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Nestas últimas semanas de agosto o mundo ficou chocado com uma notícia

vinda da França: a proibição do uso do burkini (peça de roupa mais larga, que cobre o
corpo como uma túnica e utilizada principalmente por mulheres muçulmanas para
banhos de mar) em algumas praias francesas. A proibição levou a uma abordagem
policial na praia de Nice, que, fotografada, mostra uma mulher sendo multada e
despindo-se da peça mais larga do traje.1
Este fato pode servir para abrirmos uma discussão sobre o perigo das
utilizações do passado nas construções dos discursos políticos de hoje. Conforme o
decreto de Cannes, uma cidade que também proibiu o uso do burkini “o acesso às
praias e para a natação é proibido a qualquer pessoa vestindo roupas impróprias que
não respeitem os bons costumes e o secularismo”,2 que segundo o prefeito da cidade,
David Lisnard, é o princípio fundador da República Francesa.3
Assim como o prefeito de Cannes evocou os princípios da República Francesa
para justificar o decreto arbitrário, é comum vermos hoje a utilização de conceitos
históricos, que até academicamente já foram desacreditados, sendo utilizados para
embasar discursos e ideários políticos. No que se refere ao período histórico que
denominamos idade média, é fácil identificar os maus usos e as mais variadas
interpretações para fundamentar ideias.
Os mais conservadores políticos europeus buscam engessar o passado da
Europa, como forma de legitimar uma rede de costumes, “origens” e até uma

1
G1 (Brasil). Outra região da Riviera francesa proíbe burkini nas praias: Local da Riviera francesa,
Villeneuve-Loubet, seguiu exemplo de Cannes. Vestimenta islâmica é um tema controverso na França.. 2016.
Disponível em:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/outra-regiao-da-riviera-francesa-proibe-burkini-nas-praias.html>.
Acesso em: 20 ago. 2016.

2
G1 (Brasil). Prefeito proíbe burkinis nas praias de Cannes, no sul da França: Quem for pega com maiôs de
corpo inteiro terá que pagar multa. Para o prefeito, peça é um símbolo do extremismo islâmico.. 2016.
Disponível em:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/outra-regiao-da-riviera-francesa-proibe-burkini-nas-praias.html>.
Acesso em: 20 ago. 2016.
3
UOL. Prefeitura de Cannes veta burquíni em suas praias. 2016. Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2016/08/12/prefeitura-de-cannes-veta-burquini-em-suas-praias.ht
m>. Acesso em: 20 ago. 2016.
“identidade europeia”. Marc Bloch faz uma ressalva quanto ao perigo que a obsessão
com as origens tem no estudo historiográfico:

Naturalmente cara a homens que fazem do passado seu principal tema de


estudo de pesquisa, a explicação do mais próximo pelo mais distante
dominou nossos estudos ás vezes até a hipnose. Sob sua forma mais
característica, esse ídolo da tribo dos historiadores tem um nome: é a
obsessão das origens. (BLOCH, 2001: 56)

Bloch ainda afirma que “As origens são um começo, que explica. Pior ainda: que
basta para explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo.” (BLOCH, 2001: 57).
E é na idade média que uns tentam legitimar a origem, essa necessidade buscar
o “surgimento da Europa”. Sabe-se que o período foi farto em migrações de povos,
trocas e assimilações culturais em todo o território que compreende hoje a Europa, o
norte da África, a Península Arábica e a Ásia.4 Silveira em seu trabalho sobre a
europeização e/ou africanização da Espanha Medieval ressalta que:

No âmbito cultural, quando se analisa as trocas realizadas pelos diversos


agentes mediadores (comerciantes, guerreiros, viajantes, intelectuais e
muitos outros membros da sociedade medieval), consta-se o movimento
cultural que foi impulsionado em diversas direções. Movimento que
transcendeu espaços e conflitos religiosos e políticos. Por isso, sugiro que
deveríamos olhar para estes processos como redes de relações
multidirecionais, a romper com a visão bifocal de centro e periferia.

O trabalho historiográfico, que busca ressaltar a pluralidade dos processos históricos


deve também estar presente em sala de aula, pois é no ensino que se quebrará
conceitos pré-estabelecidos a respeito da Idade Média e tudo que o período envolve.
José Rivair Macedo salienta que a maior parte dos livros e materias didáticos
“Prendem-se também à configuração dos grupos sociais, com particular ênfase nas
relações de dominação entre senhores feudais e camponeses, ou então na formação e
decadência do feudalismo e a germinação do capitalismo moderno.” (MACEDO,
2003: 111). E não é difícil acharmos exemplos destas abordagens, como por exemplo,
em História Geral e Brasil, de José Geraldo Vinci de Moraes, livro didático voltado
para o ensino médio que esteve em vigor entre 2009 a 2011 em algumas escolas
públicas brasileiras:

4
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe. A civilização árabe-islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun
e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
Restrito ao continente europeu, o feudalismo assumiu diversas formas
durante a Idade Média. Essa estrutura socioeconômica foi produto, como já
vimos, da relação entre elementos do Império Romano e das sociedades
germânicas. Como características básicas dessa estrutura podemos apontar:
economia agrária e de subsistência, [...] poder politico fragmentado,
descentralizado, nas mãos dos senhores feudais; sociedade de ordens , isto é,
fortemente hierarquizada; hegemonia ideológica e cultural da Igreja
Católica. (MORAES, 2007: 83)

Macedo ainda afirma que é necessário para o ensino da Idade Média, uma
“descolonização”, que segundo o autor significa “reconhecer identidades em geral
deixadas por nós em segundo plano.”(MACEDO, 2003: 115). Isto implica em admitir
toda a diversidade de culturas, etnias, línguas e espaços que compõem o cenário
medieval, e levar para o ensino estas discussões, evitando ao máximo generalizações e
simplificações.
Percebe-se que apesar dos esforços de pesquisadores e historiadores em
desfazer estereótipos sobre a Idade Média e a busca pelas “origens da Europa”, alguns
ainda buscam no passado a autoridade para seus discursos no presente. É
principalmente no ensino de história, onde as preconcepções e rótulos devem ser
dissolvidos, em busca de uma aprendizagem que comtemple a pluralidade
característica do período medieval.
BIBLIOGRAFIA

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe. A civilização árabe-islâmica clássica


através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2013.
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.

ELDIARIO (Espanha). Yo creé el burkini para dar libertad a las mujeres, no para
quitársela. 2016. Disponível em:
<http://www.eldiario.es/theguardian/burkini-darle-libertad-mujeres-quitarsela_0_5518
95201.html>. Acesso em: 20 ago. 2016

G1 (Brasil). Outra região da Riviera francesa proíbe burkini nas praias: Local da


Riviera francesa, Villeneuve-Loubet, seguiu exemplo de Cannes. Vestimenta islâmica
é um tema controverso na França.. 2016. Disponível em:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/outra-regiao-da-riviera-francesa-proibe-b
urkini-nas-praias.html>. Acesso em: 20 ago. 2016.

G1 (Brasil). Prefeito proíbe burkinis nas praias de Cannes, no sul da


França: Quem for pega com maiôs de corpo inteiro terá que pagar multa. Para o
prefeito, peça é um símbolo do extremismo islâmico.. 2016. Disponível em:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/outra-regiao-da-riviera-francesa-proibe-b
urkini-nas-praias.html>. Acesso em: 20 ago. 2016.

MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no Ensino de História. In:


KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2003.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História: Geral e Brasil. 2. ed. São Paulo: Atual
Editora, 2005.

SILVEIRA, Aline Dias da. Europeização e/ou Africanização da Espanha Medieval:


diversidade e unidade cultural européia em debate. Revista História (UNESP), São Paulo, n.
28, v.2, 2009, pp. 645-657.

UOL. Prefeitura de Cannes veta burquíni em suas praias. 2016. Disponível em:


<http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2016/08/12/prefeitura-de-cannes-veta-
burquini-em-suas-praias.htm>. Acesso em: 20 ago. 2016.

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