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As palavras fronteira e limite, não raro, são empregadas como sinônimos, apesar da redução
implicada nesse gesto. Mas não é difícil reconhecer que a primeira aparece mais
frequentemente associada aos fenômenos espaciais enquanto a segunda parece estar mais
próxima da indicação de fim ou esgotamento de qualquer natureza. É possível pensar numa
relação entre elas, entretanto. No plano econômico, os limites da reprodução capitalista
andam a par com a situação das fronteiras desse mesmo modo de produção. A dinâmica
espacial do capitalismo é moldada de forma a, continuamente, ampliar seus próprios limites,
internos e externos. A falta de possibilidades para a realização de novas inversões lucrativas
vem em companhia da saturação dos espaços de investimentos. Nessas condições, atingido
o limite provisório da reprodução naquele momento, novas fronteiras devem ser abertas. Na
escassez de reservas territoriais não saturadas, normalmente de caráter não-capitalista,
sobre as quais se pode avançar, os novos investimentos terão de disputar espaço entre seus
pares. Nesse último caso, trata-se da abertura de fronteiras internas, meio pelo qual o
avanço capitalista se opera num espaço já elaborado e ocupado pelos elementos e processos
próprios da reprodução do capital. A expansão capitalista, desse modo, deverá se alimentar
de um estoque de ativos desvalorizados deixados como resultado de alguma crise ou
destruição de capital imposta por algum mecanismo que parte do interesse da fração
restante em encontrar novos meios de valorização. Assim, temos claro que a reprodução do
capital não exige necessariamente os territórios não-capitalistas ou os “mercados externos”,
tal como pode imaginar Rosa Luxemburgo. Impondo a falência e processos de desvalorização
para uma parte do capital em atividade, alguns capitalistas conseguem recriar as condições
de investimentos no interior do mesmo espaço que já era habitado e modulado pelas
práticas da valorização. Reiniciando aí um novo ciclo ascendente de acumulação capitalista.
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Index de mots-clés :
accumulation du capital, capital accumulation, Frontier, frontière, gentrification
Índice de palavras-chaves:
acumulação de capital, fronteira, gentrificação
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Créditos: Hervé Théry
1No velho debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin havia duas dimensões em disputa
simultaneamente, sem, talvez, que seus próprios defensores tivessem muita clareza sobre
isso. Além da disputa sobre a necessidade de exploração de mercados não-capitalistas como
recurso indissociável da acumulação de capital, defendida por Rosa Luxemburgo, a noção de
“mercados externos” envolvia uma condição inalienavelmente espacial.
3A diferença com a qual esse mesmo assunto toma as obras de Lênin e Luxemburgo tem a
ver com a forma e os aspectos espaciais que o processo econômico assume na visão de cada
autor. Ou melhor, trata-se de uma diferença que parte da valorização de processos e
dinâmicas espaciais em níveis de relações absolutamente distintos. Tanto para Lênin quanto
para Luxemburgo o comportamento espacial da acumulação capitalista assume uma
dinâmica territorialmente expansionista, e isso está na base da interpretação do
imperialismo para ambos. No entanto, para Lênin, a expansão e a projeção externa do
capital se operam necessariamente sobre as delimitações territoriais consagradas pelos
acordos interestatais. Para Lênin (1979), o processo se dá na escala internacional, numa
articulação tributária da existência simultânea de unidades político-territoriais mutuamente
excludentes por definição. Os eventos analisados nessa escala são definidos pelos limites do
território nacional, ou seja, na relação entre países como unidades políticas de expressão
essencialmente territorial. A noção de mercado externo presente nessa interpretação envolve
o reconhecimento dos limites territoriais como elementos centrais da exploração capitalista.
Desse ponto de vista econômico, a Alemanha e a Inglaterra constituem, em sua troca recíproca,
uma para a outra, mercados capitalistas internos, enquanto as trocas entre a indústria alemã e
seus produtores ou consumidores camponeses alemães representam, para o capital alemão,
relações de mercado externo (Luxemburgo, 1985, p. 251).
6Se os limites territoriais são para Lênin o fator de definição que recai sobre a exploração
dos mercados externos, para Luxemburgo a fronteira é o elemento mais significativo, pois
demarca não as relações de comércio entre Estados nacionais, mas a zona de contato e
intersecção entre sistemas ou lógicas distintas – no interior, muitas vezes, das mesmas
unidades político-territoriais. Nesse último caso, são essas relações que são interpretadas
como condição de reprodução do capital. Para Luxemburgo, é somente com a exploração e o
avanço de formações capitalistas sobre territórios que respeitam outro repertório da
reprodução social que são garantidos os meios da acumulação de capital. Essa fronteira, no
entanto, pelo que se defende aqui, não deve ser resultado único do contato com o mundo
exterior, extracapitalista. A expansão capitalista, por meio do avanço destrutivo sobre áreas
que devem abastecer os novos ciclos de acumulação não estão restritos à exploração de
territórios não-capitalistas. O avanço da fronteira capitalista não se dá somente de forma a
promover uma expansão geográfica em termos absolutos, por meio da exploração de suas
próprias fronteiras externas. A forma do processo, descrita por Rosa Luxemburgo, precisa
ser completada.
8Num outro universo de significação, a noção de limite pode ser aplicada para expressar a
exaustão, a impossibilidade e o fim de um processo ou atividade. Remetendo-se mais
especificamente, nesse caso, ao funcionamento de um corpo social ou natural no tempo, o
uso da noção de limite faz referência à duração. Remetendo-se a suas próprias possibilidades
intrínsecas, o uso da expressão limite aparece ligada mais ao funcionamento lógico. Dessa
forma, a palavra limite também demarca sincronicamente o ponto exato de sua morte –
morte no tempo – ou a impossibilidade estrutural do prosseguimento de determinada
conjunção.
9De qualquer forma, em ambas as possibilidades de emprego da palavra limite, ela se volta
para o interior do corpo ao qual faz menção. O limite diz respeito ao conjunto cercado entre
os contornos que se remetem a uma identidade interna, e portanto ele é voltado para
dentro, seja em relação ao território ou às possibilidades de definição e continuidade de
determinado arranjo social – do que se entende por capitalismo, por exemplo. Ele não faz
menção ao que “não é”, mas somente ao que termina ou encontra o seu fim num
determinado ponto ou linha – no espaço, no tempo ou a partir de uma configuração interna
(lógica).
10Diferente, no entanto, é o sentido que foi atribuído à noção de fronteira. “A fronteira está
orientada ‘para fora’ (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados ‘para dentro’
(forças centrípetas)” (Machado, 1998). O sentido mais forte do termo, entretanto, e o campo
no qual essa discussão assumiu um contorno conceitual mais preciso, seja no campo jurídico
ou no da ciência geográfica, se remete às categorias espaciais e, mais especificamente, à
fenômenos e definições que ganham existência no território. Isso se deveu em grande
medida ao comportamento, à dinâmica e ao modus operandi inseparáveis do Estado
territorial moderno. Nesse sentido, segundo Lia Osório Machado,
11“A gênese da noção de ‘fronteira’ é diferente e muito mais antiga daquela de limite
internacional. A literatura considera o Império Romano e o Império da China como casos
paradigmáticos na investigação das origens da concepção de fronteira e da evolução de seu
significado no tempo. Os romanos, por exemplo, não tinham interesse em
estabelecer limites aos seus domínios; no entanto, criaram um sistema administrativo e
defensivo de fronteira (período dos Augustos), primordialmente para dificultar a expansão
dos povos bárbaros nas fímbrias do Império” (Machado, sem data).
12Stephen Jones aponta com clareza para uma dinâmica, própria da fronteira, que se
desenha em contraposição ao imobilismo sugerido pelos limites, tais como são concebidos
atualmente pelo moderno sistema interestatal (ver Arrighi, 1996; e Machado, sem data). A
confusão recorrente entre limites e fronteiras guarda armadilhas para o pensamento, nem
sempre visíveis. A legalidade, presente na concepção atual de “limite”, a qual recorre o
Estado e o moderno sistema interestatal para a definição territorial dos poderes
concorrentes, foi extraída da esfera privada de regulação da propriedade, mais
especificamente do Direito Civil romano. “A ager publicus ou domínio público não tinha
limites; terminava em algum lugar mas o fim não era especificado por nenhuma linha
legalmente relevante (a expressão usada era fines esse)” (Machado, sem data). Em sua
concepção atual, disseminada pelo uso do léxico estatal-legalista, “o limite não está ligado à
presença de gente, sendo uma abstração, generalizada na lei nacional” (Machado, 1998). A
indefinição legal da situação de “fronteira”, em contrapartida, implica frequentemente num
tipo de mobilidade congênita, contrariando as tendências imobilizadoras impostas pelo limite.
Nesse sentido, o caráter extrovertido da situação de fronteira sugere uma ampliação das
possibilidades, uma tendência à expansão (do corpo lógico, social ou ecológico) que ignora
as definições impostas pelos limites internos, muitas vezes ultrapassando e desrespeitando
as definições legais dos poderes jurídicos e regulamentadores do Estado, justamente
enquanto a conformação introvertida do limite sugere a restrição e o contorno do universo
em questão.
13“A palavra fronteira implica, historicamente, aquilo que sua etimologia sugere – o que está
na frente. A origem histórica da palavra mostra que seu uso não estava associado a nenhum
conceito legal e que não era um conceito essencialmente político ou intelectual. Nasceu como
um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem do mundo habitado. Na
medida que os padrões de civilização foram se desenvolvendo acima do nível de
subsistência, as fronteiras entre ecúmenos tornaram-se lugares de comunicação e, por
conseguinte, adquiriram um caráter político. Mesmo assim, não tinha a conotação de uma
área ou zona que marcasse o limite definido ou fim de uma unidade política. Na realidade, o
sentido de fronteira era não de fim mas do começo do Estado, o lugar para onde ele tendia a
se expandir” (Machado, 1998).
14Nesse sentido a fronteira faz referência também ao que é externo, ao contrário do limite,
que permanece voltado para o seu interior. Ela se projeta como zona de comunicação e
incorporação mútua entre o mundo externo e o interior, mas, simultaneamente, dá ganho de
causa ao segundo sobre o primeiro, representadas aí todas as forças expansionistas das
sociedades dinâmicas de fronteira.
1 Nesse sentido, o trabalho da economista Maria Heloisa Lenz (2006), sobre O Papel de La Conquista d (...)
19Mesmo Ratzel, consagrado pelos trabalhos realizados no campo da Geografia Política não
pôde deixar de observar fenômenos com uma íntima relação com o desenvolvimento das
forças produtivas. “A despeito das inúmeras críticas dirigidas ao geógrafo alemão em vida e
depois de morto (...), Ratzel conseguiu captar na noção de ‘espaço vital’, e na metáfora do
Estado como ‘organismo vivo’, os movimentos de expansão territorial do sistema capitalista
no século XIX” (Machado, sem data). No entanto, ele ainda permaneceu no campo de uma
dimensão espacial estreita, reduzida ao território sob domínio – ou necessário – para a
manutenção dos poderes do Estado. A fixação da escala em que o autor pôde perceber essa
dinâmica serviu como um fator limitante de sua teoria.
21Evidentemente, não se está aqui discutindo a necessidade do fenômeno ter ou não uma
existência espacial – indiscutível, inclusive do ponto de vista dos autores em questão –, mas
se ele será aprisionado numa dimensão que cabe única e exclusivamente ao domínio
legitimado pela esfera estatal mais ampla. Qualquer padrão espacial de reprodução do
capital único e imutável é uma ficção abstrata. As estratégias reprodutivas adotadas pelo
capital não estão restritas a considerar exclusivamente as unidades territoriais definidas no
campo dos acordos interestatais. Os limites territoriais são, nesse sentido, uma referência
externa e, frequentemente, ignorada (transposta) pelas dinâmicas expansionistas de
fronteira – a não ser quando a atuação do Estado venha a reforçar a presença de tais limites
na vida econômica nacional, como, por exemplo, controlando as taxas de cambio, impondo
ou liberando tarifas alfandegárias, taxando o fluxo de capitais ou criando mecanismos de
atração, definindo o piso salarial etc., e mesmo assim, a presença de tais limites não será
absoluta.
23“No caso da maioria das nações, entretanto, o desenvolvimento ocorreu numa área
restrita; e se a nação se expandiu, ela encontrou outros povos crescendo, os quais foram
conquistados. Mas, no caso dos Estados Unidos, nós temos um fenômeno diferente.
Limitando nossa atenção à Costa Atlântica, temos o fenômeno familiar da evolução das
instituições numa determinada área... Mas temos também, além disso, a recorrência desse
processo de evolução em cada área a oeste que foi atingida pelo processo de expansão.
Desse modo, o desenvolvimento americano exibiu não somente o avanço ao longo de uma
única linha, mas um retorno às condições primitivas no avanço contínuo da linha de
fronteira, e um novo desenvolvimento para aquela área. O desenvolvimento social americano
foi continuamente reiniciado na fronteira. Esse constante renascimento, essa fluidez da vida
americana, essa expansão para o Oeste com essas novas oportunidades, esse contínuo
encontro com a simplicidade da sociedade primitiva fornecem as forças que dominam o
caráter americano” (Turner, 1976, p. 2-3).
25O aspecto ideológico, no entanto, que funciona como critério normativo para a “tese da
fronteira” e confere legitimidade à “ação civilizatória” do pioneiro, foi elaborado ao mesmo
passo com a construção da imagem de um Oeste “selvagem” e que precisava ser vencido.
Isso justificou as atrocidades realizadas nas franjas de uma civilização hedonista em
constante expansão territorial.
31Partindo da terminologia empregada por Arrighi (1996), para compreender o que poderia
se caracterizar como um “compacto ‘império’ territorial domestico”, é preciso recorrer a uma
compreensão do processo que é possível ler em Harvey. Para ele, “as práticas imperialistas,
do ponto de vista da lógica capitalista, referem-se tipicamente à exploração das condições
geográficas desiguais” (Harvey, 2004, p. 35). Esse é um nível no qual “a condição de
igualdade costumeiramente presumida em mercados de funcionamento perfeito é violada, e
as desigualdades resultantes adquirem expressão espacial e geográfica específica” (Harvey,
2004, p. 35). É nesse sentido que é possível e “há naturalmente boa parcela de
desenvolvimentos geográficos desiguais fundados em parte em relações assimétricas de
trocas no interior dos Estados. Entidades políticas subnacionais, como governos
metropolitanos ou regionais, envolvem-se de modo crucial nesse processo. Mas de modo
geral não se chama isso de imperialismo” (Harvey, 2004, p. 35-36). O termo “imperialismo”
permaneceu vinculado a uma escala supranacional de exploração das diferenças espaciais.
32Segundo Neil Smith, “no século XIX, a expansão da fronteira geográfica nos EUA e em
outros lugares foi também uma expansão econômica do capital. (...) Nesse período, a
expansão econômica foi realizada em parte por meio da expansão geográfica absoluta, ou
seja, a expansão da economia significou a expansão da arena geográfica na qual a economia
operava” (Smith, 2007, p. 17).
33No entanto, uma diferença tem de ser valorizada. Entre os processos que resultam em
“expansão geográfica absoluta”, como resposta e dinâmica fundamental de absorção do
capital excedente, e aqueles nos quais a expansão capitalista se dá por meio da
rediferenciação interna no interior dos espaços de formação já anteriormente capitalista, o
objeto capturado e deglutido para os fins da reprodução do capital é de natureza diversa. A
partir daqui, a contribuição de Rosa Luxemburgo se torna mais evidente.
34No caso de uma “expansão geográfica absoluta”, com a incorporação de novas terras ao
circuito da valorização capitalista, como no caso na “marcha para o Oeste”, o próprio modo
de produção capitalista é lançado contra formações sócio-espaciais absolutamente distintas
em relação a si mesmo. Nesses casos, a fronteira é a zona de intersecção, o lugar do
encontro (e do conflito, muitas vezes) entre modos de produção, “sistemas” sociais e lógicas
reprodutivas diversas. Trata-se aqui da “fronteira externa”, no sentido que é possível extrair
de Rosa Luxemburgo. A fronteira capitalista é, nesse sentido, a materialização do encontro
entre mundos e territorialidades a serviço de lógicas de origem diversa.
35Quando o crescimento econômico se opera a partir da reestruturação, reordenação ou
reprodução do espaço urbano já consolidado no interior do desenvolvimento de relações
sociais capitalistas, a dinâmica espacial da acumulação terá de enfrentar e se confrontar com
novas forças; desconhecidas no caso de um avanço sobre territórios “virgens” do ponto de
vista da exploração do capital. Para Neil Smith, o que o processo de gentrificação nos revela
é que, “hoje, o vínculo entre o desenvolvimento econômico e geográfico persiste, conferindo
à imagem de fronteira a sua atualidade, mas a forma desse vínculo é bem diferente” (Smith,
2007, p. 17). No caso de um retorno dos investimentos pesados do capital contemporâneo
para o interior das áreas já transformadas pela ação direta desse mesmo modo de produção,
não temos nem o contato que é típico das situações de fronteira como a descrita logo acima,
nem, ao menos, como resultado, a expansão geográfica absoluta como a que se é possível
verificar diante da incorporação de novas terras aos circuitos capitalistas. Nesse caso, o
confronto e o objeto de satisfação dos mecanismos de reprodução capitalista estão menos
nas configurações pré-capitalistas, encontradas para além do mundo conhecido e do
universo das relações de produção fundadas nos processos de valorização do valor, do que
nos próprios elementos e fragmentos de uma classe que compartilha da mesma origem de
sua opositora. Esse é o momento em que o capital estanca um movimento direcionado para
fora de si (uma pulsão extrovertida) e volta todas as suas forças para o consumo de
configurações capitalistas mais frágeis ou pertinentes a outros momentos históricos do
estágio de valorização. Em termos relativos, cessada a compulsão geograficamente
extrovertida do capital, este retorna para os antigos centros urbanos, destruindo formas
espaciais, modos de vida arraigados e todo um conjunto de infraestruturas e relações ligados
aos momentos anteriores da valorização capitalista no interior da economia urbana.
37A experiência brasileira de gentrificação das áreas centrais urbanas, que caracteriza o
processo por aqui, teve início somente na década de 1990. De acordo com Hélène Rivière
D’Arc, inspirada na periodização de Neil Smith (2001), “São Paulo (...) desconheceu tanto a
primeira quanto a segunda fase da gentrificação” (D’Arc, 2004, p. 341). Isso, contudo, de
um ponto de vista mais geral, não resultou em desvios significativos em relação ao que já se
apresentou. No que diz respeito à dinâmica dos investimentos imobiliários que ocorrem por
meio da reprodução do espaço urbano, Mariana Fix (2007) e Ana Fani Alessandri Carlos
(2001) apontam para dispositivos que consideram a desvalorização como um momento
crucial do processo de valorização capitalista. Só a desvalorização de regiões da cidade pode
recolocar à disposição de investidores novas porções do espaço urbano a preços
significativamente baixos a ponto de originarem uma renda diferencial, ou um diferencial de
renda expresso no tempo, que deverá compor a lucratividade final do capital investido.
Portanto, esse rent gap, analisado também por Smith (2007), que é um dos componentes
centrais dos elevados índices de lucratividade do setor imobiliário, é conquistado em grande
medida pela desvalorização e destruição do capital e do espaço anteriores. No caso
brasileiro, processo pode ser definido mais ou menos assim:
38“A desvalorização dos centros antigos das grandes cidades brasileiras, a partir da década
de 1970, encontra parte de sua justificativa nessas estratégias. A tomada de espaços
suburbanos quase sem valor de mercado, pelas poderosas incorporadoras, não só realizou
um impressionante potencial de valorização nos subúrbios, organizados sob a forma de
condomínios residenciais de luxo, para o qual afluíam as camadas mais abastadas da
sociedade brasileira, como desvalorizou as regiões centrais. Hoje, os centros antigos dessas
cidades passam por processos de ‘revitalização’, processos esses que procuram inserir
novamente essas áreas degradadas e destruídas no circuito de valorização do capital.
Durante os anos 1980 e parte dos anos 1990, os centros das cidades brasileiras que
passaram por esse processo, funcionaram como um estoque desvalorizado de ativos
imobiliários” (Santos, 2008, p. 46).
39Esse processo, apresentado aqui no caso brasileiro, mantém identidade com a análise de
Neil Smith (2001, 2007) sobre as “ondas” do processo de gentrificação. A circularidade
intencional do processo, que envolve valorização e desvalorização simultâneas e
geograficamente não coincidentes, como parte da estratégia de valorização capitalista a
partir da produção do espaço, recai sobre espaços de formação capitalista prévia. Isso
aponta para o fato de que os centros urbanos das grandes cidades brasileiras voltarão a ser
atingidos por uma nova onda de capitalização, uma vez ocorrido o processo de
desvalorização. Essa dinâmica se dá de forma que o capital a ser investido possa se
apropriar de porções do espaço urbano a preços relativamente baixos para poder vendê-las,
mais tarde, a preços bastante altos, se apropriando assim do potencial de valorização do
espaço numa estratégia conjunta entre Estado e capital privado. Nesse sentido, é a
diferenciação interna do espaço urbano que produz e reproduz esse potencial de acumulação
a partir do espaço social. Induzida por poderosas ações, a degradação e destruição de
fragmentos da vida social urbana espacialmente localizados ocorre a par com um simultâneo
processo de valorização e gentrificação (enobrecimento) de outras áreas. “Em um nível mais
básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas (...) o que
cria a oportunidade econômica para a restruturação das áreas urbanas centrais. A
desvalorização da área central cria a oportunidade para a revalorização desta parte
‘subdesenvolvida’ do espaço urbano” (Smith, 2007, p. 22). “Portanto, a reestruturação do
espaço urbano conduz a uma simultânea, assim como subseqüente, decadência e
redesenvolvimento, desvalorização e revalorização” (Smith, 2007, p. 29). Dessa forma, a
diferenciação interna do espaço geográfico se coloca no horizonte da acumulação capitalista
como uma fonte inesgotável de recursos para a absorção dos excedentes e novos
investimentos lucrativos. Após abandonar uma área já saturada pelos investimentos de
outrora lucrativos, o capital busca por áreas mais baratas e desvalorizadas pela escassa
procura. Ao promover todo o potencial de acumulação a partir das estratégias de valorização
desses novos espaços que acolhem os investimentos mais atuais, os investidores imobiliários
se apropriam da diferença gerada no tempo e preparam, simultaneamente, as antigas áreas,
já desvalorizadas, para uma nova participação nos ciclos futuros da acumulação. “A
gentrificação, a renovação urbana e o mais amplo e complexo processo de reestruturação
urbana são todos parte da diferenciação do espaço geográfico na escala urbana; e (...) sua
função hoje é reservar uma pequena parte do substrato geográfico para um futuro período
de expansão” (Smith, 2007, p. 17-18). Nesse caso, o limite do processo de acumulação não
será atingido pelo escasseamento direto de um estoque de terras “virgens” a ser apropriada
pelo ciclo de reprodução capitalista. Aqui o estoque territorial se tornou reprodutível; ele foi,
portanto, incorporado no interior da lógica de reprodução do capital e passou a ser um
produto do mesmo modo de produção do qual é condição de existência. Com a dinâmica da
gentrificação ou da “revitalização” dos espaços centrais – compreendido aqui todo o
mecanismo histórico de valorização e desvalorização de regiões inteiras –, o processo de
acumulação do capital passou a produzir suas próprias condições espaciais de reprodução –
reproduzindo incessantemente a diferenciação geográfica. Podemos pensar aqui numa
produção especificamente capitalista do espaço nos termos da reprodução capitalista do
espaço urbano.
41Temos, portanto, nesse ponto, a clara intuição de que a reprodução capitalista a partir do
espaço pode se dar, genericamente, segundo dois padrões radicalmente distintos. A
necessidade de apropriação capitalista de espaços de formação tipicamente não-capitalista
para os fins da continuidade da acumulação de capital é uma ficção injustificada. Muitos
autores, de épocas e formações distintas, chegaram a sinalizar que essa seria a única
alternativa válida para a manutenção dos padrões de acumulação capitalista. Rosa
Luxemburgo, ao seu tempo, e Rosa Tello Robira (2005), mais recentemente, animaram o
debate tomando essa posição. Segundo a abordagem apresentada, no entanto, a partir da
qual a exploração das fronteiras internas do capitalismo satisfaz as necessidades do processo
de acumulação, o próprio modo de produção capitalista aparece como portador de uma
capacidade interna de reprodução de suas próprias condições espaciais de reprodução.
43“Houve um terceiro movimento, a expansão não territorial e sim sistêmica das ‘fronteiras’
do regime capitalista, ao incorporar as ‘mentes e corpos’ das multidões. Talvez seja a
incompreensão deste terceiro movimento por Ratzel o motivo dele enxergar exclusivamente
o território em sua ‘teoria’ do espaço vital, o que não só tornou a expressão historicamente
datada e geograficamente situada (imperialismo alemão): permitiu que os críticos
posteriores reduzissem o conteúdo teórico da expressão apenas à ideologia ‘vitalista’ que
caracterizou sua abordagem do estado (a metáfora do ‘organismo vivo’)” (Machado, sem
data).
44Ao compreender a lacuna presente na elaboração teórica de Ratzel, Lia Osório Machado
supera os limites de Rosa Luxemburgo e Rosa Tello Robira, simultaneamente. Ela capta uma
possibilidade para a reprodução capitalista que não se reduz à expansão territorial em
termos absolutos ou à utilização de um estoque anterior de territórios mantidos em situação
não-capitalista. Nesse sentido, no entanto, apesar de ter atingido um determinado nível de
compreensão sobre a intensificação geográfica do capital como solução para os problemas de
acumulação, diferenciando-se de Rosa Luxemburgo e de Rosa Tello Robira, ela não
expressou conceitualmente a relação que tais processos mantêm com o espaço social.
45A título de conclusão, podemos afirmar, portanto, que “a teoria afirma que o capitalismo
se destina a expandir por meio tanto da intensificação dos relacionamentos nos centros
capitalistas de produção, como da expansão geográfica desses relacionamentos no espaço”
(Harvey, 2005, p. 62). Apesar de se tratar de padrões genericamente distintos, essas formas
da reprodução espacial do capital não são, de maneira alguma, incongruentes, podendo,
mesmo, ser complementares. Mas é importante reforçar que cada qual detém validade para
os fins da reprodução capitalista de maneira isolada ou conjunta. De acordo com os fins da
reprodução capitalista, “a teoria geral de Marx fala da necessidade de expandir e intensificar
geograficamente” (Harvey, 2005, p. 66).
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Bibliografia
ARC Hélène Rivière D’., “Requalificar o Urbano do Século XX: projeto para o centro da cidade
de São Paulo – mistura ou gentrificação”, In Ana Fani A. C ARLOS e Ariovaldo U.
OLIVEIRA,Geografias de São Paulo: a metrópole de século XXI, São Paulo, Contexto, 2004, p.
341-362.
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Notas
1 Nesse sentido, o trabalho da economista Maria Heloisa Lenz (2006), sobre O Papel de La
Conquista del Desierto na Construção do Estado Argentino no século XIX, e da Professora Ligia
Osório Silva (2003), do Instituto de Economia da UNICAMP, Fronteira e Identidade Nacional, são
boas referências para se pensar o papel da fronteira na ordenação econômica do território
brasileiro.
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Referência eletrónica
César Ricardo Simoni Santos, «Sobre limites e fronteiras: a reprodutibilidade do estoque territorial
para os fins da acumulação capitalista», Confins [Online], 12 | 2011, posto online no dia 02 julho
2011, consultado o 11 novembro 2021. URL: http://journals.openedition.org/confins/7081; DOI:
https://doi.org/10.4000/confins.7081
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