualiza seus hábitos de estilo de vida, e como a
mudança irá influenciar na sua vida diária. Pensar nos hábitos pré-existentes, sua
história, origens e significados é crucial para compreender em que ponto deve-se
agir na intervenção em saúde, tanto a nível individual quanto coletivo.
Para compreender esta ideia de forma teórica, podemos associar esta
discussão com o modelo conceitual de Sistemas de Cuidados à Saúde (SCS) de
Arthur Kleinmann, refletindo a forma em que a doença interfere na vida cotidiana das
pessoas. O autor é especialista em doenças crônicas, e por isso sua teoria pode ser
oportuna para discussão desta temática (KLEINMANN, 1980).
O autor afirma que cada indivíduo está inclinado de maneiras distintas a
determinadas concepções de doença e cuidado em saúde, ou seja, cada sujeito
possui sentimentos e comportamentos diferentes em relação à sua saúde. Para ele,
teorias e crenças constituem um sistema cultural e dão significados à certos padrões
de comportamentos, pois os aspectos socioculturais interferem no processo saúde e
doença (KLEINMANN, 1980). Desta forma, o modelo baseia-se na ideia de que em
todas as culturas, a doença, as respostas e experiências, o tratamento e as
instituições sociais estão intimamente inter-relacionadas, e essa inter-relação
constitui o SCS.
A aplicabilidade deste modelo conceitual para a temática discutida neste
artigo, é que os indivíduos portadores de DNCT tem sua visão particular a respeito
da sua saúde e doença, dos seus hábitos de vida e comportamentos que interferem
de maneira negativa ou positiva na qualidade de vida diária. E que a mudança de
hábitos implica não somente em mudar ações, como também, modificar padrões de
pensamento, comportamento, crenças e valores que, por vezes estão enraizados na
cultura de cada indivíduo/família/sociedade.
Essa questão cultural, além de outros fatores, desafia os profissionais de
saúde no auxílio às mudanças de hábitos de vida dos indivíduos, pois é necessário
que haja o reconhecimento de que ele necessita dessa mudança, bem como a
atitude para modificar seus hábitos, pois nós, enquanto profissionais de saúde,
podemos COM ele, ajudar a melhorar seus hábitos, mas não podemos fazer POR
ele. Contudo, apenas o reconhecimento da necessidade de mudança e sua vontade,
isoladamente, podem não ser suficientes para que haja realmente uma mudança de
hábitos de vida.
É necessário questionarmos se estes indivíduos possuem condições que
permitam essa mudança de hábitos. Ou seja, será que eles possuem condições
para comprar os alimentos necessários? Uma pessoa sem uma rede de apoio
consegue deixar seus 4 filhos pequenos, sozinhos em casa para realizar 30 minutos
de exercício? Um idoso que mora sozinho em uma região remota e sem
saneamento básico e depende de terceiros para ir até a unidade de saúde e ao
mercado, consegue ir no momento que lhe convém buscar atendimento em saúde e
fazer compras básicas para alimentação? A senhora que trabalha sem carteira
assinada, recebe seu rendimento conforme horas trabalhadas, paga aluguel e mora
com seus dois filhos, teria facilidade em sair do seu horário de trabalho para
frequentar como precisa a unidade de saúde? Certamente essas pessoas possuem
maior dificuldade no acesso ao serviço de saúde e muitas vezes no acesso a
alimentos básicos. Neste caso, o problema não está na cultura, está no acesso, na
vulnerabilidade do indivíduo e do grupo.
Por isso, é necessário pensarmos em políticas que garantam ou, pelo menos,
que facilitem o acesso aos serviços de saúde, acesso a saneamento básico, à
alimentação, à saúde e favoreçam o indivíduo a fazer escolhas saudáveis.
O Ministério da Saúde, em seu manual de planos estratégicos para combate à
DCNT, descreve que determinantes como acesso a bens e serviços públicos,
garantia de direitos, informação, emprego e renda impactam importantemente nas
DCNT e buscam fortalecer as políticas e programas para o enfrentamento às DCNT
(BRASIL, 2021).
Acredito ser importante o fortalecimento de políticas públicas no combate à
DCNT, contudo, é preciso ter um olhar apurado em relação a realidade do brasileiro,
no sentido cultural, social, econômico e, também, educacional. É preciso dar
condições para que ele tenha acesso à rede de apoio, acesso à bens e serviços
básicos. Ao garantir ou, no mínimo, facilitar o acesso, pode-se fortalecer também a
educação da comunidade no intuito de responsabilizá-los também pelas suas
decisões no que tange aos hábitos de vida, tendo em vista que cada indivíduo é
dono de sua saúde.
Para intensificar ainda mais o que já vivíamos, a pandemia da Covid-19
trouxe à tona um dos maiores desafios a serem enfrentados: a falta de informação e
a falta de acesso. A primeira não apenas do paciente e usuário do serviço, como
também do profissional de saúde, pois ambos questionam a ciência até hoje e em
alguns casos, realizam intervenções duvidosas e sem evidência científica. Quanto à
falta de acesso, refiro-me aos diversos pacientes com DCNT que necessitaram de
atendimento de saúde e devido às condições sanitárias emergenciais, tiveram seu
direito à saúde negado em decorrência do fechamento das unidades de saúde da
família, remanejamento de profissionais e demais condições financeiras decorrentes
da falta de investimento na área da saúde.
Diante disso, vejo que nós, profissionais da saúde e enfermeiros, estamos
fadados à limitações socioeconômicas do grupo, família e comunidade que assola o
Brasil em todas as regiões, além da falta de investimentos em políticas de saúde
que melhorem o acesso aos bens e serviços. Não conseguimos, muitas vezes,
realizar o trabalho conforme a prática baseada em evidências, devido à tantos
percalços vividos no cotidiano do trabalho. Cabe à nós enfermeiros, realizarmos o
diagnóstico situacional de acordo com o perfil de clientela que trabalhamos em cada
região, e oferecermos o serviço de enfermagem que aquele indivíduo necessita,
partindo das condições que possuímos, buscando sempre o aperfeiçoamento
profissional e psicológico a fim de oferecer o melhor cuidado ao paciente,
respeitando o código de ética no que tange aos direitos e deveres do profissional, e
respeitando um dos princípios do Sistema Único de Saúde, que é a equidade.
REFERÊNCIAS

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