Você está na página 1de 6

TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR RESISTENTE E REVISÃO DE SEU

TRATAMENTO COM CLOZAPINA


RESISTANT BIPOLAR DISORDER AND A REVIEW OF ITS TREATMENT WITH CLOZAPINE

Érico de Castro Costa * iria plantar. Dormia pouco, falava muito. O conteúdo da fala gi-
Gislene Valadares Miranda ** rava em torno de dinheiro e os negócios que realizaria, que lhe
Ana Luiza Corrêa da Costa *** renderiam muitos “milhões de dólares”. O paciente foi atendido
Maurício Viotti Daker **** por psiquiatra e não aceitou a medicação, havendo necessidade
de misturar haloperidol 50 gotas na alimentação, com remissão
do quadro. Fez uso contínuo do haloperidol até as mudanças de
Resumo comportamento que se iniciaram três semanas antes do atendi-
mento de 23/11/1994.
Os autores relatam caso de paciente portador de transtorno afeti- Foi indicada internação, sendo prescritos haloperidol 5 mg
vo bipolar resistente, acompanhado há cinco anos no laboratório do VO à noite, imipramina 25 mg à noite e uma ampola de halope-
Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas - UFMG. Após descri- ridol mais uma ampola de prometazina em caso de agitação. So-
ção detalhada do caso e constatação da falência das terapêuticas psi- licitadas provas de função tireoidiana, TGO, TGP, bilirrubinas e
cofarmacológicas usuais, devido a ineficácia (lítio) ou intolerância avaliação pela clínica médica. O caso foi discutido no dia
(carbamazepina, oxcarbazepina), além da utilização de polifarmaco- 24/11/1994 pela preceptoria, que sugeriu a introdução lenta de
terapia com riscos de interações indesejáveis, é apresentada revisão clonazepam e a troca do haloperidol pela clorpromazina. Com
bibliográfica de tratamento com Clozapina e optamos pelo isso, a nova prescrição do paciente passou a ser: clonazepam
emprego, bem sucedido, da clozapina do transtorno afetivo bipolar 3,5 mg/dia, clorpromazina 200 mg/dia e imipramina 50 mg/dia,
resistente. além de biperideno 2 mg/dia. O paciente apresentou vários epi-
sódios de insônia e agitação psicomotora diurna, o que levou ao
incremento das doses de clorpromazina até 400 mg/dia, clonaze-
Palavras-chave: Transtorno de Humor Bipolar; Clozapina
pam até 6 mg/dia e imipramina 125 mg/dia.
No dia 12/12/1994 (22º dia de internação), foi iniciado carbo-
Caso Clínico nato de lítio 600 mg/dia após a normalidade dos resultados das
provas tireoidianas. Após 29 dias de internação, em 22/12/1994,
AB, 51 anos, masculino, ex-comerciante, atualmente aposen- o paciente recebeu alta com melhora do quadro de agitação e em
tado, casado, três filhas, católico, natural e residente em Belo uso de: imipramina 125 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, clorpro-
Horizonte. Nível de escolaridade: 4ª série primária. mazina 100 mg/dia e carbonato de lítio 900 mg/dia.
Primeiro atendimento no serviço em 23/11/1994. Apresenta- Continuou acompanhado no ambulatório, em uso de carbona-
va-se com humor deprimido, hipobúlico e com alterações do pen- to de lítio 1.200 mg/dia, clonazepam 5 mg/dia, imipramina
samento (idéias suicidas e de ruínas). Não havia qualquer altera- 50 mg/dia e clorpromazina 200 mg/dia. Mantinha-se com a litemia
ção da sensopercepção e do nível de consciência. em torno de 0,9 mEq/l a 1,0 mEq/l e sem alterações do humor.
Na anamnese da história pregressa, esposa relata que pacien- Nos controles ambulatoriais mensais da psiquiatria foi obser-
te já fez uso pesado de álcool até 1983. Em 1986, paciente apre- vado hipotireoidismo subclínico, sendo indagado se decorrente
sentou alterações de comportamento que foram relacionadas com do lítio, já que as provas tireoidianas pré-tratamento
o plano econômico do cruzado. O paciente não se cansava de fa- com lítio não apresentavam alterações (T3 = 105, T4 = 7,2,
lar “a situação está difícil”, “o dinheiro não dá para nada”. Com isso TSH = 3,9). Ao longo do ano de 1995 o paciente se manteve es-
proibiu que se ligasse a televisão e/ou se acendesse a luz da casa, tabilizado em uso da medicação já citada e com a litemia sempre
a fim de poupar energia. Além disso, arrendou sua loja em conhe- em torno de 1,0 mEq/l.
cido mercado desta capital. Em 06/11/1995, a esposa comparece sozinha ao atendimento
A esposa relata que dois anos mais tarde (1988) o paciente fi- relatando alterações de comportamento do paciente: heteroagres-
cou agitado e com episódios de agressividade. Andava durante sividade, irritação, agitação, exaltação do humor e insônia. Foi re-
toda a madrugada com saco de sementes nas costas e dizia que tirado o antidepressivo (imipramina). Aumenta-se a clorpromazi-

* Residente do terceiro ano da Residência de Psiquiatria do **** Coordenador da Residência de Psiquiatria do Hospital das
Hospital das Clínicas - UFMG. Doutorando na Universidade de Clínicas - UFMG. Professor Adjunto Doutor e Chefe do
Bonn, Alemanha. Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de
** Preceptora da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas Medicina da UFMG.
- UFMG.
*** Residente de Psiquiatria do Instituto Raul Soares, Fundação Endereço para correspondência:
Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Residência de Psiquiatria - Hospital das Clínicas
Av. Prof. Alfredo Balena 110.

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 27


Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

na para uma dose de 500 mg/dia, mantêm-se demais medicações, tido estazolam 2 mg/dia e reduzido carbonato de lítio para
pede-se litemia de urgência. Nova consulta em 17/11/1995, man- 300 mg/dia.
tendo o mesmo quadro relatado pela esposa na consulta anterior. Paciente novamente internado em 25/01/1996 com quadro de
Retirada clorpromazina e introduzidos haloperidol 15 mg/dia e agitação psicomotora, insônia, humor irritável, ausência de crítica,
biperideno 4 mg/dia. Em 20/11/1995 o paciente se apresenta in- mesmo com uso da medicação: carbonato de lítio 300 mg/dia, lo-
quieto, humor lábil, heteroagressividade, ausência de idéias deli- razepam 8 mg/dia, prometazina 50 mg/dia, estazolam 2 mg/dia e
rantes. Litemia 1,0 mEq/l. Reduzido haloperidol para 7,5 mg/dia tioridazina 400 mg/dia. Neste dia, o médico-assistente suspende o
e introduzida a prometazina 50 mg/dia. Mantém-se inquieto, hu- uso de tioridazina e introduz clonazepam 6 mg/dia, eleva estazo-
mor lábil, relatando tristeza e ansiedade. Caso discutido com a lam para 4 mg/dia, eleva prometazina 75 mg/dia e suspende o car-
preceptoria, que sugeriu a internação. bonato de lítio. Também foram administrados uma ampola de ha-
Em uso à internação de carbonato de lítio 1.200 mg/dia e clo- loperidol e uma ampola de prometazina IM. Após supervisão, o
nazepam 4 mg/dia. Retirado haloperidol devido à inquietação mo- médico residente introduz em 26/01/1996 oxcarbazepina
tora desenvolvida pelo paciente. Reintroduzida clorpromazina 600 mg/dia, mantendo clonazepam 6 mg/dia, prometazina
100 mg/dia e mantida prometazina 50 mg/dia. Em 25/11/1995 é 75 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em 30/01/1996 o paciente apre-
introduzida a carbamazepina 200 mg/dia no esquema terapêutico senta melhora parcial da agitação, da insônia, da labilidade do hu-
do paciente, que já utilizava carbonato de lítio 1.200 mg/dia, clor- mor e da crítica. Aumento da dose de oxcarbazepina para
promazina 200 mg/dia e clonazepam 2 mg/dia. Paciente manten- 1.200 mg/dia. Melhora do quadro, embora persista queixa de in-
do quadro de agitação, labilidade do humor e insônia. Aplicado sônia. Mantém-se estabilizado, sem alterações do humor, sem
Mini-Mental em 27/11/1995 com um score igual a 26 pontos. agitação. Em uso de oxcarbazepina 900 mg/dia, clonazepam
Carbamazepina elevada para 400 mg/dia. Introduzido estazo- 4 mg/dia e prometazina 75 mg/dia. Alta hospitalar em 08/03/1996,
lam 2 mg/dia. Em 01/12/1995 mostra-se calmo, cooperativo, dor- após 44 dias de internação, com remissão total do quadro.
mindo bem, mantendo humor lábil. Aumentada carbamazepina Retorna ao ambulatório mantendo quadro psiquiátrico com
para 600 mg/dia. Alta hospitalar em 11/12/1995 após 19 dias de evolução satisfatória (boa readaptação e estabilidade de humor,
bom padrão de sono e interesse em atividades diversas). Porém,
internação. Encontrava-se calmo, cooperativo, queixando-se de
apresentou quadro dermatológico compatível com rash cutâneo
sonolência diurna e com sono noturno adequado. Medicação no
(lesões eritematosas em placa e em pápulas, pruriginosas, na re-
momento da alta: carbonato de lítio 600 mg/dia, carbamazepina
gião da face, dorso, peito e braços) com disseminação progressi-
1.200 mg/dia, clonazepam 1 mg/dia, clorpromazina 50 mg/dia,
va. Foram aumentados prometazina para 125 mg/dia e clonaze-
estazolam 2 mg/dia.
pam 6 mg/dia. Suspensa a oxcarbazepina. Evoluiu com insônia,
Dois dias após a alta o paciente é atendido no ambulatório,
logorréia, falando alto. Presença de alterações de pensamento.
apresentando-se disfórico, humor lábil, choro fácil e agitação psi-
Idéias de grandeza e com conteúdo inapropriado relacionado ao
comotora. Presença de prurido cutâneo importante com escoria-
sexo. Indicada reinternação.
ções nos membros superiores devido a atrito. Foi suspensa a car-
Aumentado clonazepam para 10 mg/dia. Mantida prometazi-
bamazepina. Elevado carbonato de lítio para 1.200 mg/dia, man-
na em 125 mg/dia. Discutida em supervisão a reintrodução do
tido clonazepam 1 mg/dia, elevada clorpromazina para carbonato de lítio. Realizada interconsulta dermatológica, sendo
100 mg/dia. Retorna cinco dias após mantendo o quadro de agita- estabelecida hipótese diagnóstica de farmacodermia por oxcarba-
ção psicomotora, humor lábil, prurido mesmo após a interrupção zepina, com prescrição de hidrocortisona tópica. Manteve-se agi-
da carbamazepina. Suspensa clorpromazina e reiniciada prometa- tado à internação, logorréico, sem crítica, insone, coprolálico, em
zina 50 mg/dia, trocado clonazepam por lorazepam na dose de que pese a medicação. Prescrito sulpiride 200 mg/dia por suges-
3 mg/dia, mantido estazolam 2 mg/dia. Em 28/12/1995 retorna ao tão da preceptoria. Persistiu agitado, insone e com humor lábil.
ambulatório com o mesmo quadro de agitação psicomotora, lo- Aumento de sulpiride para 250 mg/dia. Reduzido clonazepam
gorréico, humor lábil, taquipsíquico. Caso discutido com o pre- para 6 mg/dia e prometazina para 100 mg/dia. Suspenso o
ceptor que sugeriu o aumento do lorazepam para 6 mg/dia, man- sulpiride 17 dias após seu início, devido ao relato de inquietação
tendo o carbonato de lítio 1.200 mg/dia e prometazina após a elevação progressiva dessa droga, que chegou a dose de
50 mg/dia. Persistiu muito agitado, sendo inclusive atendido em 300 mg/dia. Prescrito estazolam 4 mg/dia.
serviço de urgência psiquiátrica. O preceptor sugeriu a introdução Prescrito verapamil 120 mg, em 09/04/1996. No dia seguinte
de tioridazina na dose de 200 mg/dia, redução do carbonato de lí- à suspensão do sulpiride. Manteve-se insone, agitado, logorréico.
tio para 900 mg/dia e manutenção do estazolam 2 mg/dia, loraze- Mantido o uso de clonazepam 4 mg/dia, a prometazina fora sus-
pam 6 mg/dia e prometazina 50 mg/dia. Foi solicitada tomografia pensa quatro dias antes. Aumento da dose de verapamil para
computadorizada de crânio, sem alterações. Houve melhora do 160 mg/dia e, a seguir, para 200 mg. Alta hospitalar em
quadro com a introdução da tioridazina. Melhora da labilidade 15/05/1996, após 57 dias de internação, em uso de verapamil
emocional, porém paciente continua agitado. A tioridazina foi ele- 200 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, estazolam 4 mg/dia e prome-
vada para 300 mg/dia, o carbonato de lítio reduzido tazina 50 mg/dia.
para 600 mg/dia, mantidos lorazepam 6 mg/dia, prometazina Nos 15 dias seguintes a alta hospitalar, o paciente voltou a
50 mg/dia e estazolam 2 mg/dia. Em 16/01/1996 persiste a agita- apresentar quadro maniforme. Problemas com vizinhos por ligar
ção, apesar da melhora parcial com tioridazina. Esta foi aumenta- o rádio em alto volume, retorno da agitação psicomotora e insô-
da para 400 mg/dia. Lorazepam aumentado para 8 mg/dia, man- nia. O caso foi discutido com a preceptoria e se optou pela reti-

28 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32


rada do verapamil. Paciente mantendo ciclagens rápidas do hu- 300 mg/dia, retirado ácido valpróico. Hemogramas semanais sem
mor. Introduzida levomepromazina 30 mg/dia, mantidos clonaze- alterações. Sialorréia.
pam 4 mg/dia, prometazina 50 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em Em 19/03/1999, quinze semanas após a introdução da cloza-
04/06/1996 apresenta melhrora da exaltação do humor, manten- pina, não apresenta qualquer alteração do humor, embora se
do-se estável e em uso de levomepromazina 50 mg/dia e demais queixe de sialorréia e tenha havido ganho de peso de seis quilos.
medicações acima. Persiste bem em 29/06/1996. Em 29/07/1996 Paciente sendo ainda acompanhado semanalmente.
não compareceu ao atendimento. Para um apanhado geral das diversas prescrições, ver a
Retorna em 23/09/196 com labilidade do humor e agitação Tabela 1.
psicomotora durante alguns dias, segundo o relato da esposa. Au- Hipótese diagnóstica: Transtorno afetivo bipolar, atualmente
mentado clonazepam para 6 mg/dia, levomepromazina para em remissão. F-31.7 (CID 10)
150 mg/dia, prometazina para 75 mg/dia, além de usar estazolam
2 mg/dia. Em 31/10/1996 a esposa relata episódios de agitação, Discussão
havendo necessidade de incremento da dose de levomepromazi-
na. O médico, porém, faz a seguinte anotação no prontuário A experiência clínica acumulada nas últimas três décadas in-
“opto por não modificar dose atual das medicações em função da dica que 20% a 40% dos pacientes com quadros agudos do
dificuldade do manejo do quadro”. Persistem eventuais agitações, transtorno afetivo bipolar não respondem ao lítio e que 72% a
mas sem maiores intercorrências. Observa-se que o paciente está 82% dos pacientes com o subtipo de ciclagem rápida também são
muito sedado. resistentes.1,2 Com isso é necessário manter o uso do neurolépti-
Em 27/02/1997 a acompanhante relata que o paciente voltou co como tratamento de manutenção para um melhor controle dos
a ficar insone e as agitações psicomotoras mais frequentes. Au- sintomas psicopatológicos, mesmo com o risco desses pacientes
mentado o clonazepam para 8 mg/dia e a levomepromazina para desenvolverem discinesia tardia.3
200 mg/dia. Mantidos estazolam 4 mg/dia e prometazina Vários trabalhos demonstram que quanto mais grave for o
75 mg/dia. Introduzido ácido valpróico 1.500 mg/dia. Em quadro afetivo bipolar, menor é a resposta terapêutica ao lítio e a
06/03/1997 se apresenta sedado, com a voz arrastada e bradipsi- outros moduladores do humor - carbamazepina, ácido valpróico
quisimo. Iniciada a retirada de prometazina e levomepromazina. - usados rotineiramente.4,5 Dados epidemiológicos demonstram
Em 03/04/1997 hipotímico, hipobúlico, chorando muito. Conti- que pacientes portadores de transtorno afetivo bipolar sem trata-
nua queixando-se da insônia, relata dormir mais ou menos três a mento adequado perdem em média nove anos de vida, 12 anos de
quatro horas/noite. Suspensas prometazina e levomepromazina. boa qualidade de vida e 14 anos de função social efetiva.6 Com
Introduzida clorimipramina 75 mg/dia. Mantido ácido valpróico isso, vários pesquisadores iniciaram estudos na tentativa de en-
1.500 mg/dia. Apresenta-se eutímico em 07/08/1997, em uso contrar novas substâncias com ação terapêutica no transtorno
de: clonazepam 6 mg/dia, estazolam 4 mg/dia, clorimipramina afetivo bipolar.
75 mg/dia, ácido valpróico 1.500 mg/dia. Dosagem plasmática Conforme referido anteriormente, muitos pacientes portado-
de ácido valpróico 75 mg/ml. res de distúrbio afetivo bipolar resistente são tratados com
Em 09/10/1997 atendido fora da data programada a pedido antipsicóticos típicos associados aos estabilizadores devido a bai-
da esposa, apresentando-se agitado, agressivo, logorréico, taquip- xa resposta destes últimos em monoterapia.7 Sernyak et al em
síquico e insone. Introduzidas risperidona 1,5 mg/dia e clorpro- 1994, demonstraram que 95% dos pacientes internados que rece-
mazina 200 mg/dia. Mantidos ácido valpróico 1.500 mg/dia e clo- beram medicação antipsicótica para o tratamento dos quadros de
nazepam 6 mg/dia. Suspensa a clorimipramina. Eutímico em mania, continuavam a receber altas doses (o equivalente a 643 mg
20/11/1997, dosagem de ácido valpróico 67,5 mg/ml. de clorpromazina em média por dia), seis meses após a alta hos-
Em 18/12/97 hipotímico, hipobúlico, chorando e com idéias pitalar.8
de suicídio. Reintroduzida clorimipramina 75 mg/dia. Em uso, Com a demonstração da maior incidência de discinesia tardia
ainda, de risperidona 2 mg/dia, clorpromazina 100 mg/dia, clo- nos pacientes com transtornos afetivos3 do que nos pacientes por-
nazepam 6 mg/dia e ácido valpróico 1.500 mg/dia. tadores de esquizofrenia9 e/ou síndromes mentais orgânicas,10 os
Em 14/05/1998 persistem flutuações do humor. Após revisão antipsicóticos atípicos tornaram-se uma opção muito boa para o
na literatura e discussão com a preceptoria, optou-se pela introdu- tratamento dos transtornos afetivos bipolares resistentes em asso-
ção de clozapina, já que o paciente ainda não se mantinha estabi- ciação aos moduladores do humor. Trabalhos com clozapina de-
lizado, em que pesem todas as medidas terapêuticas psicofarmaco- monstraram sua eficiência não somente para a esquizofrenia, mas
lógicas anteriores. Enquanto se aguardava liberação da medicação também para pacientes portadores dos distúrbios esquizoafetivo e
pela Secretaria de Saúde, o paciente mantinha flutuações do hu- bipolar resistente aos tratamentos usuais.11-17
mor. Introduzida a clozapina 25 mg/dia em 14/12/1998. Iniciada Em 1990, Hippius publicou a experiência européia com a clo-
retirada das demais medicações. Em 21/12/1998 retorna em uso zapina.17 Essa revisão focalizava os pacientes tratados no Hospi-
de clozapina 100 mg/dia e ácido valpróico 1.000 mg/dia. Retira- tal Psiquiátrico da Universidade de Munique no período com-
dos risperidona, clomipramina, clonazepam, clorpromazina. preendido entre 1978 e 1989 e comparava esses resultados com
Queixas de sialorréia. Em 04/01/1999 em uso de clozapina os de outros estudos europeus com relação aos benefícios e riscos
200 mg/dia e ácido valpróico 500 mg/dia. Em 11/01/1999 se apre- do uso da clozapina. O grupo constava de 503 pacientes, sendo
senta eutímico em uso de clozapina 300 mg/dia e ácido valpróico 368 esquizofrênicos e 135 com outros diagnósticos. Dentre o gru-
250 mg/dia. Permanece eutímico em 25/01/1999 com clozapina po de 135 pacientes, encontravam-se 29 pacientes com depressão

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 29


Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

Tabela 1 - Medicações e doses em miligramas nos diversos atendimentos


Data A/ I/ Ia H I Cn Cp B CL P Cb E L T O S V D Lp AV Ci R Cz
23.11.94 I 5 25
24.11.94 I 50 3,5 200 2
12.12.94 I 125 6 400 600
22.12.94 Ia 125 4 100 900
Ano 95 A 150 5 200 1200
06.11.95 A 150 5 500 1200
17.11.95 A 15 5 4 1200
20.11.95 I 7,5 5 4 1200 50
21.11.95 I 4 100 1200 50
25.11.95 I 2 200 1200 50 200
27.11.95 I 2 200 1200 400 2
01.12.95 I 2 200 1200 600 2
11.12.95 I 1 50 600 1200 2
14.12.95 A 1 100 1200 2
19.12.95 A 1200 50 2 3
28.12.95 A 1200 50 6
02.01.96 A 900 50 2 6 200
09.01.96 A 600 50 2 6 300
16.01.96 A 300 2 8 400
25.01.96 I [5] 6 75 [25] 4 8
26.01.96 I 6 75 4 600
30.01.96 I 6 75 4 1200
08.03.96 Ia 4 75 900
13.03.96 A/I 6 125
20.03.96 I 10 125
22.03.96 I 10 125 200
02.04.96 I 6 100 250
05.04.96 I 6 75 300
08.04.96 I 6 4
09.04.96 I 4 4 120
27.04.96 I 4 4 160
30.04.96 I 3 4 120 40
10.05.96 I 4 200 40
15.05.96 Ia 4 50 4 200
25.05.96 A 4 50 4 30
04.06.96 A 4 50 4 50
23.09.96 A 6 75 2 150
31.10.96 A 6 75 4 150
16.01.97 A 6 75 4 150
27.01.97 A 8 75 4 200 1500
06.03.97 A 8 50 2 100 1500
03.04.97 A 8 4 1500 75
07.08.97 A 6 4 1500 75
09.10.97 A 6 1500 75 1,5
08.12.97 A 6 2 1500 75 2
14.12.96 A 4 1000 25
21.12.96 A 1000 50
04.01.99 A 500 100
11.01.99 A 250 200
25.01.99 A 300
A = atendimento ambulatorial; I =Internação; Ia = Alta da internação; H = haloperidol; I = imipramina; Cn = clonazepan; Cp = clorpromazina; B = biperideno; CL = carbonato de lítio;
P = prometazina; Cb = carbamazepina; E = estazolan; L = lorazepam; T = tioridazina; O = oxcarbazepina; S = sulpiride; V = verapamil; Lp = levomepromazina; AV = ácido
valpróico; R = risperidona; Ci = clorimipramina; Cz = clozapina; [ ] = intramuscular (demais medicações via oral).

endógena, 18 pacientes com mania, 15 pacientes com psicose or- tinham sido tratados com até oito antipsicóticos diferentes duran-
gânica, 51 pacientes com discinesia tardia, 18 pacientes com ou- te algum tempo; 36% dos pacientes iniciaram o uso de clozapina
tros transtornos do movimento e quatro pacientes com outros devido à ineficácia farmacológica dos outros tratamentos e 64%
diagnósticos. Antes do tratamento com clozapina, os pacientes já devido aos efeitos colaterais tradicionais com essa classe de medi-

30 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32


camentos. Os resultados demonstraram que 65% dos pacientes em que a clozapina foi usada no tratamento do transtorno afetivo
esquizofrênicos melhoraram, com 90% de melhora dos sintomas bipolar e do transtorno esquizoafetivo, somente 10 apresentaram
positivos e 43% de melhora dos sintomas negativos. Dentro des- informações suficientes da eficácia da clozapina e da proporção
se subgrupo, o subtipo esquizoafetivo foi o que apresentou os de pacientes que responderam à terapêutica. Nos 10 estudos ana-
melhores índices de melhora. Já no subgrupo de pacientes com lisados, foram tratados com clozapina 315 pacientes portadores
outros transtornos, o que inclui os pacientes maníacos, houve de transtornos psicóticos e/ou transtornos do humor. Destes pa-
uma melhora em torno de 70% dos casos. cientes, 94 eram portadores do transtorno afetivo bipolar e 221
Em dezembro de 1991, uma carta para a revista Journal of Cli- eram portadores do transtorno esquizoafetivo em fase maníaca ou
nical Psychopharmacology relatava a utilidade da clozapina nos ca- com predominância de sintomatologia esquizofreniforme. Um
sos de transtorno afetivo bipolar do tipo ciclador rápido, refratá- terço dos pacientes não respondeu adequadamente, ou não tole-
rios ao lítio e com boa resposta inicial aos anticonvulsivantes em rou tratamentos prévios com lítio, carbamazepina, ácido valprói-
monoterapia ou associados aos antipsicóticos clássicos, mas cuja co, antipsicóticos clássicos ou outras drogas. setenta e um por
eficácia piorava ao longo do tempo.21 cento dos 94 pacientes bipolares e 69,6% dos 221 pacientes es-
Também em 1991, McElroy et al.11 publicaram os resultados quizoafetivos responderam com sucesso à terapia com clozapina,
de estudo com 85 pacientes em uso de clozapina. Nesse grupo ha- como monoterapia ou associada, por um período entre 49 dias a
via 39 pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, 20 pacientes quatro anos. Pacientes esquizofrênicos de sete estudos foram usa-
esquizoafetivos do tipo bipolar, cinco pacientes esquizoafetivos dos como grupo de comparação. Pacientes maníacos ou com pre-
do tipo depressivo, 14 pacientes com transtorno bipolar com sin- dominância de sintomatologia esquizofreniforme do transtorno
tomas psicóticos e sete pacientes com outros transtornos. 41% esquizoafetivo ou bipolar apresentaram melhor resposta à cloza-
dos pacientes receberam clozapina como monoterapia, 59% em pina do que os pacientes esquizofrênicos (71,2% de 315 pacien-
associação com antipsicóticos clássicos, antidepressivos, benzo- tes e 61,3% de 692 pacientes, respectivamente). Apesar de vários
diazepínicos, lítio e anticonvulsivantes. Epidemiologicamente, estudos apresentarem deficiências metodológicas (retrospectivos,
90% dos pacientes esquizofrênicos eram resistentes aos trata- não-cegos, critérios diagnósticos e critérios de seleção não especí-
mentos padrões e 10% eram intolerantes aos efeitos colaterais, ficos e por não serem projetados para avaliação específica dos
76% dos esquizoafetivos eram resistentes e 24% intolerantes e no transtornos do humor), a combinação de resultados sugere que as
grupo de pacientes com transtorno afetivo bipolar 86% eram re- fases maníacas do transtorno bipolar respondem bem à clozapina.
sistentes e 14% intolerantes. Quanto à eficácia, observou-se que Esses achados são relevantes já que a grande maioria dos pacien-
85% dos pacientes esquizofrênicos apresentaram alguma melho- tes era considerada refratária aos tratamentos.
ra, mas somente 10% apresentaram melhora acentuada. Já nos Devido a provável associação vantajosa entre clozapina e an-
grupos de esquizoafetivos e portadores de transtorno afetivo bi- ticonvulsivantes em transtornos bipolares, revimos o risco de cri-
polar, 95% e 93% apresentaram alguma melhora e 35% e 43% se convulsiva com a clozapina e seu manejo. Esse risco é dose de-
melhora acentuada, respectivamente. pendente, sendo maior do que com os outros antipsicóticos que
Em 1992, Suppes e McElroy19 demonstraram que 12 dos 14 giram em torno de 1%.21 Haller et al, em 1990,21 demonstraram
pacientes com transtorno afetivo bipolar resistente no trabalho que a prevalência das crises convulsivas com o uso de clozapina é
citado anteriormente11 apresentavam o diagnóstico de mania dis- 1% a 2% com doses menores que 300 mg/dia, 3% a 4% com
fórica, que pela CID-10 corresponde aos quadros de transtorno doses entre 300 e 599 mg/dia e 5% com doses entre 600 e
afetivo bipolar misto. Todos os pacientes apresentaram melhora 900 mg/dia. Devido ao alto risco de crises convulsivas com doses
da sintomatologia nas primeiras semanas, com redução no núme- acima de 600 mg/dia, Kando et al22 sugerem a terapia anticonvul-
ro de rehospitalizações, com melhora das funções psicosociais siva profilática. O ácido valpróico é o anticonvulsivante mais in-
como retorno à escola e/ou manutenção do emprego. Do ponto dicado por interferir menos na farmacocinética da clozapina. O
de vista farmacológico, eram pacientes de difícil manejo, e em uso uso concomitante dos dois fármacos aumenta o nível plasmático
de polifarmacoterapia. da clozapina em apenas 6%.23
Kimmel et al. publicaram em 1994,20 que a eficácia da cloza-
pina não era restrita somente aos pacientes resistentes aos trata- Conclusão
mentos de esquizofrenia. Com isso, apresentaram um artigo com
a revisão dos trabalhos restrospectivos e prospectivos desenvolvi- Os resultados do tratamento com clozapina nos transtornos
dos com a clozapina no tratamento dos transtornos do humor. afetivos bipolares resistentes, como nos subtipos de ciclagem rá-
Em 1995, Zarate et al.14 demonstraram que a clozapina em pida, quadros mistos e transtorno esquizoafetivo são animado-
monoterapia é modulador do humor com redução do número de res.11,13,14,17,21-23 Nesse grupo de pacientes em que a polifarma-
episódios e rehospitalizações em pacientes com transtorno afeti- coterapia é constante, o tratamento com clozapina em monotera-
vo bipolar resistente. pia, como antipsicótico e estabilizador do humor, parece ser uma
Zarate et al.13 também publicaram, em 1995, estudo no qual alternativa efetiva.14
revisam todas as publicações referentes ao tratamento com cloza- O uso de clozapina nesses casos pode levar a melhora expres-
pina do transtorno afetivo bipolar resistente e do transtorno es- siva dos sintomas psiquiátricos e das funções sociais.19 Mas são
quizoafetivo. Foram encontrados um total de 30 trabalhos na lite- necessárias mais pesquisas comparativas para se confirmar essa
ratura: dois estudos duplo-cego, oito ensaios clínicos abertos, 10 impressão, já que no trabalho conduzido por Zarate et al13 só fo-
estudos retrospectivos CID-10, 10 relatos de casos. Dos 30 artigos ram encontrados dois trabalhos duplo-cegos na literatura atual.

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 31


Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

Summary 10. Saltz BL, Woener MG, Kane JM et al. Prospective study of
tardive dyskinesia in the elderly. JAMA 1991; 266:2402-06.
The authors report a case of resistant bipolar disorder followed in 11. Mc Elroy SL, Dessain EC, Pope Jr HG et al. Clozapine in the
the last five years at the Psychiatric Service of the Hospital das treatment of psychotic mood disorders, schizoaffective disor-
Clínicas - UFMG. Many treatments were indicated, such as lithium, der, and schizophrenia. J Clin Psychiatry 1991; 52:411-4.
carbamazepine, oxacarbamazepine, valproate, verapamil, benzodi- 12. Banov MD, Zarrate Jr CA, Tohen M et al. Clozapine therapy
azepines, traditional antipsychotics and polipharmacotherapy.The use in refratory affective disorders: polarity predicts response in
of clozapine, which was succesful, was chosen due to many data in long term follow-up. J Clin Psychiatry 1994; 55:295-300.
the literature showing it as an alteranative treatment for bipolar dis- 13. Zarate Jr CA, Tohen M, Baldessarini RJ. Clozapine in severe
order. mood disorders. J Clin Psychiatry 1995; 56:411-7.
14. Zarate Jr CA, Tohen M, Banov M et al. Is Clozapine a mood
Key-words: Bipolar Disorder; Clozapine stabilizer? J Clin Psychiatry 1995;56:108-12.
15. Patel JK, Green AI, Banov MD et al. Clozapine use in treat-
Referências Bibliográficas ment refratory mania and psychosis. In: New Research Pro-
grams and Abstracts of the 148th Annual Meeting of the
1. Prien RF, Gelenberg AJ. Alternatives to lithium for preventa- American Psychiatric Association; May 1995, Miami, Abs-
tive treatment of bipolar disorder. Am J Psychiatry 1989; tract N.R. 478:183.
146:840-8. 16. Frankenburg FR, Zanarini MC Uses of Clozapine in nonschi-
2. Dunner DL, Fieve RR. Clinical factors in lithium carbonate zophrenic patients. Harvard Rev Psychiatry 1994; 2:142-150.
prophylaxis failure. Arch Gen Psychiatry 1974; 30:229-33. 17. Naber D, Hippius H. The European Experience with use of
3. Davis KL, Berger PA, Holister LE. Tardive dyskinesia and Clozapine. Hosp Comm Psych August 1990; 41(8):886-90.
depressive illness. Psychopharmacology Communications 18. Calabrese JR, Meltzer HY, Markovitz PJ. Clozapine prophy-
1976; 2:125-30. laxis in rapid cycling bipolar disorder (letter) J Clin Psycho-
4. Small JG, Klapper MH, Milstein V et al. Carbamazepine pharmacol 1991; 11(6):396-7.
compared with lithium in the treatment of mania. Arch Gen 19. Suppes T, McElroy SL, Gilbert J, Dessain EC, Cole JO. Clo-
Psychiatry 1991; 48:15-921. zapine in the treatment of dysphoric mania. Biol Psychiatry
5. Calabrese JR, Woyshville MJ, Kimmel SE, Rapport DJ. Pre- 1992; 32:270-280.
dictors of valproate response in bipolar rapid cycling. J Clin 20. Kimmel SE, Calabrese JR, Woyshville MJ, Meltzer HY. Clo-
Psychopharmacol 1993; 13:280-3. zapine in treatment-refractory mood disorders. J Clin
6. Medical Practice Project. A State of the Art Science Report Psychiatry 1994; 55(9-Suppl. B):91-3.
for the Office of the Assistant Secretary for the US Depart- 21. Haller E, Binder RL. Clozapine and seizures. Am J
ment of Health Education and Welfare. Baltimore: Policy Psychiatry 1990; 147:1069-71.
Research, 1979. 22. Kando JC, Tohen M, Castillo J, Centorrino F. Concurrent use
7. Ghaemi SN, Sachs GS, Baldissano CF. Treatment-resistant of clozapine and valproate in affective and psychotic disor-
bipolar disorder: clinical aspects and management. In: ders. J Clin Psychiatry 1994; 55(6)255-7.
Pollack M, Rosenbaum JF ed. Challenges in psychiatric treat- 23. Centorrino F, Baldessarini RJ, Kando J et al. Serum concen-
ment: pharmacologic and psychosocial strategies. New York: trations of clozapine and its major metabolites: effects of co-
Guildford; 1996:53-85. treatment with fluoxetine or valproate. Am J Psychiatry
8. Sernyak MJ, Griffin RA, Johnson RM, Peassal HR, Wexler 1994; 151:123-5.
BE, Woods JW. Neuroleptic exposure following inpatient
treatment of acute mania with lithium and neuroleptic. Am J
Psychiatry 1994; 151:133-5. Trabalho apresentado como poster e premiado entre os cinco
9. Marder SR, Van Putten T. Antipsychotic medications. In: melhores no IX Congresso Mineiro de Psiquiatria e II Jornada
Schatzberg AF, Nemeroff CB. ed. Textbook of psychophar- Sudeste de Psiquiatria, junho de 1999, Associação Médica de
macology. Washington DC: American Psychiatric Press, Minas Gerais, Belo Horizonte.
1995:247-62.

32 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32

Você também pode gostar