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Em tempos de pandemia, uma releitura das curas de Jesus


no Evangelho segundo Marcos

João Luiz Correia Júnior (*)

Resumo
Em tempos de crise na saúde pública, tais como epidemias e pandemias, as Religiões cumprem
o importante papel de cultivar a compaixão e promover a solidariedade com os doentes, de
consolar as pessoas em meio às perdas dos entes queridos, bem como de fortalecer a esperança
dos que sofrem, vitimados pela doença. A Religião Cristã encontra nas narrativas dos
Evangelhos o sentimento compassivo de Jesus com todas as pessoas, especialmente com
doentes físicos e mentais. Jesus está situado num contexto histórico de empobrecimento
crescente provocado por dura opressão política e econômica da parte do Império Romano. A
grande massa de empobrecidos sociais estava sujeita à fome e a todo tipo de doenças
infecciosas, sobretudo por conta da falta de condições básicas para manter a higiene pessoal
e comunitária. O presente estudo tem por finalidade apresentar aspectos da prática de Jesus, no
Evangelho segundo Marcos, que revelam a sua delicadeza e atenção em cuidar das pessoas com
enfermidades físicas e mentais. Os resultados da pesquisa revelam que a ação solidária de Jesus
é consequência de uma profunda compaixão, algo que mexe com as entranhas e interpela (como
um imperativo ético) à sensibilidade com o sofrimento humano. Pode-se inferir, por trás das
narrativas de curas do Evangelho, uma prática humanista restauradora de vidas que se revela
em aspectos interligados, tais como: a capacidade (o poder) de expulsar o mal do corpo de
homens e mulheres, em ambiente público e privado (a cura do endemoninhado na Sinagoga e
a cura da sogra de Pedro na casa dela, em Mc 1,21-31); o atendimento imediato de pessoas
doentes que lhe suplicam cuidado (a cura de um leproso em Mc 1,40-45); a motivação para o
cuidado: visão crítica sobre a realidade (“pois estavam como ovelhas sem pastor”, conforme
Mc 6,34); inúmeras curas de doentes na região de Genesaré (Mc 6,53-56); o enfrentamento das
impurezas contagiosas (ensinamentos sobre o puro e o impuro, em Mc 7,14-23); a força para
cuidar das doenças, por meio da oração contínua; a vigilância constante diante das dificuldades
na missão (Mc 14,32-42). Esses elementos suscitam, portanto, um sentido renovado para a
prática cotidiana no cuidado com as pessoas doentes.
Palavras-chave: Religião. Textos Sagrados. Narrativas de cura. Compaixão. Solidariedade.

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(*) Pós-doutor (2012) pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (PUC GOIÁS). Doutor (1998) em Teologia (linha de pesquisa em Estudos
Bíblicos) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RIO). Professor Titular e Pesquisador da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), onde leciona desde 02 de agosto de 1988. E-mail:
joao.correia@unicap.br
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Introdução
As narrativas de curas nos Evangelhos e, de modo especial, no Evangelho segundo
Marcos, revelam uma prática compassiva e solidária de Jesus para com pessoas doentes que a
ele recorriam como homem de Deus capaz de curar (taumaturgo). Espelham também um
contexto de crise na saúde pública que tem verossimilhança1 com a realidade histórica.
De fato, conforme demonstra a pesquisa histórica, a dominação política e econômica do
Império Romano, causava o empobrecimento crescente da população2. Pode-se inferir daí
inúmeras consequências sociais, tais como: subnutrição, fome, péssimas condições de higiene,
e a proliferação dos mais diversos tipos de doenças, inclusive, infecciosas.
O evangelho segundo Marcos apresenta inúmeras narrativas que revelam o poder de
Jesus contra as forças que ameaçam a vida. São treze curas3, além de cinco sumários citando
curas4. Até mesmo os discípulos de Jesus realizaram curas5.
Sem discutir sobre a historicidade ou não dessas narrativas de curas, Ched Myers (1992,
p. 187-190) convida a ler esses relatos como “ações simbólicas” que despertem um sentido
novo e sirvam como discurso simbólico que faça sentido nos diversos contextos em que for
lido. Por sua vez, Gerd Theissen e Annette Merz (2002, p. 338) afirmam que as narrativas de
curas contêm um protesto contra o sofrimento humano, consequência da pobreza que gera fome,
desnutrição, doenças diversas (físicas e mentais), mortes e revoltas generalizadas.
Nessas narrativas, percebe-se o apreço da comunidade cristã em que surgiu o Evangelho
de Marcos pela prática compassiva e solidária de Jesus. Concebido como o Cristo, Jesus é

1
Em sentido genérico e comum, verossimilhança é a qualidade ou o caráter do que é verossímil, que é semelhante
à verdade e tem aparência de verdadeiro. Na perspectiva da narrativa literária, entende-se por verossímil tudo o
que está ligado ao campo das possibilidades simbólicas relativas ao ser humano e à história. CEIA, Carlos. E-
Dicionário de Termos Literários. Disponível em: <https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/verossimilhanca/>. Acesso
em: 16 de jul. de 2021.
2
Ao discorrer sobre as condições socioeconômicas da Palestina sob o Império Romano, Emílio Voigt (2014, p.
74-98) apresenta algumas informações importantes que ajudam a compreender as causas do empobrecimento
crescente da população no tempo de Jesus e a consequente degradação da saúde do povo. Na economia agrícola,
os grandes problemas eram as catástrofes provocadas pela natureza com perdas na produção, e a alta carga de
impostos que obriga o povo do campo a fazer empréstimos para saudar as dívidas (p. 80). Na atividade de pesca,
inclusive no lago de Genesaré, os frutos do mar eram repassados a atravessadores que os vendiam nas cidades
maiores. Além disso, havia uma dura política de fiscalização para assegurar a cobrança de impostos (p. 91). Na
tecelaria, manufatura e comércio, mesmo com a demanda provocada pela fundação de inúmeras cidades para servir
aos interesses de controle do Império nas regiões conquistadas, essas atividades desempenhavam um papel
secundário na economia (p. 95). Além desses trabalhadores empobrecidos, é preciso mencionar ainda todos os que
viviam à margem ou abaixo da cota mínima necessária para a sobrevivência tais como mendigos, doentes físicos
e mentais, deficientes e os que se perdiam nessa marginalização, tais como prostitutas, ladrões urbanos e
salteadores de estrada (p. 98).
3
Mc 1,21-28; 1,29-31; 1,40-45; 2,1-12; 3,1-4; [4,35-41]; 5,1-20; 5,21-23, 35-43; 5.24-34; [6,30-44]; [6,45-52];
7,24-30; 7,31-37; [8,1-10]; 8,22-26; [9,2-8]; 9,14-29; 10,46-52; [11,12-14 e 20-21]; [16,1-8].
4
Mc 1,32-34; 1,39; 3,10-12; 6,5-6; 6,53-56.
5
Mc 3,14; 6,7-13.
3

tomado como paradigma da compaixão solidária para com os mais pobres, sobretudo pelas
pessoas doentes e necessitadas de socorro imediato ou em situação de vulnerabilidade.
Tendo presente esse contexto histórico, literário e teológico, são apresentados a seguir
alguns aspectos das narrativas de curas de Jesus no Evangelho segundo Marcos, que podem ser
relidos como essenciais para suscitar um novo sentido para a prática cotidiana no cuidado com
as pessoas carentes, no contexto histórico em que for lido e interpretado o Evangelho, sobretudo
em tempos de pandemia como estes que são enfrentados no início da década de 2020.

1 A motivação para cuidar das pessoas: compaixão


O evangelho segundo Marcos, em poucas ocasiões faz referência à motivação de Jesus
para curar as pessoas. Nos poucos textos onde aparece essa motivação, o verbo utilizado é
splanchnízesthai, “compadecer-se, ter compaixão, ter misericórdia” (ORTIZ, 2008, p. 265), “ter
piedade, mostrar simpatia, compaixão” (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 191).6
O verbo splanchnízesthai é citado como motivação para as ações de cura em algumas
passagens do Evangelho de Marcos7:
- Mc 1,40-41: “Um leproso foi até ele, implorando-lhe de joelhos: - Se queres, tens o poder de
purificar-me. Irado (ou, como em outras traduções “movido de compaixão”) 8, estendeu a mão,
tocou-o e disse-lhe: “Eu quero, sê purificado”.
- Mc 9,17.22: “Mestre, eu te trouxe meu filho que tem um espírito mudo... Mas, se tu podes,
ajuda-nos, tem compaixão de nós”.
- Mc 6,34: “Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão
por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas”.
- Mc 8,2: “Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o
que comer”.
Na raiz do verbo splanchnízesthai está a palavra splánchnon que, no Novo Testamento,
sempre no plural splánchna, descreve as partes interiores do corpo (as vísceras, o coração, os
pulmões, o fígado, etc., como por exemplo: At 1,18). O sentido metafórico é mais comum e
descreve a sede dos sentimentos mais profundos. Assim, a palavra utilizada por Marcos para

6
Sobre o tema da “compaixão”, há uma interessante tese de doutorado de Ildo Perondi, publicada no site da
PUC-RIO, intitulada “A compaixão de Jesus com a mãe viúva de Naim (Lc 7,11-17). O emprego do verbo
splangxizomai na perícope e no Evangelho de Lucas”. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/26090/26090.PDF>. Acesso em: 17 de jul. 2021.
7
Seguimos, neste artigo, a tradução para o português da BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002.
8
Conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém, o termo utilizado é “irado”. Mas, em nota de rodapé “d”,
menciona-se uma variante encontrada na mesma passagem, em textos antigos: em vez de “irado”, “movido de
compaixão”.
4

descrever a motivação para o cuidado que Jesus demonstrava em relação às pessoas é rica em
carga semântica, associada ao conceito hebraico de misericórdia, na palavra rachamîm,
literalmente, “úteros” (DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 2013, p. 911, verbete
“misericórdia”). Tudo isso para dizer que esse cuidado dispensado por Jesus é cuidado materno,
cuidado empático.

2 O carinho para com enfermos: solidariedade


No Evangelho segundo Marcos, tem-se alguns exemplos do carinho e atenção de Jesus
para com as pessoas. Um primeiro exemplo é a narrativa da cura da sogra de Pedro (Mc 1,29-
31):
29 E logo ao sair da sinagoga, foi à casa de Simão e de André́ , com Tiago e João. 30
A sogra de Simão estava de cama com febre, e eles imediatamente o mencionaram a
Jesus. 31 Aproximando-se, ele a tomou pela mão e a fez levantar-se. A febre a deixou
e ela se pôs a servi-los.

A frase “Aproximando-se, ele a tomou pela mão e a fez levantar-se” (Mc 1,31) lembra
o cuidado amoroso de Deus para com o povo de Israel:
- Jr 31,32: Iahweh tomou Israel pela mão para tirá-lo da escravidão na terra do Egito,
estabelecendo uma aliança com esse povo;
- Is 41,13: “...eu, Iahweh, teu Deus, te tomei pela mão direita e te digo: Não temas,
sou eu que te ajudo”.

A sogra de Pedro, uma vez curada, levanta-se para servir a todos (Mc 1,31). Assim como
Yahweh vocacionou o seu Servo, tomando-o pela mão (Is 42,6), esta mulher agora encarna a
mesma disposição. O carinho divino de Jesus gera gratidão que reverbera em diakonia, serviço
que colabora diretamente na missão de instauração do Reino de Deus.
Esse gesto carinhoso de ir à casa de quem está doente para cuidar delas, foi repetido por
Jesus em outras ocasiões. Em Mc 5,22-24, Jesus atende a súplica do chefe da Sinagoga para ir
à sua casa impor as mãos sobre a sua filha, à beira da morte (Mc 5,22-24). Isso denota que Jesus
se insere nas vilas e aldeias da Galileia, num movimento itinerante que o aproxima das
necessidades imediatas do seu povo.

3 O atendimento imediato: urgência


Interessante perceber o atendimento imediato de Jesus a quem lhe suplica ajuda (Mc
1,40-42): “Um leproso foi até ele, implorando-lhe de joelhos: - Se queres, tens o poder de
purificar-me... - Eu quero, sê purificado E logo a lepra o deixou. E ficou purificado”.
A pronta resposta de Jesus ao leproso suplicante, fazendo a devolutiva de sua fala
usando as palavras que ele usou aponta para o cuidado imediato de Jesus pelos doentes. O
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advérbio predileto de Marcos, euthys, “logo, sem demora, imediatamente, de uma vez”
(RUSCONI, 2003, p. 204; GINGRICH; DANKER, 1984, p. 88) assinala o pronto atendimento
feito por Jesus, diante das necessidades das pessoas. Quando comparada com a grande demora
e complexidade da declaração de purificação do leproso, conforme a Toráh, o contraste fica
ainda mais chocante (Lv 14,1-32).
Existe a prática de curandeiros que só piora a doença por estender o tratamento e não
resolver as demandas. Marcos 5,25-34 narra que uma mulher buscou cura por 12 anos e só
agravou sua enfermidade. No encontro com o taumaturgo Jesus, homem de Deus, ela foi curada
imediatamente, euthys.
Hoje em dia, com a dificuldade do acesso à saúde e aos meios eficazes de cuidado
imediato, cresce a ansiedade das pessoas, surgem novas enfermidades e agravam-se os quadros
de comorbidades diversas. Aos poucos, esvai-se a esperança das pessoas, sobretudo das mais
pobres. É a tempestade perfeita para o surgimento de aproveitadores charlatães, curandeiros e
pseudo-religiosos.
O que há de boa nova na prática de Jesus junto aos doentes é seu altruísmo e sua
abnegação no pronto atendimento às pessoas necessitadas. Por conta da urgência nesse
atendimento, Jesus não agiu sozinho. Formou um grupo de discípulos e discípulas para que
colaborasse na missão de curar as pessoas, de forma imediata, configurando a instauração do
Reino de Deus: “E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar, e terem
autoridade para expulsar os demônios” (Mc 3,14-15). Curar as pessoas de suas mazelas físicas
e mentais era, pois, algo urgente, numa sociedade empobrecida e doente.

4 A presença no meio das enfermidades do povo: coragem e colaboração


Segundo o Evangelho de Marcos, Jesus exerceu o ministério de cura em cidades, aldeias
e no campo. Em todos os lugares, doentes acorriam até ele, conforme Mc 6,53-56:
53 Terminada a travessia, alcançaram terra em Genesaré e aportaram. 54 Mal
desceram do barco, os habitantes logo o reconheceram. 55 Percorreram toda aquela
região e começaram a transportar os doentes em seus leitos, onde quer que
descobrissem que ele estava. 56 Em todos os lugares onde entrava, nos povoados, nas
cidades ou nos campos, colocavam os doentes nas praças, rogando que lhes permitisse
ao menos tocar na orla de seu manto. E todos os que o tocavam eram salvos.

Discute-se se a região era predominantemente judaica ou gentílica (MYERS, 1992, p.


267), mas o fato é que a disposição de Jesus em aproximar-se daquele lugar e de sua população
sofrida, provocou a solidariedade dos próprios habitantes do lugar para com os doentes, que
foram literalmente levados até Jesus, para obterem a cura de suas mazelas.
6

Horsley (2004, p. 69-78) faz questão de assinalar que o movimento geográfico de Jesus
gera um movimento social na Galileia; seus deslocamentos e sua assistência aos doentes é
mobilização que é compreendida, pelos relatos dos evangelhos, como a irrupção do Reino de
Deus, num tempo novo de “salvação”.
Em Mc 6,56 (conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém), “E todos os que o tocavam
eram salvos” (esôzonto). A expressão verbal pode ser traduzida também por “eram curados”.
Contudo, a primeira opção é mais significativa, pois aqui, como em algumas outras passagens
(Mc 3,4; 5,23.28; Mt 9,31; Lc 6,9; 8,36.50; 17,19) é muito provável que o verbo grego sôzo
(curar / salvar) seja usado em sentido pleno para sugerir que a cura é um sinal visível do poder
salvífico de Jesus, que confere uma salvação infinitamente superior à saúde do corpo
(MACKENZIE, 1983, p. 835, verbete “salvação”).

5 Superação de preconceitos religiosos no trato de doenças: o puro-impuro


No mundo antigo em que o conhecimento era limitado e tudo estava envolto em mistério
(corpo, sexualidade, doenças, morte), a velha sabedoria da humanidade elaborou “tabus” que
lhe parecia garantir a integridade da vida do grupo e de seus membros e que, naturalmente,
numa civilização sacral, assumem um sentido religioso. A quebra de tabus religiosos causava
impureza ritual, e as práticas de purificação religiosa foram se tornando um formalismo
ritualista exagerado, que impossibilitava as pessoas mais pobres de cumprirem tais obrigações
(DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 2013, p. 1116, verbete “pureza, impureza”).
Por conta do ritualismo e das dificuldades financeiras é de se imaginar que a imensa
maioria da comunidade vivi num estado, quase permanente, de impureza ritual9. Pessoas
doentes eram tidas como impuras. Quem as tocasse, ficaria impura também. A lepra era uma
palavra aplicada a diversas doenças infecciosas da pele; as regras sacerdotais para o diagnóstico
e para a cura são dadas em Lv 13,1 – 14,57 (MACKENZIE, 1983, p. 544, verbete “lepra”). A
menstruação (Lv 15,19ss), bem como toda perda anormal de sangue fora do tempo de suas
regras (Lv 15,25ss) tornará a mulher impura. O contato com um cadáver torna a pessoa impura
por sete dias (Nm 19,11-16).
O Jesus dos Evangelhos enfrenta esses tabus e preconceitos religiosos: toma pela mão a
sogra de Pedro que estava acamada com febre (Mc 1,31); toca o leproso (Mc 1,40-43); é tocado

9
É difícil de dizer em que medida essas regras minuciosas, das quais somente os sacerdotes podiam conhecer
os detalhes (Ez 44,23; Lv 10,10), foram observadas e pode-se pensar que, de fato, pelas necessidades da vida
condenavam a imensa maioria da comunidade cultual a um estado, quase permanente, de impureza ritual
(DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 2013, p. 1117, verbete “pureza, impureza”).
7

por uma mulher impura (Mc 5,27); toma a mão da filha de Jairo que está dada como morta (Mc
5,41).
Desse modo, as prescrições rituais do puro e do impuro são quebradas, na medida em
que Jesus se aproxima, toca e trata das pessoas enfermas. Seu combate aos escrúpulos que se
referem à pureza visava o retorno à prática da justiça e do cuidado humanitário (Mc 7,1-13).
Para Jesus, o melhor procedimento está em cultivar valores que brotem do coração humano (do
seu interior, motivado por profunda compaixão), por meio de ações solidárias para com as
pessoas mais vulneráveis da sociedade

6 A oração vigilante como energia para cuidar de enfermos


A missão de cuidar de doentes é árdua e, às vezes, desanimadora. Embora o discipulado
tenha recebido de Jesus formação exemplar e autorização para a missão de pregar com
autoridade e de expulsar as “forças do mal” que adoecem as pessoas (“demônios”, conforme
Mc 3,14-15; “espíritos impuros”, conforme Mc 6,7), só isso não foi suficiente.
Ao descer do monte da transfiguração, Jesus recebe a reclamação de que seus discípulos
não conseguiram curar um menino tomado por um espírito que o deixa mudo e epiléptico (Mc
9,14-19). Jesus classificou isso como sinal de incredulidade (Mc 9,19) e depois curou o menino
(Mc 9.20-27). Em particular, os discípulos perguntaram sobre a razão de curar o menino e a
resposta de Jesus foi clara: “Essa espécie não pode sair a não ser com oração” (Mc 9,29). Nessa
narrativa, Jesus recomendou a prática de constante e disciplinada oração. Talvez a falha dos
discípulos fosse, justamente, confiar em suas próprias habilidades. Jesus recomenda o
desenvolvimento de relacionamento contínuo com Deus.
É necessário, portanto, manter-se em constante vigilância na oração. O verbo “vigiar”
foi associado ao verbo “orar” no imperativo: “Vigiai e orai para não entrar em tentação” (Mc
14,38). Essa é a única forma de resistir às tentações do desânimo, “pois o espírito está pronto,
mas a carne é fraca”.

Conclusão
Proclamar e lutar por cuidados e programas de assistência nas casas e comunidades,
mesmo nos lugares mais desassistidos, exige mudança de comportamento, metanoia, termo
grego traduzido por conversão. E isso só é possível por adesão, baseada na livre e espontânea
vontade, a partir de princípios internalizados e adotados como novo padrão de comportamento.
A missão do taumaturgo Jesus nos Evangelhos é inspiradora para as pessoas de fé cristã,
que enfrentam as mais diversas enfermidades ou se veem diante de crises generalizadas na
8

saúde pública, provocadas por endemias e pandemias que ceifam milhares de vidas de forma
repentina e avassaladora.
Sempre que as pessoas ouvirem ou lerem essas narrativas das sagradas escrituras, elas
não vão ficar conformadas por não haver cura para doentes; sempre que essas histórias bíblicas
forem narradas, as pessoas vão deixar de virar as costas para os enfermos que perecem sem
esperança; sempre que essas narrativas forem refletidas e aprofundadas, as pessoas lembrarão
do testemunho de Jesus de Nazaré, que assumiu com compaixão a dor dos empobrecidos,
procurando lhes dar uma resposta imediata, enfrentado com coragem todos os perigos dessa
missão, até às últimas consequências: a morte. E morte de cruz.

Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em:
<https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/verossimilhanca/>. Acesso em: 16 de jul. 2021.
DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA. São Paulo: Loyola; Paulus; Paulinas, 2013.
GINGRICH, W. F.; DANKER, W. F. Léxico do Novo Testamento Grego/Português. São
Paulo: Vida Nova, 1984.
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São
Paulo: Paulus, 2004.
MYERS, Chad. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas [Paulus], 1992.
ORTIZ, Pedro. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2008.
PERONDI, Ildo. A compaixão de Jesus com a mãe viúva de Naim (Lc 7,11-17). O emprego
do vergo splangxizomai na perícope e no Evangelho de Lucas”. Disponível em:
<https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/26090/26090.PDF>. Acesso em: 17 de jul. 2021.
RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003.
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002.
VOIGH, Emilio. Contexto e surgimento do Movimento de Jesus: as razões do seguimento.
São Paulo: Loyola, 2014.

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