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Etnográfica

Revista do Centro em Rede de Investigação em


Antropologia
vol. 26 (2) | 2022
Vol. 26 (2)

Filomena Silvano, Antropologia da Moda


Sónia Vespeira de Almeida

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/etnografica/12115
DOI: 10.4000/etnografica.12115
ISSN: 2182-2891

Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia

Edição impressa
Data de publição: 1 junho 2022
Paginação: 595-597
ISSN: 0873-6561

Refêrencia eletrónica
Sónia Vespeira de Almeida, «Filomena Silvano, Antropologia da Moda», Etnográfica [Online], vol. 26 (2) |
2022, posto online no dia 29 junho 2022, consultado o 30 junho 2022. URL: http://
journals.openedition.org/etnografica/12115 ; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.12115

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License.
etnográfica  junho de 2022  26 (2): 595-597

Filomena Silvano trabalho de campo mais recente realizado


ANTROPOLOGIA DA MODA entre 2016 e 2018 no atelier do designer de
Lisboa, Documenta, moda Filipe Faísca. Convoco esta etnogra-
2021, 191 páginas, fia, apesar de ausente neste livro, na medida
ISBN: 978-989-900-697-3 em que nos ajuda a compreendê-lo, justa-
mente porque Antropologia da Moda vem do
real, vem dos mundos que Filomena Silvano
Antropologia da Moda1 constitui um marco “etnografou”.
no percurso de investigação de Filomena A autora vai tecendo uma rota nómada.
Silvano e claramente espelha a vitalidade Não se cinge à Antropologia, tem a eficá-
da Antropologia contemporânea, atenta ao cia de ir anexando campos disciplinares
que chega, mas com forte interlocução com diversos que permitem pensar a moda hoje,
temas e autores clássicos, propondo análi- apresentando uma constelação de autores
ses críticas que nos ajudam a ler o real. E e temáticas que são trabalhadas de forma
o real aqui, o pedaço de mundo que este muito ágil. O que dá a ver? O que permite
livro nos apresenta, é a moda e o vestir e pensar Antropologia da Moda?
o que irradia destes universos. Antropologia O livro abre com um pequeno texto que
da Moda ativa capilaridades várias a partir a autora escreveu em 2001, no contexto da
de um objeto complexo e contraditório que exposição comemorativa dos dez anos da
nos leva do luxo, às alterações climáticas, ModaLisboa. Mobiliza-o como mote para
até à pandemia. Ajuda-nos a refletir porque sublinhar a maturação do seu interesse,
é que o que existe não chega, é insuficiente desde a década de 1990, pela “moda, o ves-
(Berger 2021). tir, as cidades e os processos de criação de
Antropologia da Moda apresenta-nos, identidades” (Silvano 2021: II) e para apre-
assim, o coletivo de autores e os grandes sentar a rota de investigação percorrida no
territórios de interpelação que guiaram território da moda. Sublinha, ainda, como
a antropóloga no tratamento do assunto o retiro forçado pela pandemia reconfigu-
“moda” e que viriam a configurar o seu rou a sua relação com a moda “mais dis-
tanciada e mais centrada nos textos e nos
arquivos” (idem: 12).
1 Uma primeira versão deste texto foi redigida
O livro desdobra-se em cinco momentos
para a apresentação de Antropologia da Moda na
– “Moda – quatro questões primordiais”;
ModaLisboa (9 de outubro de 2021) e publicado
no blog da editora: < http://blogue-documenta.bl “Uma antropologia do vestir”; “Moda e
ogspot.com/2021/10/apresentacao-do-livro-an vestir – desenvolvimentos”; Moda e con-
tropologia-da.html >. testação”; “Moda e vestir em tempo de
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pandemia” – que revelam um quadro teó- da emergência climática – e alteração dos


rico-conceptual requintado colocado em consumos daqui decorrentes e a resposta da
articulação com exemplos empíricos labo- indústria e dos criadores – a não discrimi-
riosamente analisados, que vão iluminando nação racial, as condições de trabalho e a
a teoria, aproximando-nos do mundo da precariedade no quadro da neoliberalização
moda. E conseguimos entrar… da moda.
Antropologia da Moda começa por apre- São inquietantes as reflexões trazidas
sentar os filões estruturantes dos primeiros por Filomena Silvano, porque nos con-
escritos sobre a moda e que configuraram as frontam com os “processos antrópicos”
principais reflexões ao longo do século XX. que tiveram consequências planetárias
Destaco um deles: o cruzamento tenso entre (Haraway 2016) e que configuram o que
diferentes temporalidades. Por exemplo, a designamos como Antropoceno. Por exem-
moda perspetivada como um fenómeno que plo, são necessários 2700 litros de água para
lida habilmente com a ideia de atualidade, produzir uma t-shirt de algodão, que corres-
de novidade, mas também como, parado- pondem ao consumo médio de água por
xalmente, se desajusta do tempo presente pessoa durante dois anos e meio (Silvano
e como recua. 2021: 165). Filomena Silvano dá a ver as
Depois o livro desenha um outro movi- contradições e complexidades do mundo da
mento. A interpelação da autora desloca-se moda, afirmando que:
deste território interdisciplinar – habitado
por antropólogos, sociólogos, economistas e “as pessoas do mundo inteiro têm cada
filósofos – para se ancorar na Antropologia, vez mais consciência dos efeitos nocivos
na sua disciplina, e em particular na Antro- da produção de roupa, mas as pessoas do
pologia do Vestir e nas roupas enquanto mundo inteiro consomem cada vez mais
cultura material, área de estudos à qual a roupa.” (Silvano 2021: 166)
autora se tem largamente dedicado.
Filomena Silvano sublinha o caráter A atenção da autora ao presente conduz
ainda marginal destes tópicos na Antropo- a uma reflexão que encerra este livro sobre
logia, o que nos permite identificar o pio- a moda e o vestir na pandemia. Este capí-
neirismo deste livro no contexto português tulo, num primeiro momento, apresenta
e até internacional. Contudo, apesar de o uma análise sobre a reconfiguração digital
“vestir” ter estado presente nas análises dos desfiles, perspetivados comos “grandes
antropológicas, o subcampo disciplinar rituais celebrativos” (Silvano 2021: 173),
Antropologia do Vestir só se configura tar- centrais ao funcionamento da indústria
diamente, em particular no ano 2000. da moda ao construírem os sentidos e os
De seguida cruza a moda e o vestir a valores das roupas. Num segundo tempo,
partir de grandes temáticas, dando assim Filomena Silvano discute as alterações que
visibilidade aos percursos sociais das coisas, identifica no vestir com o uso generalizado
à sua circulação, às várias condições que da máscara.
assumem, às relações que as pessoas esta- Antropologia da Moda contribui para
belecem com as roupas, à corporalidade, às percebermos porque é que cada um de nós
identidades e ao luxo. se veste desta ou daquela maneira, porque
No quarto momento, é trazida a dimen- é que a cantora Billie Eilish optou pelo
são política e de contestação no mundo oversize; porque é que Kamala Harris na
da moda, analisando-se os direitos dos cerimónia de tomada de posse como vice-
animais, a sustentabilidade no contexto -presidente dos Estados Unidos vestiu roxo
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– a outra cor das sufragistas – ou, ainda, no: fazendo parentes”, ClimaCom Cultura
porque é que os Caduveo tanto investem Científica – Pesquisa, Jornalismo e Arte, I,
no cuidado e no adorno dos seus corpos. 3 (5). Disponível em < http://climacom.
A grelha teórica cuidadosamente cos- mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-
turada num arco temporal alargado, as capitaloceno-plantationoceno-chthu
temáticas e exemplos selecionados, fazem luceno-fazendo-parentes/ > (última con-
de Antropologia da Moda um contributo sulta em maio de 2022).
extraordinário para multiplicarmos pontos SILVANO, Filomena, 2021, Antropologia da
de vista sobre o contemporâneo. Moda. Lisboa: Documenta.

BIBLIOGRAFIA
BERGER, 2021, A Aparência das Coisas,
Ensaios e Artigos Escolhidos. Lisboa: Antí- Sónia Vespeira de Almeida
gona. Professora auxiliar, Departamento de
HARAWAY, Donna, 2016, “Antropoceno, Ca- Antropologia, CRIA/NOVA FCSH, Portugal
pitoloceno, Plantationoceno, Chthuluce- sonia.almeida@fcsh.unl.pt

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