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Sobre limites e fronteiras: a reprodutibilidade do

estoque territorial para os fins da acumulação


capitalista
Limites et frontières  : la reproductibilité de la réserve territoriale aux fins
d’accumulation capitaliste
César Ricardo Simoni Santos
https://doi.org/10.4000/confins.7081
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PORTUGUÊSFRANÇAISENGLISH
As palavras fronteira e limite, não raro, são empregadas como sinônimos, apesar da redução
implicada nesse gesto. Mas não é difícil reconhecer que a primeira aparece mais
frequentemente associada aos fenômenos espaciais enquanto a segunda parece estar mais
próxima da indicação de fim ou esgotamento de qualquer natureza. É possível pensar numa
relação entre elas, entretanto. No plano econômico, os limites da reprodução capitalista
andam a par com a situação das fronteiras desse mesmo modo de produção. A dinâmica
espacial do capitalismo é moldada de forma a, continuamente, ampliar seus próprios limites,
internos e externos. A falta de possibilidades para a realização de novas inversões lucrativas
vem em companhia da saturação dos espaços de investimentos. Nessas condições, atingido
o limite provisório da reprodução naquele momento, novas fronteiras devem ser abertas. Na
escassez de reservas territoriais não saturadas, normalmente de caráter não-capitalista,
sobre as quais se pode avançar, os novos investimentos terão de disputar espaço entre seus
pares. Nesse último caso, trata-se da abertura de fronteiras internas, meio pelo qual o
avanço capitalista se opera num espaço já elaborado e ocupado pelos elementos e processos
próprios da reprodução do capital. A expansão capitalista, desse modo, deverá se alimentar
de um estoque de ativos desvalorizados deixados como resultado de alguma crise ou
destruição de capital imposta por algum mecanismo que parte do interesse da fração
restante em encontrar novos meios de valorização. Assim, temos claro que a reprodução do
capital não exige necessariamente os territórios não-capitalistas ou os “mercados externos”,
tal como pode imaginar Rosa Luxemburgo. Impondo a falência e processos de desvalorização
para uma parte do capital em atividade, alguns capitalistas conseguem recriar as condições
de investimentos no interior do mesmo espaço que já era habitado e modulado pelas
práticas da valorização. Reiniciando aí um novo ciclo ascendente de acumulação capitalista.
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Index de mots-clés : 
accumulation du capital, capital accumulation, Frontier, frontière, gentrification
Índice de palavras-chaves: 
acumulação de capital, fronteira, gentrificação
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Sobre limites e fronteiras


Da fronteira à fronteira da reprodução do econômico
Da fronteira externa à fronteira interna
Fronteira externa e interna

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Créditos: Hervé Théry

1No velho debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin havia duas dimensões em disputa
simultaneamente, sem, talvez, que seus próprios defensores tivessem muita clareza sobre
isso. Além da disputa sobre a necessidade de exploração de mercados não-capitalistas como
recurso indissociável da acumulação de capital, defendida por Rosa Luxemburgo, a noção de
“mercados externos” envolvia uma condição inalienavelmente espacial.

2A preocupação com o desenvolvimento e a apresentação do conceito de imperialismo


perseguiu mais de perto Lênin do que Rosa Luxemburgo. Rosa deixou apenas algumas linhas
dedicadas mais explicitamente ao tema no início de seu livro (A Acumulação do Capital),
anunciando aí “que este trabalho, além de apresentar um interesse puramente teórico,
também adquire importância para a luta prática na qual nos empenhamos contra o
imperialismo” (Luxemburgo, 1985, p. 03). Contudo, não dedicou novos esforços durante o
restante do livro para reforçar o vínculo com uma teoria do imperialismo. Já Lênin (1979),
em Imperialismo: fase superior do capitalismo, faz do tema o problema central a partir do
qual se empenha no desenvolvimento das categorias econômicas ali apresentadas.

3A diferença com a qual esse mesmo assunto toma as obras de Lênin e Luxemburgo tem a
ver com a forma e os aspectos espaciais que o processo econômico assume na visão de cada
autor. Ou melhor, trata-se de uma diferença que parte da valorização de processos e
dinâmicas espaciais em níveis de relações absolutamente distintos. Tanto para Lênin quanto
para Luxemburgo o comportamento espacial da acumulação capitalista assume uma
dinâmica territorialmente expansionista, e isso está na base da interpretação do
imperialismo para ambos. No entanto, para Lênin, a expansão e a projeção externa do
capital se operam necessariamente sobre as delimitações territoriais consagradas pelos
acordos interestatais. Para Lênin (1979), o processo se dá na escala internacional, numa
articulação tributária da existência simultânea de unidades político-territoriais mutuamente
excludentes por definição. Os eventos analisados nessa escala são definidos pelos limites do
território nacional, ou seja, na relação entre países como unidades políticas de expressão
essencialmente territorial. A noção de mercado externo presente nessa interpretação envolve
o reconhecimento dos limites territoriais como elementos centrais da exploração capitalista.

4Para Rosa Luxemburgo, contrariamente, a expansão capitalista recebe seu impulso


primordial de uma indissociável compulsão capitalista sobre territórios de formação não-
capitalista. A noção de “mercado externo” para Luxemburgo não é, como para Lênin, aquela
ligada a uma definição política do território. Os mercados externos de Luxemburgo não
envolvem necessariamente relações interestatais. Para Luxemburgo, “mercado externo é
para o capital o meio social não-capitalista que absorve seus produtos e lhe fornece
elementos produtivos e força de trabalho” (Luxemburgo, 1985, p. 251).

Desse ponto de vista econômico, a Alemanha e a Inglaterra constituem, em sua troca recíproca,
uma para a outra, mercados capitalistas internos, enquanto as trocas entre a indústria alemã e
seus produtores ou consumidores camponeses alemães representam, para o capital alemão,
relações de mercado externo (Luxemburgo, 1985, p. 251).

5Nesse sentido, a dinâmica espacial capitalista presente na interpretação de Luxemburgo


envolve um movimento de avanço sobre áreas que respeitam e estão estruturadas a partir
de relações e lógicas sociais distintas. Enquanto para Lênin os limites político-territoriais
funcionam como o elemento espacial preponderante nas relações capitalistas, na teoria de
Rosa Luxemburgo a dinâmica de fronteira, a zona de contato, emerge com maior relevância.
Essas análises, lidas dessa forma, são mais complementares do que concorrentes. Não se
trata de escolher entre uma ou outra interpretação das causas seja do imperialismo ou do
comportamento geográfico do capital. Mas resta ainda um problema a ser resolvido.

6Se os limites territoriais são para Lênin o fator de definição que recai sobre a exploração
dos mercados externos, para Luxemburgo a fronteira é o elemento mais significativo, pois
demarca não as relações de comércio entre Estados nacionais, mas a zona de contato e
intersecção entre sistemas ou lógicas distintas – no interior, muitas vezes, das mesmas
unidades político-territoriais. Nesse último caso, são essas relações que são interpretadas
como condição de reprodução do capital. Para Luxemburgo, é somente com a exploração e o
avanço de formações capitalistas sobre territórios que respeitam outro repertório da
reprodução social que são garantidos os meios da acumulação de capital. Essa fronteira, no
entanto, pelo que se defende aqui, não deve ser resultado único do contato com o mundo
exterior, extracapitalista. A expansão capitalista, por meio do avanço destrutivo sobre áreas
que devem abastecer os novos ciclos de acumulação não estão restritos à exploração de
territórios não-capitalistas. O avanço da fronteira capitalista não se dá somente de forma a
promover uma expansão geográfica em termos absolutos, por meio da exploração de suas
próprias fronteiras externas. A forma do processo, descrita por Rosa Luxemburgo, precisa
ser completada.

Sobre limites e fronteiras


7É importante destacar dois significados ou campos de referência diferentes assumidos no
uso atual da expressão “limite”. Geralmente, em ambos os casos, a noção de limite carrega
consigo algo do campo semântico no qual residem também os significados de extremidade,
de descontinuidade e de término. Primeiramente, o uso do termo serve para referenciar mais
diretamente uma marcação ou uma linha que resultam numa determinada configuração
espacial, a partir da qual uma área, região ou território ganham seus contornos. Essa forma
de emprego reforça os significados originais da palavra. “A palavra limite, de origem latina,
foi criada para designar o fim daquilo que mantém coesa uma unidade político-territorial”
(Machado, 1998). Nesse caso, circunscreve-se o lugar, a região ou o território e este ganha
suas definições, ou mais especificamente seus limites, no contato com o exterior. É nesse
sentido que a palavra assume um conteúdo propriamente espacial e passa a fazer parte do
vocabulário dos geógrafos, militares e estadistas preocupados com a definição e edificação
da soberania.

8Num outro universo de significação, a noção de limite pode ser aplicada para expressar a
exaustão, a impossibilidade e o fim de um processo ou atividade. Remetendo-se mais
especificamente, nesse caso, ao funcionamento de um corpo social ou natural no tempo, o
uso da noção de limite faz referência à duração. Remetendo-se a suas próprias possibilidades
intrínsecas, o uso da expressão limite aparece ligada mais ao funcionamento lógico. Dessa
forma, a palavra limite também demarca sincronicamente o ponto exato de sua morte –
morte no tempo – ou a impossibilidade estrutural do prosseguimento de determinada
conjunção.

9De qualquer forma, em ambas as possibilidades de emprego da palavra limite, ela se volta
para o interior do corpo ao qual faz menção. O limite diz respeito ao conjunto cercado entre
os contornos que se remetem a uma identidade interna, e portanto ele é voltado para
dentro, seja em relação ao território ou às possibilidades de definição e continuidade de
determinado arranjo social – do que se entende por capitalismo, por exemplo. Ele não faz
menção ao que “não é”, mas somente ao que termina ou encontra o seu fim num
determinado ponto ou linha – no espaço, no tempo ou a partir de uma configuração interna
(lógica).

10Diferente, no entanto, é o sentido que foi atribuído à noção de fronteira. “A fronteira está
orientada ‘para fora’ (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados ‘para dentro’
(forças centrípetas)” (Machado, 1998). O sentido mais forte do termo, entretanto, e o campo
no qual essa discussão assumiu um contorno conceitual mais preciso, seja no campo jurídico
ou no da ciência geográfica, se remete às categorias espaciais e, mais especificamente, à
fenômenos e definições que ganham existência no território. Isso se deveu em grande
medida ao comportamento, à dinâmica e ao modus operandi inseparáveis do Estado
territorial moderno. Nesse sentido, segundo Lia Osório Machado,
11“A gênese da noção de ‘fronteira’ é diferente e muito mais antiga daquela de limite
internacional. A literatura considera o Império Romano e o Império da China como casos
paradigmáticos na investigação das origens da concepção de fronteira e da evolução de seu
significado no tempo. Os romanos, por exemplo, não tinham interesse em
estabelecer limites aos seus domínios; no entanto, criaram um sistema administrativo e
defensivo de fronteira (período dos Augustos), primordialmente para dificultar a expansão
dos povos bárbaros nas fímbrias do Império” (Machado, sem data).

12Stephen Jones aponta com clareza para uma dinâmica, própria da fronteira, que se
desenha em contraposição ao imobilismo sugerido pelos limites, tais como são concebidos
atualmente pelo moderno sistema interestatal (ver Arrighi, 1996; e Machado, sem data). A
confusão recorrente entre limites e fronteiras guarda armadilhas para o pensamento, nem
sempre visíveis. A legalidade, presente na concepção atual de “limite”, a qual recorre o
Estado e o moderno sistema interestatal para a definição territorial dos poderes
concorrentes, foi extraída da esfera privada de regulação da propriedade, mais
especificamente do Direito Civil romano. “A ager publicus ou domínio público não tinha
limites; terminava em algum lugar mas o fim não era especificado por nenhuma linha
legalmente relevante (a expressão usada era fines esse)” (Machado, sem data). Em sua
concepção atual, disseminada pelo uso do léxico estatal-legalista, “o limite não está ligado à
presença de gente, sendo uma abstração, generalizada na lei nacional” (Machado, 1998). A
indefinição legal da situação de “fronteira”, em contrapartida, implica frequentemente num
tipo de mobilidade congênita, contrariando as tendências imobilizadoras impostas pelo limite.
Nesse sentido, o caráter extrovertido da situação de fronteira sugere uma ampliação das
possibilidades, uma tendência à expansão (do corpo lógico, social ou ecológico) que ignora
as definições impostas pelos limites internos, muitas vezes ultrapassando e desrespeitando
as definições legais dos poderes jurídicos e regulamentadores do Estado, justamente
enquanto a conformação introvertida do limite sugere a restrição e o contorno do universo
em questão.

13“A palavra fronteira implica, historicamente, aquilo que sua etimologia sugere – o que está
na frente. A origem histórica da palavra mostra que seu uso não estava associado a nenhum
conceito legal e que não era um conceito essencialmente político ou intelectual. Nasceu como
um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem do mundo habitado. Na
medida que os padrões de civilização foram se desenvolvendo acima do nível de
subsistência, as fronteiras entre ecúmenos tornaram-se lugares de comunicação e, por
conseguinte, adquiriram um caráter político. Mesmo assim, não tinha a conotação de uma
área ou zona que marcasse o limite definido ou fim de uma unidade política. Na realidade, o
sentido de fronteira era não de fim mas do começo do Estado, o lugar para onde ele tendia a
se expandir” (Machado, 1998).

14Nesse sentido a fronteira faz referência também ao que é externo, ao contrário do limite,
que permanece voltado para o seu interior. Ela se projeta como zona de comunicação e
incorporação mútua entre o mundo externo e o interior, mas, simultaneamente, dá ganho de
causa ao segundo sobre o primeiro, representadas aí todas as forças expansionistas das
sociedades dinâmicas de fronteira.

Da fronteira à fronteira da reprodução do


econômico
15Podemos pensar, a partir dessa noção, no sentido que a fronteira assumiu no tratamento
de questões relacionadas à formação territorial nacional dos países colonizados por ação do
expansionismo europeu. Frederick Jackson Turner foi um dos primeiros a empregar e
desenvolver com clareza o significado da fronteira na história americana. Esse historiador
norte-americano, de Wisconsin, escreveu um de seus principais trabalhos sobre o tema já no
fim do século XIX. Em sua abordagem, a fronteira aparecia como zona de interpenetração e
conflito, mas também, e sobretudo, como lugar desprovido da imobilidade típica
experienciada nos limites territoriais interestatais da velha e consolidada Europa. Em The
Significance of the Frontier in American History, Turner atribui ao espírito de fronteira,
dotado por natureza de um impulso tipicamente expansionista, a formação da identidade
nacional americana. Para ele, estaria nessa configuração territorial dinâmica toda a
explicação para a singularidade da formação americana (Turner, 1976).
16No Brasil, o tema não foi menos importante. Não bastasse a infinidade de trabalhos
desenvolvidos por geógrafos – preocupados com a dinâmica, formação e especificidade da
situação de fronteiras móveis em território nacional –, a afirmação de uma certa positividade
no pensamento sobre as instituições brasileiras se consolida com uma reflexão sobre o papel
dessa zona territorial de contato na formação nacional. O esforço de compreensão da
realidade brasileira que se inicia sob a temática da “miscigenação” se desenvolve e ganha
expressão mais concreta nos apontamentos sobre a potência explicativa da situação de
fronteira, interiorizada dentro dos limites do território nacional. Sérgio Buarque de Holanda,
quando retorna dos Estados Unidos na década de 1940, assume em sua produção a
necessidade de um estudo profundo sobre o papel da fronteira e da mobilidade territorial das
ocupações humanas na América. Diferenciando-se da tônica adotada em Raízes do Brasil,
Sérgio Buarque escreve Caminhos & Fronteiras e Monções, como obras que resultam das
novas preocupações que giram em torno dessas questões (Wegener, 1998).

17Apesar da existência material e concreta da fronteira assumir uma dimensão


inquestionável e evidentemente vinculada ao espaço, para ambos – Sérgio e Turner –, a
fronteira sempre foi mais do que uma manifestação ou uma forma espacial stricto sensu.
Para eles, a fronteira é a zona de contato entre mundos diferentes, entre formações sociais
particulares e lógicas distintas – mas não necessariamente opostas. Analisado desse ponto
de vista, o fenômeno da fronteira se coloca como algo que se situa para além dos problemas
que se definiram sob a ótica da Geografia Política, e põe ênfase numa dinâmica espacial que
supera o processo das delimitações territoriais. Nesse sentido, de acordo com Sérgio
Buarque de Holanda, “pode-se mesmo dizer que, como o Oeste do historiador Frederick
Jackson Turner, a América é antes uma forma de sociedade do que uma área geográfica”
(Holanda, 1978, p. 27).

1  Nesse sentido, o trabalho da economista Maria Heloisa Lenz (2006), sobre O Papel de  La Conquista d (...)

18Contudo, as interpretações sobre a dinâmica espacial materializada na fronteira não


permaneceu restrita à temática da formação nacional ou da cultura de determinados povos
ou regiões. Não foi somente a Geografia Política que perdeu campo no debate sobre o
significado da fronteira. Muitas vezes, a fronteira foi tratada como objeto de estudo da
ciência econômica1. Nesse campo, no entanto, ela foi vista com muito maior freqüência
como fenômeno extra-nacional ou de extrapolação dos limites territoriais dos estados
nacionais. As fronteiras econômicas foram, por isso, observadas quase que exclusivamente
como fenômenos que definiam as relações entre estados e territórios mutuamente
excludentes; como um problema que se restringia ao campo das relações econômicas
internacionais. Assim tratou do problema, por exemplo, Lenin (1979). A temática do
imperialismo se edifica em função dessa visada sobre a questão. É por isso, também, que há
uma predominância desse ponto de vista em O Novo Imperialismo, de David Harvey.

19Mesmo Ratzel, consagrado pelos trabalhos realizados no campo da Geografia Política não
pôde deixar de observar fenômenos com uma íntima relação com o desenvolvimento das
forças produtivas. “A despeito das inúmeras críticas dirigidas ao geógrafo alemão em vida e
depois de morto (...), Ratzel conseguiu captar na noção de ‘espaço vital’, e na metáfora do
Estado como ‘organismo vivo’, os movimentos de expansão territorial do sistema capitalista
no século XIX” (Machado, sem data). No entanto, ele ainda permaneceu no campo de uma
dimensão espacial estreita, reduzida ao território sob domínio – ou necessário – para a
manutenção dos poderes do Estado. A fixação da escala em que o autor pôde perceber essa
dinâmica serviu como um fator limitante de sua teoria.

20Muito do esforço e da grande importância de Rosa Luxemburgo, no entanto, se deve ao


empreendimento na tentativa de demonstrar que “a fronteira entre ‘interno’ e ‘externo’ (...)
é socioeconômica, computando-se como ‘interno’ tudo aquilo que se encerra dentro do
sistema capitalista de produção” (Miglioli, 2004, p. 196). Desse modo, Rosa Luxemburgo
libertava a fronteira e todo o debate entre relações internas e externas da escala exclusiva
da geopolítica internacional. Assim, a autora passou a valorizar o reconhecimento de que as
estratégias de reprodução do capital atuam numa escala fluida e mutante, apreensível
momentaneamente, somente antes de mudar, em seguida, para um outro registro espacial.
Esse sentido, presente em toda A Acumulação do Capital, pode ser lido também na
afirmação de que “o mercado interno e o mercado externo” devem aparecer “não como
conceitos de Geografia Política, mas como conceitos de Economia Social” (Luxemburgo,
1985, p. 251). Essa foi parte da briga que Luxemburgo comprou contra Lenin, Hilferding e
alguns dos marxistas russos do período.

21Evidentemente, não se está aqui discutindo a necessidade do fenômeno ter ou não uma
existência espacial – indiscutível, inclusive do ponto de vista dos autores em questão –, mas
se ele será aprisionado numa dimensão que cabe única e exclusivamente ao domínio
legitimado pela esfera estatal mais ampla. Qualquer padrão espacial de reprodução do
capital único e imutável é uma ficção abstrata. As estratégias reprodutivas adotadas pelo
capital não estão restritas a considerar exclusivamente as unidades territoriais definidas no
campo dos acordos interestatais. Os limites territoriais são, nesse sentido, uma referência
externa e, frequentemente, ignorada (transposta) pelas dinâmicas expansionistas de
fronteira – a não ser quando a atuação do Estado venha a reforçar a presença de tais limites
na vida econômica nacional, como, por exemplo, controlando as taxas de cambio, impondo
ou liberando tarifas alfandegárias, taxando o fluxo de capitais ou criando mecanismos de
atração, definindo o piso salarial etc., e mesmo assim, a presença de tais limites não será
absoluta.

Da fronteira externa à fronteira interna


22A assim chamada “tese da fronteira”, de Frederick Jackson Turner, descrevia a situação na
fronteira Oeste americana. Turner encontrou aí a configuração espacial original da sociedade
americana, e, com isso, acreditou ter encontrado o germe da formação de um povo e de
uma identidade nacional próprias. Isso se explica, para o autor, pela conjunção de dois
fatores típicos da situação de fronteira: o “isolamento” e o “primitivismo” que se encontram
nas zonas de ocupação recente. Para Turner, foi somente o avanço, decorrente da
mobilidade e da dinâmica territorial originária da situação de fronteira, que permitiu a
presença reiterada desses elementos na vida social e econômica dos Estados Unidos.
Segundo Turner,

23“No caso da maioria das nações, entretanto, o desenvolvimento ocorreu numa área
restrita; e se a nação se expandiu, ela encontrou outros povos crescendo, os quais foram
conquistados. Mas, no caso dos Estados Unidos, nós temos um fenômeno diferente.
Limitando nossa atenção à Costa Atlântica, temos o fenômeno familiar da evolução das
instituições numa determinada área... Mas temos também, além disso, a recorrência desse
processo de evolução em cada área a oeste que foi atingida pelo processo de expansão.
Desse modo, o desenvolvimento americano exibiu não somente o avanço ao longo de uma
única linha, mas um retorno às condições primitivas no avanço contínuo da linha de
fronteira, e um novo desenvolvimento para aquela área. O desenvolvimento social americano
foi continuamente reiniciado na fronteira. Esse constante renascimento, essa fluidez da vida
americana, essa expansão para o Oeste com essas novas oportunidades, esse contínuo
encontro com a simplicidade da sociedade primitiva fornecem as forças que dominam o
caráter americano” (Turner, 1976, p. 2-3).

24Assim, o pioneiro da fronteira é identificado com a figura que deu origem ao


desenvolvimento da sociedade e das instituições americanas. Para Turner, esse homem
renasce como o novo homem americano na fronteira, pois atuava, ao seu modo, como uma
espécie de veículo da civilização contra a “rude natureza inanimada do Oeste selvagem”
americano. A imagem do pioneiro da fronteira dos Estados Unidos, criada por Turner, remete
a uma glorificação desse personagem, e atribui a ele o desfecho de uma história de sucesso
que desemboca na moderna democracia americana. O agente da civilização de um território
tomado pela natureza selvagem de suas matas, fauna e homens é valorizado pelos seus
feitos. Ele constitui a imagem da vitória da civilização em meio a um ambiente hostil
reiteradamente elaborado pelo avanço da fronteira. Para Turner, “nesse avanço, a fronteira é
a borda externa dessa onda – o ponto de encontro entre a barbárie e a civilização” (Turner,
1976, p. 03). Esse novo homem americano é, para Turner, o resultado do encontro de
mundos nas condições da fronteira, da intersecção em avanço constante sobre o território. A
imagem do destemido desbravador dos sertões também vestiu, na retórica do IHGSP, o
bandeirante paulista (Schwarcz, 1993).

25O aspecto ideológico, no entanto, que funciona como critério normativo para a “tese da
fronteira” e confere legitimidade à “ação civilizatória” do pioneiro, foi elaborado ao mesmo
passo com a construção da imagem de um Oeste “selvagem” e que precisava ser vencido.
Isso justificou as atrocidades realizadas nas franjas de uma civilização hedonista em
constante expansão territorial.

26Neil Smith (2007) compreendeu o sentido amplo do significado da fronteira expresso em


Frederick Jackson Turner e percebeu que este poderia ser empregado, mesmo levando em
consideração seus aspectos ideológicos, à atual situação na qual as grandes cidades
americanas e européias se encontram – ou mesmo àquelas de grande projeção e destaque
internacionais que estão fora das regiões tipicamente reconhecidas como de grande poder
econômico. Para isso, no entanto, é preciso reconhecer a interiorização de uma dinâmica de
fronteira, para a qual a experiência original representava a ligação com o mundo externo. É
preciso reconhecer também que há uma “fricção espacial”, uma alteração da escala
territorial de reprodução do capital. Esse “retrocesso” (aparente) a uma determinada escala
espacial se coaduna com a continuidade cada vez mais amplificada dos processos de
expansão interna dos limites da reprodução capitalista; uma inversão do sentido do ciclo
expansivo do capital, que por vezes assumiu um comportamento espacial consumidor de
configurações e formações não-capitalistas e agora se volta para o consumo de espaços
tipicamente forjados por ação direta do capital. Esse deslocamento da fronteira de expansão
capitalista para o interior dos territórios urbanos já colonizados pela lógica de reprodução do
capital modifica a dieta que alimenta a expansão mais lógica do que territorial (em termos
absolutos) do capital. Trata-se de uma nova dinâmica espacial da reprodução capitalista.

27Neil Smith recorre ao “significado da fronteira na história americana” para interpretar os


aspectos ideológicos que atribuem legitimidade ao processo de gentrificação dos espaços
urbanos nos Estados Unidos. Imbuído da retórica civilizatória de Turner, Smith reconhece no
discurso que enaltece os empreendedores imobiliários urbanos os mesmos atributos que
valorizavam o pioneiro da fronteira. Para Smith, a imagem de um centro urbano degradado,
carente das ações empreendidas por agentes civilizadores, atende a um conjunto de
interesses imobiliários que visam empreendimentos nessas áreas centrais. Segundo Neil
Smith, “durante o século XX a imagem do lugar selvagem e da fronteira foi aplicada menos
às planícies, montanhas e florestas do Oeste, e mais às cidades do país todo, mas
especialmente aquelas do Leste” (Smith, 2007, p. 16). Efeitos de um discurso hegemônico
sobre as condições de vida nos grandes centros urbanos chegam às cidades brasileiras, a
partir da década de 1970, com o mesmo teor que tinham desde que foram elaborados no
centro do capitalismo mundial. Em igual medida, o medo e a aversão são os sentimentos
possíveis em relação à cidade diante do novo quadro urbano pintado por uma retórica
internacional. A cidade passa a ser o signo da violência (em oposição à harmonia), do caos
(em oposição à ordem) e do – palavra nova por aqui – stress (em oposição à tranqüilidade
do campo e dos luxuosos subúrbios e condomínios fechados). A ordem, a lógica e a
racionalidade na organização do espaço são os elementos de uma retórica que vende os
espaços avessos à vida “caótica” dos grandes centros urbanos. Uma reedição empresariada
do fugere urbe  se constitui para servir, mais tarde, de justificativa para as ações
coordenadas dos segmentos capitalistas associados aos empreendimentos imobiliários.

28A analogia entre a “fronteira externa” e a nova “fronteira urbana” do século XX se


estabelece para além do aspecto ideológico. O fundo falso dessa aparentemente ingênua
retórica sobre o cenário fácil de um conflito entre civilização e barbárie é exatamente o
mesmo. É preciso ir além dos aspectos simbólicos ligados a interpretação da fronteira para
desmascarar as estratégias reprodutivas que ligam a expansão turneriana à experiência da
gentrificação urbana. O avanço da fronteira na formação do território dos Estados Unidos, a
tão referenciada “marcha para o Oeste”, foi sempre mais resultado de interesses poderosos
que envolvem a valorização capitalista do grande capital do que obra da ação voluntarista de
destemidos homens que se lançaram na digna empresa exploratória que ganhou existência
na fronteira. O caráter reprodutivo presente na expansão geográfica mobilizada durante a
“marcha para o Oeste”, desse ponto de vista, é mais importante que seus aspectos
simbólicos.

Fronteira externa e interna


29O processo da reprodução capitalista na periferia ou no interior daqueles territórios
colonizados por ação direta do expansionismo europeu assumiu uma dinâmica igualmente
expansionista. A partir dos influxos externos, essa dinâmica internacional se replicou no
interior dessas formações territoriais. De acordo com Giovanni Arrighi (1996), a expansão do
capitalismo mundial prosseguiu, a partir daí, segundo um novo padrão territorialmente
expansionista. Os Estados Unidos, na condição de novo centro da economia e do poder
internacionais, se constituiria num “compacto ‘império’ territorial doméstico” (Arrighi, 1996,
p. 60). Por isso, nas palavras de Gareth Stedman Jones, “toda história interna do
imperialismo dos Estados Unidos foi um vasto processo de conquista e ocupação territorial”
(Apud. Arrighi, 1996, p. 59). Ainda, para Gareth Stedman Jones, com relação aos Estados
Unidos, “a ausência de territorialismo ‘no exterior’ fundamentou-se num territorialismo
‘interno’ sem precedentes” (Arrighi, 1996, p. 59). Dessa forma, os excedentes gerados no
interior ou mesmo fora dos territórios norte-americanos foram canalizados para a construção
do espaço econômico interno dos Estados Unidos. Assim, foi no interior e no processo de
formação desse vasto império voltado para si que uma parcela significativa dos excedentes
econômicos do capitalismo mundial encontrou um emprego lucrativo a partir de uma
dinâmica territorialmente expansionista.

30Wilson Cano (2007), em análise sobre a realidade territorial da indústria brasileira no


período entre 1930 e 1970, faz freqüentes referências ao processo de expansão da indústria
no território dos Estados Unidos e revela mais do que diferenças no processo de expansão
para a formação da identidade nacional ou para a promoção de uma democracia social e
política. Para ele, há identidades no que diz respeito ao avanço do capitalismo sobre esses
novos territórios como uma forma essencialmente espacial da reprodução capitalista. É por
isso que, segundo Cano (2007, p. 184), “entre os estudiosos da economia brasileira parece
ter sido Normano (...) o primeiro a compreender e explicitar, ainda que brevemente, a
relevância da integração do mercado nacional do Brasil”. Para isso, também esse autor
“certamente valeu-se de seu conhecimento sobre o processo histórico dos Estados Unidos”
(Cano, 2007, p. 184).

31Partindo da terminologia empregada por Arrighi (1996), para compreender o que poderia
se caracterizar como um “compacto ‘império’ territorial domestico”, é preciso recorrer a uma
compreensão do processo que é possível ler em Harvey. Para ele, “as práticas imperialistas,
do ponto de vista da lógica capitalista, referem-se tipicamente à exploração das condições
geográficas desiguais” (Harvey, 2004, p. 35). Esse é um nível no qual “a condição de
igualdade costumeiramente presumida em mercados de funcionamento perfeito é violada, e
as desigualdades resultantes adquirem expressão espacial e geográfica específica” (Harvey,
2004, p. 35). É nesse sentido que é possível e “há naturalmente boa parcela de
desenvolvimentos geográficos desiguais fundados em parte em relações assimétricas de
trocas no interior dos Estados. Entidades políticas subnacionais, como governos
metropolitanos ou regionais, envolvem-se de modo crucial nesse processo. Mas de modo
geral não se chama isso de imperialismo” (Harvey, 2004, p. 35-36). O termo “imperialismo”
permaneceu vinculado a uma escala supranacional de exploração das diferenças espaciais.

32Segundo Neil Smith, “no século XIX, a expansão da fronteira geográfica nos EUA e em
outros lugares foi também uma expansão econômica do capital. (...) Nesse período, a
expansão econômica foi realizada em parte por meio da expansão geográfica absoluta, ou
seja, a expansão da economia significou a expansão da arena geográfica na qual a economia
operava” (Smith, 2007, p. 17).

33No entanto, uma diferença tem de ser valorizada. Entre os processos que resultam em
“expansão geográfica absoluta”, como resposta e dinâmica fundamental de absorção do
capital excedente, e aqueles nos quais a expansão capitalista se dá por meio da
rediferenciação interna no interior dos espaços de formação já anteriormente capitalista, o
objeto capturado e deglutido para os fins da reprodução do capital é de natureza diversa. A
partir daqui, a contribuição de Rosa Luxemburgo se torna mais evidente.

34No caso de uma “expansão geográfica absoluta”, com a incorporação de novas terras ao
circuito da valorização capitalista, como no caso na “marcha para o Oeste”, o próprio modo
de produção capitalista é lançado contra formações sócio-espaciais absolutamente distintas
em relação a si mesmo. Nesses casos, a fronteira é a zona de intersecção, o lugar do
encontro (e do conflito, muitas vezes) entre modos de produção, “sistemas” sociais e lógicas
reprodutivas diversas. Trata-se aqui da “fronteira externa”, no sentido que é possível extrair
de Rosa Luxemburgo. A fronteira capitalista é, nesse sentido, a materialização do encontro
entre mundos e territorialidades a serviço de lógicas de origem diversa.
35Quando o crescimento econômico se opera a partir da reestruturação, reordenação ou
reprodução do espaço urbano já consolidado no interior do desenvolvimento de relações
sociais capitalistas, a dinâmica espacial da acumulação terá de enfrentar e se confrontar com
novas forças; desconhecidas no caso de um avanço sobre territórios “virgens” do ponto de
vista da exploração do capital. Para Neil Smith, o que o processo de gentrificação nos revela
é que, “hoje, o vínculo entre o desenvolvimento econômico e geográfico persiste, conferindo
à imagem de fronteira a sua atualidade, mas a forma desse vínculo é bem diferente” (Smith,
2007, p. 17). No caso de um retorno dos investimentos pesados do capital contemporâneo
para o interior das áreas já transformadas pela ação direta desse mesmo modo de produção,
não temos nem o contato que é típico das situações de fronteira como a descrita logo acima,
nem, ao menos, como resultado, a expansão geográfica absoluta como a que se é possível
verificar diante da incorporação de novas terras aos circuitos capitalistas. Nesse caso, o
confronto e o objeto de satisfação dos mecanismos de reprodução capitalista estão menos
nas configurações pré-capitalistas, encontradas para além do mundo conhecido e do
universo das relações de produção fundadas nos processos de valorização do valor, do que
nos próprios elementos e fragmentos de uma classe que compartilha da mesma origem de
sua opositora. Esse é o momento em que o capital estanca um movimento direcionado para
fora de si (uma pulsão extrovertida) e volta todas as suas forças para o consumo de
configurações capitalistas mais frágeis ou pertinentes a outros momentos históricos do
estágio de valorização. Em termos relativos, cessada a compulsão geograficamente
extrovertida do capital, este retorna para os antigos centros urbanos, destruindo formas
espaciais, modos de vida arraigados e todo um conjunto de infraestruturas e relações ligados
aos momentos anteriores da valorização capitalista no interior da economia urbana.

36Os diferenciais do potencial de acumulação geograficamente instalados promovem as


condições de acumulação em ambos os casos. A exploração das “assimetrias espaciais”
constitui a base da reprodução geográfica do capital segundo Harvey (1990, 2004 e 2005).
No entanto, é o potencial reprodutivo das diferenças espaciais que colocam o segundo caso
como um fenômeno mais próximo de uma condição especificamente capitalista. A
independência da oferta de fatores externos, de territórios de formação não-capitalista e do
consumo de configurações sócio-espaciais pré-capitalistas, circunscreve melhor tanto as
condições de reprodução quanto seus limites no interior da própria lógica de acumulação do
capital. É a sua capacidade de diferenciação interna, auto-promovida, histórica ou
geograficamente definida, que vai garantir o combustível internamente elaborado para a
reprodução das formas mais atuais dos processos sociais de acumulação capitalista. É nesse
sentido que, “no que diz respeito à base espacial, a expansão econômica ocorre hoje não por
meio da expansão geográfica absoluta, mas pela diferenciação interna do espaço geográfico”
(Smith, 2007, p. 17). A gentrificação e a revitalização dos espaços urbanos centrais podem,
por isso, ser definidas como fenômenos diretamente ligados à exploração da “fronteira
interna” do capitalismo mundial. É nesse sentido que “a fronteira urbana é, antes de mais
nada, uma fronteira no sentido econômico” (Smith, 2007, p. 18), mais ou menos no sentido
empregado por Rosa Luxemburgo.

37A experiência brasileira de gentrificação das áreas centrais urbanas, que caracteriza o
processo por aqui, teve início somente na década de 1990. De acordo com Hélène Rivière
D’Arc, inspirada na periodização de Neil Smith (2001), “São Paulo (...) desconheceu tanto a
primeira quanto a segunda fase da gentrificação” (D’Arc, 2004, p. 341). Isso, contudo, de
um ponto de vista mais geral, não resultou em desvios significativos em relação ao que já se
apresentou. No que diz respeito à dinâmica dos investimentos imobiliários que ocorrem por
meio da reprodução do espaço urbano, Mariana Fix (2007) e Ana Fani Alessandri Carlos
(2001) apontam para dispositivos que consideram a desvalorização como um momento
crucial do processo de valorização capitalista. Só a desvalorização de regiões da cidade pode
recolocar à disposição de investidores novas porções do espaço urbano a preços
significativamente baixos a ponto de originarem uma renda diferencial, ou um diferencial de
renda expresso no tempo, que deverá compor a lucratividade final do capital investido.
Portanto, esse rent gap, analisado também por Smith (2007), que é um dos componentes
centrais dos elevados índices de lucratividade do setor imobiliário, é conquistado em grande
medida pela desvalorização e destruição do capital e do espaço anteriores. No caso
brasileiro, processo pode ser definido mais ou menos assim:

38“A desvalorização dos centros antigos das grandes cidades brasileiras, a partir da década
de 1970, encontra parte de sua justificativa nessas estratégias. A tomada de espaços
suburbanos quase sem valor de mercado, pelas poderosas incorporadoras, não só realizou
um impressionante potencial de valorização nos subúrbios, organizados sob a forma de
condomínios residenciais de luxo, para o qual afluíam as camadas mais abastadas da
sociedade brasileira, como desvalorizou as regiões centrais. Hoje, os centros antigos dessas
cidades passam por processos de ‘revitalização’, processos esses que procuram inserir
novamente essas áreas degradadas e destruídas no circuito de valorização do capital.
Durante os anos 1980 e parte dos anos 1990, os centros das cidades brasileiras que
passaram por esse processo, funcionaram como um estoque desvalorizado de ativos
imobiliários” (Santos, 2008, p. 46).

39Esse processo, apresentado aqui no caso brasileiro, mantém identidade com a análise de
Neil Smith (2001, 2007) sobre as “ondas” do processo de gentrificação. A circularidade
intencional do processo, que envolve valorização e desvalorização simultâneas e
geograficamente não coincidentes, como parte da estratégia de valorização capitalista a
partir da produção do espaço, recai sobre espaços de formação capitalista prévia. Isso
aponta para o fato de que os centros urbanos das grandes cidades brasileiras voltarão a ser
atingidos por uma nova onda de capitalização, uma vez ocorrido o processo de
desvalorização. Essa dinâmica se dá de forma que o capital a ser investido possa se
apropriar de porções do espaço urbano a preços relativamente baixos para poder vendê-las,
mais tarde, a preços bastante altos, se apropriando assim do potencial de valorização do
espaço numa estratégia conjunta entre Estado e capital privado. Nesse sentido, é a
diferenciação interna do espaço urbano que produz e reproduz esse potencial de acumulação
a partir do espaço social. Induzida por poderosas ações, a degradação e destruição de
fragmentos da vida social urbana espacialmente localizados ocorre a par com um simultâneo
processo de valorização e gentrificação (enobrecimento) de outras áreas. “Em um nível mais
básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas (...) o que
cria a oportunidade econômica para a restruturação das áreas urbanas centrais. A
desvalorização da área central cria a oportunidade para a revalorização desta parte
‘subdesenvolvida’ do espaço urbano” (Smith, 2007, p. 22). “Portanto, a reestruturação do
espaço urbano conduz a uma simultânea, assim como subseqüente, decadência e
redesenvolvimento, desvalorização e revalorização” (Smith, 2007, p. 29). Dessa forma, a
diferenciação interna do espaço geográfico se coloca no horizonte da acumulação capitalista
como uma fonte inesgotável de recursos para a absorção dos excedentes e novos
investimentos lucrativos. Após abandonar uma área já saturada pelos investimentos de
outrora lucrativos, o capital busca por áreas mais baratas e desvalorizadas pela escassa
procura. Ao promover todo o potencial de acumulação a partir das estratégias de valorização
desses novos espaços que acolhem os investimentos mais atuais, os investidores imobiliários
se apropriam da diferença gerada no tempo e preparam, simultaneamente, as antigas áreas,
já desvalorizadas, para uma nova participação nos ciclos futuros da acumulação. “A
gentrificação, a renovação urbana e o mais amplo e complexo processo de reestruturação
urbana são todos parte da diferenciação do espaço geográfico na escala urbana; e (...) sua
função hoje é reservar uma pequena parte do substrato geográfico para um futuro período
de expansão” (Smith, 2007, p. 17-18). Nesse caso, o limite do processo de acumulação não
será atingido pelo escasseamento direto de um estoque de terras “virgens” a ser apropriada
pelo ciclo de reprodução capitalista. Aqui o estoque territorial se tornou reprodutível; ele foi,
portanto, incorporado no interior da lógica de reprodução do capital e passou a ser um
produto do mesmo modo de produção do qual é condição de existência. Com a dinâmica da
gentrificação ou da “revitalização” dos espaços centrais – compreendido aqui todo o
mecanismo histórico de valorização e desvalorização de regiões inteiras –, o processo de
acumulação do capital passou a produzir suas próprias condições espaciais de reprodução –
reproduzindo incessantemente a diferenciação geográfica. Podemos pensar aqui numa
produção especificamente capitalista do espaço nos termos da reprodução capitalista do
espaço urbano.

40Enquanto a fronteira externa, consumida no processo da urbanização do território,


“representou a realização de uma expansão geográfica absoluta como a principal expressão
espacial da acumulação de capital, a gentrificação e a renovação urbana representam o
exemplo mais desenvolvido da rediferenciação do espaço geográfico com vistas ao mesmo
resultado” (Smith, 2007, p. 19). E dessa forma, “a requalificação de espaços no interior da
cidade (...) substitui o processo de apropriação de porções territoriais de formação não-
capitalista” (Santos, 2008).

41Temos, portanto, nesse ponto, a clara intuição de que a reprodução capitalista a partir do
espaço pode se dar, genericamente, segundo dois padrões radicalmente distintos. A
necessidade de apropriação capitalista de espaços de formação tipicamente não-capitalista
para os fins da continuidade da acumulação de capital é uma ficção injustificada. Muitos
autores, de épocas e formações distintas, chegaram a sinalizar que essa seria a única
alternativa válida para a manutenção dos padrões de acumulação capitalista. Rosa
Luxemburgo, ao seu tempo, e Rosa Tello Robira (2005), mais recentemente, animaram o
debate tomando essa posição. Segundo a abordagem apresentada, no entanto, a partir da
qual a exploração das fronteiras internas do capitalismo satisfaz as necessidades do processo
de acumulação, o próprio modo de produção capitalista aparece como portador de uma
capacidade interna de reprodução de suas próprias condições espaciais de reprodução.

42Podemos afirmar, portanto, que os diferentes arranjos espaciais do capital envolvem


dispositivos de acumulação que consideram, genericamente, segundo termos empregados
por Harvey (2005), expansão e intensificação geográfica do capital. De um lado, temos
aquelas estratégias consumidoras de configurações, articulações e formações sócio-espaciais
não-capitalistas, com a expansão geográfica absoluta do capital sobre territórios ainda não
transformados diretamente pela ação do modo de produção capitalista como único resultado.
De outro, podemos observar elementos definidos a partir de uma determinada configuração
espacial de formação previamente capitalista servindo de alimento à reprodução capitalista
em sua forma mais dinâmica. Nesse caso, ao invés da expansão, temos
uma intensificação dos investimentos num mesmo espaço. Esse aumento da densidade
capitalista do espaço, com seu correlato adensamento técnico, social e infra-estrutural da
mesma área atingida pelos aportes de capital, envolve, sobretudo, uma nova experiência do
espaço. Trata-se da intensificação das relações sociais com vistas à reprodução capitalista do
valor. É nesse sentido também que Lia Osório Machado chama atenção para uma das
lacunas na elaboração de Ratzel. Segundo ela, Ratzel percebeu apenas dois movimentos que
envolvem a expansão da fronteira e que podem ser estudados como manifestações do
comportamento espacial típicas da acumulação capitalista. Para ela,

43“Houve um terceiro movimento, a expansão  não territorial e sim sistêmica das ‘fronteiras’
do regime capitalista, ao incorporar as ‘mentes e corpos’ das multidões. Talvez seja a
incompreensão deste terceiro movimento por Ratzel o motivo dele enxergar exclusivamente
o território em sua ‘teoria’ do espaço vital, o que não só tornou a expressão historicamente
datada e geograficamente situada (imperialismo alemão): permitiu que os críticos
posteriores reduzissem o conteúdo teórico da expressão apenas à ideologia ‘vitalista’ que
caracterizou sua abordagem do estado (a metáfora do ‘organismo vivo’)” (Machado, sem
data).

44Ao compreender a lacuna presente na elaboração teórica de Ratzel, Lia Osório Machado
supera os limites de Rosa Luxemburgo e Rosa Tello Robira, simultaneamente. Ela capta uma
possibilidade para a reprodução capitalista que não se reduz à expansão territorial em
termos absolutos ou à utilização de um estoque anterior de territórios mantidos em situação
não-capitalista. Nesse sentido, no entanto, apesar de ter atingido um determinado nível de
compreensão sobre a intensificação geográfica do capital como solução para os problemas de
acumulação, diferenciando-se de Rosa Luxemburgo e de Rosa Tello Robira, ela não
expressou conceitualmente a relação que tais processos mantêm com o espaço social.

45A título de conclusão, podemos afirmar, portanto, que “a teoria afirma que o capitalismo
se destina a expandir por meio tanto da intensificação dos relacionamentos nos centros
capitalistas de produção, como da expansão geográfica desses relacionamentos no espaço”
(Harvey, 2005, p. 62). Apesar de se tratar de padrões genericamente distintos, essas formas
da reprodução espacial do capital não são, de maneira alguma, incongruentes, podendo,
mesmo, ser complementares. Mas é importante reforçar que cada qual detém validade para
os fins da reprodução capitalista de maneira isolada ou conjunta. De acordo com os fins da
reprodução capitalista, “a teoria geral de Marx fala da necessidade de expandir e intensificar
geograficamente” (Harvey, 2005, p. 66).

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Notas

1  Nesse sentido, o trabalho da economista Maria Heloisa Lenz (2006), sobre O Papel de La
Conquista del Desierto  na Construção do Estado Argentino no século XIX, e da Professora Ligia
Osório Silva (2003), do Instituto de Economia da UNICAMP, Fronteira e Identidade Nacional, são
boas referências para se pensar o papel da fronteira na ordenação econômica do território
brasileiro.
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Para citar este artigo

Referência eletrónica
César Ricardo Simoni Santos, «Sobre limites e fronteiras: a reprodutibilidade do estoque territorial
para os fins da acumulação capitalista», Confins [Online], 12 | 2011, posto online no dia 02 julho
2011, consultado o 11 novembro 2021. URL: http://journals.openedition.org/confins/7081; DOI:
https://doi.org/10.4000/confins.7081
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