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Vectores: uma revisão

Lições de Mecânica


J. M. B. Lopes dos Santos

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto
Uma revisão sobre vectores.
1 Denição de Vector
y

D
6

C
4
B

2
A

x
2 4 6 8

Figura 1: Os segmentos orientados AB e CD representam o mesmo vector.

As noções de geometria cartesiana já são familiares. Nestas notas, para facilidade de


representação, mostramos grácos num plano num sistema de dois eixos cartesianos. A
cada ponto A do plano, uma vez escolhidos os eixos e as respectivas escalas, fazemos
corresponder um par de coordenadas reais A 7→ (x, y). Para a descrição de movimentos
no espaço juntamos um terceiro eixo perpendicular aos outro dois e passamos a ter três
coordenadas A 7→ (x, y, z). Por essa razão o plano corresponde ao espaço euclidiano

jlsantos@fc.up.pt

1
R2espaço dos pares de números reais (x, y), e o espaço da Física Newtoniana a
R3conjunto de sequências de três números reais (x, y, z).
Se um corpo se desloca de A para B, podemos representar o deslocamento pelo par
ordenado de pontos AB, que especicamos através de um unindo
A a B , em que a ordem dos pontos é xada por uma seta que aponta de A para B.
segmento orientado

O segmento BA é o mesmo segmento de recta com a seta invertida. Para especicar


um segmento orientado no referencial cartesiano teremos de indicar as coordenadas do
pontos inicial e nal:
A 7→(xA , yA , zA )
B 7→(xB , yB , zB ).
Mas para a descrição do movimento, o ponto onde este começa é irrelevante. Os pontos
do espaço são todos equivalentes: os pontos . Por isso é útil dizer que
temos o deslocamento, se começarmos num ponto C e terminarmos em D, se o
não têm nome

segmento orientado CD tiver o mesmo comprimento, direção e sentido que AB. Para
mesmo

isso é suciente (e necessário) que as variações de coordenadas sejam as mesmas


∆x = xB − xA = xD − xC
∆y = yB − yA = yD − yC
∆z = zB − zA = yD − zC
Assim somos levados a denir:
Vector Os dois segmentos AB e CD dizem-se e são representações do mesmo
Por outras palavras, para identicar um vector não nos interessa saber
equipolentes

qual é o ponto inicial. Qualquer um dos segmentos equipolentes a AB representa o


vector.

mesmo vector. Podemos até identicar o vector com o dos segmentos equi-
polentes a AB. A notação convencional para vector, em manuscritos, usa uma seta
conjunto

por cima de um símbolo que o represente, por exemplo ~a. Mas em texto impresso
é mais frequente usar negrito (bold) para representar um vector, a. Desta deni-
ção decorre imediatamente que um vector pode ser representado por um segmento
orientado com qualquer origem. Por vezes usa-se a designação para
salientar que quaisquer dois segmentos equipolentes representam o mesmo vector.
vector livre

Em Matemática só existem vectores livres e podemos usar, sem confusões, a de-


signação simples, , sem o adjectivo. As ultrapassadas designações de vector
deslizante ou vector ligado, são especicações não de vectores de tipo diferente,
vector

mas de um vector e uma recta ou um vector e um ponto.


Esta denição permite-nos compreender que um vector é uma representação de uma
operação física que é um . As propriedades que vamos denir para um
vector traduzem propriedades naturais de deslocamentos.
deslocamento

Componentes As do vector a, representado pelo segmento AB, são as


diferenças das coordenadas dos pontos B e A,
componentes

a = (a , a ) = (x − x , y − y )
x y B A B A (1)

2
Podíamos, igualmente, usar os pontos D e C , ou de qualquer outro par de pontos
que dena um segmento orientado equipolente a AB, porque
Já que as
segmentos orientados

de a são iguais às diferenças de dos pontos B e A podemos


equipolentes têm as mesmas projecções nos eixos coordenados compo-

também denir este vector como sendo a


nentes coordenadas

B−A
(igual a D − C )
diferença entre os dois pontos,

(2)
.

a = AB~ =B−A=D−C

Como vimos acima, para fazer corresponder a um ponto um conjunto de coordenadas


temos de especicar um sistema de eixos. Se mudarmos de eixos o mesmo ponto será
representado por outras coordenadas
A 7→ (x, y, z) sistema S
0 0 0
A 7→ (x , y , z ) sistema S 0

Mas a linguagem que usamos sugere que o ponto A existe independentemente do sistema
de eixos. Do mesmo modo um vector ou deslocamento existe independentemente do
sistema de eixos e terá componentes distintas em sistemas de eixos com orientação, ou
escalas, distintas
a 7→ (a , a , a ) sistema S
sistema S
x y z
0 0 0 0
a 7→ (a , a , a )
x y z

Ao usar a notação vectorial, a, estamos a abstrair do sistema de eixos concreto e isso


permite-nos formular as leis e relações de uma maneira independente do mesmo, ou seja
de modo a serem relações válidas para qualquer sistema de eixos.
Quando representamos geometricamente um vector, estamos sempre a escolher, de uma
innidade possível (todos os pontos iniciais), um segmento orientado que o representa. É
frequente abusarmos da linguagem e chamarmos vector a um destes segmentos. Daí não
vem mal ao mundo, se nos lembrarmos que qualquer outro segmento equipolente, isto é,
com o mesmo comprimento, direcção e sentido, representa o mesmo .
vector

2 Operações sobre vectores


Em Matemática chega-se a um conceito de vector muito mais abstracto do que o que
aqui apresentamos: um vector é um elemento de um qualquer conjunto no qual possam
ser denidas duas operações fundamentais: soma de vectores e produto por um escalar
(usualmente um escalar é um número real, mas pode ser um número complexo). Vejamos
como entender essas operações para vectores que representam deslocamentos.
2.1 Soma de vectores

Recordemos como se somam dois vectores quaisquer a e b.

3
R R

b b b
a+b a+b
Q Q
b
a a

P P

(a) (b)

Figura 2: Para somar o vector b ao vector a podemos usar o método de (a): represen-
tar b por um segmento colocado na extremidade de a; ou (b): a regra do
paralelogramo.
Representemos a por um segmento orientado com início num ponto qualquer P (ver
Fig. 2a) . Sendo Q o ponto nal do segmento, e recordando a denição de vector como
diferença de dois pontos (Eq. 2) temos,
a = Q − P. (3)
Se representarmos o segundo vector, b, por um segmento com início em Q, e extremidade
em R temos:
b = R − Q. (4)
Parece óbvio que o vector soma de a com b deve ser
a + b = Q − P + R − Q = R − P. (5)
Ou seja, a + b é representado pelo segmento orientado que une o primeiro ponto de a,
P , com a extremidade de b, R. . 1

A chamada corresponde a representar os dois vectores por


segmentos com início no mesmo ponto (Fig. 2b). O vector soma corresponde à diagonal do
regra do paralelogramo

paralelogramo denido por a e b. É fácil ver que estas duas maneiras de somar vectores
são equivalentes: o lado do paralelogramo oposto a b, QR, é um segmento orientado
que também representa b. Mas o que realmente importa notar é que a soma de dois
vectores representa a de dois deslocamentos. Se zermos um deslocamento
representado por a de um deslocamento representado por b o deslocamento
composição

resultante é representado por a+b. As duas representações da soma são possíveis porque
seguido

a dos deslocamentos é irrelevante: o deslocamento de b seguido de a corresponde


ao mesmo deslocamento total, isto é
ordem

a+b=b+a

4
y
yR R

a+b
yQ Q
b

a
yP
P

xP xR xQ x

Figura 3: As componentes do vector soma a+b são as somas das componentes respectivas
de a e b.
2.1.1 Componentes da soma de vectores

Para calcularmos as componentes do vector soma temos que projectar os vectores num
sistema de eixos (Fig 3). As componentes de a, (a , a , a ), são x y z

ax = xQ − xP
ay = yQ − yP (6)
az = zQ − zP (7)
e as de b
bx = xR − xQ
by = yR − yQ (8)
bz = zR − zQ (9)
(note-se que na gura b < 0 pois x < x ).
As componentes do vector soma, c = a + b, são
x R Q

cx = xR − xP = (xQ − xP ) + (xR − xQ ) = ax + bx
cy = yR − yP = (yQ − yP ) + (yR − yQ ) = ay + by
cz = zR − zP = (zQ − zP ) + (zR − zQ ) = az + bz ,

o único resultado que faz sentido para a notação que estamos a usar.
1
Mais correcto seria dizer:  ... que une o primeiro ponto do segmento orientado que representa a à
extremidade do segmento orientado que representa b.

5
2.2 Produto por um escalar

A notação que estamos a usar para soma de vectores sugere


a + a = 2a.

A denição de soma implica que o vector 2a tem a mesma direcção e sentido que a
e o dobro do comprimento. As componentes de 2a são (a + a , a + a , a + a ) =
(2a , 2a , 2a ). Isto parece trivial, mas não podemos esquecer que o sinal + da soma de
x x y y z z

vectores não é a que no conjunto de números reais. Os operandos são


x y z

entidades diferentes, são vectores. Por isso ao identicar a + a com 2a estamos a intuir
a mesma operação

um denição de uma nova operação que é a multiplicação de um vector por um número


real
Somos então levados a denir o produto de um vector por um número real (desig-
nado neste contexto por para os distinguir dos vectores e suas componentes) da
seguinte maneira:
escalar,

Produto por um escalar Se a 7→ (a , a , a ) num dado sistema de eixos S e r ∈ R,


ra 7→ (ra , ra , ra ).
x y z
x y z

Esta denição não é a mais elegante na medida em que não dene o produto por um es-
calar de modo independente das coordenadas. Teríamos em rigor que mostrar que noutro
sistema de eixos S em que a 7→ (a , a , a ) as coordenadas (ra , ra , ra ) representam o
0 0 0 0 0 0 0

mesmo vector que (ra , ra , ra ) em S. Isso é garantido pelo facto de as transformações


x y z x y z

de coordenadas entre sistemas de eixos diferentes serem lineares; seguimos este caminho
x y z

que é mais expedito. Desta denição é fácil concluir as seguintes propriedades:


Propriedades O produto de um número real r (escalar) por um vector a tem as seguintes
propriedades:
a) ra + sa = (r + s)a
b) r (a + b) = ra + rb
c) ra = a se r = 1
d) ra = 0 se r = 0.
0 é o vector nulo, ou seja o vector que somado a qualquer a dá o mesmo 0 + a = a. Tem
componentes 0 7→ (0, 0, 0) em todos os sistemas de eixos. Por outro lado (−1)a somado
a a, é o vector nulo:
(−1)a + a = (−1)a + (1)a = (−1 + 1)a = 0a = 0.

Note-se a diferença entre o escalar 0 e o vector nulo 0, que em qualquer sistema de eixos
tem as componentes (0, 0, 0). É universal a designação de (−1)a := −a. É evidente destas
denições que se a representa um deslocamento, −a representa o deslocamento inverso,
já que a sequência dos dois é o deslocamento nulo. Os respectivos segmentos orientados
diferem apenas de sentido.

6
Estas denições poderão parecer evidentes. Sem pensar seríamos levados a assumi-las,
porque são exactamente aquilo que esperamos da adição e multiplicação de números reais;
mas na realidade trata-se de operações, não entre números reais, mas entre números reais
e vectores.
Por outro lado estas operações permitem-nos denir uma maneira de escrever um
vector na suas componentes. Com as denições
ˆ 7→ (1, 0, 0)
ˆ 7→ (0, 1, 0)
k̂ 7→ (0, 0, 1)

se a 7→ (a , a , a )
x y z

a = axˆ + ayˆ + az k̂. 7→ (ax , 0, 0) + (0, ay , 0) + (0, 0, ay ) = (ax , ay , az )

Se mudarmos de eixos, os vectores de componentes (1, 0, 0), (0, 1, 0) e (0, 0, 1) não serão
os mesmos: podemos por exemplo escolher uma direção distinta para o eixo Ox pelo 0

neste novo sistema de eixos ˆ 7→(1,0,0) e ˆ 6= ˆ; mas continua a ser verdade que
0
 
0


a = a0xˆ0 + a0yˆ0 + az k̂0

em que a0x , a0y , a0z



são as componentes do mesmo vector a no novo sistema de eixos.
3 Produto Escalar
Ao contrário do produto um escalar, o é uma operação entre
dois vectores que tem como resultado um escalar. É por esta operação que os conceitos
por produto escalar

de módulo ou norma de um vector e de ângulos entre vectores são introduzidos, abs-


tractamente, para qualquer tipo de vectores. Mas na nossa discussão de vectores como
deslocamentos podemos assumir desde logo que sabemos medir distâncias e ângulos.
Módulo O comprimento de qualquer segmento orientado que represente o
vector é o ou do vector, designado por kak ou frequentemente
ou norma

por a. Pode ser calculado a partir das suas componentes usando o teorema de
módulo norma

Pitágoras.
(10)
q
kak = a + a + a . 2 2 2
x y z

ângulo entre dois vectores é o ângulo no intervalo [0, π] entre dois segmentos orientados
que o representem.
Produto escalar de dois vectores designado por a·b é um escalar denido por

a · b = ab cos θa,b

Algumas propriedades que se obtêm destas denições:

7
y

yQ Q

ay
a
yP
P ax

xP xQ xR x

Figura 4: Oq módulo de ~a é dado pelo Teorema de Pitágoras,


q
k~ak = a2x + a2y =

(x − x ) + (y − y ) .
Q P
2
Q P
2

a) krak = |r| krak

b) a · b = b·a imediata da denição)


(

c) (ra) · b = r(a·b)

d) (b + c) · a = b·a + c · a

Deixamos c) como exercício. A propriedade d) é menos evidente nesta denição. Mas


recordemos que o produto b cos θ é a componente de b segundo um eixo com a direção
e sentido de a. Denindo um vector de norma unitária com essa direção e sentido,
a,b

1 1
â := a= a
kak a

resulta
b cos θa,b = b·â
Para a soma de dois vectores b + c a componente nesse mesmo eixo denido por â será
a soma das respectivas componentes, ou seja
(b + c) · â =kb + ck cos θa,b+c = b cos θa,b + c cos θa,c = b·â + c·â

Isto é,
(b+c) · â = b · â + c·â
Daqui e de c) decorre imediatamente d).
Usando as relações entre os versores dos eixos coordenados que decorrem destas de-
nições,

8
norma 1)
ˆ · ˆ = ˆ · ˆ = k̂ · k̂ = 1 (
ˆ · ˆ = ˆ · k̂ = ˆ · k̂ = 0
    (ortogonais, θ = π/2,cos θ=0)
e a propriedade d) podemos obter a expressão do produto escalar em termos das compo-
nentes dos vetores:
   
a · b = axˆ + ayˆ + az k̂ · bxˆ + byˆ + bz k̂
= ax bxˆ · ˆ + (ax by + ay bx )ˆ · ˆ + (ax bz + az bx )ˆ · k̂
+ ay byˆ · ˆ + (ay bz + az by )ˆ · k̂
+ az bz k̂ · k̂
= ax bx + ay by + az bz

e para terminar a·b ax bx + ay by + az bz


cosa,b := q q
ab a2 + a2 + a2 b2 + b2 + b2
x y z x y z

Usar a representação do produto escalar em componentes é muita vezes uma maneira


expedita de determinar ângulos e distâncias.

9
Produto vetorial
Lições de Mecânica

J. M. B. Lopes dos Santos

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Uma introdução ao conceito de produto vetorial e à sua ligação ao elemento


de área.

1 Denições
O produto vetorial é uma operação entre dois vectores que resulta num terceiro vetor.
Vamos discutir duas denições possíveis.

1.1 Denição convencional (sem componentes)


O vector c := a × b é denido em termos da sua direção, módulo e sentido:

módulo
|c| := c = ab sin θa,b (1)

em que θa,b é o ângulo entre os vectores a e b. O ângulo entre dois vectores está
sempre no intervalo θ ∈ [0, π], pelo que sin θa,b ≥ 0.

direção perpendicular ao plano denido por a e b. Se os vectores a b forem colineares,


não denem um plano sin θa,b = 0 e c é o vetor nulo, que não tem direção denida.

sentido Determinado pela regra da mão direita. Se os dedos da mão direita indicarem
o sentido de rotação de a para b o polegar indica o sentido de c.

Esta denição mostra que o produto vectorial a × b caracteriza o paralelogramo denido


por a e b: o módulo é o valor da área do paralelogramo e a direção de a×b é perpendicular
ao plano do paralelogramo. Esta denição é independente do sistema de coordenadas
escolhidas e o resultado da operação é explicitamente independente do sistema de eixos
escolhidos.

1
(a) Rotação de a para bno sentido contra- (b) Rotação de a para b no sentido horário
horário

Figura 1: Produto vetorial e regra da mão direita

1.1.1 Propriedades

Esta denição permite-nos deduzir duas relações importantes:

anti-comutatividade
a×b = −b×a (2)

Se de a para b temos uma rotação anti-horária (contra o sentido dos ponteiros de


um relógio) de b×a temos uma rotação horária, e vice-versa, o que signica que
o sentido do produto vetorial é invertido. O módulo e a direção mantêm-se. Como
consequência imediata desta relação

a×a = −(a×a) ⇒ a×a = 0 (3)

(o ângulo entre a e a é nulo; o paralelogramo de lados a e a é uma linha de área


nula)

Linearidade no produto por escalar

(λa) × b = a × (λb) = λ (a×b) (4)

Suponhamos que λ > 0. Ao multiplicar a


b) por λ camos com um paralelo-
(ou
gramo em que um dos lados variou de um fator λ; a área varia do mesmo factor e
o plano do paralelogramo não é alterado. Como o sentido de rotação de λa para
b (ou a para λb não é alterado, o produto vetorial (λa) × b (ou a × (λb)) tem a
mesma direção e sentido de c = a×b, mas um módulo λ |c|; ou seja, é o vector λc.
Se λ < 0, há uma inversão do sentido de a e uma inversão do sentido de rotação
de λa para b em relação ao de a para b. O produto vetorial tem sentido oposto,
assim como o vetor λc tem o sentido oposto de c.

2
Uma terceira relação é mais difícil de demonstrar a partir da denição acima; por isso
vamos registá-la sem prova:

Linearidade na soma de vetores

(a + b) × c = a × c + b×c (5a)

a × (b+c) = a × b + a×c (5b)

Produto dos versores dos eixos

Aplicando a denição de produto vetorial aos versores dos eixos coordenados, facilmente
obtemos as relações :
1

ˆ × ˆ = k̂ (6a)

ˆ × k̂ = ˆ (6b)

k̂ × ˆ = ˆ (6c)

Escolhendo as direçõesnpara ˆ
 eˆ
o , existem dois sentidos possíveis para o terceiro versor k̂.
Um deles faz com que ˆ, ˆ, k̂ formem um triedro direito e o outro um triedro esquerdo.

estas relações são válidas para um triedro direito. Note-se, contudo, que se escolhermos
um triedro esquerdo, estas relações ainda serão válidas se denirmos o sentido do produto
vetorial pela regra da mão esquerda.

1.1.2 Componentes

Com estas propriedades podemos obter as componentes de a × b. Sejam

a = axˆ + ayˆ + az k̂ (7a)

b = bxˆ + byˆ + bz k̂ (7b)

Usando a linearidade e a×a=0


   
c =a × b = axˆ + ayˆ + az k̂ × bxˆ + byˆ + bz k̂
 
=ax by (ˆ × ˆ) + ax bz ˆ × k̂
 
+ay bx (ˆ × ˆ) + ay bz ( ˆ × k̂
   
+az bx k̂ × ˆ + az by k̂ × ˆ (8)

Usando a anti-comutatividade (a × b = −b×a),


   
c = (ax by − ay bx ) (ˆ × ˆ) + (ax bz − az bx ) ˆ × k̂ + (ay bz − az by ) ˆ × k̂
1
Este texto foi escrito com a notação ˆ
 = êx ,ˆ = êy , k̂ = êz .

3
Figura 2: Diagrama para a escrita das componentes do produto vetorial

Com as relações das Eqs. 6a a 6c

c = (ay bz − az by )ˆ + (az bx − ax bz )ˆ + (ax by − ay bx ) k̂ (9)

Esta expressão parece complexa, mas a sua estrutura é simples de apreender. A com-
ponente x de c é uma soma de produtos das componente y e z de a e b. Será

cx = ay bz − az by

No primeiro termocom o sinal positivo, x, y, z estão na ordem indicada no diagrama


da gura 2; no segundo termosinal negativo, a ordem é inversa. Todas as compo-
nentes se podem obter de modo semelhante. As Eqs. 6a a 6c podem ser lidas do mesmo
diagrama.

2 Denição 2
Se considerarmos a dedução da Eq. 9, vemos que ela depende apenas da anti-comutatividade

a × b = −b × a

da linearidade

(λa + ηb) × c = λ (a × c) + η (b×c)


a × (λb+ηc) = λ (a × b) + η (a×c)

e das equações dos produtos dos versores coordenados [Eqs. 6a a 6c]:

ˆ × ˆ = k̂ (10)

ˆ × k̂ = ˆ (11)

k̂ × ˆ = ˆ (12)

4
Figura 3: Escolhendo ˆ
 segundo a e ˆ no plano de a e b (com ângulo com b inferior a π/2),
obtemos a denição convencional do produto vetorial a partir da denição em
termos das suas coordenadas.

Suponhamos que tomamos estas relações como a denição do produto vetorial. Podemos
vericar que o módulo, direção e sentido de a × b, assim denido, coincidem com o da
denição convencional.
Tomemos dois vetores arbitrários a e b. Escolhamos o vetor ˆ na direção de a e o vector
ˆ no plano de a e b. Então

a = aˆ
b = b cos θˆ + b sin θˆ
O produto será
a×b = aˆ × (b cos θˆ + b sin θˆ) = ab sin θk̂
O vector c=a×b é efectivamente normal ao plano a e b, tem módulo ab sin θ e tem o
sentido denido pela regra da mão direita.

3 Resumo
O produto vetorial de dois vetores em a e b em R3 (dimensão d = 3) é um vetor de
componentes

cx = ay bz − az by
cy = az bx − ax bz
cz = ax by − ay bx
O produto vetorial tem uma interpretação geométrica em termos do paralelogramo (ele-
mento de área) denido pelos vetores a e b: tem módulo igual à respectiva área, e direção
perpendicular ao plano do mesmo. O sentido associa uma orientação (sentido de rota-
ção) ao paralelogramo. Se a rotação de a para b é contra-horáriaoposta à rotação dos
ponteiros de um relógio de face paralela ao plano do paralelogramo, c aponta para
cima da face do relógio; em caso de rotação horária aponta para baixo.

5
Figura 4: Áreas orientadas e o sentido dos vetores que as representam

4 (*) Produto vetorial: só em três dimensões


No espaço euclidiano em três dimensões R3 existem três versores coordenados e três pares
2
de versores coordenados. No plano R existem dois versores e um par de versores. Por
isso as relações das Eqs. 10 a 12 são especícas de 3 dimensões e o produto vetorial,
tal como apresentado, só pode ser denido em 3D (em R4 há 4 versores e seis pares de
versores). De facto, se pensarmos bem, a Eq. 9 não chega para garantir que c é um vetor.
0
Está implícita nesta equação que para qualquer outro triedro direito {ˆ , ˆ , k̂ } em que
0 0

as componentes de a e b são

0
a = a0xˆ0 + a0yˆ0 + a0z k̂ (13)
0
b = b0xˆ + b0yˆ + b0z k̂ , (14)

teremos ainda

 0
c = a0y b0z − a0z b0y ˆ0 + a0z b0x − a0x b0z ˆ0 + a0x b0y − a0y b0x k̂
 
(15)

para o mesmo vector c, isto é,

 0
a0y b0z − a0z b0y ˆ0 + a0z b0x − a0x b0z ˆ0 + a0x b0y − a0y b0x k̂ =
 

(ay bz − az by )ˆ + (az bx − ax bz )ˆ + (ax by − ay bx ) k̂ (16)

Esta igualdade não foi provada. Se soubermos as coordenadas num sistema de eixos

a = axˆ + ayˆ + az k̂ (17)

as coordenadas em qualquer outro sistema cam determinadas; por exemplo,


 
a0x = ˆ0 · a = ax ˆ0 · ˆ + ay ˆ0 · ˆ + az ˆ0 · k̂ ,
 
(18)

6
e podemos questionar se a igualdade da Eq. 16 é vericada. A resposta é armativa, mas
discussão desta questão levar-nos-ia um pouco longe demais nesta altura. Mas ca o aviso
que as nossas denições só são consistentes porque esta transformação das componentes
de c é verdadeira. Para outras dimensões, d 6= 3, uma denição de produto vetorial é
possível, mas o resultado não é um vetor.

7
Lições de Mecânica: Análise
Dimensional
J. M. B. Lopes dos Santos*

September 7, 2021

Departamento de Fı́sica e Astronomia, Faculdade de Ciências, Universidade


do Porto, 4169-007 Porto

Neste documento faz-se uma breve introdução aos conceitos


de dimensão e à análise dimensional. A análise dimensional é ap-
resentada como um princı́pio de simetria das leis fı́sica, ou seja,
invariância da forma das equações numa mudança de unidades
Esta simetria impõe restrições à sua forma das equações fı́sicas.
Apresentam-se alguns exemplos de resultados que se podem obter
por análise dimensional.

1 Dimensões
1.1 Introdução
O processo de medição mais simples é a contagem. Não é frequente pensarmos
numa contagem como uma medição. Mas na realidade trata-se de um proced-
imento através do qual associamos um número a uma entidade que em muitos
casos podemos classificar como um grandeza fı́sica. Claro que só podemos
contar conjuntos. . . contáveis, também designados por numeráveis.
Este procedimento não é suficiente para medir, por exemplo, uma distância.
Senão vejamos. Para medir uma distância entre dois pontos, tomamos um
objecto rı́gido, uma régua, colocamo-la ao longo de uma linha que una os dois
pontos e contamos o número de vezes que a régua cabe entre eles. Só muito
excepcionalmente o comprimento será expresso como um número inteiro de
réguas e vemo-nos obrigados a subdividi-la. Somos, pois, levados a conceber
uma distância como expressa por uma expansão decimal (se as subdivisões
sucessivas forem em dez partes). Uma expansão decimal que, pelo menos
*
e-mail: jlsantos@fc.up.pt

1
potencialmente, pode ser infinita. Daı́ que representemos comprimentos por
números reais. Não iremos discutir até que ponto é que a estrutura matemática
dos números reais é realmente tornada necessária pela nossa experiência do
mundo fı́sico. Alguns cientistas têm mesmo especulado que a representação
do tempo e espaço pelo contı́nuo de números reais estaria na base de algumas
dificuldades profundas da fı́sica contemporânea. Mas o aparato matemático
construı́do com base nesta estrutura é de tal modo poderoso e eficiente que
não será fácil destroná-lo.
O que nos interessa aqui salientar é um aspecto que o procedimento de
medida destas grandezas contı́nuas, referido acima, torna bem claro. É que
para associar um número real a uma grandeza deste tipo temos que escolher
um padrão, uma unidade. No caso em discussão uma determinada régua.
O ponto fundamental é que o padrão é puramente convencional. Embora
tenha que ser especificado, para que o valor de uma grandeza possa ser ex-
presso por um número real, ele pode ser mudado sem qualquer prejuı́zo para
a descrição dos fenómenos. Numa tal mudança, os valores numéricos que rep-
resentam as grandezas transformam-se. Torna-se pois claro que uma relação
entre os valores de duas grandezas fı́sicas só terá significado se for preservada
(invariante) em qualquer mudança de unidades. De outro modo não exprime
uma relação entre grandezas mas sim uma coincidência de valores resultante
de uma escolha particular de unidades.
Esta invariância das relações envolvendo valores de grandezas fı́sicas debaixo
de uma determinada transformação desses valores é um exemplo de uma sime-
tria. Na definição clássica de Herman Weyl, um objecto é simétrico se ficar
invariante debaixo de uma dada transformação. Neste caso o “objecto” é a
relação entre as grandezas; a “transformação” é a alteração dos valores das
grandezas numa mudança de unidades. A existência desta simetria implica
certas restrições à forma das equações da fı́sica. Suponhamos, poe exemplo,
que sabemos que uma grandeza C depende de duas grandezas A e B

C = f (A, B). (1)

O que estamos a afirmar é que esta relação tem de respeitar a invariância


sob transformações de unidades; mas os valores de A, B e C são alterados.
Isto significa que, baseados apenas no conhecimento da maneira como mu-
dam os valores destas grandezas quando alteramos as unidades, podemos tirar
conclusões sobre a forma desta relação. É a isto que chamamos argumentos
dimensionais. Tal como as estimativas de Fermi, o seu alcance é limitado, e
não podemos saber tudo só com estes argumentos. Mas repare-se também que
estamos a usar muito pouca informação: apenas a transformação de valores
grandezas com mundaça de unidades. Como veremos, é supreeendente o que
se consegue, em alguns casos, apenas com esta informação.

2
1.2 Conceito de Dimensão
Como se transforma o valor de uma grandeza fı́sica numa mudança de unidades?
Trata-se do mal amado problema de conversão de unidades, que vamos retomar
aqui formulado de um modo um pouco mais abstracto do que o habitual.
Seja, por exemplo, l o valor real que representa um comprimento com a
unidade metro. Se passarmos para uma outra unidade (cm) que novo número
real l0 representa o mesmo comprimento? Como bem sabemos

m → cm = 10−2 m (2)

implica que
l → l0 = 102 l (3)
O número real, l0 , que exprime um dado comprimento em centı́metros é 100
vezes o número, l, que o exprime em metros.
De um modo geral, designando por u o padrão (unidade) de uma dada
grandeza, numa mudança para um novo padrão u0 dado por
u
u → u0 = (4)
Λ
os valores dessa grandeza transformam-se como

l → l0 = Λl (5)

Mas como se transformam os valores de outras grandezas como uma massa


ou uma área? O padrão de comprimentos não serve para medir massas. Não
podemos determinar uma massa vendo quantas vezes nela cabe uma régua
de 15 cm. Pela mesma razão também não podemos medir áreas com uma
régua, pelo menos não por comparação directa. Para clarificar este ponto e,
simultâneamente, entender melhor o que é um sistema de unidades, vamos
gastar algum tempo com o caso trivial da escolha de unidade de área.
Para medir uma área temos que escolher um padrão: uma figura geométrica
convenientemente definida de que possamos construir várias unidades, com as
quais podemos pavimentar a área a medir reduzindo deste modo a medição
a uma contagem. Para fixar ideias, consideremos a área de um cı́rculo de
raio r e designemo-la por C(r). Não seria difı́cil concluir, empı́rica ou teori-
camente, que independentemente do padrão, uma duplicação do raio implica
uma quadruplicação da área. Isto é, genericamente, para qualquer valor real
b,
C(br) = b2 C(r) (6)
As funções C(r) que satisfazem esta condição para qualquer b real têm a forma

C(r) = αr2 . (7)

3
Isso pode-se ver com facilidade reescrevendo a Eq.(6 na forma
C(r) = b−2 C(br); (8)
se esta equação é válida para qualquer b, é válida, em particular, para b = 1/r
e, por isso,
C(r) = C(1)r2 (9)
em que C(1) ≡ α é uma constante independente de r. Toda a gente sabe que
esta constante é igual a π. Ou será? Na realidade o seu valor é π, apenas
como resultado da escolha da unidade de área. Isto é da figura geométrica que
escolhemos como unidade de área.
Para compreendermos esta afirmação é útil, por um momento, contemplar
outras escolhas, diferente da habitual (alı́nea b) )
a) A unidade de área é a área de um cı́rculo de raio igual a uma unidade de
comprimento;
b) a unidade de área é a área de um quadrado de lado igual a uma unidade
de comprimento;
c) a unidade de área é a área de uma moeda de 1¿.
No caso a) a constante α vale claramente 1, pois estamos a definir que um
cı́rculo raio r = 1 (em qualquer unidade de comprimento) tem área 1; logo
C(1) = 1.
No caso b), a definição habitual vale π. Com efeito o argumento que nos
conduziu à Eq. 7, aplicado à área de um quadrado de lado r, Q(r), leva-nos a
afirmar que
Q(r) = βr2 (10)
O que a geometria (ou a experiência) nos diz é que α/β = π. É apenas isto
o que estamos a afirmar quando dizemos que a área de um cı́rculo é πr2 . A
escolha a) equivale a fazer α = 1, logo β = 1/π. A escolha b) corresponde
a ter β = 1, logo α = π. Mas, e isto é o mais importante, o padrão de
área está ligado ao de comprimento. Se a unidade de comprimento muda
uL → u0L = uL /Λ a de área muda de um modo determinado pelas relações
das Eqs- 7 e 10, uA → u0A = uA /Λ2 . Repare-se que esta dependência da
transformação de áreas na de comprimentos só existe porque o padrão de área
foi escolhido de um modo dependente do de comprimento. No caso da escolha
c) acima referida, isso não acontece. Nessa situação, o valor que exprime a
área (o número de vezes que lá cabe uma moeda de 1¿) é o mesmo quer os
comprimentos sejam medidos em metros ou em centı́metros.
Nos casos das definições a) e b) a unidade de área é derivada da de compri-
mento. A relação entre as transformações dos valores de área e comprimento
l → l0 = Λl (11)
0 2
a→a =Λ a (12)

4
é habitualmente expressa dizendo que uma área tem dimensão 2 (ou expoente
dimensional 2) no comprimento. É usual a notação

[área] = L2 (13)

Note-se que no caso da definição c) as áreas têm dimensão zero no compri-


mento, isto é, os valores que exprimem áreas são invariantes numa mudança
de unidade de comprimento. Neste último sistema de unidades a área de um
cı́rculo pode ser expressa como

C(r) = kc r2 (14)

Mas a constante de proporcionalidade, ao contrário dos sistema a) e b) varia


numa mudança de unidades. Com efeito uma vez que C(r) não varia numa
mudança de unidade de comprimento, mas r → r0 = Λr, temos que ter kc →
kc0 = Λ−2 kc . kc tem dimensão −2 no comprimento.

Exercı́cio 1.
A constante kc vale 0,740 cm−2 . Como é se chega a este valor?

Este exemplo, ainda que trivial, tem o mérito de pôr em evidência alguns
pontos relativamente a unidades:

1. Relações entre grandezas fı́sicas de natureza diferente envolvem, em geral


constantes multiplicativas cujos valores (e dimensões) só são determina-
dos pelas convenções de escolha de unidades.

2. Em certos casos é possı́vel (e conveniente) relacionar a escolha de padrões


dessas grandezas de tal modo que essas constantes sejam independentes
das unidades escolhidas (desde que não se altere a relação entre os
padrões). Essas constantes dizem-se adimensionais. É o caso das con-
stantes α e β acima referidas.

3. Estas escolhas permitem reduzir o número de padrões independentes—


unidades fundamentais—sendo os restantes definidos a partir destes—
unidades derivadas. As leis de transformação das unidades derivadas são
determinadas a partir das das unidades fundamentais.

1.3 Unidades Fundamentais em Mecânica


Em Mecânica Clássica é possı́vel escolher as constantes arbitrárias que po-
dem surgir nas leis e definições de modo ter apenas 3 unidades fundamentais,
quase universalmente escolhidas como massa (M ), comprimento (L) e tempo
(T ). Para que não caiamos na tentação de atribuir um significado profundo
a este facto convém saber que em relatividade, por exemplo, é usual usar um
sistema de unidades em que apenas há duas grandezas fundamentais, massa e

5
tempo, ou massa e comprimento. Nesses sistema tempo e comprimento têm as
mesmas dimensões. Os fı́sicos de partı́culas usam correntemente um sistema
com uma unidade fundamental. Como vimos atrás, é a própria rede de leis e
relações entre grandezas que constituem uma teoria, que determina as possi-
bilidades de relacionamento de padrões e consequente redução do número de
unidades fundamentais. Em Relatividade, e em Mecânica Quântica existem
leis e relações entre grandezas que não existem em Mecânica Clássica. É isso
que permite a redução do número de unidades fundamentais.
Mas, para já, fiquemos na Mecânica Clássica. Vejamos através de alguns
exemplos como obtemos as dimensões de cada grandeza nas unidades funda-
mentais:
ˆ velocidade: uma qualquer componente de velocidade é definida por uma
equação
∆x
v = lim (15)
∆t→0 ∆t
Numa mudança de unidades de comprimentos e tempos L → Λ1 L, T →
Λ2 T (daqui em diante passaremos sempre a indicar as transformações
dos valores das grandezas) como varia v? Claramente
∆x Λ1 ∆x
→ (16)
∆t Λ2 ∆t
e portanto
v → v 0 = Λ1 Λ−1
2 v (17)
Isto é, v tem dimensão 1 no comprimento e −1 no tempo. Na notação
habitual
[velocidade] = LT −1 (18)

ˆ outras grandezas: o leitor poderá facilmente verificar por processos semel-


hantes as seguintes equações de dimensões:

[momento linear ] = [mv] = M LT −1


[momento angular ] = [mvr] = M L2 T −1
[força] = [ma] = M LT −2
[energia] = [mv 2 ] = M L2 T −2

Exercı́cio 2.
Do secundário deves recordar-te da relação que Planck e Einstein escreveram entre
a energia E de um fotão e a sua frequênciam ν

E = hν

6
Quais são as dimensões da constante de Planck? E as suas unidades no SI?

Não terá escapado ao leitor atento que todas as grandezas que referimos
acima são definidas como produtos de potências (positivas ou negativas) de
grandezas fundamentais. Isso é uma condição necessária para que a mudança
de unidades corresponda a uma transformação de escala dos valores de qual-
quer grandeza (multiplicação dos respectivos valores por um factor de escala
comum) e possamos definir os respectivos expoentes dimensionais.

A → A0 = ΛA A = ΛαM ΛβL ΛγT A

Para grandezas como comprimento, massa e tempo, que se medem por com-
paração directa com padrões, não se vê como pudesse ser de outra maneira.
Mas a generalidade das grandezas fı́sicas não se pode medir por comparação
directa. Não existe um padrão de velocidades que se possa sobrepor a uma
dada velocidade para ver quantas vezes lá cabe. Poder-se-ia pôr a questão de
saber se não seria possı́vel definir grandezas fı́sicas, úteis, que tivessem uma
lei de transformação mais complicada. No entanto, certos requisitos gerais
(linearidade, composição de transformações de escala), cuja discussão seria
um pouco avançada demais para este curso, reduzem as possibilidades aquelas
que nós considerámos.

1.4 Princı́pio de Homogeneidade Dimensional


Estamos agora em posição de formular, de um modo mais preciso, o requisito
exposto atrás, de que uma relação com significado fı́sico entre duas grandezas
tem que ser preservada numa mudança de unidades.
Tomemos uma relação genérica entre duas grandezas que designaremos por
A e B.
A=B (19)
Numa mudança genérica de unidades

L → Λ1 L (20)
T → Λ2 T (21)
M → Λ3 M (22)

A e B transformam-se de acordo com as suas dimensões nas unidades funda-


mentais

A → A0 = Λα1 1 Λα2 2 Λα3 3 A (23)


B → B0 = Λβ1 1 Λβ2 2 Λβ3 3 B (24)

Para que a relação seja preservada no novo sistema de unidades deveremos ter

A0 = B 0 (25)

7
isto é
Λα1 1 Λα2 2 Λα3 3 = Λβ1 1 Λβ2 2 Λβ3 3 ⇒ Λα1 1 −β1 Λα2 2 −β2 Λα3 3 −β3 = 1 (26)
Como os factores de escala são arbitrários, a igualdade só se verificará, para
qualquer escolha das unidades fundamentais, se
α1 = β 1 ; α2 = β2 ; α3 = β3 (27)
Em conclusão, é condição necessária e suficiente para que uma equação seja
invariante numa mudança de unidades que todos os seus termos tenham as
mesmas dimensões nas unidades fundamentais—Princı́pio de Homogeneidade
Dimensional.
Este requisito, invariância debaixo de uma determinada transformação é, ba-
sicamente, um princı́pio de simetria. Uma tal exigência coloca certa restrições
às relações possı́veis entre determinadas grandezas. A Análise dimensional
baseia-se na existência destas restrições.

2 Estimativas Dimensionais
2.1 O Pêndulo l
Consideremos a questão de determinar o perı́odo de oscilação de um pêndulo
gravı́tico. θ0
Do nosso conhecimento das leis da fı́sica poderı́amos intuir que que os m
seguintes parâmetros poderão ser importantes:
ˆ g, a aceleração da gravidade; Figura 1:
Pêndulo
ˆ m, a massa do pêndulo; Gravı́tico.

ˆ l, o comprimento do fio;
ˆ θ0 , o valor do ângulo inicial.
Teremos então, de um modo inteiramente geral, uma relação,
T = f (g, l, m, θ0 ) (28)
em que f designa uma função desconhecida. Como vamos ver o princı́pio
de homogeneidade dimensional vai permitir determinar completamente a de-
pendência de f nos primeiros três parâmetros. Escrevamos, para referência,
as equações de dimensões destas grandezas:
[g] = LT −2 (29a)
[l] = L (29b)
[m] = M (29c)
[θ0 ] = 1 (29d)
[T ] = T (29e)

8
Note-se que o ângulo θ é medido em radianos. Como tal é a razão de dois
comprimentos é adimensional (dimensões L0 T 0 M 0 = 1), isto é, tem um valor
independente das unidades escolhidas.
Vejamos o que acontece a estas grandezas numa mudança de unidades de
massa, M → Λ3 M . Todas são invariantes excepto m. No novo sistema de
unidades a relação da eq.(1.31) deve ser mantida, isto é,

T 0 = f (g 0 , l0 , m0 , θ00 ) (30)

em que X 0 representa o valor da grandeza X no novo sistema de unidades. Com


estamos a exprimir uma relação entre grandezas ela deve ser válida quaisquer
que sejam as unidades que escolhamos para determinar os seus valores,
Um ponto importante a notar: se a relação é de facto universal a função f é
a mesma nas eqs(1.31) e (1.37); mas, para isso, é crucial que seja explicitada a
dependência em todos os parâmetros fı́sicos com dimensões. Imaginemos, por
um momento que nos esquecı́amos da dependência em g, já que esta pouco
varia se não sairmos da superfı́cie da Terra. Nesse caso ao mudar de unidades a
função f variaria porque a definição de f incluia o parâmetro g , que mudaria
com a mudança de unidades. É fundamental compreender bem este ponto
para poder aplicar correctamente os métodos que estamos a discutir.
Das equações de dimensões sabemos que T 0 = T, g 0 = g, l0 = l, θ0 = θ00 e
0
m = Λ3 M . Logo
f (g, l, Λ3 m, θ0 ) = f (g, l, m, θ0 ) (31)
Esta relação só pode ser válida para qualquer valor de Λ3 se f não depender
de m. O perı́odo não pode depender da massa do pêndulo!

T = f (g, l, θ0 ) (32)

Podemos agora prosseguir a explorar as consequências de outras mudanças


de unidades. Para a unidade de comprimento

l → Λ1 l (33a)
g → Λ1 g (33b)
T →T (33c)
θ0 → θ 0 (33d)

de onde decorre,
f (Λ1 g, Λ1 l, θ0 ) = f (g, l, θ0 ) (34)
Escolhendo Λ1 = l−1 obtemos
g
f (g, l, θ0 ) = f ( , 1, θ0 ) (35)
l

9
O perı́odo é função da razão g/l e de θ0 . Finalmente numa mudança de unidade
de tempo
l→l (36a)
g → Λ−2
2 g (36b)
θ0 → θ 0 (36c)
T → Λ2 T, (36d)
o que dá
g
T 0 = Λ2 T = f (Λ−2
2 , θ0 ), (37)
l
isto é,
g −2 g
f ( , θ0 ) = Λ−1
2 f (Λ2 , θ0 ) (38)
l l
Usando a mesma técnica que anteriormente, escolhendo Λ2 de modo a que
Λ−2
2 g/l = 1, concluı́mos que
s
g l
T = f ( , θ0 ) = f (1, θ0 ). (39)
l g
Em resumo, a análise dimensional, determina toda a dependência em l e g,
s
l
T = f (θ0 ). (40)
g

A função f (θ0 ) fica indeterminada por esta análise. O regime de pequenas


oscilações corresponde a θ0  1 (recorde-se que um ângulo recto são π/2
radianos, isto é cerca de 1.57). Corresponde ao limite
s s
l l
T ≈ f (0) = α (41)
g g
Neste limite a nossa análise determina o valor de T a menos de um constante
multiplicativa (a análise completa das equações de movimento mostra que
α = 2π).
O método seguido na dedução do resultado da Eq. 40 é algo longo, mas tem
a vantagem de tornar bem explı́cito o conteúdo de uma análise dimensional e
o princı́pio de invariância que lhe está subjacente. Mas é habitual proceder de
um modo mais expedito.
A função f (g, l, m, θ0 ) da Eq. 28 tem claramente as dimensões de um tempo.
Olhando para as equações de dimensões dos parâmetros (Eqs. 33a a 33d) p não
é difı́cil ver que podemos definir um tempo com l e g, nomeadamente l/g.
Assim podemos desde logo escrever, sem perda de generalidade
s
l
T = h(g, l, m, θ0 ) (42)
g

10
em que a função h é adimensional, isto é tem um valor invariante em qual-
quer mudança de unidades. Mas então é claro que ela só pode depender
de parâmetros adimensionais, igualmente invariantes. Uma inspecção das
equações de dimensões mostra que com g, l, m, θ0 a única combinação adi-
mensional possı́vel é o próprio θ0 . Basta reparar, por exemplo, que só m tem
dimensão de massa não nula. Logo não pode formar com g e l um parâmetro
adimensional. Por outro lado não é possı́vel anular a dimensão temporal entre
g e l. Logo concluı́mos directamente que h só depende de θ0 , e T tem a forma
da Eq. 40.
Antes de abandonar este exemplo, convém reflectir um pouco sobre o que
fizemos. Ao fim ao cabo acabamos de deduzir uma lei fı́sica, a Eq.(40), sem
fazer uma única experiência. Será que podemos de facto recostar-nos num sofá
e, usando as nossas células cinzentas, descobrir como se comporta o mundo?
Na verdade, a ausência de um conteúdo empı́rico no nosso raciocı́nio é apenas
aparente. A nossa suposição inicial sobre as variáveis de que pode depender
o perı́odo do pêndulo resume observações muito importantes. O perı́odo do
pêndulo poderia, à partida, depender de muito mais variáveis como, o tipo
de material que o constitui, o local onde oscila (latitude e/ou longitude), o
diâmetro do fio de suspensão etc, etc. Não deixa no entanto de ser interessante
que tendo assim limitado o número de parâmetros, foi depois possı́vel chegar
tão longe com base no princı́pio de homogeneidade dimensional.

2.2 Velocidade do Som


Suponhamos que aplicamos duas forças iguais e opostas no extremo de uma
mola. Sabemos que a deformação é proporcional à força
Figura 2: O
F = k∆l (k, constante da mola) (43) elongamento da
mola é
proporcional a
F.

Exercı́cio 3.
É mais usual definir a constante da mola supondo uma das extremidades fixas e
aplicando a força F na outra. A constante da mola é dada pela razão entre F e a
variação de comprimento da mola. Esta definição é equivalente à do texto? Porquê?

Suponhamos agora que, em vez da mola temos uma barra sólida. Se a força
não ultrapassar o limite de elasticidade da barra temos de novo a relação da Figura 3: Cada
metade da
Eq.(43) entre a variação de comprimento da barra e a força. Como depende barra está
k do material e da geometria da barra? Se duplicarmos o seu comprimento k sujeita às
mesmas forças
varia? E se variarmos a secção? que a barra
Para responder a estas perguntas, imaginemos a barra constituı́da por duas completa.
partes do mesmo comprimento colocadas topo a topo. Cada metade da barra
está sujeita às mesmas forças que a barra completa. É óbvio que a barra A,
estando em equilı́brio tem uma resultante das forças aplicadas nula. Isto é

11
a barra B exerce sobre A uma força F0 = −F. Aplicando a lei de Hooke,
Eq.(43), à metade A da barra e designando por k1 a respectiva constante de
força
F
∆lA = (44)
k1
As forças nas extremidades de B são também e F e −F e a barra B é idêntica
a A. Logo
F
∆lB = (45)
k1
Ora, a barra completa tem uma variação de comprimento que é a soma das
variações de cada metade.
1 1 2
∆l = ∆lA + ∆lB = F ( + )=F (46)
k1 k1 k1
A lei de Hooke aplicada à barra completa dá então
F k1
k := =
∆l 2
k1
k= (47)
2
Por outras palavras, a constante k de uma barra de comprimento l é metade
da constante k1 de uma barra de comprimento l/2. Não é difı́cil concluir que
k é inversamente proporcional ao comprimento da barra.
Em relação às dimensões transversais podemos raciocinar de modo semel-
hante. Imaginamos a barra dividida longitudinalmente em duas. As forças
aplicadas a cada uma nas extremidades, a cada metade, tem agora módulo
F/2, pois F é a soma destas duas forças. Como é óbvio, cada uma das duas
partes sofre o mesmo elongamento que a barra completa. Assim a constante
de cada metade da barra é
F
k2 ∆l = (48)
2
e neste caso k = F/∆l = 2k2 : a constante k é proporcional à área da secção
da barra. Em resumo, para uma barra de área A e comprimento l
F A
k= =E (49)
∆l l
em que E deve ser independente das dimensões da barra, caracterı́stico do
material de que é feita. É conhecido como módulo de Young. Assim temos
para a relação entre o elongamento da barra e a força de estiramento
F ∆l
=E (50)
A l
As dimensões de E são exactamente as de uma pressão. No SI a respectiva
unidade é o Pa (Pascal). Valores tı́picos para sólidos andam na gama das

12
dezenas a centenas de GPa (1 GPa = 109 Pa, consultar Young modulus na
Wikipedia).
Agora que sabemos caracterizar as forças elásticas que se exercem num
sólido, vejamos o que podemos aprender sobre a propagação do som nos mes-
mos. Como o som implica a propagação de uma deformação elástica, parece
claro que a sua velocidade vai depender do módulo de Young 1 . Este de-
termina as forças que cada parte do sólido exerce sobre as vizinhas. Mas se
pensarmos nas leis de Newton, sabemos que o movimento é determinado, não
apenas pelas forças que actuam sobre os corpos, mas também pelas respectivas
massas. Por outro lado é um dado adquirido que a velocidade de propagação
do som é uma caracterı́stica de cada material e não depende da geometria dos
corpos onde se propaga. Assim sendo, deve depender, não da massa do corpo,
mas da massa volúmica do material que o constitui. Sem mais informações
arrisquemos
vsom = f (E, ρ) (51)
Olhemos para as dimensões

M LT −2
 
F
[E] = [Pressão] = = = M L−1 T −2 (52)
A L2
ρ =M L−3 (53)

Ora  
E
= L2 T −2 , (54)
ρ
as dimensões do quadrado de uma velocidade. Logo
s
E
vsom = h(E, ρ) (55)
ρ

em que h(E, ρ) é adimensional. Mas não é possı́vel formar um parâmetro


adimensional de E e ρ, pelo que h não pode depender de quaisquer destes
parâmetros e terá que ser uma constante adimensional.
s
E
vsom = α (56)
ρ

Como exemplo calculemos E/ρ para o alumı́nio , E = 71 GPa, ρ = 2.7 gcm−3


p

[4], o que dá


vsom (Al) = 5.13 × 103 ms−1 (57)

1
Estamos a pensar em ondas sonoras em que a deformação da barra é de variações de
comprimento no sentido de propagação: ondas longitudinais. Estas são as que se podem
transmitir ao ar, criando alternância de compressão e expansão, isto é som.

13
A velocidade do som no alumı́nio é, 5100 m s−1 . Uma análise mais completa
mostra que α = 1.
A experiência mostra que as constantes adimensionais, como α, em regra,
não afetam a ordem de grandeza das quantidades onde aparecem. Nesses casos
a análise dimensional permite-nos estimar a ordem de grandeza da quantidade
analisada. Neste exemplo dirı́amos, sem mais informação, que a velocidade do
som neste material deve ser da ordem de alguns quilómetros por segundo.

Exercı́cio 4.
Tenta generalizar este problema da propagação do som numa barra para o seguinte
sistema. Tens uma cadeia linear de molas ligadas, todas idênticas, com a mesma
constante, a mesma massa e o mesmo comprimento. Usa análise dimensional para
tentar estimar a velocidade de propagação de uma vibração longitudinal (deformações
segundo o eixo das molas).

2.3 Forca de Stokes e Número de Reynolds


Dentro da mesma filosofia consideremos agora um exemplo no campo da fı́sica
de fluidos. É uma área onde a análise dimensional é particularmente útil.
Consideremos um corpo de forma esférica imerso num fluido. Se este se
mover exercerá sobre o corpo uma força na direcção do seu movimento. Note-
se que poderemos também considerar que é o corpo que se move no fluido em
repouso. O importante é o movimento relativo sólido–fluido. De que poderá
depender tal força? Certamente da velocidade relativa sólido–fluido, U e das
dimensões do corpo. Poderemos também pensar que pode depender da massa
volúmica do fluido. Um fluido muito rarefeito não deve arrastar com muita
força o sólido. Vejamos então as dimensões

[R] = L, (raio)
−3
[ρ] = M L (massa volúmica )
−1
[U ] = LT (velocidade)
−2
[F ] = M LT (força)

Vemos, por inspecção que F ∝ ρ (dimensão 1 na massa); por outro lado


F ∝ U 2 ( para acertar as dimensões de T ). Portanto

ρU R = M LT −2 = [F ]
 2 2
(58)

ou seja,
F = ρU 2 R2 h(ρ, U, R) (59)
A função h deve ser adimensional. Como não é possı́vel, com os seus argumen-
tos, formar um parâmetro adimensional, h deve reduzir-se a uma constante:

F = kρU 2 R2 (60)

14
e toda a dependência de F nos parâmetros do problema fica determinada.
Nesta altura podemos tentar impressionar um experimentalista com esta
lei fı́sica deduzida por raciocı́nio puro! Ele poderia argumentar, com justeza,
que o nosso ponto de partida (a selecção dos parâmetros de que cremos que F
possa depender) resulta de uma experiência prévia, tem pois um forte conteúdo
empı́rico. Mas, mais provavelmente, limitar-se-á a apontar que o nosso re-
sultado está errado pois, é bem conhecido experimentalmente que, a baixas
velocidades, a força é proporcional a U , não a U 2 . Trata-se da força de atrito
de Stokes. Como é possı́vel?
Com efeito, a nossa suposição de partida é demasiado restritiva, pois ignora
uma caracterı́stica do fluido, a viscosidade. Para explicar o que é teremos que
fazer um longo parêntesis.

2.3.1 Viscosidade de Stokes


Consideremos um recipiente cheio de lı́quido, por exemplo água. A porção de
lı́quido sombreada na fig(1.2) é actuada pela força de gravidade. O respectivo Figura 4: O peso
da camada
peso vale sombreada de
lı́quido é
∆p = ρg∆V (61) suportado pela
pressão do lı́quido
(ρ, massa volúmica, ∆V , volume) que está em baixo.

O que sustenta esta porção de lı́quido e o impede de cair? Naturalmente


as forças de pressão exercidas pelo lı́quido que está por baixo. Este lı́quido
é comprimido pelo peso do lı́quido acima dele (e da coluna de ar por cima
deste). Deforma-se (muito pouco, pois os lı́quidos, como os sólidos, são pouco
compressı́veis) e daı́ resultam forças de pressão que se exercem normalmente
à fronteira entre as duas porções de lı́quido. Essas forças são proporcionais
à área da superfı́cie e por isso é bem definida a força por unidade de área, a
pressão. O ponto é que os lı́quidos se comportam de modo muito semelhante
aos sólidos sob acção de tensões compressivas (normais às superfı́cies através
das quais se exercem). Consideremos agora uma situação um pouco diferente.
Uma camada de lı́quido está contida entre duas placas horizontais, sólidas. O Figura 5: sólido
sujeito a tensões
lı́quido, normalmente, adere ao sólido. Isto é, se arrastarmos uma das placas de corte..
horizontalmente o lı́quido que está em contacto com ela move-se também. Se
entre as placas estivesse um sólido o deslocamento horizontal induziria uma
deformação no mesmo. Surgiria uma força elástica que se oporia ao deslo-
camento. Seria necessário manter aplicada uma força externa para manter a
placa deslocada da sua posição inicial. Se imaginarmos uma superfı́cie a sep-
arar o sólido em duas camadas vemos claramente que a condição de equilı́brio
da parte superior implica que a inferior exerça sobre ela uma força paralela
à superfı́cie através da qual ela se exerce . Estas tensões são designadas por
tensões de corte.
Um lı́quido responde a tensões de corte de um modo muito diferente de um
sólido. As camadas de lı́quido podem deslizar umas sobre as outras. A placa

15
superior pode estar em equilı́brio, sem forças externas, em qualquer posição.
Em equilı́brio, num lı́quido, não há tensões de corte. Mas por experiência
sabemos que enquanto a placa e o lı́quido estão em movimento surgem de
facto tensões de corte que se lhe opõem—as forças de viscosidade.
Para uma classe vasta de lı́quidos (não todos) verifica-se que para uma
velocidade da placa superior U e uma camada de espessura l de lı́quido, a
força por unidade de área que é necessário exercer externamente sobre a placa
para a manter em velocidade uniforme vale
F U
=η (62)
A l
O coeficiente η é a viscosidade. Note-se que, como a placa se desloca a uma
velocidade uniforme, a resultante das forças que nela actuam é nula. Logo
esta expressão determina também o valor da força que o lı́quido exerce sobre
a placa. À primeira vista esta definição pareceria indicar que a viscosidade é
uma propriedade da interface lı́quido—sólido, mais do que do lı́quido em si. Figura 6: para
mover a placa a
De facto não é assim. O que na realidade se verifica na situação considerada velocidade
uniforme é
é que a velocidade no seio do lı́quido varia de um valor nulo na placa inferior necessário manter
até U , na superior, de um modo linear. Isto é uma força
aplicada. O
deslizamento de
y camadas de
vx (y) = U (63) lı́quido origina
l tensões de corte.

Se imaginarmos uma superfı́cie paralela às placas a separar duas partes do


lı́quido vemos que a força que cada uma destas partes exerce sobre a outra
é ainda dada pela Eq. 62 uma vez que não há acelerações no sistema. O
que estamos a dizer, portanto, é que a força exercida através da superfı́cie de
separação entre as partes A e B do lı́quido vale
F U dvx (y)
=η =η (No sentido negativo do eixo xx) (64)
A l dy
Em conclusão, um deslizamento de uma camada de lı́quido sobre outra, (variações
de componentes da velocidade segundo um dado eixo numa direcção perpen-
dicular ao mesmo, dvx /dy 6= 0) dá origem a tensões de corte proporcionais à
viscosidade do lı́quido.

2.3.2 A Força de Stokes


Estamos agora em condições de voltar à discussão da força sobre um sólido
em torno do qual se move um fluido. Parece claro que a viscosidade do lı́quido
é relevante. Com efeito se o lı́quido adere à superfı́cie do sólido terá que
haver variações de velocidade no seio do fluido e surgirão tensões de corte
determinadas pela viscosidade. Analisando dimensionalmente η
[η] = (M LT −2 )(L−2 )(L)(LT −1 )−1 (65)
−2 −2 −1 −1 −1
= (M LT )(L )(L)(L T) = ML T (66)

16
Levemos em conta a informação do nosso amigo experimentalista, F ∝ U .
Temos
F = U f (ρ, R, η) (67)
As dimensões da função f são fáceis de determinar
 
F
[f ] = = M T −1 (68)
U

O produto ηR tem precisamente estas dimensões pelo que

F = ηU R × h(ρ, R, η) (69)

em que a função h é agora adimensional. Mas não há nenhum parâmetro


adimensional que se possa formar a partir de produtos de potências de ρ, R e
η. Senão vejamos
ρα Rβ η γ = M α+γ L−3α+β−γ T −γ (70)
Para termos um produto adimensional

α+γ =0
−3α + β − γ = 0
γ=0

que só tem a solução α = β = γ = 0. Em conclusão a função h reduz-se a


uma constante adimensional

F = ks ηU R (71)

Neste regime, de F ∝ U , a dependência no raio da esfera é linear e a força não


depende da massa volúmica do lı́quido.
Finalmente, e para encerrar esta discussão sobre fluidos, podemos colocar o
problema com toda a generalidade, sem fazer suposições sobre a dependência
da força na velocidade.
F = f (ρ, η, R, U ) (72)
que podemos sempre escrever na forma

F = ηU R × h(ρ, η, R, U ) (73)

em que, de novo, h é adimensional. Mas com estes quatro parâmetros já é


possı́vel formar um produto adimensional. De facto, o trabalho já está feito.
Como ηU R e ρU 2 R2 tem as mesmas dimensões (as de uma força) a razão entre
eles é adimensional
ρU 2 R2 ρU R
R= = (74)
ηU R η
Este parâmetro é designado por número de Reynolds.

17
A análise dimensional conduz então ao resultado

F = ηU R × h(R) (75)

Repare-se que, na medida em que incluı́mos na discussão todos os parâmetros


relevantes, a função h(R) é universal, a mesma para todos os fluidos (desde que
caracterizados por uma viscosidade do tipo acima definido) e esferas sólidas
(para outras formas geométricas a função será diferente).
O número de Reynolds caracteriza o regime de variação de F com U . Para
R  1 será de esperar que h(R) ≈ h(0) e teremos um regime em que F ∝ U .
Mas para R ≈ 1 ou superior esse regime pode ser modificado. Com efeito
as caracterı́sticas do escoamento variam substancialmente com R. Para R
pequeno o escoamento é ordenado e estacionário. A velocidade do fluido em
cada ponto não varia no tempo. Para R ≈ 20 desenvolvem-se turbilhões
na parte de trás do corpo sólido, que para R ≈ 100, acabam por descolar
dando origem a variações temporais na velocidade do fluido em cada ponto.
Para R muito elevado a esteira do sólido tem um comportamento desordenado
(turbulento, ver Fig. 7).
Convém notar o poder da análise dimensional. A descrição que acabamos de
fazer aplica-se a inúmeras situações. Dois quaisquer escoamentos com η’s, R’s,
U ’s e ρ’s totalmente diferentes terão as mesmas caracterı́sticas se os respectivos
números de Reynolds forem idênticos. Uma das consequências práticas destas
ideias é que é possı́vel estudar o comportamento de grandes massas lı́quidas
(por exemplo, uma albufeira) com modelos de dimensões reduzidas, se a massa
volúmica e a viscosidade do lı́quido do modelo forem escolhidas de modo a
conduzir ao mesmo número de Reynolds. O número de Reynolds é apenas
um de muitos parâmetros adimensionais que surgem no estudo da mecânica
de fluidos.

3 Leituras Recomendadas
ˆ Classical and Modern Physics, K. Ford, Vol I Cap. 2. Uma boa obra, na
tradição americana de curso introdutório com cobertura global de todas
as áreas da Fı́sica. Tem alguns anos e tem sido suplantado por obras
mais recentes, com apresentações gráficas excepcionais, mas nem sempre
com lucidez comparável.

ˆ Forces and Particles, B. Pippard, Cap. 7 Um livro relativamente avançado,


que contém uma discussão cuidada de alguns dos tópicos deste capı́tulo.

ˆ Sistema Internacional Guilherme de Almeida Cap. 3 A ênfase é mais


em sistemas de unidades mas no capı́tulo 3, trata alguns exemplos de
análise dimensional.

18
Figure 7: escoamentos de um fluido em torno de uma esfera para vários valores
do número de Reynolds [5]

19
References
[1] Introdução à Fı́sica da Matéria, J. Bessa de Sousa.

[2] F. Quate, Physics Today, Agosto 1986 pag. 26

[3] Handbook of Physics , Condon & Odishaw, McGraw-Hill, NY, 1958

[4] Science Data Book , R. M. Tennent (ed) Oliver & Boyd, Edinburgh, 1979

[5] From Order to Chaos, L. P. Kadanoff, World Scientific, Singapore, 1980

20
Problemas de Fermi
Lições de Mecânica

*
J. M. B. Lopes dos Santos

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Enrico Fermi foi um físico excepcional, que, entre muito outros feitos, se
notabilizou pela capacidade de estimar grandezas com escassez quase total
de informação. Os problemas abordados com a técnica de Fermi caram
conhecidos por Problemas de Fermi.

1 Problemas de Fermi
Enrico Fermi (1901-1954) foi um físico italiano excepcional, prémio Nobel da Física em
1938, orientador de doutoramento de uma lista de físicos notáveis (que inclui três prémios
Nobel), e construtor do primeiro reactor nuclear. Fermi foi o último físico capaz de
trabalho de qualidade Nobel, quer em Física Experimental, quer em Física Teórica.
Ficou também famoso pela sua capacidade de fazer estimativas com base em quase
nenhuma informação. No primeiro teste nuclear, Trinity test em 1945, Fermi terá deixado
cair uma folha de papel, e, com base no seu deslocamento com a onda de choque da
explosão, estimou a energia da explosão em toneladas de TNT, tendo errado apenas por
um factor de 2.
Antes de ler estas notas é essencial ver o vídeo A clever way to estimate enormous
numbers de Michael Mitchell[2], que explica o modo como Femi estimou o número de

anadores de piano em Chicago (onde construiu o primeiro reactor nuclear).

2 Notação cientíca
Em Física e Engenharia a notação cientíca é essencial para exprimir grandezas cujos
valores podem ter enormes variações. Assim, por exemplo, a Massa do Sol é

M = 1.99 × 1030 kg (1)


*
jlsantos@fc.up.pt

1
e a do protão
mp = 1, 67 × 10−27 kg (2)
Sem recurso à notação cientíca, como poderíamos escrever a massa do Sol em kg,

M = 1989000000000000000000000000000 kg? (3)


Nesta representação, para operar com este valor teríamos de contar os dígitos permanen-
temente. Pior que isso, depois dos primeiros dígitos a contar da esquerda, os restantes
não têm qualquer signicado. Os 26 zeros podiam ser qualquer outro dígito1 . Simples-
mente não sabemos quanto valem porque só conhecemos a massa do Sol com quatro
algarismos signicativos.
No caso da massa do protão

mp = 0.000000000000000000000000000167 kg (4)

sabemos que os zeros à esquerda são realmente zero (não são algarismos signicativos),
mas operar com esta notação continua a ser um pesadelo.
Na notação cientíca, a informação é dada por um número a ∈ [1, 10[, a mantissa, e
pelo expoente, n inteiro, da potência de 10.

X = a × 10n (5)

O expoente é a ordem de grandeza (base 10)2 . No exemplo que demos, entre a massa
do Sol e a do protão, temos já 57 ordens de grandeza de diferença. Note-se que uma
variação de ±1 na ordem de grandeza signica a multiplicação (divisão) por um factor
de 10. Isto dá uma ideia da enorme gama de massas com que lidamos em Física. E não
esgotámos a escala. Por exemplo o electrão tem uma massa de

me = 9.11 × 10−31 kg (6)

e a nossa galáxia
MV L ∼ 1012 M ∼ 1042 kg, (7)
uma variação de 72 ordens de grandeza! A consideração de outras grandezas (comprimen-
tos, intervalos de tempo, resistência eléctrica, etc.) mostra que a existência de fenómenos
com escalas com variações de várias ordens de grandeza é comum.
A base do método de Fermi é a estimativa do expoente, que designámos por ordem
de grandeza. Pode parecer pouco, mas dadas as enormes gamas de variação possíveis,

conhecer o expoente é um grande avanço em relação a nada saber. Por outro lado, a
simplicidade do método permite usá-lo frequentemente como vericação de cálculos mais
detalhados.
No que segue exemplicamos uma série de estimativas em problemas de Fermi:

1
Se tivermos conança no último 9 a contar da esquerda, o dígito seguinte deveria estar entre 0 e 4.
Sobre os restantes 25 nada sabemos.
2
Numa primeira abordagem; no nal deste documento renamos esta denição

2
1. Quantos carros ligeiros novos se vendem em Portugal por ano?

2. Quantas árvores há em Portugal?

3. Quantas farmácias há no Porto?

4. Qual é a massa de um grão de areia?

5. Quantos habitantes tem um país com 100 000 nascimentos por ano?

6. Quantos médicos de família precisa um concelho com 50 mil habitantes?

Imaginar um problema deste tipo e tentar resolvê-lo é um excelente exercício. O Google


permite depois vericar a nossa estimativa e anar as nossas Fermi skills.

3 Exemplos
3.1 Quantos carros ligeiros novos se vendem em Portugal por ano?

A população portuguesa é cerca de 10 milhões

P ∼ 107 . (8)

Para um agregado médio familiar de 3 pessoas, o número de famílias


P
F ∼ ∼ 3 × 106 (9)
3
Com um carro em média por família, o número de carros em circulação.

C ∼ 3 × 106 carros.

Um carro dura mais que 1 ano e menos que 100. Por isso a vida média de um carro pode
ser estimada como
V ∼ 10 anos (10)
Isto quer dizer que em 10 anos a população de automóveis é substituída, ou seja, em 10
anos vendem-se 3 × 106 carros:

Carros vendidos por ano ∼ 3 × 105 ∼ 300 mil. (11)

Segundo informação dos meios de comunicação, no primeiro semestre de 2010, o número


de carros ligeiros vendidos em Portugal foi 147 000!

3
3.2 Quantas árvores há em Portugal Continental?

Portugal continental é um rectângulo de cerca de 200 × 600 km2 , com área

A ∼ 12 × 104 × 106 = 1, 2 × 1011 m2 ; (12)

se metade da área for de oresta,


A
Af ∼ ∼ 6 × 1010 m2 ; (13)
2
se cada árvore ocupar uma área de 2 × 2 m2 , em média, o número de árvores
Af
Na ∼ ∼ 1.5 × 1010 árvores. (14)
4
Sendo o número de habitantes de cerca de 107 , o número de árvores por habitantes seria
de 1500. Dados de um artigo recente na Nature [1] estimam o número de árvores na Terra.
Para Portugal dão cerca de 300 árvores por habitante em Portugal (420 por habitante
na Terra).

3.3 Quantas farmácias há no Porto?

Os habitantes do concelho do Porto rondam 300 ∼ 400 mil. Punhamos

P ∼ 5 × 105 . (15)

Se cada pessoa visitar uma farmácia uma vez em cada duas semanas, o número de visitas
diárias será
P
V ∼ ∼ 3 × 104 . (16)
14
Se cada farmácia puder atender 100 pessoas por dia
3 × 104
número de farmácias ∼ ∼ 3 × 102 . (17)
100
O número listado de farmácias no Porto é de 113.
Quando este exemplo foi discutido numa aula, um estudante respondeu imediatamente.

número de farmácias ∼ 100 (18)

Instado a comentar como chegara tão depressa a este número, respondeu, bem no espírito
de Fermi:
Achei que 10 era pouco e 1000 era demais. Por isso propus 100.

Este estudante revelou uma compreensão muito boa do que é uma estimativa de ordem
de grandeza. Neste caso particular, a sua vivência da cidade permitiu uma estimativa
directa da ordem de grandeza do número de farmácias, que se revelou, neste caso, bastante
precisa. De um modo geral teremos de passar pelo processo de estimação de factores
intermédios, como nos exemplos vistos até agora.

4
4 Mais exemplos
Chegado aqui sugere-se ao leitor que interrompa a leitura e tente fazer as estimativas
relativas às questões 4 a 6 da secção 1. Depois pode confrontar com as soluções aqui
apresentadas.

4.1 Qual é a massa de um grão de areia?

Um paralelo de estrada tem uma massa de cerca de 5 kg. Se a sua dimensão linear for
10 cm a sua densidade é
M 5 −3
ρ= ∼ 3
3 = 5 × 10 kg m (19)
V (0.1)
Tomemos para dimensão linear de 1 grão cerca de 0,5 mm, o que dá um volume

Vg ∼ d3 = (5 × 10−4 )3 = 6.25 ×−10 m3 (20)

e uma massa
mg ∼ ρVg ∼ 6 × 10−10 × 5 × 103 ∼ 3 × 10−6 kg. (21)
Obtemos uma estimativa de mg ∼ 3 mg.

4.2 Quantos habitantes tem um país com 100 000 nascimentos por ano?

Se a expectativa de vida for de Ev = 75 anos a população é integralmente substituída


neste período. Por isso

P ∼ 105 × Ev = 7.5 × 106 = 7, 5 milhões. (22)

Portugal tem uma expectativa média de vida de 80 anos, cerca de 100 000 nascimentos
por ano e uma população de 10 milhões.

4.3 Quantos médicos de família precisa um concelho com 50 mil


habitantes?

Um médico trabalha cerca de 40 horas por dia. Um ano tem 52 semanas, menos 4
semanas férias e duas de feriados; ou seja, o médico trabalha cerca de 46 semanas. O
número de horas de consulta por ano é

H ∼ 46 × 40 ∼ 1840 ∼ 2 × 103 h/ano (23)

Com 1/2 hora por consulta, dará em cada ano

Cm ∼ 4 × 103 consultas (24)

Se cada habitante zer n consultas em média por ano, o número de consultas do concelho
será
Cc ∼ n × 5 × 104 (25)

5
O número de médicos será
n × 5 × 104
número de médicos ∼ ∼ 10 × n. (26)
4 × 103
Segundo os dados do SNS existem 1416 médicos de família para os 10 milhões de habi-
tantes. Por cada 50 mil habitantes
1416
médicos SNS ∼ × 5 × 104 ∼ 7 × n (27)
107
Isto sugere que n ∼ 1,

5 Porque é que funciona


Se repararmos nos exemplos anteriores, vemos que a estimativa resulta de um produto
de factores, X,Y,Z, . . . sobre os quais temos mais informação do que sobre o resultado
nal. Escrevendo cada um dos factores em notação cientíca

XY Z · · · = (xyz . . . ) × 10nx +ny +nz ... (28)

O foco do nosso interesse reside no expoente n = nx + ny + nz , já que as mantissas


estão cada uma no intervalo [1, 10[. Alguns factores serão estimados por excesso outros
por defeito. Ao fazermos o produto, será de esperar algum cancelamento dos erros dos
expoentes dos factores (e dos produtos das mantissas), e é isto que permite, amiúde,
chegar a uma estimativa da ordem de grandeza correcta.
O mesmo tipo de raciocínio está na base da famosa equação de Drake [3], que pretende
estimar o número de civilizações existentes na nossa galáxia através de um produto de 7
factores.
Para terminar, deixamos uma questão para reexão. Suponhamos que obtemos de
duas fontes igualmente conáveis duas estimativas para uma dada grandeza, X1 e X2
com ordens de grandeza diferentes; por exemplo,

X1 ∼ 3 × 102 , (29)
X2 ∼ 5 × 10 . 3
(30)

Uma vez que temos igual conança nas duas estimativas, somos tentados a fazer uma
média entre as duas. A questão é: que média? A aritmética
X1 + X2
X∼ , (31)
2
ou a geométrica p
X∼ X1 X2 ? (32)

6
0
9x10
n −6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6

−6 −5 −4 −3 −2 −1 0 1 2 3 4 5 6
x 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10

n 3,16
n+1

0 1
y = log (x)
10

x
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Figura 1: Escala Logarítmica. A ordem de grandeza de 9 × 100 é mais próxima de 1 do


que de 0.

6 Denição de ordem de grandeza. Renamento


Uma grandeza X , escrita em notação cientíca, tem a forma

X = a × 10n (33)

em que a ∈ [1, 10[ é a mantissa e n o expoente. Queremos construir uma régua em que as
divisões, igualmente espaçadas correspondem aos valores de n. A régua tem uma divisão
central, n = 0, X = 1, à direita, n = 1, 2, . . . correspondentes aos valores X = 10, 100, . . .
e à esquerda n = −1, −2, . . . ,ou X = 10−1 , 10−2 , . . . . Ao contrário de uma escala linear,
em que variações ∆X = X2 − X1 iguais são comprimentos iguais, aqui, razões X2 /X1
iguais são comprimentos iguais. Chama-se a esta escala uma escala logarítmica, pois se
Y1 = log10 (X1 ) e Y2 = log10 (X2 )
 
X2
Y2 − Y1 = log10 (34)
X1
Ora
log10 (X) = n + log10 (a) (35)
e como a ∈ [1, 10[, log(a) ∈ [0, 1[. Entre duas marcações inteiras na régua variamos a
mantissa.
Parece então razoável denir a ordem de grandeza como sendo n para usar sempre
um inteiro, quando os valores de log10 (X) estão mais próximos de n do que de outro

7
valor inteiro. Isso acontece para
1 1
n− ≤ log10 (X) < n + (36)
2 2
o que dá,
1
10n− 2 ≤ X < 10n+1/2 (37)
1 √
√ × 10n ≤ X < 10 × 10n (38)
10
ou
1 √
√ ≤ a < 10 (39)
10

Uma vez que 10 ≈ 3, 2
0, 32 . a > 3, 2 (40)
A ordem de grandeza será n na gama de valores de X

3, 2 × 10n−1 . X . 3, 2 × 10n (41)

Referências
[1] T. W. Crowther, H. B. Glick, K. R. Covey, C. Bettigole, D. S. Maynard, S. M.
Thomas, J. R. Smith, G. Hintler, M. C. Duguid, G. Amatulli, M.-N. Tuanmu, W. Jetz,
C. Salas, C. Stam, D. Piotto, R. Tavani, S. Green, G. Bruce, S. J. Williams, S. K.
Wiser, M. O. Huber, G. M. Hengeveld, G.-J. Nabuurs, E. Tikhonova, P. Borchardt,
C.-F. Li, L. W. Powrie, M. Fischer, A. Hemp, J. Homeier, P. Cho, A. C. Vibrans, P. M.
Umunay, S. L. Piao, C. W. Rowe, M. S. Ashton, P. R. Crane, and M. A. Bradford.
Mapping tree density at a global scale. Nature, 525(7568):201205, September 2015.

[2] Michael Mitchell. A clever way to estimate enormous numbers.


URL:https://youtu.be/0YzvupOX8Is, August 2017.

[3] Wikipedia. Drake equation. url: https://en.wikipedia.org/wiki/Drake_equation,


August 2017.

8
Leis de Newton
Lições de Mecânica

*
J. M. B. Lopes dos Santos

29 de Setembro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Os três mandamentos da Mecânica Newtoniana.

1 Um livro muito importante


Em 1687, Isaac Newton, professor de matemática da Universidade de Cambridge,
na cátedra ocupada por Stephen Hawking até à sua recente morte, publicou o que
muitos consideram o mais importante livro cientíco da história da Humanidade:
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ou, como é universalmente conhecido,
os Principia.
Neste livro, escrito em latim (a primeira tradução para inglês data de 1729), New-
ton apresentou os resultados da sua investigação sobre movimento, na forma de três
leis de aplicação universal a qualquer tipo de movimento, quer na Terra quer no
Céu.
Quais são, então, as três leis de Newton? Só é precisa meia página para as escrever.

Primeira Lei
Na ausência de forças exteriores, um corpo em repouso mantém-se em
repouso, e um corpo em movimento mantém o seu estado de movimento,
com velocidade constante em direcção, sentido e módulo.

*
jlsantos@fc.up.pt

1
Segunda Lei
Um corpo actuado por uma força externa, F, tem uma aceleração, a, na
mesma direcção e sentido da força, de módulo proporcional ao módulo
da força. A constante de proporcionalidade é a massa do corpo (uma
grandeza sempre positiva). Isto é,

F = ma (1)

Terceira Lei
Para toda a acção (força) de um corpo A sobre um corpo B, existe uma
reacção (força) de B sobre A oposta (mesmo módulo, mesma direcção e
sentido contrário).

Galileu já tinha formulado a primeira lei chamando-lhe lei da inércia:


. Lei da

Um corpo não altera o seu estado de movimento a não ser que seja actuado inércia

por causas exteriores.

Galileu chamou inércia a esta resistência de um corpo à alteração do seu estado de


movimento. De acordo com a segunda lei, quanto maior é a massa, m, mais difícil é
alterar o estado de movimento: maior tem que ser a força para a mesma aceleração.
A massa Newtoniana quantica o conceito de inércia de Galileu.
Por que é que estas leis são tão importantes? Porque, complementadas pelo co-
nhecimento das forças que os corpos exercem uns sobre os outros, permitem o cálculo
de qualquer tipo de movimento.
Os Principia incluem também a formulação da lei que rege uma das forças funda-
mentais da Natureza, a Gravitação Universal. Newton mostrou como as órbitas dos
planetas ou dos cometas se podiam deduzir matematicamente das suas três leis de m1 m2
movimento e da lei da Gravitação; explicou as variações da órbita da Lua devido à F =G
r2
atracção do Sol; a precessão (variação de orientação) do eixo de rotação da Terra; a
periodicidade e variações das marés. . Lei da Gra-
Um dos sucessos mais espectaculares da teoria Newtoniana foi a descoberta do
vitação Uni-
versal.
planeta Neptuno em 1846. A órbita de Urano mostrava desvios relativamente aos
cálculos da teoria Newtoniana. John Adams e Urbain Le Verrier, de modo indepen-
dente e quase simultâneo, propuseram que esses desvios se deviam à existência de um
planeta até então desconhecido, cuja atracção gravítica causava os desvios da órbita
de Urano. Usando a teoria Newtoniana, determinaram a órbita desse planeta. Le
Verrier passou os seus cálculos ao director do Observatório de Berlim que, em menos
de uma hora, observou pela primeira vez o planeta Neptuno ao telescópio.

1.1 Como se demonstram as leis de Newton?

No passado, em tempos em que a ciência gozava de maior prestígio entre os jovens, um


facto cienticamente provado era considerado irrefutável. Invocar esta qualidade
para um facto em disputa era um modo garantido de matar uma discussão.

2
Figura 1: Urbain Le Verrier (1881-1877) e John C. Adams (1819-1892) previram teo-
ricamente a existência do planeta Neptuno, a partir dos desvios da órbita de
Urano relativamente às previsões da teoria Newtoniana. O astrónomo Ge-
orge Airy, do Observatório de Greenwhich, ignorou as previsões de Adams.
Le Galle, em Berlim, seguiu as indicações de Le Verrier e foi o primeiro a
observar Neptuno ao telescópio. [?].

Na verdade, não existe nenhuma demonstração ou prova, no sentido matemático,


das leis de Newton ou de qualquer outra lei física. Newton não deduziu as suas leis
de qualquer observação.
O trabalho cientíco tem alguma semelhança com o trabalho de um detective.
Newton encontrou pistas nas observações astronómicas, nos trabalhos de Galileu e
nas suas próprias observações sobre o movimento. Com estas pistas intuiu a forma
da leis de movimento e explorou as suas consequências. Por cada previsão conr-
mada, a sua conança nas leis que formulou cresceu. Este processo continuou por
várias gerações. As leis de Newton são hoje usadas para planicar as viagens das
sondas espaciais, para fazer previsões metereológicas, para descrever os movimentos
de uidos, para compreender o comportamento mecânico dos materiais, para prever
os movimentos das pontes e outras estruturas, para explicar a forma e movimentos
das galáxias, incluindo colisões entre elas, para calcular o movimento das cargas do
vento solar no campo magnético da Terra, etc., etc., etc.. A lista é interminável: no
trabalho em ciência e tecnologia as leis de Newton estão sempre por perto.
Como podemos nós compreender as leis de Newton? Do mesmo modo que o
próprio Newton e as várias gerações de físicos que se lhe seguiram: aplicando-as na
análise de situações concretas. Esta é a única maneira possível de compreender a
mecânica Newtoniana. Aprender Física é como aprender a andar de bicicleta. Só
se aprende fazendo. Do mesmo modo que ninguém aprende a andar de bicicleta
assistindo a aulas sobre a posição correcta a adoptar e a maneira de dar aos pedais,
ninguém aprende mecânica Newtoniana decorando com muito cuidado as suas leis
fundamentais. Compreender as leis é saber aplicá-las em situações concretas.
As leis de Newton são também importantes para compreender situações da vida
corrente, não apenas as situações controladas de um laboratório. Frequentemente,
as nossas intuições imediatas sobre forças e movimentos não estão de acordo com as
leis da mecânica Newtoniana. Não vemos corpos manterem-se em movimento inde-

3
Isaac Newton

Isaac Newton (1643-1727)

Nascido em 1643, em Woolsthorpe, Inglaterra, Isaac Newton é um dos dois mais


sérios candidatos ao título de físico mais inuente da história da humanidade. O
segundo é Albert Einstein.
Na sua obra mais importante, os Principia, Newton não se limitou a apresentar
um conjunto completo de leis aplicáveis a qualquer tipo de movimento, terrestre
ou celeste. Também deu consistência e conteúdo a uma visão de um Universo re-
gido por leis matemáticas, evoluindo de uma maneira determinada, à semelhança
de um mecanismo perfeito.
Embora as ideias de Newton tenham sido modicadas pela Teorias da Relati-
vidade e Gravitação de Einstein e, de um modo mais radical, pela Mecânica
Quântica, a gama de fenómenos que podem ser abordados nos termos da teoria
Newtoniana é tão vasta, que ela faz parte permanente do corpo de conhecimentos
cientícos. Ainda hoje, qualquer estudo sério de Física começa, invariavelmente,
pela mecânica de Newton.
Além dos trabalhos publicados nos Principia , Newton deu contribuições funda-
mentais em óptica e matemática, sendo considerado, com Leibniz, inventor do
cálculo innitesimal. Descobriu a composição espectral da luz branca e inventou
o telescópio reector.
A sua vida foi marcada por disputas acrimoniosas sobre prioridade nas suas
descobertas, com Hooke, Huygens e Leibniz, nas quais alguns procedimentos de
Newton foram altamente criticáveis.a . Faleceu em 1727 e o seu epitáo dizia:

Aquele, que por vigor de mente quase divina, primeiro demonstrou os


movimentos e guras dos planetas, os caminhos dos cometas e as marés dos
oceanos .
a Nadisputa com Leibniz, sobre a invenção do Cálculo Innitesimal, Newton,
como Presidente da Royal Society, nomeou uma comissão independente. O
próprio Newton (anonimamente) redigiu o respectivo relatório e um artigo de
apreciação crítica sobre o relatório!

Figura 2: Isaac Newton

4
nidamente (primeira lei); quem já enfrentou um matulão com o dobro do tamanho
tem diculdade em acreditar que a força que pode exercer sobre nós não é maior que
a que podemos exercer sobre ele (terceira lei).
A verdade é que a experiência imediata dos nossos sentidos é muito limitada.
Vivemos amarrados pelo peso à superfície da Terra, não sobrevivemos fora de um
meio gasoso e os nossos sentidos estão limitados a janelas temporais e espaciais muito
estreitas: se olharmos para um relógio, não detectamos o movimento do ponteiro da
horas (ou mesmo dos minutos) e qualquer objecto de dimensões inferiores a cerca de
0, 1 mm é invisível à vista desarmada. Contudo, mesmo neste contexto limitado, uma
observação cuidadosa e uma reexão crítica sobre o conjunto da nossa experiência
quotidiana só encontra uma explicação consistente e coerente no âmbito da mecânica
Newtoniana.

2 Comentário às Leis de Newton


Se pensarmos que as leis de Newton são o primeiro conjunto de leis universais, apli-
cáveis ao movimento de todos os corpos, na história da Física, a sua formulação
levanta imediatamente várias questões.
Elas falam de massa, força e aceleração. Aceleração sabemos o que é. Depende de
valores de distâncias e tempos que sabemos medir com réguas e relógios. Fixado um
referencial, podemos, pelo menos em princípio, medir qualquer aceleração. Mas o que
é a massa? O que é uma força? Como podemos medi-las de modo independente para
que possamos vericar se as leis de Newton são realmente obedecidas no movimento
dos corpos?
Por outro lado a primeira lei coloca imediatamente outro problema. Imaginemos
por um momento que podemos garantir que um corpo está livre de forças de outros
corpos. A primeira lei diz que o seu movimento tem velocidade constante, mas isso
não pode valer em qualquer referencial! Em que referenciais é que se aplica?
Vamos abordar estas questões brevemente, uma a uma começando pelo conceito
de massa.

2.1 Conceito de massa Newtoniana

O próprio Newton deu uma denição de massa:

Massa é a quantidade de matéria que constitui o corpo.


Esta denição deixa-nos perplexos pela sua aparente circularidade. O que é a quan-
tidade de matéria? Contudo, apesar de parecer à primeira vista apenas um jogo de
palavras, a denição de Newton tem algum conteúdo. No mínimo identica massa
como uma grandeza extensiva. Ou seja, a quantidade de matéria de dois tijolos
idênticos deve ser o dobro da quantidade de matéria de cada um deles. A respectiva
massa dever ser o dobro da massa de cada um.

5
Deste modo não é difícil comparar massas de corpos da mesma substância. Mas
como comparar a massa de uma esfera de ferro com outra de alumínio? O mesmo
volume é a mesma quantidade de matéria?
A resposta a esta pergunta vamos encontrá-la na terceira lei de Newton. Se a força
de A em B é oposta da força de B sobre A, de acordo com a terceira lei, e a aceleração
é a força sobre a massa, numa situação em que estes dois corpos não interagem com
terceiros, as suas acelerações serão opostas s e as suas massas forem iguais! De um
modo geral, para dois corpos em interação mútua e livres da inuência de terceiros,
podemos dizer
|aA | |FA | /mA mB
= =
|aB | |FB | /mB mA
O primeiro membro pode ser medido com réguas e relógios e daí podemos tirar, em
princípio, a razão das massas de dois corpos medindo a razão das suas acelerações.
Mas não será isto usar as leis para as provar? Não estaremos a denir massa de
modo a que a segunda e terceira leis se veriquem? Para responder a esta pergunta
suponhamos que usávamos este procedimento para mostrar que mA = mB e mB =
mC pondo A e B em interação mútua e depois fazendo o mesmo com B e C. Agora
podemos fazer uma previsão. Pondo A e C em interação as suas acelerações devem
ser opostas. Repare-se que não tinha de ser assim. Com isto pretende-se armar
que A e C terem acelerações opostas não é uma consequência lógica de os pares
A e B e B e C , em interação mútuas, terem acelerações opostas. Por exemplo,
(exemplo tolo, bem sei) podia acontecer que A e C fossem opacos e B transparente
e a aceleração mútua dependesse de os corpos terem propriedades óticas iguais (A e
C) ou distintas (A e B e B e C ). São as leis de Newton, e não um silogismo, que
permitem prever das experiências com A e B e B e C, o resultado da experiência
com A e C e introduzir, consistentemente, esta maneira de medir massa.
Este exemplo mostra a natureza da validação empírica das leis da Física. As leis
implicam determinadas consequências. Mas da observação das consequências não
podemos deduzir as leis. Leis distintas poderiam dar origem às mesmas consequências
em experiências que já zemos e consequências diferentes para situações que ainda
não experimentámos. As leis não se provam. Mas, à medida que conrmamos as suas
previsões, numa gama cada vez mais vasta de fenómenos, aumenta a nossa conança
nessas leis. Ao ponto em que, como acontece com as Leis de Newton, sabemos que
mesmo que essas leis sejam suplantadas (e foram!), as novas leis terão que reproduzir
os seus resultados, ou seja, reduzir-se a elas, nas gamas de fenómenos em que já as
validámos.
Podemos então usar as Leis de Newton para denir massa, um conceito que aparece
pela primeira vez na formulação dessas leis. A Natureza encarregar-se-ia de no-lo
mostrar, se por acaso essa denição não fosse consistente as observações empíricas.
Em conclusão, dados dois corpos em interação mútua a razão das suas acelerações
é a razão inversa das suas massas,

|aA | mB
=
|aB | mA

6
Escolhendo um corpo como tendo a unidade de massa, podemos, em princípio pelo
menos, determinar a massa de qualquer corpo. A massa assim denida é conhecida
pelo nome de massa inercial 1 .

2.2 O conceito de força

As três leis de movimento de Newton mencionam o conceito de força. A Lei da


Gravitação Universal é uma lei de força.
Há dois aspectos fundamentais no conceito de força da teoria Newtoniana:

1. O movimento dos corpos é inuenciado pela presença de outros corpos, e esta


inuência manifesta-se na forma de forças: isto é, uma força é sempre exercida
sobre um corpo e é sempre exercida por outro corpo.

Se, acidentalmente, corrermos contra um poste, fazemos uma vericação do-


lorosa desta armação: o poste exerce a força, esta é exercida sobre o nosso
corpo e o nosso movimento é claramente afectado. Na linguagem da Física
estas inuências mútuas de corpos nos respectivos movimentos chamam-se in-
teracções:

a) a atracção entre cargas de sinais opostos, ou a repulsão entre cargas do


mesmo sinal, é uma interacção eléctrica.

b) a atracção gravítica entre o Sol e a Terra é uma interacção gravítica.

Na teoria Newtoniana as interacções são denidas pelas forças a que dão origem.

2. Forças são vectores, isto é, têm direcção sentido e módulo e somam-se como
vectores.

Quando atiramos uma pedra, podemos fazê-lo em qualquer direcção ou sentido;


podemos também variar a intensidade com que o fazemos, projectando a pedra a
maior ou menor distância. Por outras palavras, podemos variar a direcção, o sentido
e a intensidade da força que aplicamos à pedra. Mas ao dizer que as forças são
vectores estamos também a armar que se somam como vectores.
O seguinte exemplo é útil para esclarecer este ponto. Suponhamos que pegamos
numa mola com as mãos e a distendemos. Nas extremidades da mola estão aplicadas
duas forças com a mesma direcção e sentidos opostos. Para que a mola não se
desloque, nem para a esquerda nem para a direita, as duas forças têm que ter a mesma
intensidade. Se as representarmos por vectores, estes terão uma soma vectorial nula:
o efeito das duas forças no movimento global (de translação) da mola é o mesmo que
o da sua soma vectorial: nenhum. A soma vectorial das várias forças que actuam
2
F −F

num corpo, designa-se por resultante .

1
Note-se que esta denição não envolve a interação gravítica de todo!
2
Nem todos os efeitos de um conjunto de forças são equivalentes ao da força resultante. Neste
exemplo, a resultante é nula mas a mola deforma-se por acção das forças aplicadas. Se não
houver forças aplicadas à mola, ela mantém o seu comprimento de equilíbrio.

7
Figura 3: Qual dos referenciais, S ou S0 é inercial?

A segunda lei de Newton contém, no seu primeiro membro, a resultante de todas


as forças aplicadas a um corpo e no segundo membro a massa e a aceleração desse
corpo.
Em resumo:

ˆ as forças têm origem nas interacções entre corpos;

ˆ as forças são vectores;

ˆ a soma vectorial das forças que actuam num corpo chama-se resultante. A
força a que se refere a segunda lei é a resultante das forças que actuam no
corpo.

2.3 Referenciais inerciais

Imaginemos um asteróide atirado por alguma colisão para o espaço interestelar, longe
de qualquer astro ou corpo que possa inuenciar o seu movimento, isto é livre de
interações, de forças exercidas por outros corpos. A primeira lei diz-nos que a sua ve-
locidade deve ser constante. Mas para quem? Para medir uma velocidade precisamos
de um referencial e há muitos referenciais em que esse corpo está acelerado.
Suponhamos que o nosso asteróide está parado em relação à nave S . Uma segunda
nave, S 0 nave move-se em relação a S com aceleração a. Claramente o nosso asteróide,
tal
0
como S , tem uma aceleração −a em relação a S . Em que referencial se verica
a primeira lei?

8
Na perspectiva Newtoniana, todas as forças são devidas a interações entre corpos.
Isto é se há uma força há um corpo culpado de a exercer. Se conhecêssemos todas
as leis que governam essas interações (um grande se!) poderíamos em princípio
concordar que um determinado corpo está livre de qualquer inuência externa. Então
só observaríamos a primeira lei numa classe restrita de referenciais, precisamente
aqueles em que o referido corpo tivesse movimento uniforme. Na Física Newtoniana
esses referenciais são designados por inerciais.
Na realidade, não é nada fácil estabelecer que um dado corpo está livre de for-
ças. Por essa razão não é nada fácil determinar entre dois referenciais mutuamente
acelerados, qual é o inercial. Mas esta discussão tem de ser adiada até termos uma
melhor compreensão das Leis de Newton. Para agora camos apenas com a noção
que existe uma classe de referenciais em que as leis de Newton são válidas: aqueles
em que um corpo livre de forças tem movimento uniforme.

9
Órbitas Circulares e Oscilador Harmónico
Aplicação das Leis de Newton

*
J. M. B. Lopes dos Santos

5 de Outubro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Dois exemplos de aplicação da Leis de Newton

1 Órbitas Gravíticas Circulares


A descoberta por Newton da Lei da Gravitação Universal coincidiu (não por acaso) com
a sua percepção da importância dessa lei na explicação do movimento no sistema solar.
Ao aplicar as mesmas leis e argumentos ao movimento dos astros e dos projécteis na
Terra, Newton deu um salto conceptual de enorme importância: a unicação das leis de
movimento terrestre e celeste. A queda dos graves à superfície da Terra e o movimento
dos astros têm a mesma origem. A Terra, além de atrair os corpos na sua superfície,
atrai também a Lua. O Sol atrai todos os planetas. Quando confrontados pela primeira
vez com esta ideia, qual de nós escapou à interrogação:
Porque é que a Lua não cai para a Terra?
ou
Porque é que os planetas não caem para o Sol?
A evolução para uma visão cientíca do mundo exige quase sempre uma nova maneira
de ver aquilo que nos é familiar. A resposta de Newton a este respeito foi clara: a Lua
cai para a Terra e os planetas para o Sol.
A maneira como Newton viu está ilustrada na gura 1, que surge nos Principia em 1687.
Nela se mostram várias trajectórias de projécteis lançados do alto de uma montanha com
velocidades horizontais sucessivamente maiores. Os projécteis atingem a superfície da
Terra a distâncias crescentes do ponto de lançamento (D, E, F, G, . . . ) . A gura sugere
que, com velocidade suciente, o projéctil poderá passar a orbitar a Terra, apesar de a
*
jlsantos@fc.up.pt

1
Figura 1: Uma ilustração dos Principia de Newton

sua trajectória se encurvar de um modo semelhante à dos projécteis que "acabam por
cair". Esta maneira de ver, unica conceptualmente o movimento de um projéctil e uma
órbita de uma sonda ou planeta.

1.1 Queda dos planetas para o Sol

Atentemos na gura 2 em que o planeta ocupa a posição P no instante t, um ponto da sua


trajectória circular. A pergunta que Newton fez, com base nas suas leis de movimento,
foi: onde estaria um pouco depois (t + ∆t) o planeta se o Sol não existisse? De acordo
com a primeira lei, estaria no ponto Q, tendo-se deslocado de ∆x na direção tangente à
órbita. Mas o Sol existe, e o planeta encontra-se sobre a órbita a uma distância R do
Sol, isto é a uma distância do Sol inferior à de Q. Logo, conclui Newton, caiu de ∆h,
por causa da presença do Sol. Pelo teorema de Pitágoras
(R + ∆h)2 = R2 + ∆x2 (1)
ou
∆h2 + 2R∆h = ∆x2 ; (2)
para intervalos de tempo muito pequenos ∆x ≈ vP ∆t  R e ∆h  R o que implica
∆h2  2R∆h e desprezando o termo ∆h2 , em comparação com 2R∆h na Eq.(2), obte-
mos
2R∆h ≈ ∆x2 (3)
∆x2 v2 1
∆h ≈ ≈ P ∆t2 = an ∆t2 (4)
2R 2R 2
O planeta cai com uma aceleração que não é mais que a aceleração normal da trajectória
circular, an = vp2 /R.

2
P ∆x Q
∆h

R
R + ∆h

Figura 2: Se o Planeta se deslocasse sem a atracção do Sol, estaria em Q e uma distância R + ∆h do Sol. Caiu
∆h em direção ao Sol.

O que este argumento geométrico simples mostra, é que se escolhermos localmente um


sistema de eixos com origem num ponto da trajectória, no instante t, Ox coincidente
com a tangente e Oy na direção radial, para um intervalo de tempo curto,

x(∆t) ≈ vP ∆t (5a)
1vP2
y(∆t) = − ∆t2 . (5b)
2 R
Estas são as equações de movimento de um projéctil com aceleração ay = vP2 /R. Todos
os planetas caiem para o Sol. A Lua cai para a Terra!
Se aplicarmos isto ao movimento no campo da Terra em vez do Sol concluímos que
um projéctil à superfície da Terra cai com aceleração g e um satélite em órbita de raio
R (como a Lua) cai com aceleração vL2 /RL , em que vL é a velocidade linear da Lua e
RL o raio da sua órbita em torno da Terra. A aceleração da Lua pode ser calculada com
facilidade dos dados da sua órbita,
2πRL
vL = (6)
TL
e
vL2 RL
= 4π 2 2 = 2.73 × 10−3 m s−2 (7)
RL TL
Porque razão é muito mais pequena que g ≈ 10 m s−2 ?
Para entender este resultado, Newton socorreu-se da sua Lei da Gravitação Univer-
sal. As forças que a Terra exerce sobre um grave à sua superfície e sobre a Lua são,

3
respectivamente1 ,
MT m
Fg = G = mg (8a)
RT2
MT ML
FL = G 2 = ML gL ; (8b)
RL

as respectivas acelerações são


MT
g=G (9a)
RT2
MT
gL = G 2 (9b)
RL

Por isso
gRT2 = GMT = gL RL
2
(10)
De facto,
2
gRT2 = 9.8 × 6.37 × 106 = 3.98 × 1014 m3 s−2 (11a)
2
gL RL = 2.73 × 10 −3 8 2 14
× (3.24 × 10 ) = 4.05 × 10 m s 3 −2
(11b)
A igualdade (aproximada) entre este dois valores simboliza a unicação do movimento
dos astros com o movimento dos graves na Terra, um dos maiores feitos de Newton.
Para terminar, tiramos a condição geral para uma órbita circular sob ação do campo
gravítico. Se a órbita é circular, a força gravítica tem a direção radial a aceleração
tangencial é nula. Na direção radial, a segunda lei de Newton tem a forma
FG = man (12a)
Mm v2
−G = −m . (12b)
R2 R
A velocidade da órbita circular de raio R será
M
vc2 = G (13)
R
E então, se o planeta em P tiver uma velocidade com a mesma direção, mas de módulo
diferente de vc : qual será a sua órbita?
Vejamos: O corpo está no mesmo ponto; a força gravítica é a mesma. Tem a direção
radial F = FG êr e
Mm
FG = −G 2 (14)
R
Por outro lado a aceleração é perpendicular à velocidade, por isso é puramente normal
(sem componente tangencial) an = vP2 /R. Por isso chegamos sempre à Eq. 13. Será que a
1
Primeiro Newton teve de mostrar que a força gravítica de uma esfera de massa é a mesma que a mesma

massa exerceria se localizada no seu centro da esfera.

4
v P >v c
1

v P =v c

P 3 2
v P <v c

Figura 3: Órbitas distintas para velocidades diferentes em P.

velocidade não pode ser diferente de vc ? Esta conclusão não pode estar certa, uma vez que
sabemos que as leis da Física não xam velocidades. Podemos iniciar o movimento em
P com a velocidade que quisermos. O que está então errado no argumento apresentado?
O que está errado é a expressão da aceleração normal. Chamamos a atenção na
derivação das fórmulas de Frenet que a aceleração normal é
vP2
an = (15)
R
mas em que R é o raio de curvatura da trajectória no ponto P , não a distância à origem.
Só coincidem se estivermos a lidar com uma trajectória circular. A expressão correcta
da segunda lei será então
Mm vP2
−G = −m . (16)
R2 Rc
em que R é a distância aos Sol e Rc o raio de curvatura em P . Assim como o primeiro
membro está xo se variar vP varia o raio de curvatura da trajectória: quanto menor for
vP menor será Rc , maior será a curvatura κ := Rc−1 .
1 Mm
κ := =G 2 2 (17)
Rc vp R
As diferentes órbitas terão o aspecto da gura 3: as órbitas 1 e 3 serão órbitas elípticas
e a órbita 2 circular. Note-se se vP for sucientemente grande, a órbita pode ser aberta
deixando de ser periódica.

2 Oscilador Harmónico Simples


2.1 equação de movimento

O oscilador harmónico simples é seguramente o sistema mais importante de toda a física.


Do curso de mecânica elementar, passando pelo Electromagnetismo, pela mecânica quân-

5
k1 m x

Figura 4: Um sistema com movimento harmónico simples.

tica, até ao curso mais avançado de Teoria Quântica de Campo, o oscilador harmónico
simples nunca está longe.
O que há de tão especial num sistema de uma massa ligado a uma mola?
Suponhamos que linha a tracejado da Fig. 4, representa a posição em que a mola não
exerce força sobre a massa m e que medimos o delocamento horizontal do corpo relativa-
mente a essa posição (x = 0, na linha tracejado); que a massa da mola é desprezável (o
seu papel reduz-se a exercer uma força no corpo); que o corpo desliza sobre a mesa sem
atrito, ao longo de uma linha (eixo Ox); que a força exercida pela mola é proporcional à
sua variação de comprimento relativamente à posição em que a força é nula.
São muitas suposições, mas todas necessárias para denir o modelo da oscilação har-
mónica simples sem dissipação. Com estas simplicações qual é a equação de movimento
do corpo?
Um vez que tratamos apenas do movimento ao longo do eixo Ox, a segunda lei de
Newton toma a forma
max = Fx (18)
em que F = Fxˆ é a força exercida pela mola. Se x(t), a coordenada de posição do corpo,
for positiva a mola é distendida e Fx < 0. Se x < 0 a força tem o sentido de ˆ , ou seja
Fx > 0. Como Fx é proporcional ao deslocamento do corpo em relação à linha tracejada,

Fx = −kx k>0 (19)

A constante k é a constante da mola. Uma vez que a aceleração é a segunda derivada de


x(t) (a derivada da velocidade, vx (t) = dx/dt)

d2 x
m = −kx(t) (20)
dt2
ou
d2 x k
=− x(t) (21)
dt2 m
Esta é a equação de movimento do oscilador harmónico simples, e a sua importância em
Física é tremenda! Por que é que os físicos são tão obsessivos relação a um sistema tão
especial?
A razão é que esta equação surge em quase todos os contextos em que existem con-
gurações de equilíbrio estável e pequenas oscilações em torno dessas congurações. Sem
pretender esgotar todas essas situações vejamos um contexto um pouco mais geral do

6
Figura 5: Força restauradora. Para que o corpo acelere em direção ao equilíbrio, o declive da força no ponto de
equilíbrio deve ser negativo.

que a massa e mola que conduz à mesma equação. Imaginemos uma estrutura (pode
ser um edifício, uma molécula, o líquido num recipiente) que tem uma conguração de
equilíbrio estável, e seja x uma coordenada que caracteriza o desvio da estrutura da sua
conguração de equilíbrio, que podemos tomar como correspondendo a x = 0. Ser estável
signica que se x > 0 , o sistema deve acelerar em direção a x = 0 no sentido negativo
do eixo Ox; se x < 0, deve acelerar também em direção a x = 0 , ou seja no sentido
positivo de Ox. Se assim não fosse o equilíbrio seria instável porque a força não tenderia
a levar o sistema em direção à situação de equilíbrio. Por isso a força deve ter a forma
da Fig. (5).
Fx (x) > 0 se x < 0 (22a)
Fx (0) = 0 (equilíbrio) (22b)
Fx (x) < 0 se x > 0 (22c)
Se a equação de movimento tiver a mesma estrutura da 2ª lei de Newton (algo que não
se resume apenas à Mecânica) teremos
d2 x
m = Fx (x) (23)
dt2
Se o desvio em relação ao equilíbrio for pequeno, a função Fx (x) pode ser aproximada
pela equação da tangente ao gráco de Fx na origem2 . Dada a expressão da força, a
tangente é uma recta que passa na origem com declive negativo, ou seja
Fx (x) ≈ −kx (24)
2
Estamos de novo na aproximação de Euler: Fx (x) ≈ Fx (0) + Fx0 (0)x; o primeiro termo é nulo, pois
0
x=0 é a posição de equilíbrio, e Fx (0) ≡ −k < 0, para o equilíbrio ser estável.

7
e, para pequenas oscilações a equação de movimento é a do oscilador harmónico:
d2 x k
2
≈ − x(t). (25)
dt m
Por esta razão uma grande variedade de sistemas, que nada têm a ver com o sistema
massa+mola são descritos pela mesma equação de movimento.

2.2 Movimento harmónico simples

Quais são então os movimentos descritos pela Eq. 21? Vamos encontrá-las de dois modos
distintos.
Voltemos por um momento ao movimento circular uniforme e escrevamos a segunda lei
de Newton projectada nos eixos cartesianos. A força é centrípeta e de módulo constante
v2
a=− êr = −ω 2 r cos θˆ − ω 2 r sin θˆ (26)
r
As coordenadas cartesianas da partícula são
x(t) = r cos θ (27a)
y(t) = r sin θ (27b)
isto é
a = −ω 2 x(t)ˆ − ω 2 y(t)ˆ (28)
Em coordenadas cartesianas,
d2 x
ax := = −ω 2 x(t)
dt2
d2 y
ay = 2 = −ω 2 y(t)
dt
Mas estas equações são as equações de movimento do oscilador harmónico simples!
Quando uma partícula tem um movimento circular uniforme, a sua projecção num diâme-
tro é um movimento cuja aceleração satisfaz a equação do oscilador harmónico simples.
Ou seja, a projecção de um movimento circular no eixo Ox é uma solução da equação do
oscilador harmónico. No movimento circular
θ(t) = ωt + θ0 (30)
e a coordenada x(t)
x(t) = r cos (ωt + θ0 ) (31)
Podemos vericar explicitamente, derivando duas vezes, que este movimento é solução
da equação 21
dx
= −rω sin (ωt + θ0 )
dt
d2 x
= −rω 2 cos (ωt + θ0 ) = −ω 2 x(t)
dt2

8
função Curvatura d2 x/dt2
x(t) > 0 -
x(t) = 0 ponto inexão
x(t) < 0 +
Tabela 1: Relação entre função e sua curvatura, quando a função é solução da equação de movimento
harmónico.

Figura 6: Se a curvatura (segunda derivada) tem o sinal oposto ao da função, quando x(t) > 0 curvatura é
negativa e o valor da função acaba por se aproximar de novo de zero. Ao passar o zero a curvatura torna-se
positiva e o resultado é uma oscilação em torno da origem.

desde que
k
ω2 = . (33)
m
Note-se que as constantes r e θ0 não são determinadas pela equação de movimento.
Por isso, não obtivemos uma solução, mas sim uma família de soluções. Mais à frente
veremos como as podemos determinar.
Voltando atrás, vejamos uma segunda maneira de encontrar as soluções do movimento
harmónico. A equação de movimento diz-nos que a solução é um função cuja segunda
derivada é proporcional à própria função com um constante de proporcionalidade nega-
tiva:
d2 x k
2
= − x(t). (34)
dt m

O sinal da constante de proporcionalidade é crucial para originar uma solução oscilante,


como se vê pela Fig. 6 . Se x(t) é positivo, a curvatura é negativa e o declive da tangente
à curva (primeira derivada) diminui. Eventualmente o declive (a velocidade) torna-se
negativo e x(t) diminui em direção a x(t) = 0. Quando o gráco de x(t) atravessa o eixo
Ox a curvatura muda também de sinal e a derivada passa a ser crescente. O resultado é
uma oscilação. Ora conhecemos funções cuja segunda derivada é proporcional à própria

9
função.
d2 f
f (t) = cos(t) ⇒ = − cos(t) (35a)
dt2
d2 g
g(t) = sin(t) ⇒ 2 = − sin(t) (35b)
dt
. Para que a constante de proporcionalidade diferente de -1
d2 f
f (t) = cos(ωt) ⇒ = −ω 2 cos(ωt) = −ω 2 f (t) (36a)
dt2
d2 g
g(t) = sin(ωt) ⇒ 2 = −ω 2 sin(ωt) = −ω 2 g(t) (36b)
dt
Claramente que f (t) quer g(t) são soluções da Eq. 21 desde que ω 2 = k/m. Qual delas
devemos escolher?
Se atentarmos na equação de movimento vemos que ela é linear. Como
d2 d2 f d2 g
(Af (t) + Bg(t)) = A + B (37)
dt2 dt2 dt2
para A e B constantes, ca claro que, se f (t) e g(t) são soluções, h(t) = Af (t) + Bg(t)
também é um movimento possível. Por outras palavras,
x(t) = A cos(ωt) + B sin(ωt) (38)
é uma família de soluções para a Eq. 21, quaisquer que sejam A e B .
Pensemos um pouco no modo como podemos iniciar uma oscilação tomando como
exemplo o caso da massa e mola. Começamos por deslocar o corpo para um valor de
x = x0 , fora do equilíbrio. Depois, ou largamos o corpo (velocidade nesse instante nula)
ou damos-lhe um impulso, em direção ao equilíbrio, ou no sentido oposto (v = v0 ). A
seguir o movimento é determinado pela equação de movimento. Por outras palavras, é
possível ter uma movimento harmónico com quaisquer valores de x e v num dado instante.
Tomando o instante em que largamos o oscilador como t = 0, temos
x(0) = x0 (39a)
v(0) = v0 (39b)
Atentando à forma da solução (Eq. (38))
x(t) = A cos(ωt) + B sin(ωt) (40a)
dx
v(t) = = −ωA sin(ωt) + ωB cos(ωt) (40b)
dt
e pondo t = 0 temos
x(0) = A (41a)
v(0) = ωB, (41b)

10
x
xmax

t/ s
-T T

xmin

Figura 7: Solução geral do movimento harmónico simples.

o que mostra que as constantes A e B são efectivamente determinadas pelas condições

iniciais, em t = 0,
A = x0 (42a)
ωB = v0 . (42b)
O movimento ca então univocamente determinado pela equação de movimento (se-
gunda lei e lei de força) e pelas condições iniciais:
v0
x(t) = x0 cos(ωt) + sin(ωt). (43)
ω
É fácil mostrar que a primeira solução que encontramos na Eq. (31) se pode reduzir a
esta forma
x(t) = r cos (ωt + θ0 ) = r cos θ0 cos (ωt) − r sin θ0 sin (ωt) (44)
ou
x0 = r cos θ0 (45a)
v0 = −ωr sin θ0 (45b)
Em conclusão: a solução do movimento é uma oscilação sinusoidal cuja amplitude e fase
são determinadas pelas condições iniciais (Fig. (7))
r
v2
r= x20 + 02 (46a)
ω
v0
tan θ0 = − . (46b)
ωx0
A frequência ω (e o período T = 2π/ω) ao contrário da fase ou amplitude, não dependem
das condições iniciais, são características do oscilador. Tendo em conta que a força
restauradora Fx = −kx a seguinte mnemónica ajuda a recordar a expressão de ω .
k
ω2= =força restauradora por unidade de deslocamento e massa. (47)
m

11
Para terminar esta lição é útil reectir um pouco sobre este facto que as equações
mostram, que Galileu percebeu, mas que não deixa de ser supreendente: O período de
uma oscilação não depende da amplitude. Uma oscilação de grande amplitude (desde
que harmónica) demora o mesmo tempo que uma pequena. Porquê?
A primeira pista vem da análise dimensional. A equação de movimento tem um único
parâmetro  
k
= [F ] L−1 M −1 = M LT −2 L−1 M −1 = T −2
m
Se iniciarmos o oscilador com uma amplitude inicial x0 e velocidade inicial nula, o período
só pode ser função de k/m e x0 . Mas como [x0 ] = L−1 e [k/m] = T −2 a resposta não
pode depender de x0 , e temos de ter
r
m
T ∼ .
k
A segunda pista decorre da seguinte observação. Quanto maior for a amplitude maior é
a velocidade no ponto de equilíbrio. Por simples análise dimensional de novo

vmax ∼ ωx0

Isto signica que a velocidade típica da oscilação é proporcional à amplitude. Por isso o
tempo que demora a percorrer uma distância da ordem da amplitude é

vmax t ∼ x0

ou r
x0 1 m
t∼ ∼ ∼ .
vmax ω k
Nas oscilações de maior amplitude o corpo tem uma velocidade maior de tal modo que
o período não varia.

12
Momento Linear
Grandeza conservada
*
J. M. B. Lopes dos Santos

6 de Outubro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Nestas notas, partindo das leis de Newton aplicadas a um sistema de partí-


culas, apresentamos mais uma grandeza conservada, na ausência de interações
externas: o momento linear. Do ponto de vista Newtoniano, a conservação de
momento é uma consequência da terceira lei. Mas dada a importância da lei
de conservação de momento, cujo âmbito transcende largamente a Mecânica
Newtoniana, é talvez mais correto armar que a terceira lei é a forma como a
Mecânica Newtoniana incorpora um princípio mais fundamental, que é o da
conservação de momento linear.

1 Introdução
Nestas notas prosseguimos o estudo de grandezas conservadas, isto é de propriedades
físicas cujo valor se mantém constante nos movimentos governados pelas leis de Newton.
A energia é uma grandeza escalar, e no estudo da sua conservação pudemos considerar o
caso de uma única partícula. O momento linear é uma grandeza vetorial e só faz sentido
considerar a sua conservação no contexto de interações entre partículas. Para uma única
partícula a conservação de momento linear nada acrescenta à primeira lei de Newton.

*
jlsantos@fc.up.pt

1
2 Sistema de duas partículas
O sistema a considerar tem duas partículas em interação mútua, mas livres de interação
com outros corpos. A segunda Lei de Newton, aplicada a cada partícula, dá

dv1
m1 = F12 (1)
dt
dv2
m2 = F21 (2)
dt
em que Fij é a notação para a força que a partícula j exerce sobre a i. Ora, pela terceira
lei de Newton,
F12 = −F21 ; (3)

somando as duas equações

dv1 dv2
m1 + m2 = F12 + F21 = 0 (4)
dt dt
ou
d
[m1 v1 (t) + m2 v2 (t)] = 0 (5)
dt
A velocidade de cada uma partículas varia, mas a grandeza

P(t) := m1 v1 (t) + m2 v2 (t) (6)

é constante, porque
d
P(t) = 0 (7)
dt
Assim, se uma das partícula tiver uma variação do seu momento, ∆p1 , a segunda
terá de ter uma variação simétrica ∆p2 = −∆p1 , pois ∆P = 0. E o que são as forças
de interação? São o uxo desta grandeza, momento linear, entre as duas partículas, ou
seja, a quantidade de momento transferida por unidade de tempo. Nesta perspetiva, a
terceira Lei de Newton surge com muita naturalidade. Se eu transro 100¿ da conta A
para a conta B , ca claro que transferi -100¿ de B para A. Do mesmo modo, o momento
que passa da partícula A para a B por unidade de tempo (F de A sobre B ) tem de ser
simétrico do momento transferido de B para A (F de B sobre A). O momento não se
cria nem se destrói: passa entre partículas por via da respetiva interação. Acontece,
precisamente, que o princípio de conservação de momento linear tem uma centralidade
em Relatividade ou em Mecânica Quântica, que o conceito de força não tem. Por isso
podemos dizer que a Terceira Lei é a maneira de exprimir este conceito fundamental da
Física na linguagem da Mecânica Newtoniana, embora possa parecer, à primeira vista,
que deduzimos a conservação de momento da terceira Lei.

2
3 Sistema de Partículas
Newton tinha perfeita consciência que um corpo não é uma partícula material. A pro-
verbial maçã que lhe terá (ou não!) caído na cabeça, trinca-se. Não se trinca uma
partícula. Mas até agora temos aplicado as Leis de Newton apenas a partículas. Con-
tudo, o nosso tempo não será perdido se usarmos o modelo de Newton para um corpo
extenso: considerá-lo como um sistema de partículas. Não se trata de dizer que Newton
era conhecedor da estrutura atómica. Apenas que a maneira de pensar num corpo com
extensão é modelizá-lo como se fosse um conjunto de partículas, com interações mútuas
e em interação com partículas de outros corpos, sendo que cada partícula se move de
acordo com as três leis de Newton.
Seja ri (t) o vetor de posição da partícula i do nosso sistema, com i = 1, 2, . . . N , e Fi
a resultante de todas as forças que atuam nela. Entre estas forças podemos distinguir:

ˆ Forças internas, que são forças exercidas pelas outras partículas do sistema que
estamos a considerar;

ˆ Forças externas, que são forças exercidas por partículas que não fazem parte do
sistema considerado.

Podemos então escrever para a resultante das forças sobre a partícula i:


(int) (ext)
X
Fi = Fij + Fi (8)
| {z }
j(6=i)
| {z }
internas resultante externa

A segunda lei, para a partícula i, toma a forma


 
dvi  X (int) (ext)
mi = Fij  + Fi , i = 1, . . . , N (9)
dt
j(6=i)

Somando sobre todas as partículas do sistema


 
dv1 dv2 dvN X X (int)
X (ext)
m1 + m2 + · · · + mN =  Fij  + Fi (10)
dt dt dt
i j(6=i) i

É fácil ver que o primeiro termo do segundo membro é nulo. As forças presentes na soma
podem agrupar-se em pares ação-reação, Fij e Fji = −Fij (o primeiro termo contribui
para a aceleração da partícula i e o segundo para a da partícula j) e a soma anula-se.
Em conclusão, usando o facto de as massas não dependerem do tempo,

d X (ext)
(m1 v1 + m2 v1 + · · · + mN vN ) = Fi = R(ext) (11)
dt
i

em que R(ext) é a resultante da forças externas.

3
Este resultado leva-nos a denir o momento total do sistema
N
X
P := m1 v1 + m2 v1 + · · · + mN vN = mi vi (12)
i=1

e a concluir
dP
= R(ext) (13)
dt
Como dissemos acima, Newton não descobriu a segunda lei observando partículas, mas
sim corpos extensos. Ora a Eq. 13 tem exatamente a forma da segunda Lei se denirmos
a velocidade do corpo constituído pelas N partículas, como

N
1 X
vcm = mi vi , (14)
M
i=1

em que M é a massa total do corpo,

N
X
M= mi , (15)
i=1

pelo que,
d dvcm
M vcm = M = R(ext) (16)
dt dt
Tal como arma a segunda lei, no segundo membro surge apenas a resultante de forças
exteriores, ou seja forças exercidas por outros corpos. A velocidade do corpo (Eq. 14) é
designada também por velocidade do Centro de Massa (CM) do sistema de partículas.
Repare-se no argumento que nos conduziu aqui:

Se assumirmos a validade da segunda lei e da terceira lei para descrever


o movimento de partículas, descobrimos que a segunda lei é válida para um
corpo (considerado como sistema de partículas), desde que identiquemos a
velocidade do corpo com o momento total, P, (soma dos momentos de todas
as partículas) dividido pela massa total:

N
P 1 X
vcm = = mi vi (17)
M M
i=1

Temos aqui presentes duas perspetivas. Poderíamos chamar perspetiva macroscópica


aquela que atribui a um corpo uma velocidade v, um momento M v, e uma força resul-
tante da interação com outros corpos R(ext) , e exprime a segunda lei da forma

dv
M = R(ext) (18)
dt

4
A segunda perspetiva, a que podemos chamar microscópica, considera o corpo como um
sistema de partículas que se movem de acordo com as Leis de Newton. Nesta perspetiva,
a velocidade macroscópica é a velocidade do CM

1 X
vcm = mi vi , (19)
M
i

a massa do corpo é a soma das massas das suas partículas,


X
M= mi (20)
i

e o momento linear do corpo é a soma dos momentos de cada partícula:


X
P := M vcm = mi vi (21)
i

A forma macroscópica da segunda lei, Eq. 18, surge como consequência da segunda e
terceira leis de Newton aplicadas a partículas. Uma observação curiosa é que Newton
não poderia ter descoberto a primeira e segunda lei na ausência da terceira, uma vez que
ele só pode intuir as suas leis da observação de corpos extensos.
Vemos agora que o tempo passado a estudar movimento de partículas não foi perdido.
No movimento mais complexo de qualquer corpo, há um ponto que tem exatamente o
mesmo movimento que o de uma partícula sujeita à soma das forças externas que atuam
no corpo: esse ponto é o centro de massa. A sua velocidade é denida pela Eq. 17. A
sua posição é facilmente obtida. Uma vez que

dri
vi = (22)
dt
e
d
mi vi = (mi ri ) (23)
dt
temos !
drcm 1 X d d 1 X
= vcm = (mi ri ) = m i ri (24)
dt M dt dt M
i i

e podemos denir
1
1 X
rcm = mi ri (25)
M
i
rcm é uma média das posições das partículas, pesada pelas respetivas massas. Tem a
propriedade fundamental de ter exatamente o mesmo movimento que uma partícula, de
massa igual à massa total do corpo, sujeita à totalidade das forças externas que atuam
no corpo.
Em suma, as principais lições desta análise:

1
Somando um vector constante a rcm obtemos um ponto que, como é óbvio, tem a mesma velocidade
que o centro de massa. Mas não há qualquer vantagem em nos afastarmos da denição da Eq. 25.

5
ˆ O momento linear de um corpo é a soma dos momentos mi vi das partículas que o
compõem;
N
X
P= mi vi . (26)
i=1

ˆ Se a resultante das forças externas que atuam no corpo for nula, o momento P é
independente do tempo, sejam quais forem as forças internas.

ˆ A conservação de momento linear toma a forma da primeira lei de Newton se


entendermos por velocidade do corpo a velocidade do seu centro de massa

P
vcm = (27)
M
pois sendo P e M constantes, o movimento do centro de massa é uniforme, vcm é
constante.

ˆ Na presença de forças externas, a variação de momento (e da velocidade do centro


de massa) tem a forma da segunda lei

dP d
= M vcm = M acm = R(ext)
dt dt

6
Energia e Trabalho
*
J. M. B. Lopes dos Santos

6 de Outubro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Um introdução à conservação de energia mecânica e ao conceito de traba-


lho.

1 Campos de Forças
Nesta nota iniciamos o estudo de grandezas conservadas começando pelo caso da ener-
gia. Embora as equações de movimento contenham toda a informação necessária para
os determinar, a existência de grandezas, funções do estado das partículas, isto é das
suas posições e/ou velocidades, que não variam no tempo, qualquer que sejam as in-
terações, permite obter resultados muito úteis, mesmo sem determinar completamente
o movimento. Mas, mais importante, estas grandezas conservadasenergia, momento
linear e momento angular, desempenham um papel central na formulação das teorias
da Relatividade (Restrita e Geral) e da Mecânica Quântica, enquanto, por exemplo, o
conceito de força, como modo privilegiado de exprimir interações, quase desaparece.
Para introduzir os conceitos de trabalho e energia, vamos considerar o caso relativa-
mente simples de movimentos em uma dimensão na presença de um campo de forças.
Já vimos vários exemplos de leis de força.

ˆ a força gravítica sobre um corpo de massa m por ação de um planeta ou estrela

mM
F = −G êr (1)
r2
o versor êr = r/r em que r é o vetor de posição do corpo, tomando como origem o
planeta ou estrela que o atrai;

*
jlsantos@fc.up.pt

1
ˆ O peso (atração gravítica na superfície da Terra)

P = −mg k̂ (2)

ˆ A força exercida por uma mola


F = −kxˆ (3)

ˆ a força de atrito cinético


F = −µc N v̂ (4)

ˆ A força de resistência do ar
F = −γv 2 v̂ (5)

As três primeiras constituem um campo de forças, as duas últimas não. O que caracteriza
um campo de forças é que a posição da partícula determina univocamente a força que se
exerce sobre ela. As forças de atrito e de resistência do ar dependem da velocidade como
tal pode acontecer a partícula sofre forças distintas na mesma posição . No início deste
1
capítulo vamos referir-nos apenas a partículas em movimento rectilíneo (1D) em campos
de forças. Genericamente tomaremos a direção do movimento como sendo o eixo dos x.
Assim a força será, F = F (x)ˆ. Nos três casos acima indicados teremos:

ˆ força gravítica sobre um corpo de massa m por ação de um planeta ou estrela

mM
F (x) = −G (x > 0) (6)
x2
(por clareza, neste caso usaremos x em vez de r eˆ
 em vez de êr );

ˆ O peso (atração gravítica na superfície da Terra)

F (x) = −mg (7)

(neste caso, F (x) é uma função constante);

ˆ A força exercida por uma mola

F (x) = −kx. (8)

2 Energias potencial e cinética


No caso particular do movimento 1D num campo de forças, a conservação de energia e as
equações de movimento são maneiras equivalentes de determinar o movimento, Noutros
casos isto não acontece, porque a conservação de energia é uma equação (energia é um
escalar) e em mais do que uma dimensão ou para mais de uma partícula as equações de
movimento expressam mais do que uma condição.
Consideremos então a seguinte armação:

1
A força de atrito cinético não depende do módulo da velocidade, mas depende do seu sentido e

direção.

2
As equações de movimento 1D, num campo de forças, podem ser obtidas da seguinte
condição: existe uma grandeza que depende da posição e velocidade, E(v, x) da forma

1
E(x(t), v(t)) = mv(t)2 + U (x(t)) (9)
2
que não varia no tempo.

Se isto for verdade, devemos ter:

d
E (v(t), x(t)) = 0. (10)
dt
Ora (regra de derivação da função composta)

dEc (v(t)) dEc dv dv


= = mv (11)
dt dv dt dt
e
dU (x(t)) dU dx dU
= = v. (12)
dt dx dt dx
Se E é constante, Eq. 10,
dv dU
mv =− v (13)
dt dx
cancelando v nos dois membros
dv dU
m =− (14)
dt dx
Comparando esta expressão com a segunda lei de Newton

ma = F (x) (15)

concluímos
dU
F (x) = − (16)
dx
Em conclusão, se
1
E(x, v) = mv 2 + U (x) (17)
2
for constante, o movimento é o de uma partícula de massa m sujeita a uma força F (x) =
−dU/dx.
O reverso também é verdadeiro. Para obter a conservação de E(x, v) a partir da
segunda lei multiplicamos a segunda lei nos dois membros por v para obter a Eq. 13

dv
mv = F (x)v (18)
dt
O primeiro membro é uma derivada temporal

d 1 dv
 
mv 2 = mv (19)
dt 2 dt

3
O segundo também é; se C(x) for uma primitiva de F (x), isto é, se F (x) for a derivada
de uma função C(x)
dC(x)
F (x) = (20)
dx
e
dC(x) dx d
F (x)v = = C (x(t)) (21)
dx dt dt
e então
d 1
 
mv 2 − C(x) = 0 (22)
dt 2
Esta lei é escrita na forma
d 1
 
mv 2 + U (x) = 0 (23)
dt 2
em que U (x) := −C(x), ou
dU
F (x) = − (24)
dx
Assim obtivemos da segunda lei

1
mv(t)2 + U (x(t)) = const. (25)
2

4
A expressão da energia cinética e as leis de Newton

A expressão da energia cinética está estreitamente relacionada com a estrutura da


segunda lei de Newton. O argumento que se segue usa derivadas parciais, mas o seu
signicado pode ser apreendido, mesmo sem seguir completamente os pormenores da
dedução.
Suponhamos que postulamos apenas que o movimento 1D num campo de forças é
determinado pela constância de uma função E(x, v), cuja expressão não conhecemos.
Vamos ver que as leis de movimento,

dv
m = F (x), (26)
dt
determinam a sua forma.
Se E (x(t), v(t)) é constante
d
E (x(t), v(t)) = 0. (27)
dt
Isso implica
∂E dx ∂E dv
+ = 0, (28)
∂x dt ∂v dt
ou
1 ∂E ∂E
a=− (29)
v ∂v ∂x
Para que isto se reduza à forma segunda lei de Newton, devemos ter

1 ∂E
=m (30)
v ∂v
Como a massa newtoniana é uma constante, concluímos que

1
E = mv 2 + const (31)
2
Mas na verdade a única condição para a constante aditiva é que não dependa de v. Se
depender apenas de x, U (x), a Eq. 30 continua válida:

1
E = mv 2 + U (x), (32)
2
Então a Eq. 29 toma a forma da segunda lei de Newton

dU
ma = − (33)
dx
em que a força é
dU
F (x) = − (34)
dx

5
2.1 Formas de Energia Potencial

A grandeza conservada
1
E(x, v) = mv 2 + U (x) (35)
2
é a energia mecânica: o primeiro termo é a energia cinética e o segundo a energia poten-
cial. Estas designações sugerem que a energia cinética é energia que se manifesta e U (x)
é apenas o potencial de se transformar em energia cinética. Na verdade, esta é apenas
a forma de um integral de movimento. Ou seja, uma função das coordenadas e veloci-
dades, cujo valor se conserva no tempo, apesar de quer x, quer v variarem. A energia
não tem outra realidade senão esta. Não é uma substância transportada pelas partículas.
É apenas uma grandeza que se pode determinar a partir do estado de movimento das
partículas. A quem estiver interessado na pergunta o que é realmente a energia, que tem
um papel tão central nas nossas vidas?, recomenda-se a leitura do capítulo 4 do primeiro
volume das Feynman Lectures on Physics. É uma excelente introdução ao conceito físico
de energia.
Mas voltemos aos nossos exemplos para determinar em cada caso a energia potencial.
Partindo da lei de força, conhecemos a derivada em ordem a x da energia potencial. Ou
seja, U (x) é qualquer primitiva de −F (x). Só pode ser determinada a menos de uma
constante aditiva.

ˆ Força harmónica:
dU
F (x) = −kx = − (36)
dx
Obtemos
1
U (x) = kx2 + const (37)
2
O ponto x=0 é o ponto de equilíbrio e o valor da constante é a energia potencial
que atribuímos (arbitrariamente) a essa posição. A escolha mais comum é U (0) = 0,
1
Uel (x) = kx2 (38)
2

ˆ Peso
F (x) := −mg (39)

Ug (x) = mgx + const. (40)

Recorde-se que de acordo com a nossa notação, x é a coordenada vertical ascen-


dente. A origem, x = 0 pode ser em qualquer plano horizontal. Se tomarmos U = 0
nesse plano, a energia potencial tem a forma

Ug (x) = mgx (41)

ˆ Força gravítica
mM
F (r) = −G (42)
r2

6
Então
dU mM
=G 2 (43)
dr r
e como
d 1 1
=− 2 (44)
dr r r
temos
mM
UG (r) = −G + const (45)
r
A escolha habitual é tomar esta constante igual a zero.

mM
UG (r) = −G (46)
r
O valor zero da energia potencial corresponde a uma distância ao corpo que cria
a campo gravítico, r → ∞. Como a força é atrativa, quando r aumenta a energia
cinética diminui; logo a energia potencial deve aumentar. Como é negativa, o seu
valor aproxima-se de zero.

2.1.1 Velocidade de escape

Como exemplo de aplicação destes conceitos, vamos ver o que é preciso para escapar à
atração gravítica da Terra. Na obra de Júlio Verne, Viagem à Lua, o autor coloca os
astronautas dentro de uma bala oca, que é disparada (na Florida!) por um super canhão.
Ignorando a resistência do ar, que velocidade teria de ter a bala para não voltar a cair
na Terra?
Usando a nossa expressão para UG (r) podemos calcular a energia da bala quando sai
do canhão:
1 1 GM m
Ei = mv 2 + UG (RT ) = mv 2 − (47)
2 2 RT
em que RT é o raio da Terra. Como a energia se conserva, a uma distância r do centro
da Terra,
1 GM m
mv 2 (r) − = Ei . (48)
2 r
Indicamos a dependência explícita da velocidade em r , porque esta equação torna clara
que a velocidade vais depender apenas de r , pois todos os outros fatores são constantes
(não dependem de t). O termo de energia cinética é positivo e o de energia potencial
é negativo; se Ei > 0, o termo de energia cinética não pode ser nulo; a bala não para
nunca e continua indenidamente a afastar-se da Terra. Se Ei < 0, existe um valor de r
para o qual a energia cinética tem de se anular, nomeadamente

GM m GM m
rc = = (49)
−Ei |Ei |
A essa distância a bala para e inicia a viagem de regresso. A condição para que escape
à atração da Terra é, pois
Ei > 0, (50)

7
Ec

Ec

Figura 1: Diagrama de energia do campo gravítico da Terra. Uma partícula de energia negativa (linha
amarela)não pode mover-se para além do ponto onde a energia potencial iguala a energia total; para r maior que
esse valor a energia cinética seria negativa. Uma partícula de energia positiva (linha verde) pode existir a
qualquer distância da Terra.

ou
2GM
v2 > = 2gRT (51)
RT
se recordamos que a aceleração da gravidade à superfície da Terra é

GM
g= . (52)
RT2

2gRT ≈ 11 km s−1
p
v > ve = (53)

Esta velocidade é designada por velocidade de escape e, como vemos, não depende da
massa do corpo em movimento. O canhão de Júlio Verne teria de disparar a bala pelo
menos com esta velocidade.
Este argumento está esquematizado no diagrama de energia da Fig. 1 A linha azul é a
energia potencial gravítica. As linhas horizontais representam as energias de mecânicas
de duas partículas; são horizontais porque a energia é constante. A diferença entre a
energia total e a energia potencial é a energia cinética, representada pelas setas verticais,
e é necessariamente positiva; uma partícula não pode existir onde a sua energia mecânica
seja inferior à potencial, pois isso implicaria uma energia cinética negativa. Se a energia
for negativa existe um valor de r onde a energia mecânica é igual à potencial e a partícula
não pode mover-se para além dessa distância. Se a energia for positiva (linha verde) a
partícula continua a afastar-se da terra indenidamente, pois max (UG ) = 0.

8
3 Teorema da energia cinética
Passamos agora a uma generalização destas noções para movimentos mais gerais, não
apenas 1D.
Na secção anterior vimos que (Eq.(11) )

dv d 1
 
mv = mv 2 (54)
dt dt 2
Isto também se aplica num contexto mais geral ao produto escalar do vetor velocidade
pelo da aceleração
2

dv 1 d d 1
 
mv · = m [v(t) · v(t)] = mv 2 (t) ,
dt 2 dt dt 2
uma vez que v 2 := v · v .
Multiplicando os dois membros da segunda lei escalarmente por v
dv (t)
m · v (t) = F (t) · v (t) (55)
dt
podemos concluir da segunda lei que

d 1
 
mv 2 (t) = F(t) · v(t) (56)
dt 2
O produto F(t) · v(t) é a taxa de variação (derivada temporal) da energia cinética. A
força F(t) transfere uma energia por unidade de tempo para a partícula F (t) · v(t) .
Se, à maneira dos físicos, pensarmos num intervalo de tempo [t, t + ∆t] com ∆t muito
pequeno (∆t → 0) , podemos escrever

∆Ec = F(t) · v(t)∆t (57)

Mas v(t)∆t é o deslocamento innitesimal da partícula, ou seja

∆Ec = F(t) · ∆r = |F (t)| |∆r| cos θ (58)

O segundo membro é o trabalho da força F(t) no deslocamento ∆r. A razão porque


imaginamos ∆t muito pequeno é que a força pode variar durante um intervalo [t, t + ∆t];
mas no limite ∆t → 0 essa variação pode ser ignorada. Para generalizar para um intervalo
nito [ti , tf ], procedemos do modo habitual: dividimos o intervalo em N intervalos mais
pequenos, somamos a Eq. 57 sobre todos esses intervalos, e no m deixamos N → ∞; ou
seja integramos:

ˆ tf ˆ tf
dEc (t)
dt = Ec (tf ) − Ec (ti ) = F(t) · v(t)dt (59)
ti dt ti
2
Aqui usamos o resultado para a derivada do produto escalar d [a(t) · b(t)] /dt = [da(t)/dt] · b(t) +
a(t) · db(t)/dt. Facilmente te convences deste resultado se exprimires os produtos escalares nas

componentes dos vetores e usares regra da derivada de um produto.

9
Figura 2: A partícula percorre a curva C e a força varia de ponto para ponto na curva. Num deslocamento
innitesimal 0 trabalho
´ é F · ∆r = F(t) · v(t)∆t. O trabalho na curva C é a soma de todos os trabalhos
innitesimais, Wif = c F(r) · dr

O segundo membro é o trabalho da força F no deslocamento da partícula no intervalo


[ti , tf ]; é um integral na variável tempo de uma função do tempo g(t) := F(t) · v(t). Mas
podemos escrevê-lo de um modo ligeiramente diferente. A cada instante t corresponde um
posição da partícula r(t). No intervalo [ti , tf ] a trajetória é uma curva C (representada
a vermelho na Fig. 2). Dividir o intervalo de tempo num grande número de intervalo
innitesimais corresponde a exprimir a curva C num grande número de deslocamentos
∆ri , em que o trabalho da força é Fi · ∆ri . O trabalho total, dado pelo integral da Eq. 59
e a soma desses trabalhos innitesimais e dene o integral ao longo da curva C
ˆ tf ˆ
F(t) · v(t)dt = F(r) · dr (60)
ti c

Chegamos assim à razão da denição de trabalho de uma força,


ˆ
Wif = F(r) · dr, (61)
c

e ao teorema da energia cinética

∆Ec = Wif . (62)

Esta equação informa-nos sobre a natureza do conceito de trabalho: é a energia trans-


ferida para um corpo por ação das forças que outros corpos exercem nele: energia em
trânsito.

3.1 Campos Conservativos

Seguidamente vamos claricar a relação entre trabalho de uma força e energia potencial.
Vamos supor que a partícula está apenas sujeita a um campo de forças F(r).

F(t) = F (r(t)) (63)

10
O teorema da energia cinética arma
ˆ
∆Ec = Wif = F(r) · dr (64)
c

Será que existe um princípio de conservação de energia mecânica, tal como em 1D? A
ser assim teria a forma
∆Ec + ∆U = 0 (65)

o que implicaria muito simplesmente


ˆ
∆U = U (rf ) − U (ri ) = − F(r) · dr (66)
c

em que C é a trajetória da partícula entre ri e rf . Por outras palavras o trabalho da


força numa curva C é menos a variação de energia potencial. Aqui surge a questão
importante. O potencial, a existir, tem um valor denido em cada ponto e a sua variação
ca univocamente denida pelas posições iniciais e nais. Mas o trabalho do campo de
forças depende em geral a curva, C, que vai do ponto inicial ao nal. Só se o segundo
membro da Eq. 66 for independente do caminho entre os pontos iniciais e nais é que
é possível denir uma função U (r) que satisfaça a Eq. 66. Para isso basta tomar um
posição arbitrária r0 como tendo U = 0, e escolher um qualquer caminho C de r0 → r e
denir ˆ
U (r) = − F(r) · dr (67)
c
Como o integral é o mesmo qualquer que seja o caminho C a função U (r) ca univo-
camente determinada. Os campos de forças que satisfazem esta condição chamam-se
campos conservativos. Para uma partícula em movimento sujeita apenas às forças
de um campo conservativo temos um princípio de conservação de energia mecânica, na
forma da Eq. 65
1
mv 2 (t) + U (r(t)) = const (68)
2

3.2 Campo gravítico é conservativo

Vamos agora ver que qualquer campo de forças radial, não apenas o campo gravítico,

F(r) = f (r)êr (69)

é conservativo.
No integral

ˆ ˆ tf ˆ tf
F(r) · dr = F (r(t)) · v(t)dt = f (r(t)) êr · v(t)dt (70)
C ti ti
a única componente da velocidade que contribui para o produto escalar é a componente
radial. Escrevendo
dr
v(t) = êr + v⊥ (71)
dt

11
em que v⊥ é ortogonal à direção radial, vem

ˆ tf ˆ tf ˆ rf
dr
F (r(t)) · v(t)dt = f (r) dt = f (r)dr (72)
ti ti dt ri

Como vemos, qualquer que seja o caminho entre ri → rf , acabamos reduzidos ao mesmo
integral. O potencial pode ser denido como
ˆ rf
U (rf ) = − f (r)dr (73)
r0

Normalmente escolhemos o zero de potencial como ocorrendo para r0 → ∞ ou seja

" ˆ rf
# "ˆ
r0
# ˆ ∞
U (rf ) = lim − f (r)dr = lim f (r)dr := f (r)dr (74)
r0 →∞ r0 r0 →∞ rf rf

Para o campo gravítico,


Mm
f (r) = −G , (75)
r2
obtemos a mesma expressão que tínhamos usado em 1D, agora válida para qualquer
movimento no campo gravítico, não apenas movimentos retilíneos,

Mm
U (r) = −G . (76)
r
Porquê esta curiosa escolha de limr→∞ U (r) = 0? Para começar, notemos que, em
geral f (r) → 0, quando a distância ao corpo que cria o campo r → ∞. Quando o corpo
se move entre dois pontos com r sucientemente grande para que possamos desprezar
f (r), o trabalho realizado pelo campo é nulo eU não varia. Isto é outra maneira de
dizer que temos de ter f (r) → 0r → ∞ para que o integral da Eq. 74 possa
quando
ser convergente. Por outro lado, com esta escolha, U (r) tem um signicado físico muito
direto. Imaginemos o corpo, parado, a uma distância r da estrela ou planeta que cria o
campo. Pretendemos, como agentes externos capazes de originar qualquer força, afastar
o corpo até r → ∞. A mínima força que temos de exercer é simétrica do campo gravítico
Mm
Fext = G êr (77)
r2
Neste processo o trabalho que realizamos sobre o nosso sistema, corpo+astro, é por isso
simétrico do trabalho (negativo) realizado pelo campo, ou seja é igual a −U (r). Por
outras palavras −U (r) é o trabalho externo necessário para separar o corpo e o astro de
uma distância r até para uma distância innita. Vemos então que para forças atrativas o
potencial U (r) é negativo, porque para realizar este processo a força externa realiza um
trabalho positivo.

12
4 Movimento em Calhas
Um exemplo importante de aplicação do princípio de conservação de energia corresponde
ao movimento sujeito apenas à ação do peso e de forças de ligação, como, por exemplo,
num plano inclinado ou numa calha de forma mais geral.
A segunda lei de Newton permite-nos escrever

ma = −mg k̂ + Fl (t) (78)

em que Fl inclui todas as forças de ligação, sejam atrito ou reacção normal. Se aplicarmos
o teorema de energia cinética.
ˆ ˆ
Ec (tf ) − Ec (ti ) = (−mg k̂) · dr + Fl (t) · dr (79)
c c
em que C é a trajetória descrita entre ti e tf . O trabalho realizado pela campo gravítico
pode ser calculado
ˆ
Wg = −mg dz = −mg (zf − zi ) = − [U (zf ) − U (zi )] (80)
c
em que a energia potencial gravítica é

U (z) := mgz. (81)

Deste modo podemos passar o trabalho do campo conservativo para o primeiro membro e
ˆ
∆ (Ec + U ) = Fl (t) · dr (82)
c
A variação de energia mecânica total é agora apenas o trabalho das forças de ligação.
O trabalho da força gravítica está no termo da variação da energia potencial. Esta
conclusão como vemos é geral. O trabalho de campos de forças conservativos pode ser
incluído na denição da energia mecânica, através do termo de energia potencial. Então
só o trabalho de outras forças pode contribuir para variar a energia mecânica, cinética
mais potencial gravítica, da partícula.
Quando o deslocamento está restrito a uma superfície, e as forças são apenas de reação
normal temosFl (t) perpendicular ao deslocamento dr e o trabalho das forças de ligação
é nulo. Nesse caso temos conservação da energia mecânica

∆ (Ec + U ) = 0. (83)

Se houver atrito cinético


ˆ ˆ tf
Fl (t) · dr = Fa (t) · v(t)dt < 0 (84)
c ti

porque as forças de atrito cinético são opostas à velocidade relativa das superfícies em
contacto e Fa (t) · v(t) < 0. Nesse caso

∆ (Ec + U ) = Wa < 0. (85)

Existe uma diminuição da energia mecânica do sistema, ou seja existe dissipação!

13
Descrição de Movimento
Lições de Mecânica

J. M. B. Lopes dos Santos*

Departamento de Fı́sica e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Uma introdução aos conceitos de velocidade e aceleração.

1 Descrição do Movimento
Há quem pense que o progresso da ciência consiste em alcançar cada vez mais respostas
seguras para as perguntas que a Humanidade espontaneamente se coloca. Na verdade,
o progresso resultou, frequentemente, de alterar as perguntas que se fazem. No nasci-
mento da ciência moderna, com Galileu, no século XVII, encontramos um exemplo disso
mesmo. A preocupação com as causas do movimento de Aristóteles e dos seus inúmeros
seguidores, é por Galileu substituı́da pelo interesse na descrição do movimento. E foi
por esta via que a a matemática passou a ser o idioma da Fı́sica.
Como podemos então descrever o movimento de um corpo? Para simplificar, va-
mos ignorar a sua extensão finita—as suas diferentes partes têm posições diferentes—, e
imaginar que podemos especificar a sua posição como se de um ponto se tratasse. Sim-
plificando ainda mais suponhamos que o nosso corpo se desloca numa linha, marcada na
Fig. 1. Como é que alguém me pode indicar a posição atual do corpo nessa linha?
Se pensarmos um pouco vemos que os pontos de uma linha não têm nome. Não são
entidades únicas e irrepetı́veis como nós: são todos iguais! Por isso para localizar os
pontos de uma linha precisamos de duas coisas:

1. Escolher uma origem: marcar um ponto na recta, relativamente ao qual vamos


definir a posição do corpo;

2. Escolher um sentido de modo a fixar de que lados da origem as coordenadas são


positivas e negativas.

*
jlsantos@fc.up.pt

1
???

Figura 1: Um corpo desloca-se neste linha. Como localizá-lo?

−1 0 1 2

Figura 2: Um referencial, réguas e relógios permitem uma descrição matemática do mo-


vimento.

Uma vez fixadas estas condições, só precisamos de réguas para medir distâncias, e relógios
para medir tempos para podermos atribuir a cada corpo em movimento uma coordenada
x em cada instante t
t 7→ x x, t ∈ R (1)
O movimento passa a ser então definido por uma função x(t). O objectivo destas
considerações é mostrar que esta especificação do movimento está associada à escolha de
um referencial, e à escolha de escalas de medida para tempos e distâncias. O referencial
pode ser determinado pela escolha de dois corpos, A e B tomados como fixos um em
relação ao outro, que definem a a linha do movimento (recta AB), a origem (por exemplo
A) e o sentido das coordenadas positivas (de A para B).
Esta descrição do movimento por uma função x(t) presta-se a uma representação
gráfica como para qualquer função: um exemplo é apresentado na Fig. 3.
Um exercı́cio útil consiste em pousar um lápis numa folha de papel e tentar mover a
ponta do lápis de modo a reproduzir o movimento representado. Se no final não tiver
obtido o desenho de uma só linha, terá falhado o exercı́cio, porque a representação gráfica
não pode ser confundida com uma trajectória! O movimento representado na Fig. 3 é

2
Figura 3: Gráfico da coordenada de uma movimento. O eixo das abcissas e de tempo.
O gráfico não representa uma trajectória!

uni-dimensional (1D): O corpo (o lápis) parte do repouso, desloca-se para a direita 3


cm, pára e inverte o movimento; desloca-se 1cm para a esquerda, pára durante cerca de
3 segundos e desloca-se de novo 1 cm para a direita, após o que termina a informação
que temos do movimento.

1.1 Deslocamento
Movimento é alteração de posição. Daı́ que um conceito fundamental seja o de deslo-
camento que não é mais que a variação de posição. A variação de uma grandeza, x, é
definida sempre como a diferença entre os seus valores, o final menos o inicial, e designada
pelo sı́mbolo ∆
∆x = x(tf ) − x(ti ) (2)
Duas notas importantes:

1. O sinal do deslocamento determina sentido (lı́quido) do movimento no intervalo


[ti , tf ]: se ∆x > 0, x(tf ) > x(ti ) e o movimento foi no sentido definido como
positivo; se ∆x < 0 o movimento foi no sentido negativo.

2. O deslocamento informa-nos sobre o resultado lı́quido do movimento no intervalo,


[ti , tf ], mas nada nos diz sobre o que se passou entre os instantes inicial e final.

Assim, se a Maria caminhar um quilómetro para norte e depois regressar ao ponto de


partida, diremos que o seu deslocamento foi nulo. À primeira vista parece um conceito
bizarro para descrever em geral um movimento. Ao fim e ao cabo a Maria caminhou
dois quilómetros. O ponto importante é que temos liberdade de dividir um intervalo de
tempo do modo que quisermos e os deslocamentos sucessivos somam-se simplesmente
para determinar o deslocamento total. Assim para uma sequência de tempos t0 , t1 , e t2

3
Figura 4: Soma de vectores 1D

∆x1 = x (t1 ) − x (t0 ) (3a)


∆x2 = x (t2 ) − x (t1 ) (3b)
∆x = x (t2 ) − x (t0 ) = ∆x1 + ∆x2 (3c)

Os deslocamentos podem ser representados vectores, segmentos unindo os pontos ini-


cial e final do deslocamento. Ora se identificámos o deslocamento com ∆x , isso implica
que, independentemente de qual é o ponto de partida, deslocamentos com o mesmo valor
de ∆x são o mesmo deslocamento. Do mesmo modo, segmentos com o mesmo compri-
mento (módulo |∆x|) e mesmo sentido (sinal de ∆x) são o mesmo vector. Não importa
pois o local onde representamos o vector. Como vemos na Fig. 4, a soma de vectores
representa, de modo muito directo, a composição de deslocamento: representamos um
vector a partir da extremidade do outro e o vector soma une a base do primeiro com a
extremidade do segundo.

1.2 Velocidade Média


Confrontados com a seguinte pergunta,

O carro A percorre 1300 metros em 40 segundos; o carro B 2100 metros em


60 segundos. Qual é o mais veloz?

irı́amos talvez calcular a velocidade média:

ˆ Carro A
∆xA x(40) − x(0)
vm = = = 32.5 m s−1 ; (4)
∆tA 40
ˆ Carro B
∆xB x(60) − x(0)
vm = = = 35 m s−1 ; (5)
∆tB 60
e concluirı́amos que B foi mais rápido. Pensemos um pouco nesta operação. Os carros
tiveram deslocamentos diferentes em tempos diferentes. Ao dividir o deslocamento pelo
intervalo de tempo, ou seja pelo número de segundos, estamos a determinar o desloca-
mento que cada carro teria feito num segundo se o seu movimento mantivesse as suas

4
x/m

2000

1000

0 40 60 t/s
20

Figura 5: O carro B é mais rápido; o declive da recta azul é superior ao da vermelha.

caracterı́sticas em todo o intervalo em que o carro se moveu. Como obtivemos desloca-


mentos médios referidos ao mesmo intervalo de tempo (a unidade) podemos compará-los
e concluir que o carro B no mesmo intervalo de tempo deslocou-se mais do que A. Assim,
para cada intervalo de tempo [ti , tf ] definimos a velocidade média, ou o deslocamento
por unidade de tempo
∆x
vm = .
∆t
Podemos representar a informação acima graficamente na Fig. 5. A leitura deste
gráfico mostra que o carro B foi, marginalmente, mais rápido. A velocidade média
vm = ∆x/∆t é a razão entre a diferença de ordenadas e a diferença de abcissas de dois
pontos da recta, ou seja o declive da recta que une dois pontos (t, x) do movimento. É
claro que o declive da recta a azul é superior ao da vermelha. Note-se, contudo, que
a velocidade média não é a tangente do ângulo com o eixo de abcissas. Os eixos tem
dimensões diferentes, escalas independentes. A razão tem dimensões L T −1 . Um ângulo
definido por duas linhas no espaço, é uma razão entre comprimentos e é adimensional;
mas neste caso a linha que representa o movimento, o gráfico da função x(t), não é uma
linha no espaço: um dos eixos do gráfico é o tempo: não se pode medir a velocidade
média no gráfico de x(t) com um transferidor!
Mas o que representam os segmentos de recta a unir os pontos iniciais e finais do
movimento? Será que podemos ler neles as posições intermédias dos carros? Se assim
for, em qualquer intervalo de tempo que tomemos entre os instantes ti = 0 e tf = 40 (60
para B) a velocidade média será a mesma pois o declive é uma caracterı́stica da recta.
Da equação de uma recta, no plano (t, x)
x(t) = mt + b (6)
x (t) − x (t1 ) m (t − t1 )
t ∈ [t1 , t2 ] : vm = = =m (7)
t − t1 t − t1
Isto é, um movimento em que o gráfico de x (t) é uma recta é um movimento uniforme:
a velocidade média é igual para qualquer intervalo de tempo. Mas é óbvio que essa não

5
x

10

2
P2
P1
t
-6 -4 -2 2 4 6

Figura 6: Dois movimentos com a mesma velocidade média no intervalo [t1 = 0, t2 = 4].

é a situação geral. Conhecer as posições em apenas dois instantes nada nos diz sobre o
que se passou entre eles. Assim no gráfico da Fig. 6 temos dois movimentos (gráficos
azul e magenta) com a mesma velocidade média no intervalo [t1 = 0, t2 = 4]; a definição
de velocidade média dá
x (P2 ) − x (P1 )
vm =
t (P2 ) − t (P1 )
e as coordenadas (t, x) em P1 e P2 são as mesmas para os dois gráficos. A recta que
passa em P1 e P2 —secante ao gráfico a azul— representa um movimento uniforme com a
mesma velocidade média que a do corpo A, cujo gráfico x(t)é a curva azul, nesse intervalo.
Por outras palavras, a secante de uma curva do gráfico de x(t), nos dois pontos (t1 , x1 ),
(t2 , x2 ) representa um movimento uniforme com a mesma velocidade média no intervalo
[t1 , t2 ].

1.3 Velocidade instantânea


Vimos que a velocidade média é sempre referida a um intervalo de tempo finito [t1 , t2 ].
Faz sentido falar na velocidade num instante? Imaginemos que tiramos uma fotografia a
uma corrida de automóveis. Se o tempo de exposição for longo a imagem dos carros ficará
indefinida, porque estes se deslocam durante o tempo de exposição. Mas se o tempo de
exposição for suficientemente curto, será impossı́vel distinguir na fotografia um carro em
movimento de um carro parado. Num instante não há deslocamento. Entre t e t, x(t)
não varia e ∆x = x(t) − x(t) = 0. Como se pode então falar na velocidade num instante?
Os gregos que levaram a geometria a um nı́vel tal, com Euclides, que mais de 2000 anos
depois ainda a estudámos, não deram uma resposta útil a esta questão. A matemática
que nos permite responder a esta questão foi descoberta (criada?) no século XVII,
independentemente por Newton e Leibniz.

6
x x x
10 10 10

8 8 8

6 6 6

4 4 4

2 2 2

t t t
-6 -4 -2 2 4 6 -6 -4 -2 2 4 6 -6 -4 -2 2 4 6
-2 -2 -2
x x
10 10

8 8

6 6

4 4

2 2

t t
-6 -4 -2 2 4 6 -6 -4 -2 2 4 6
-2 -2

Figura 7: A sequência de secantes quando t2 → t1 tem como limite a tangente à curva,


e o seu declive é a velocidade instantânea v(t1 )

Olhando para o gráfico da Fig. 6 podemos imaginar aproximar o instante final t2 do


inicial t1 . O deslocamento ∆x = x (t2 ) − x (t1 ) ficará cada vez mais pequeno; mas o
mesmo acontece com o intervalo ∆t = t2 − t1 e intuitivamente sentimos que o declive da
secante, a razão
∆x
,
∆t
em que quer o numerador que o denominador tendem para zero, terá um limite definido,
correspondente ao declive a curva limite das secantes, quando t2 → t1 , o declive da
tangente à função x(t) em t = t1 . Esse valor é a velocidade no instante t1
x (t2 ) − x (t1 ) ∆x
v (t1 ) = lim = lim = . (8)
t2 →t1 t2 − t1 ∆t→0 ∆t
O problema que confundiu os gregos antigos fica assim resolvido. Não é possı́vel a partir
do conhecimento da posição num instante t ficar a saber a velocidade de um corpo; mas
considerando intervalos de tempo cada vez mais pequenos em torno de t (∆t pode ser
positivo ou negativo) e o limite em ∆t → 0 podemos chegar a um conceito de velocidade
num instantânea, v(t) .
Se para ∆t > 0 tivermos ∆x > 0, o corpo desloca-se no sentido positivo do eixo Ox
e ∆x/∆t > 0. Se ambos forem negativos, ∆t < 0 e ∆x < 0, de modo que ∆x/∆t > 0
o sentido de movimento é o mesmo: x (tf ) < x (t1 ), mas tf é anterior a t1 . Assim se
v(t) > 0 o movimento é no sentido positivo de Ox; se v (t) < 0 no sentido oposto.
Um vez que em cada instante t podemos definir uma velocidade, t 7→ v(t), podemos,
como fizemos com a coordenada de posição, representar esta função graficamente. Mas
os gráficos de x(t) e v(t) estão relacionados. Se os representarmos com o mesmo eixo
temporal o valor no gráfico de v(t) é o declive da tangente ao gráfico de x(t) no mesmo
instante.
Na Fig. 8 representamos um movimento x(t) e dois gráficos de velocidade: consegue
ver qual deles é que corresponde ao da velocidade do movimento descrito por x(t)?

7
Figura 8: Gráfico de x(t) e dois gráficos de velocidade. Qual deles é o de velocidade do
movimento descrito por x(t)?

8
De facto é o gráfico do meio que representa a velocidade deste movimento. Se tentar-
mos imaginar a tangente à curva de x(t), enquanto variamos a coordenada de tempo,
vemos que a tangente começa horizontal (declive e velocidade nulos). A curvatura inicial
de x(t) é positiva, ou seja, à medida que t cresce a tangente roda no sentido anti-horário
e o declive e velocidade aumentam. Mas em t = 3 a tangente é de novo horizontal e a
velocidade é nula, o que não se verifica no gráfico de baixo. No intervalo entre t = 1 s
e t = 2 s o gráfico da velocidade é constante, o que implica que a função x(t) tem um
gráfico nesse intervalo que é um segmento de recta. Para t & 2 a curvatura de x(t) é
negativa, isto é, a tangente roda no sentido horário, e o seu declive (velocidade) diminui,
tornando-se negativa a partir de t = 3 s.

2 Determinar x(t) a partir de v(t)


A velocidade média foi definida como a razão entre um deslocamento (variação de coor-
denada de posição), ∆x := xf − xi e o intervalo de tempo em que ocorre, ∆t := tf − ti ,

∆x xf − xi
vm = = (9)
∆t tf − ti

É fácil resolver esta expressão em ordem a xf , a posição final

xf = xi + vm ∆t = xi + vm (tf − ti ) (10)

Suponhamos que resolvı́amos generalizar esta expressão a qualquer valor de t∈ [ti , tf ],


escrevendo
x(t) = xi + vm (t − ti ) (11)
Não é difı́cil reconhecer nesta expressão a lei do movimento uniforme, velocidade cons-
tante. Mas, obviamente, esta expressão não é válida em geral, pois a velocidade média
no intervalo [ti , t] não tem o mesmo valor que no intervalo original [ti , tf ]. A Eq. 11 só
vale se o movimento for de velocidade constante no intervalo considerado, isto é, se o
gráfico de x(t) for uma recta.
A velocidade instantânea foi definida como o limite da velocidade média quando o
intervalo ∆t → 0. Usando a notação mais comum em fı́sica

x (t + ∆t) − x(t) dx
v(t) = lim = (12)
∆t→0 ∆t dt
Como o último membro está escrito como uma fração, seria tentador escrever

dx = v(t)dt. (13)

Mas é evidente que dx/dt não é uma fração. Quer o numerador ∆x := x (t + ∆t) − x(t),
que o denominador são nulos no limite ∆t → 0, por isso o limite da razão não é a razão
dos limites. Mas os fı́sicos escrevem muitas vezes a expressão da Eq. 13: que querem
dizer?

9
ε∆ x

df
∆x
dx
∆x

Figura 9: A aproximação de Euler, f (x + ∆x) ≈ f (x) + (df /dx) ∆x corresponde a apro-


ximar gráfico de f pela tangente.

Se denotarmos por  a diferença entre a velocidade média no intervalo [t, t + ∆t] e a


velocidade instantânea em t,

x (t + ∆t) − x(t) x (t + ∆t) − x(t) dx


= − v(t) = − (14)
∆t ∆t dt
é evidente da definição de v(t), que

lim  = 0 (15)
∆t→0

Então
x (t + ∆t) − x(t)
= v(t) +  (16)
∆t
ou
x (t + ∆t) − x (t) = v(t)∆t + ∆t (17)
Se pudéssemos ignorar o último termo, terı́amos

x (t + ∆t) − x (t) = v(t)∆t (18)

que corresponde precisamente a supor que o movimento é uniforme no intervalo [t, t + ∆t]
com velocidade v(t). Ora se v(t) 6= 0,
∆t  0
lim = lim = = 0. (19)
∆t→0 v(t)∆t ∆t→0 v(t) v(t)

Por outras palavras, os dois últimos termos da Eq. 17 tendem ambos para 0 quando
∆t → 0, mas o último, ∆t é um infinitésimo de ordem superior, no sentido em a
sua razão com o segundo termo, v(t)∆t, também vai a zero. Em resumo, para ∆t

10
suficientemente pequeno o termo ∆t é desprezável comparado com o segundo termo e
podemos aproximar
x(t + ∆t) − x(t) ≈ v(t)∆t (20)
ou
x(t + ∆t) ≈ x(t) + v(t)∆t (21)
É evidente que, quando ∆t → 0, v(t)∆t → 0 e x(t + ∆t) − x(t) → 0. Mas se o que
queremos é calcular a variação ∆x, a aproximação por v(t)∆t torna-se cada vez melhor
à medida que ∆t → 0. É isto que queremos dizer ao afirmar que aproximação vale para
∆t suficientemente pequeno. A maneira como os fı́sicos traduzem esta ideia é através da
substituição do sı́mbolos ∆x ou ∆t, de uma variação finita, por dx e dt para variações
infinitesimais. O significado da Eq. 13 é na realidade a Eq. 20. Para um valor de ∆t
finito a Eq. 21—fórmula de Euler—, é uma aproximação.
Vamos ver como este conceito é útil para analisar o problema de determinar x(t) se
conhecermos v(t).

Exercı́cio 1.
Uma maneira de consolidar a compreensão da fórmula de Euler é aplicá-la num exemplo
concreto, Toma x(t) = sin(ωt),ω = 1 rad s−1 e investiga o deslocamento para intervalos à volta
de t = 1. (a) Toma ∆t = 0.5, 0.1, 0.05, 0.01 e calcula o deslocamento ∆x(t + ∆t) − x(t) usando a
expressão exata e a fórmula de Euler. Calcula o erro relativo da aproximação. (b) Repete para
valores negativos de ∆t

3 Integração como soma de variações infinitesimais


Dado v(t), podemos determinar x(t)? É óbvio que não. Suponhamos que dado v(t)
descobrı́amos uma função f (t)
x(t) = f (t) (22)
tal que
df
v(t) = (23)
dt
É evidente que o movimento
x1 (t) = a + f (t), (24)
obtido somando uma constante à nossa solução, é um movimento com a mesma veloci-
dade, v(t).
Então reformulemos a questão: se souber o valor da coordenada x(t0 ) = x0 num dado
instante, e v(t) para todo o t, consigo determinar o movimento x(t)?
Dois movimentos f (t) e g(t) que tenham a mesma velocidade v(t), só diferem de uma
constante:
df (t) dg d
v(t) = = ⇒ (f (t) − g(t)) = 0 ⇒ f (t) − g(t) = const. (25)
dt dt dt

11
É claro que só um deles pode satisfazer a condição

x(t0 ) = x0 . (26)

Como calcular então x(t)?


A fórmula de Euler, Eq.(21) diz-nos que

x(t0 + ∆t) = x(t0 ) + v(t0 )∆t (27)

e as quantidades do segundo membro são conhecidas. Mas por outro lado esta fórmula
só vale no limite em que ∆t → 0. Dividamos então o intervalo [t0 , t] num grande número,
N  1, de pequenos intervalos
t − t0
∆t = (28)
N
tal que
t = t0 + N ∆t (29)
e apliquemos a fórmula de Euler sucessivamente

x(t0 + ∆t) − x(t0 ) = v(t0 )∆t (30a)


x(t0 + 2∆t) − x(t0 + ∆t) = v(t0 + ∆t)∆t (30b)
..
. (30c)
x(t0 + N ∆t) − x(t0 + (N − 1)∆t) = v(t0 + (N − 1)∆t)∆t (30d)

A soma das variações de x em cada intervalo dá a variação total. Assim

x(t0 + N ∆t) − x(t0 ) = v(t0 )∆t + v(t0 + ∆t)∆t + · · · + v (t0 + (N − 1)∆t) ∆t


N
X −1
= v(t0 + i∆t)∆t (31)
i=0

Agora usamos o facto de esta fórmula aproximada se tornar exata no limite em que o
intervalo ∆t → 0 ou seja N → ∞. O limite desta soma é o integral da função v(t) no
intervalo [t0 , t]
N
X −1 Z t
x(t) − x(t0 ) = lim v(t0 + i∆t)∆t := v(t0 )dt0 . (32)
N →∞ t0
i=0

Um representação gráfica deste conceito está ilustrado na Fig. 10. O gráfico representa
a velocidade e o intervalo entre t0 tf foi dividido em 5 intervalos com ∆t = (tf − t0 ) /5
com tn = t0 + ∆t e n = 0, 1, . . . 4. A soma
4
X
v(t0 + n∆t)∆t (33)
n=0

12
Figura 10: Cálculo do deslocamento entre t0 e tf a partir da velocidade usando a apro-
ximação de Euler e 5 intervalos.

é a área dos rectângulos marcados a vermelho1 . Em cada intervalo estamos a assumir


uma velocidade constante, ou seja um movimento uniforme. Mas em cada instante tn
temos uma velocidade diferente. Quando o intervalo ∆t → 0 e o número de intervalos
N → ∞ o valor da soma deve convergir para a área do gráfico de v(t) que é o desloca-
mento ∆x = x(tf ) − x(t0 ). Note-se que para um valor de v(t) < 0 a contribuição será
negativa (o deslocamento nesse intervalo é no sentido negativo do eixo).
Agora que sabemos o que querem dizer estas manipulações, eis o que um fı́sico poderia
escrever:
dx
= v(t) =⇒ dx = v(t)dt (34)
dt
Z xf Z tf
dx = xf − xi = ∆x = v(t)dt (35)
xi ti
R
A forma do sı́mbolo de integral é um S deformado, e sugere a sua origem: uma soma.

4 Aceleração
Um vez compreendida a relação entre x(t) e v(t), o conceito de aceleração nada trás
de essencialmente novo. Como vimos, a velocidade resume a variação de x(t). Podemos
então, definir a aceleração como caracterizando a variação de velocidade instantânea,
v(t).
Assim a aceleração média , no intervalo [t1 , t2 ] é

v (t2 ) − v (t1 ) ∆v
am = = (36)
t2 − t1 ∆t
1
Esta “área” é o produto de uma velocidade por um tempo. Por isso as suas unidades são as de um
comprimento

13
e a aceleração instantânea

v (t2 ) − v (t1 ) dv
a(t1 ) = lim := (37)
t2 →t1 t2 − t1 dt
Numa representação gráfica de v(t), a aceleração instantânea é dada pelo declive.
Mas numa representação gráfica de x(t), a aceleração é determinada pelo modo como
varia o declive, isto é, como varia v(t). Se o declive aumenta com t, a tangente roda
no sentido anti-horário, a aceleração é positiva; se o declive diminui com t, a tangente
roda no sentido horário, a aceleração é negativa. Não é difı́cil ver que no primeiro caso
a curvatura de x(t) é positiva e no segundo negativa. Os zeros de aceleração são os
extremos de v(t). No gráfico de x(t) são pontos onde o sentido de rotação da tangente
se inverte, ou seja, pontos de inflexão.
A notação habitual para a aceleração é sugerida pela relação

d2 x
 
dv(t) d dx
a(t) = = = 2 (38)
dt dt dt dt

As dimensões da aceleração também podem


 2  ser lidas
 desta expressão. Os operadores d
designam diferenças (adimensionais) e d x = L e dt = T 2 pelo que
2


[a] = LT −2 . (39)

Obviamente, destas definições resulta também


Z t2
v(t2 ) − v(t1 ) = a(t)dt. (40)
t1

14
Colisões
Lições de Mecânica

*
J. M. B. Lopes dos Santos

5 de Novembro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Discutimos a aplicação de leis de conservação a colisões. O interesse nestes


processos não deriva apenas da sua presença constante no nosso quotidiano.
São inúmeros os eventos em que podemos identicar corpos que se movem
(quase) livres de forças, exceto quando entram em contacto próximo com
outros corpos, em geral durante tempos macroscopicamente curtos, e durante
os quais as suas velocidades variam de uma maneira que parece descontínua.
A um nível mais fundamental, podemos dizer que quase toda a informação
experimental sobre a física das partículas fundamentais e das suas intera-
ções tem origem em experiências de colisão. Partículas (eletrões, positrões,
protões, iões, etc.) são acelerados até altas velocidades nos aceleradores de
partículas, como o LHC no CERN, e são dirigidas umas contra as outras,
para ver o que acontece. Os princípios de conservação são centrais na análise
destes eventos.

1 Colisões
Quando pensamos em colisões (se não estivermos a considerar acidentes de automóveis)
é possível que nos venha à cabeça o exemplo do bilhar. As bolas deslocam-se livremente
exceto quando entram em contacto com outra bola ou com a borda da mesa. E esta ideia
de contacto está muito fortemente associada à palavra colisão.
Em Física, o conceito de colisão é um pouco mais abrangente, até porque a ideia de
contacto é essencialmente macroscópica. Mas há um aspeto dos eventos que chamamos
colisão que está bem ilustrado pelo choque de duas bolas de bilhar. No processo existe
um antes, um durante e um depois. Isto é, o processo de colisão começa num tempo

*
jlsantos@fc.up.pt

1
Figura 1: Colisão (antes)

em que os corpos ou partículas, em geral em virtude do seu afastamento, não interagem,


não exercem forças uns sobre os outros; existe um durante que é um intervalo de tempo
nito durante o qual existe uma interação, que pode ser muito complexa; e existe um
depois, em que os corpos deixam novamente de interagir1 . A análise de colisões centra-se
na relação entre o antes e depois, tempos em que as partículas estão livres de forças e
têm movimentos uniformes. Por isso prestamos tanta importância às grandezas que se
conservam no movimento. Estas são simples de calcular no antes e depois, porque não
existem interações, mas por serem conservadas têm de ter o mesmo valor antes e depois
da colisão. Como veremos há muito que podemos dizer sobre o estado nal apenas a
partir das leis de conservação, sem conhecer detalhes das interações.
Se os corpos que colidem não tiverem interações com outros, o momento total do
sistema é conservado, sem excepções. Por vezes temos situações em que há forças externas,
(ext)
ao sistema de partículas em colisão Fi 6= 0. Por exemplo um campo externo como o
campo gravítico. Contudo, se a interação tiver lugar num intervalo de tempo ∆t muito
2
pequeno, a variação de momento da partícula i devido a essa força externa

(ext)
∆pi ≈ Fi ∆t (1)

será, frequentemente, muito menor que a variação devida à colisão com as outras partí-
culas, e a aproximação de considerar o momento total conservado na colisão continua a
ser válida. Seja como for, vamos tomar o momento linear total como conservado, o que
será exato se, durante a colisão, só houver interações entre os corpos colidem.

1.1 Colisão 1D

O nosso primeiro exemplo é uma colisão entre duas partículas, de igual massa. No antes
a partícula 2 está parada e supomos que as velocidades nais das duas partículas tem
a mesma direção que a inicial da partícula 1. É o que esperamos de um colisão frontal
entre duas esferas, a que chamaremos colisão a uma dimensão (1D). O nosso objetivo é
determinar o estado nal das duas partículas a partir do conhecimento do estado inicial:
quais são as velocidades nais das duas partículas?

ˆ Antes,

v1 = v1 êx ; v2 = 0; (2)

1
Podes recordar-te de situações em que os corpos cam junto após a colisão. Nesse caso o corpo que
se move livre de forças após a colisão é o conjunto dos dois.
2
Note-se como estamos a usar a fórmula de Euler, para calcular a variação de momento, no intervalo
de tempo da interação.

2
ˆ depois
v10 = v10 êx ; v2 = v20 êx . (3)

A conservação de momento, se as massas forem iguais, dá

mv1 + 0 = mv10 + mv20 (4)

ou
v10 + v20 = v1
Mesmo neste caso muito simples o estado nal ca indeterminado. Isso não surpreende:
tendo assumido movimento apenas numa dimensão, temos duas incógnitas v10 e v20 e
apenas uma equação, a de conservação momento na direção de movimento, Ox.

1.2 Referencial do Centro de Massa

Antes de nos metermos em situações mais complicadas, vamos introduzir um método


para analisar colisões que pode parecer um pouco complicado conceptualmente, mas que
na realidade facilita muito a análise e lança muita luz sobre os resultados.
Em geral, quando especicamos as condições iniciais das partículas em colisão, o mo-
mento total do sistema não é nulo,

X
P= mi vi = M vcm 6= 0.
i

Sabemos que este valor nunca muda, nem durante a interação, nem após a mesma.
Como em mecânica newtoniana a massa total das partículas não se altera, durante todo
o processo de colisão vcm é constante. Isso permite-nos analisar a colisão num referencial
que está em movimento uniforme relativamente ao original com velocidade uS 0 = vcm , ou
seja o referencial do centro de massa. Se no referencial original, chamemos-lhe referencial
da laboratório LAB, a velocidade do CM é vcm , aos mudarmos para um referencial que
se move em LAB com esta velocidade, é claro que neste novo referencial o CM está em
repouso. Por outras palavras, o referencial do CM é aquele em que o momento total das
partículas em colisão é nulo:

P=0 no referencial do CM (5)

Quando discutimos as leis de Newton, vimos que dois referenciais com movimento re-
lativo uniforme são equivalentes no que diz respeito às leis de movimento. Mas grandezas
como posições ou velocidades não têm o mesmo valor nos dois referenciais. Se dois refe-
renciais, S S ', tiverem a mesma orientação de eixos, e a origem O0 de S 0 se mover em S
e
com velocidade us0 s , os vetores de posição de um mesmo ponto, P , nos dois referenciais
estão relacionadas por (ver Fig. 2)

rP (t) = rO0 O (t) + r0P (t) (6)

3
S’

r’P (t )

r P (t )
r o’o
o’

Figura 2: Referenciais em movimento relativo

que se lê como

posição de P em S = posição de O0 em S + posição de P em S0 (7)

Se a velocidade de O0 em S for us 0 s , obtemos com lei de transformação de velocidades,


derivando a Eq. 6,
vP = us0 s + vP0 , (8)

ou, em palavras,

velocidade de P em S = velocidade de S0 em S + velocidade de P em S0 (9)

Ao aplicar estas transformações é frequente alguma confusão com sinais, pelo que vale
a pena escrever explicitamente a mesma equação noutra forma:

velocidade de P em S 0 = velocidade de P em S − velocidade de S0 em S (10)

Repare-se que na forma da Eq. 9 as duas velocidades do segundo membro referem-se a


referenciais diferentes, enquanto na forma da Eq. 10 são velocidades medidas no mesmo
referencial.
Voltando à transformação do referencial do laboratório e do CM, se designarmos por
v a velocidade no referencial LAB e u no referencial CM,

u = v − vcm (11)

o que mais uma vez torna evidente que ucm = 0, por denição.

4
ANTES

DEPOIS

Figura 3: Colisão linear no referencial do CM

1.3 Colisão 1D no referencial do CM

A colisão linear entre duas partículas da mesma massa, no referencial do CM, é muito
simples, por que, quer antes, quer depois, as velocidades das partículas são simétricas
uma da outra, uma vez que o momento total é nulo

u2 = −u1 (12)
0
u02 = −u1 (13)

A conservação de momento total está assegurada: é nulo antes e depois da colisão.


De u01 podemos armar que tem o sentido oposto a u1 , uma vez que as partículas não
passam uma pela outra. Podemos denir

u01 := −eu1 , (14)

em que e ≥ 0, e teremos de ter, por conservação de momento linear,

u02 := −u01 = eu1 = −eu2 (15)

A energia cinética antes da colisão é

1
Ec = m u21 + u22 = mu21

(16)
2
e depois
1 h 2 2 i
Ec0 = m u01 + u02 = e2 mu21 (17)
2
Em conclusão, no referencial do CM,

Ec0 = e2 Ec (18)

Sobre e nada podemos dizer sem conhecer pormenores da interação. Esta constante
adimensional é designada por coeciente de restituição conduz à seguinte classicação
das colisões:

5
Figura 4: Colisão linear nos referenciais de Laboratório e Centro de Massa

ˆ e = 1, colisão elástica; a energia cinética conserva-se;

ˆ e < 1, colisão inelástica; a energia cinética é reduzida, Ec0 = e2 Ec ;

ˆ e = 0, colisão totalmente inelástica; a energia cinética, no referencial do CM,


desaparece totalmente, Ec0 = 0.

Voltemos agora à colisão com que começamos a discussão (Fig. 1). Está descrita no
referencial LAB uma vez que o momento total não é nulo. A velocidade do CM é

1 v
vcm = (mv + 0) =
2m 2
No referencial do CM

v
u1 = v − vcm =
2
v
u2 = 0 − vcm =−
2
Depois de uma colisão com coeciente de restituição e
v
u01 = −eu1 = −e
2
0 v
u2 = eu1 = e .
2
Regressando ao referencial LAB

v v v
v10 = u01 + vcm = −e + = (1 − e)
2 2 2
0 0 v v v
v2 = u2 + vcm = e + = (1 + e)
2 2 2
Em conclusão, a velocidades nais são

v
v10 = (1 − e)
2
0 v
v2 = (1 + e)
2

6
No caso de um colisão elástica (e = 1) a primeira partícula para e a segunda ca com
a velocidade da primeira; é óbvio que esta troca de velocidades entre duas partículas
da mesma massa conserva momento e energia cinética. Para uma colisão totalmente
inelástica (e = 0) as duas partículas cam juntas. Repare-se que,mesmo para e=0 a
energia cinética nal, no referencial LAB não é nula.

1  v 2 v2 Ec
Ec0 = 2 × m =m =
2 2 4 2

1.3.1 Massas diferentes


Estas considerações generalizam-se muito facilmente para partículas de massas diferentes.
Se for m1 a massa da partícula inicialmente em movimento, e m2 a da partícula parada,
o leitor poderá vericar facilmente os seguintes resultados:

m1
vcm = v (19)
m1 + m2
m2
u1 = v − vcm = v (20)
m1 + m2
m1
u2 = − v (21)
m1 + m2
u0 1 = −eu1 (22)
0
u 2 = −eu2 (23)

o que dá para as velocidades nais

v10 = −eu1 + vcm


 
m2 m1
= −e + v
m1 + m2 m1 + m2
m1 − em2
v (24)
m1 + m2
e

v20 = −eu2 + vcm


 
m1 m1
= e + v
m1 + m2 m1 + m2
(1 + e)m1
= v (25)
m1 + m2
Este método de mudança de referencial permite escrever os resultados por inspeção,
quase sem cálculos. Se a colisão for totalmente inelástica (e = 0) voltamos a encontrar
as partículas com a mesma velocidade nal.

m1
v10 = v20 = v (26)
m1 + m2

7
Antes

cm
1 2

Depois

1
φ

cm

Figura 5: Colisão não frontal

1.3.2 Colisões não frontais


O que chamamos colisões 1D em termos do jogo de bilhar, são colisões frontais, em que
a linha que une os centros das bolas coincide com a direção das velocidades. Se assim
não for, as bolas, após a colisão, desviam-se para outra direção.
No referencial do CM as velocidades iniciais das duas partículas são colineares (mo-
mentos somam zero) e as velocidades nais também, pela mesma razão. Mas as direções
iniciais e nais não têm de ser a mesma.
A Fig. 5 ilustra uma colisão deste tipo. A análise no referencial do CM continua a
ser muito simples. Se as velocidades iniciais forem u1 e u2 (u2 = −(m1 /m2 )u1 ), as
velocidades nais satisfazem também, u0 2 = −(m1 /m2 )u0 1 , porque o momento total
permanece nulo; farão um mesmo ângulo φ com as respectivas velocidades iniciais e
teremos, por denição do coeciente de restituição
0
u1 = e |u1 | (27)
0
u2 = e |u2 | (28)

Note-se que se variação do módulo de |u1 | for de um factor e (qualquer que ele seja),
o módulo de u2 tem de variar do mesmo factor, para que o momento linear permaneça
nulo. De novo, no referencial do CM a energia cinética nal altera-se de um factor e2
(Eq. 18). O ângulo φ não pode ser determinado pelas leis de conservação e depende dos
pormenores da interação, podendo variar no intervalo φ ∈ [0, π]. As colisões frontais
correspondem a φ = 0, ou φ = π, quando a direção do movimento não se altera (colisão
1D).
Para vermos o aspeto da colisão no referencial LAB, temos de somar a vcm a todas as
velocidades no referencial do CM. A Fig. 6 ilustra a relação entre o ângulo de desvio no
referencial do CM e o ângulo entre as velocidades nais no referencial LAB.

8
v cm

u1 1
φ v1
θ
u2
v2

2 v cm

Figura 6: Colisão não frontal

1.3.3 Denição alternativa do coeciente de restituição


No referencial do CM, em que as partículas tem velocidades u1 e u2 antes da colisão e
u0 1 e u02 depois, denimos e pela relação

0
u1 = −e |u1 | , (29)
0
u2 = −e |u2 | (30)

A velocidade da partícula 2 relativamente a 1 é

u21 = u2 − u1 (31)

Mas no referencial do CM as velocidades têm sentidos opostos. Tomando a direção de


u1 como sendo Ox , u1 = |u1 |êx e u2 = − |u2 | êx , o que signica que

|u21 | = |u1 | + |u2 |

A mesma conclusão se pode tirar para a velocidade relativa após a colisão, pois a velo-
cidade continuam a ter sentidos opostos, embora possivelmente noutra direção

0 0 0
u21 = u 1 + u 2

o que implica
0
u21 = −e |u21 | (32)

ou seja
|u021 | u0
e= = 21 (33)
|u21 | u21

9
O que é útil neste resultado é que a velocidade relativa das suas partículas é a mesma
em qualquer referencial. Em particular como

v1 = u1 + vcm (34)

v2 = u2 + vcm (35)

u21 = v2 − v1
e
|v20 − v10 |
e= (36)
|v2 − v1 |
ou seja o coeciente de restituição é a razão entre o módulo das velocidade relativas
das partículas depois e antes da colisão. Esta razão pode ser calculada em qualquer
referencial: o seu valor não depende do referencial.

1.4 Energia cinética de um sistema de partículas

Nesta secção, respondemos a suas perguntas:

a) Porque é que a energia cinética total não se conserva? Ter um coeciente de restituição
e 6= 1 não viola o princípio de conservação de energia?

b) Por que razão é que mesmo para um colisão dita totalmente inelástica, continua a
haver energia cinética no referencial do LAB? Não é possível uma colisão ser ainda
mais inelástica?

Estes resultados cam mais fáceis de compreender se estudarmos como varia a energia
cinética quando mudamos de referencial.
A energia total de um sistema de partículas é

1X
Ec = mi vi2 (37)
2
i

Para relacionarmos com a energia no referencial do CM, usamos

vi = ui + vcm (38)

que nos dá velocidade da partícula i no referencial do CM, ui . Substituindo,

1X
Ec = mi (ui + vcm ) · (ui + vcm )
2
i
1X
= mi (ui · ui + vcm · ui + ui · vcm + vcm · vcm )
2
i
1X X 1 2 X
= mi u2i + vcm · mi ui + vcm mi (39)
2 2
i i i

10
O primeiro termo é a energia cinética total
P no referencial do CM, (Ec )cm . O segundo
termo é nulo, pois i mi ui é o momento linear total no referencial do CM, que, como
vimos, é nulo (Eq. 5); o terceiro é a energia cinética de translação do corpo, isto é a
energia cinética de uma partícula de massa igual à massa do corpo e velocidade igual à
do seu CM. É aquilo que conhecemos por energia cinética do corpo, metade do produto da
sua massa pela quadrado da sua velocidade. Recordemos a discussão sobre a perspectiva
macroscópica.
Em conclusão,

1 2 1X
Ec = M vcm + mi u2i
2 2
i
1 2
= M vcm + (Ec )cm (40)
2
Ao contrário do que acontece com o momento, em que o momento do corpo M vcm
é a soma dos momentos de cada partícula, a energia cinética do corpo,
2 /2 (na
M vcm
perspectiva macroscópica) não é a a soma das energias cinéticas das suas partículas.
Juntando outras possíveis contribuições para a energia, por exemplo, energia potencial
de interação entre as partículas constituintes do corpo, podemos escrever

1 2
E = M vcm + (Ec )cm + U (41)
2
Então a energia cinética de um corpo, massa vezes velocidade (vcm ) ao quadrado sobre 2
não é a energia do corpo. Ao contrário, o momento macroscópico do corpo, massa vezes
a sua velocidade, é o seu momento total. Assim quando dois ou mais corpos colidem, a
conservação de momento linear total implica que a soma dos momentos de cada corpo é
constante. Contudo, ainda que a energia total seja conservada, tal como o momento, a
soma das energias cinéticas dos dois corpos não é a energia total do sistema. Aquilo que
chamamos energia cinética de um corpo (que não esqueçamos é um sistema de partículas)
é metade do produto da sua massa total pelo quadrado da sua velocidade, ou seja, éo
primeiro termo da Eq. 41. Por isso não há razão para que a soma das energias cinéticas
de dois corpos se conserve quando colidem. Uma colisão inelástica entre dois corpos, de
massas totais M1 e M2 , não é uma colisão que viole a conservação de energia. A energia
total é
1 1
E1 + E2 = M1 v12 + E1 + U1 + M2 v22 + E2 + U2 (42)
2 2
e conserva-se. Na colisão entre os dois corpos, v1 e v2 (que são as velocidades dos CM dos
sistemas que constituem cada corpo) alteram-se; só a velocidade do CM do sistema dos
dois corpos se conserva. Se a colisão inelástica, há transferências entre termos de energia
cinética de translação de cada corpoM1 v1 /2 e
2 M2 v22 /2 e as outras contribuições para
a energia total, E1 , E2 , U1 e U2 .
Olhemos de novo, à luz destas considerações, para a colisão entre dois corpos. Tenha-
mos em mente a seguinte distinção:

ˆ Cada corpo é por si só um sistema de partícula. O que chamamos velocidade v


do corpo é a velocidade do CM das partículas que o compoem. O seu momento

11
é o momento total do sistema e vale mv, mas a energia do corpo é a soma do
2
que chamamos energia cinética, mv /2 com os restantes termos da Eq. 41 a que
chamaremos energia interna, E
int

1
E = mv 2 + E int (43)
2
ˆ O sistema de dois corpos é ele próprio um sistema de partículas. O momento total
deste sistema (maior) é efetivamente

P = (m1 + m2 )vcm = m1 v1 + m2 v2 (44)

e não varia na colisão.

Quando os corpos não estão em interação a energia total também é a soma das energias
de cada corpo
1 1
E = m1 v12 + E1int + m2 v22 + E2int (45)
2 2
Mas, como vimos, se vcm for a velocidade do CM do sistema dos dois corpos
1 1 1
m1 v12 + m2 v22 = (m1 + m2 )vcm
2
+ (Ec )cm , (46)
2 2 2
em que (Ec )cm é a energia cinética dos dois corpos, no referencial do centro de massa do
sistema dos dois corpos. Por isso a energia total do sistema tem também a forma
1 2
E = (m1 + m2 )vcm + (Ec )cm + E1int + E2int (47)
2
Podemos nalmente ver o que é que acontece numa colisão inelástica:

ˆ A energia total E é conservada;

ˆ O termo
2 /2 também é conservado
(m1 + m2 )vcm porque o nem o momento total
(m1 + m2 )vcm nem a massa total variam.

ˆ A soma dos três termos (Ec )cm + E1int + E2int é, então, também constante, mas
nenhuma lei impede (Ec )cm de se alterar o que de facto acontece em colisões ine-
lásticas.

Se a energia (Ec )cm variar, (Ec0 )cm = e2 (Ec )cm , essa variação será simétrica da dos termos
de energia interna dos corpos.

∆ (Ec )cm = Ec0 cm − (Ec )cm = e2 − 1 (Ec )cm


 

∆ E1int + E2int = 1 − e2 (Ec )cm


 

Finalmente note-se que sempre que e < 1 há uma diminuição de energia cinética. Parte ou
a totalidade da energia cinética no referencial do CM é transferida para energia interna,
Mas não é impossível haver um aumento de (Ec )cm , isto é e > 1. Para dar um exemplo
bélico, quando uma granada, parada, explode, a energia cinética inicial do corpo é nula
e no nal os fragmentos têm energia cinética signicativa. Neste caso, e2 > 1 e a energia
cinética aumenta porque a energia interna (de natureza química neste caso) diminuiu na
1 − e2 < 0, ∆ E1int + E2int < 0).

explosão (como

12
Movimento de um sólido rígido
O conceito de velocidade angular vectorial
*
J. M. B. Lopes dos Santos

20 de Novembro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

O que é uma rotação?

1 Rotação em Torno de Eixo Fixo


Um corpo rígido é caracterizado pelo constância das distâncias entre dois quaisquer dos
seus pontos. Isso não signica, no entanto, que no movimento do corpo todos os pontos
tenham a mesma velocidade. Se isso acontecer o movimento chama-se de translação:
dri (t)
vi = =v i = 1, 2, . . . (1)
dt
e num intervalo de tempo muito pequenos (innitesimal)
∆ri = v∆t; (2)
todos os pontos têm o mesmo deslocamento.
Mas existem outros movimentos que não alteram as distâncias entre as partículas. O
mais simples é a rotação em torno de um eixo xo. Como vemos na gura 1, se existe um
eixo xo as distâncias das partículas ao eixo, em particular, não variam e as trajectórias
de todas as partículas são circulares com centro no eixo de rotação; o ângulo de rotação,
medido de uma conguração inicial, é o mesmo para todas as partículas. Com uma
origem num ponto arbitrário do eixo, uma partícula de vector de posição ri desloca-se
sobre uma trajectória circular de raio ri⊥ = ri sin ϕ , em que ϕ é o ângulo de ri com o
eixo de rotação, e a sua velocidade é
dθ dθ
vi = ri⊥ êθ = ri sin ϕ êθ (3)
dt dt
*
jlsantos@fc.up.pt

1
Figura 1: Rotação em torno de eixo xo.

A direção da velocidade é perpendicular a ri e ao eixo de rotação. Se designarmos o


versor do eixo por k̂ é fácil ver que
(4)

k̂ × ri = k̂ × rik + ri⊥ = k̂ × ri⊥ = ri sin ϕêθ

o que permite escrever



vi = k̂ × ri = ω × ri (5)
dt
Note-se que o sentido do vector ω é denido pelo sinal sinal de dθ/dt. Vemos por este
processo que a velocidade de qualquer parte de de um corpo rígido é denido por um
vector, ω , tal como no movimento de translação; só que neste caso trata-se de um vector
velocidade angular. O seu módulo é |dθ/dt| e a direcção a do eixo de rotação; o seu

sentido determina o sentido da rotação pela regra da mão direita.


Quando consideramos o movimento mais geral do sólido entre t e t + ∆t com ∆t
innitesimal podemos escolher um ponto do sólido à sorte com velocidade vO
∆rO = vO ∆t (6)
e decompor o movimento innitesimal numa translação de ∆rO = vO ∆t de todos os
pontos do sólido, seguido de um deslocamento em que o ponto O está xo. Para um
qualquer ponto do sólido
∆ri = ∆rO + ∆r0i = vO ∆t + ∆r0i (7)
Os deslocamentos ∆r0i correspondem ao movimento do sólido com o ponto O xo. Acon-
tece que num sólido o movimento mais geral com um ponto xo é uma rotação em torno
de um eixo que passa por esse ponto, como vamos ver na secção seguinte. Ou seja,
∆ri = vO ∆t + ω(t) × [ri + ∆rO − (rO + ∆rO )] ∆t
= vO ∆t + ω(t) × (ri − rO ) ∆t (8)

2
O
v cm ∆ t
∆θ ∆θ
CM CM

(a) (b)

Figura 2: O mesmo deslocamento representado como rotação pura em torno de O (a) ou translação do CM
seguido de rotação em torno do CM (b).

em que agora incluímos a possibilidade de a velocidade ω(t) também variar no tempo.,


Dividindo por ∆t (e tomando ∆t → 0 para que os termos que não consideramos desapa-
reçam) vem
vi (t) = vO (t) + ω(t) × (ri (t) − rO (t)) (9)
Vemos pois que o movimento mais geral de um corpo rígido é instantaneamente denido
por duas velocidades: uma de translação e outra de rotação. Este dois vectores, vO (t)
e ω(t), permitem determinar a velocidade de qualquer ponto do corpo, em qualquer
instante.
Um resultado importante é que a velocidade de rotação não depende do ponto O que
escolhemos: se
vP = vO + ω × (rP − rO ) (10)
podemos substituir na Eq. 9 e

vi (t) = vP (t) − ω × (rP (t) − rO (t)) + ω(t) × (ri (t) − rO (t))


= vP (t) + ω × (ri (t) − rP (t)) (11)

com o mesmo vetor de velocidade de rotação.


Como exemplo ilustrativo tomemos uma barra com duas posições em instantes próxi-
mos, representadas na Fig.(2). No caso (a) temos apenas uma rotação em torno do O já
que este ponto está xo; no caso (b) tomamos P como sendo o centro de massa, e para
o mesmo deslocamento (mesma congurações iniciais e nais) temos uma translação do
CM e uma rotação em torno dele. O deslocamento da cada partícula da barra é para (a)

vi ∆t = (ω × ri ) ∆t (12)

em que ri é o vetor de posição com origem em O e, ao mesmo tempo (b)

vi ∆t = vcm ∆t + ω × r0i ∆t (13)




em que r0i = ri − rcm é o vetor de posição com origem no centro de massa. Como se vê
na gura, o ângulo e o eixo de rotação são iguais ou seja a velocidade angular é a mesma
nestas duas descrições.

3
2 Rotação Geral de um Sólido
Na secção anterior armámos que o movimento mais geral de um sólido com um ponto xo
é uma rotação em torno de um eixo. Aqui vamos apresentar uma prova dessa armação.
Podemos pensar no movimento de um corpo com um ponto xo do seguinte modo.
O ponto xo e mais três pontos em direções ortogonais denem um sistema de eixos
ortogonal. No movimento os pontos de vetor de posição êi , i = x, y, z (ou seja os pontos
sobre os eixos à distância de uma unidade da origem) movem-se como êi → êi (t); a
origem mantém-se xa. Para que as distâncias entre estes quatro pontos não se alterem,
o sistema de eixos denido por êx (t), êy (t), êz (t) continua ortogonal, e estes três vectores
mantêm o comprimento unitário. Basta pensar que o sólido são três varas juntas numa
extremidade e perpendiculares entre si. Se o sólido é rígido, as três varas permanecem
perpendiculares e com comprimentos invariantes.
Então o movimento de qualquer ponto do sólido é simplesmente

ri (t) = xi (t)êx (0) + yi (t)êy (0) + zi (t)êz (0)


= xi (0)êx (t) + yi (0)êy (t) + zi (0)êz (t) (14)

porque as coordenadas de qualquer ponto do sólido em relação ao sistema de eixos móvel


mantêm-se constantes. Daqui decorre
dri (t) dêx (t) dêy (t) dêz (t)
= xi (0) + yi (0) + zi (0) (15)
dt dt dt dt
Derivando em ordem ao tempo a relação

êi (t) · êi (t) = 1 (16)

obtemos
dêi (t)
2 · êi (t) = 0. (17)
dt
O vector dêx (t)/dt só tem componentes segundo y e e z pois é ortogonal a êx (t) (produto
escalar nulo) e podemos escrever
dêx (t)
= αêy (t) − βêz (t) = [αêz (t) + βêy (t)] × êx (18)
dt
Os coecientes α e β podem depender do tempo, mas, para não carregar a notação,
deixamos isso implícito.
Temos equações semelhantes para os outros versores
dêy (t)
= γêz (t) − δêx (t) = [γêx (t) + δêz (t)] × êy (t) (19)
dt

dêz (t)
= ηêx (t) − ρêy (t) = [ηêy (t) + ρêx (t)] × êz (t) (20)
dt

4
Por outro lado, podemos derivar as relações
êx (t) · êy (t) = 0 (21a)
êx (t) · êz (t) = 0 (21b)
êy (t) · êz (t) = 0, (21c)
pelo que
dêx (t) dêy (t)
· êy (t) + êx (t) · =0 (22a)
dt dt
dêx (t) dêz (t)
· êz (t) + êx (t) · =0 (22b)
dt dt
dêy (t) dêz (t)
· êz (t) + êy (t) · = 0; (22c)
dt dt
Usando as Eqs. 18 a 20 obtemos
α−δ =0 (23a)
−β + η = 0 (23b)
γ−ρ=0 (23c)
e
dêx (t)
= [αêz (t) + βêy (t)] × êx (t) (24a)
dt
dêy (t)
= [γêx (t) + αêz (t)] × êy (t) (24b)
dt
dêz (t)
= [βêy (t) + γêx (t)] × êz (t). (24c)
dt
. Nesta forma, no segundo membro a constante que multiplica cada versor (α, β ou γ)é
a mesma, nas três equações. Usando o facto de o produto vectorial de um vector por ele
próprio ser nulo, podemos escrever estas expressões de um modo mais simples
dêi (t)
= ω(t) × êi i = x, y, z (25)
dt
em ω(t) := γêx (t) + βêy (t) + αêz (t) é o vector velocidade angular instantânea de rotação.
Mas então
dr dêx (t) dêy (t) dêz (t)
= x(0) + y(0) + z(0)
dt dt dt dt
= ω(t) × [x(0)êx (t) + y(0)êy (t) + z(0)êz (t)]
= ω(t) × r(t) (26)
Esta é a expressão da velocidade de um ponto do sólido num movimento em que há um
ponto xo. Note-se que para um ponto com vector de posição paralelo a ω a velocidade
é nula: a direção de ω é a do eixo instantâneo de rotação.

5
Momento Angular
Grandeza conservada

*
J. M. B. Lopes dos Santos

20 de Novembro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Introdução ao conceito de momento angular e sua relação com o movimento


de rotação de sólidos.

1. Movimento em campo de forças central

A força gravítica é o exemplo paradigmático do que chamamos um campo de forças


central. Na órbita de um planeta em torno de uma estrela, ou de um satélite em torno
da Terra, um dos corpos tem uma massa muito maior que o outro. Isso signica que o
seu centro quase coincide com o centro de massa do sistema. Por essa razão, é uma boa
aproximação supor que esse corpo (a estrela ou a Terra) está em repouso, e estudar o
movimento do corpo de menor massa no campo gravítico de forças,

Mm
F (r) = −G êr , (1)
r2
tomado a origem como o centro do corpo de massa mais elevada. Um campo de forças
central mais geral tem a forma
F (r) = f (r) êr (2)

em que êr é o versor do raio vector de posição do corpo.


A direção radial da força implica direção da aceleração é também a de êr
f (r)
a= êr (3)
m
que é a mesma do vector de posição

r = rêr . (4)

*
jlsantos@fc.up.pt

1
(Não confundir a Eq. 3, com aceleração centrípeta; não estamos restritos a órbitas circu-
lares).
O paralelismo entre r e a implica que

r × ma = r×F = 0 (5)

pois vectores com a mesma direção têm produto vetorial nulo. Por isso

dv
r×m =0 (6)
dt
O primeiro membro pode ser escrito como uma derivada :
1

d dr dv
(r × mv) = × mv + r × m (7)
dt dt dt
dv
= v × mv + r × m (8)
dt
dv
=r×m (9)
dt
Para qualquer força central, então, obtemos uma lei de conservação para uma grandeza
vectorial,
d
(r × mv) = 0. (10)
dt
O produto ` := r × mv = r × p designa-se por momento angular. O momento angular
é conservado no caso de movimento num campo de forças central. É importante referir
que a denição de ` requer a especicação de uma origem, pois envolve o vector r. Se
denirmos o momento angular com uma origem que não seja o centro de campo de forças
ele deixa de ser constante.

1.1. Movimento de duas partículas

Como preparação para o caso geral de N partículas, consideremos o caso de um sistema


isolado com apenas duas. As leis de Newton dizem

ma1 = F12 (11)

ma2 = F21 = −F12 . (12)

Se calcularmos, como acima, o produto vectorial r × ma, que é a derivada temporal do


momento angular,

d
r1 × ma1 = `1 = r1 × F12 (13)
dt
d
r2 × ma2 = `2 = r2 × F21 = − (r2 × F12 ) , (14)
dt
1
As componentes do produto vectorial são somas de produtos de componentes. Aplicando a regra de
derivação de uma produto a cada termos, obtém-se imediatamente que d [a(t) × b(t)] /dt = da(t)/dt×
b(t) + a(t) × db(t)/dt.

2
Figura 1: Forças de interação entre partículas; (a) atractiva; (b) repulsiva; (c) permitida pela terceira lei mas
incompatível com a conservação e momento angular.

vemos que o momento angular da cada partícula varia. Mas somando as duas equações

d
(`1 + `2 ) = (r1 − r2 ) × F12 (15)
dt
O vector (r1 − r2 ) é o vector que liga as posições da partícula 2 e 1; é o vector de posição
de 1 relativamente a 2. Se a força de interação entre as duas partículas for colinear com
este vector, ou seja seja uma força atractiva ou repulsiva

F12 = f (r1 , r2 ) ê12 (16)

em que ê12 é o versor da direcção 2 → 1,


r1 − r2
ê12 := (17)
|r1 − r2 |
decorre que
d
(`1 + `2 ) = 0 (18)
dt
pois c × d = 0 para dois quaisquer vectores c e d paralelos. Quando formulámos a
terceira lei apenas exigimos F12 = −F21 . Vimos atrás que essa terceira lei era a expressão
Newtoniana de um princípio geral, que transcende o âmbito da Física Newtoniana, que é
o da conservação de momento linear. Agora encontramos uma situação semelhante. Em
Física Newtoniana o momento angular total de duas partículas isoladas (que só interagem
uma com a outra) conserva-se se as forças de interação forem colineares com a linha que
une as posições das partículas. Na realidade, a conservação de momento angular é uma

lei da Física com âmbito muito mais geral do que o da Mecânica Newtoniana; neste
contexto toma a forma desta condição sobre as forças de interação. Daqui em diante
suporemos sempre que as forças de interação são deste tipo, ou seja, colineares com o
vector de posição relativa das partículas (atrativas ou repulsivas).

3
1.2. Sistema de N partículas

Podemos agora generalizar para qualquer sistema de partículas i = 1, . . . , N . Como


zemos para o momento linear separamos as forças internas e externas
 
X
mi ai =  Fij  + Fext
i (19)
j(6=i)
 
d X
ri × mi ai = `i =  ri × Fij  + ri × Fext
i (20)
dt
j(6=i)

Agora somamos para obter a equação para o Momento angular total

X d d X dL
`i = `i = (21)
dt dt dt
i i

e  
dL  X X
= ri × Fij  + ri × Fext
i (22)
dt
i,j(i6=j) i

Tal como no caso de duas partículas, levando em conta que Fij = −Fji , vemos que
na dupla soma sobre as partículas do sistema podemos agrupar pares de termos que se
cancelam desde que as forças sejam ou atractivas ou repulsivas (colineares com a linha
que une as partículas em interação) .

ri × Fij + rj × Fji = (ri − rj ) × Fij = 0 (23)

O resultado é que as interações entre as partículas do sistema não podem alterar o


momento angular total. Fica

dL X
= ri × Fext
i =N (24)
dt
i

O termo do segundo membro é o torque das forças externas sobre o sistema:


X
N := ri × Fext
i (25)
i

Convém reparar no paralelismo entre as equações de movimento dos momentos linear e


angular

dP X
=R= Fext
i (26)
dt
i
dL X
=N= ri × Fext
i (27)
dt
i

Em ambos os casos temos:

4
a) um grandeza vectorial conservada no sentido em só pode variar por acção de interações
externas;

b) Quer P quer L são a soma dos momentos lineares (pi ) e momentos angulares (`i ) de
cada partícula do sistema;

c) as interações externas exprimem-se por dois vetore: a resultante das forças externas
no caso de momento linear,
X
R= Fext
i , (28)
i
e o torque externo no caso do momento angular,

X
N= ri × Fext
i . (29)
i

d) as equações de movimento têm a mesma forma.

2. Exemplos

2.1. Movimento rectilíneo

Para que não que a ideia que o momento angular só existe em sistemas em rotação,
consideremos uma partícula em movimento rectilíneo uniforme:

v(t) = vû (30)

em que û é um vector constante. A coordenada de posição será

r(t) = vtû + r0 (31)

Calculemos o momento angular

`(t) = r(t) × mv(t) = (vtû + r0 ) × (mvû) (32)

= r0 × mvû (33)

Se a origem estiver sobre a trajectória, r0 será paralelo a û e `(t) = 0. Se não estiver, o


vector r0 terá uma componente perpendicular a û e outra paralela, r0 = r0k + r0⊥ e

`(t) = r0⊥ × (mvû) (34)

e este valor é constante,


d`i
=0 (35)
dt
|`(t)| = mvr0⊥ (36)

A direção do momento angular é perpendicular ao plano denido por r0 e v , e o respetivo


sentido está ilustrado na Fig. 3. Uma pessoa de pé na origem, se quiser seguir com o

5
v (t )
r (t )
r (t )
v (t )
r
r
O

Figura 2: Geometria do momento angular para uma trajectória rectlínea.

Figura 3: Sentido do momento angular.

olhar a partícula 1, terá de rodar para a sua direita, no sentido horário. É como se a
partícula 1 rodasse em relação a si no sentido horário: o momento angular aponta da
cabeça para os pés. No caso da partícula 2, a aparente rotação da partícula é no sentido
anti-horário e o momento angular aponta dos pés para a cabeça. Se a linha do movimento
da partícula passar pela sua posição o momento angular é nulo.
Para um movimento uniforme o torque da força é nulo, porque a força é nula. Se o
movimento for rectlíneo e não uniforme

v(t) = v(t)û (37)

ds
r(t) = s (t) û + r0 , v(t) = , (38)
dt
dv(t)
F(t) = m û (39)
dt

6
obtemos
`(t) = r0⊥ × (mv(t)û) (40)

e
d`(t) dv(t)
= r0⊥ × m û = r0⊥ × F (41)
dt dt
O segundo membro é o torque da força

N = r × F = r0⊥ × F (42)

pois F tem a direção de û e r0k × F = 0.

2.2. Movimento circular

Tal como é possível, mas pouco sensato, descrever um movimento circular com uma ori-
gem que não corresponde ao centro da trajectória, também é possível, mas sem vantagens,
usar na denição do momento angular uma origem diferente do centro da trajectória. As-
sim, para evitar complicações sem qualquer interesse, vejamos qual é o momento angular
de uma partícula em movimento circular usando coordenadas polares com origem o centro
da trajetória:
dθ(t)
v(t) = r êθ = rω(t)êθ (43)
dt
r(t) = rêr . (44)

Facilmente concluímos que êr × êθ = k̂ := êz em que z é a coordenada normal ao plano
Oxy .
` (t) = mr2 ω(t)êz (45)

Se a rotação é no sentido anti-horário ω>0eo sentido de `é o de êz ; se o sentido da


rotação for horário, ω <0 e o sentido de `éo de menos êz . Derivando em ordem ao
tempo

d` (t) dω(t)
= mr2 êz (46)
dt dt
d2 θ(t)
= mr2 êz (47)
dt2
Para um movimento circular variado (r constante, v variável), a aceleração pode ser dada
em coordenadas polares
2
d2 θ(t)


a = −r êr + r êθ (48)
dt dt2
e a força
2
d2 θ(t)


F = −mr êr + mr êθ (49)
dt dt2
A força tem uma componente paralela ao vector de posição, a força centrípeta, que não

7
Figura 4: Torque no movimento circular.

contribui para o torque, e uma componente tangencial que dá um torque

d2 θ(t)
 
N = r × Fθ = r × mr êθ (50)
dt2
d2 θ(t)
= r × mr (êr × êθ ) (51)
dt2
d2 θ(t) d` (t)
= mr2 2
êz = (52)
dt dt
Como se vê nestes exemplos, no movimento de uma partícula usar momento linear e forças
ou momento angular e torque é uma questão de conveniência. A equação de movimento
do momento angular e a segunda lei para uma partícula são equivalentes. Mas no caso de
um sistema de partículas, como por exemplo um sólido, já não é assim. Embora continue
a ser verdade que estes princípios se tenham deduzido das leis de Newton aplicadas
individualmente a cada partícula do sistema, não há maneira nenhuma de obter

dL
=N (53)
dt
a partir de
dP
=R (54)
dt
Nem sequer é possível determinar N apenas a partir do conhecimento de R, uma vez que
na denição de N a contribuição de cada força depende da posição da partícula a que
está aplicada
X
N= ri × Fext
i (55)
i
uma informação totalmente ausente na determinação de R
X
R= Fext
i (56)
i

Por esta razão as duas Eqs. 53 e 54 são realmente independentes. Um novo exemplo
pode ajudar a compreender esta ideia.

8
F1
F1 F2 F1

CM CM CM

(a) (b) (c) F2


F2

Figura 5: Três situações para mostrar que a resultante (R) e o torque (N) externos são grandezas
independentes: (a) R 6= 0,N =0;(b) R = 0,N 6= 0; (c) R 6=0 e N 6= 0.

2.3. Haltere

A Fig.(5) ilustra três situações possíveis para um sólido muito simples: duas esferas
ligada por uma vara rígida de massa muito menor do que a das esferas. As forças F1
e F2 estão aplicadas a cada uma das esferas, mas não podemos calcular as respetivas
acelerações independentemente, porque a vara rígida mantém a distância entre as esferas
xa. Por exemplo, no caso (b) as esferas não podem ter acelerações nas direções das
respetivas forças externas, pois isso implicaria um aumento das distância entre elas. Por
outras palavras a vara exerce forças nas esferas que na realidade são forças de ligação.
Mas como são forças internas ao sólido, não afetam nem o momento linear total nem
o momento angular total. Vamos usar centro de massa como ponto de referência para
cálculo do momento angular e do torque.

ˆ No caso (a), a resultante R é diferente de zero mas o torque é nulo: as forças são
iguais mas os vetores de posição em relação ao CM são simétricos (r2 = −r1 ).

R = F1 + F2 = 2F1 (57)

N = r1 × F1 + r2 × F2 = r1 × F1 + (−r1 ) × F1 = 0 (58)

As equações de movimento dão (M = 2m)

dP dvCM
=M 2F1 (59)
dt dt
dL d d
= m r1 × v1 + r2 × v2 = m [r1 × (v1 − v2 )] = 0 (60)
dt dt dt

ˆ No caso (b) temos resultante nula, F2 = −F1 , e torque não nulo

R = F1 + F2 = F1 + (−F1 ) = 0 (61)

N = r1 × F1 + r2 × F2 = r1 × F1 + (−r1 ) × (−F1 ) = 2r1 × F1 (62)

9
Figura 6: Escolha de eixos para um sólido em rotação

dP dvCM
=M =0 (63)
dt dt
dL d
= m [r1 × (v1 − v2 )] = 2r1 × F1 (64)
dt dt

No caso (c) temos resultante não nula e torque não nulo, pois F1 > F2 ,

R = F1 + F2 = F1 6= 0 (65)

N = r1 × F1 + r2 × F2 = r1 × F1 + (−r1 ) × F2 ) = r1 × (F1 − F2 ) 6= 0 (66)

O valor da resultante R determina a aceleração do CM do sistema. Mas isso não suciente


para conhecer o seu movimento. As esferas podem ter também um movimento de rotação
em torno do CM e, como vamos ver a seguir, esse movimento é determinado pelo torque
N, que não pode ser calculado a partir de R. Para uma partícula, as interações com
o exterior resumem-se ao cálculo da resultante. Para um sólido rígido, precisamos de
as caracterizar também pelo torque externo que é independente da resultante. Duas
grandezas vetoriais, R e N, são sucientes para caracterizar toda a inuência exterior
num sólido rígido, como veremos a seguir, quando relacionarmos o momento angular de
um sólido com a sua velocidade angular, ω.

3. Momento Angular dos Sólidos

3.1. Anel

Para discutir a relação entre momento angular e velocidade angular, vamos usar a geo-
metria da gura 6. Tomamos a origem sempre no eixo de rotação e usamos coordenadas

10
polares no plano normal ao eixo, (r, θ), complementadas com a coordenada z para a
direção do eixo de rotação.
Comecemos por exemplos simples: um anel de raio R e massa M que roda em torno de
um eixo que passa no seu centro e é perpendicular ao plano do anel. Vimos na descrição
do movimento dos sólidos que a velocidade de cada ponto do anel tem a forma

vi = ω × ri (67)

em que o vector velocidade angular ω tem a direção do eixo de rotação e o sentido dado
pela regra da mão direita. Como

dθ dθ
ω= k̂ = êz (68)
dt dt
e
r = Rêr (69)

vi = ωR (êz × êr ) = ωRêθ (70)

O momento angular

`i = ri × mvi = mi R2 ω (êr × êθ ) = mi R2 ωêz (71)

As partículas têm todas a mesma trajectória circular e momento angular na mesma


direção. O momento angular total do anel é
! !
X X X
2 2
L= mi R ωêz = mi R = mi R2 ω (72)
i i i
L = Iω (73)

em que I, o momento de inércia do anel, é

I = M R2 . (74)

A equação é sugestiva. Recordemos que o momento linear total de um sistema de partí-


culas
P = M vcm (75)

O movimento de rotação é caracterizado por um outro vetores, a velocidade angular, ω;


neste caso a relação entre com o momento angular é simples,

L = Iω. (76)

Note-se a correspondência

P ←→ L (77)

vcm ←→ ω (78)

M ←→ I (79)

a que podemos acrescentar


R ←→ N (80)

O papel do momento de inércia no caso da rotação do sólido é o da massa no caso do


movimento de translação.

11
3.2. Disco

Se em vez do anel tivermos um disco, também de raio R e massa M , a diferença é que


há partículas a uma distância r do eixo desde r = 0 até r = R.

ri = ri êr (81)

`i = ri × mvi = mi ri2 ω (êr × êθ ) = mi ri2 ωêz (82)


!
X X
2 2
L= mi ri ωêz = mi ri ω. (83)
i i
Tudo ca idêntico, apenas muda o valor do momento de inércia,
X
I= mi ri2 (84)
i

No apêndice A mostramos que


1
I = M R2 (85)
2
O fator extra de 1/2 relativamente ao caso do anel traduz a existência de massa a dis-
tâncias do eixo variáveis de 0 até R, ao contrário do anel em que toda a massa está à
mesma distância R do eixo. Quanto mais distante está uma partícula do eixo, maior a
sua contribuição para o momento angular total.

3.3. Sólidos

A relação mais geral entre a velocidade angular e o momento angular nem sempre se
reduz à forma simples

L = Iω (86)

Leω nem sequer têm necessariamente a mesma direção. De um modo geral com a nossa
escolha de eixos,

ω = ωêz (87)

ri = ri⊥ êr + zi êz (88)

vi = ω × ri = ωri⊥ (êz × êr ) = ωri⊥ êθ (89)

No cálculo da velocidade o termo de ri paralelo a êz não contribui pois êz × êz = 0. O
momento angular da partícula i

`i = mi rik êz + ri⊥ êr × (ωri⊥ êθ )
2
= mi rik ri⊥ ω (êz × êθ ) + mi ri⊥ ω (êr × êθ )
2
= −mi rik ri⊥ ωêr + mi ri⊥ ωêz (90)

Quando somarmos sobre todos as partículas, o primeiro termo é complicado de calcular


pois o vector êr depende da posição da partícula. Seja como for, o resultado será um vetor

12
perpendicular a eixo de rotação. O segundo termo dá-nos a componente do momento
angular paralela a ω
Lz = Iω (91)

em que
X
2
I= mi ri⊥ , (92)
i

sendo
2
ri⊥ a distância de cada partícula ao eixo de rotação. Não vamos nunca considerar
casos em que tenhamos de levar em conta a componente de L normal a ω. No caso
importante de sólidos de revolução a rodar em torno do eixo de simetria, essa componente
é sempre zero. A razão é simples. Como existe simetria de rotação em torno do eixo,
todas as direções perpendiculares são equivalentes. Daí que nenhuma possa ser escolhida
como a direção do momento angular normal ao eixo. A primeiro termo do segundo
membro da Eq. 90 soma zero:

X
mi rik ri⊥ êr = 0. (93)
i

Com esta ressalva, nos exemplos que vamos estudar teremos a seguinte relação entre
os vetores momento angular, L, e velocidade angular, ω , L = Iω , e podemos escrever as
equações de movimento para um sólido na forma

dP dvCM
=M =R (94)
dt dt
dL dω
=I =N (95)
dt dt
Em conclusão: o movimento geral de um sólido rígido é caracterizado por dois vetores,
vCM e ω a velocidade angular; as suas variações no tempo dependem apenas de intera-
ções com o exterior, totalmente caracterizadas por dois vetores, a resultante e o torque
externos.

3.3.1. Exemplo: Movimento de Precessão

O vídeo do Youtube Gyroscope https://www.youtube.com/watch?v=cquvA_IpEsA ilus-


tra muito bem um aspecto contra-intuitivo do movimento de sólidos em rotação. Quando
o disco do giroscópio roda rapidamente, este não tomba se o seu eixo for apoiado por
uma extremidade sobre uma superfície horizontal. Em vez disso, o eixo de rotação roda
ele próprio em torno da direção vertical, mantendo um ângulo ϕ xo com a mesma:
movimento de precessão (ver o vídeo).
O estudo do movimento de um sólido em rotação em torno de um ponto xo, sujeito ao
peso, é um problema de mecânica complexo e uma análise completa está fora do âmbito
deste curso. Além do movimento de precessão ilustrado no vídeo acima referido, o ângulo
ϕ do eixo de rotação com a vertical, em geral, oscila entre dois limites, num movimento
chamado de nutação. Mas mesmo a análise simplicada que se segue é esclarecedora sobre
fenómeno da precessão. Envolve duas aproximações principais. Por um lado, supomos

13
Figura 7: Um giroscópio: o disco de contorno amarelo pode ser colocado em rápida rotação em torno do seu
eixo. Quando isso acontece o eixo equlibra-se com grande facilidade e se deslocado da vertical roda em torno da
direção vertical.

que a velocidade angular de rotação em torno do eixo é muito superior à velocidade


angular de precessão do eixo em torno da vertical. Quando o eixo precessa, ω já não
está, em rigor, na direção do eixo de simetria, como se este estivesse xo; ω tem uma
direção ligeiramente afastada desse eixo, porque ele mesmo roda lentamente em torno
da vertical. Mas quando a velocidade angular de precessão do eixo em torno da vertical
é muito menor que a de rotação do sólido em torno do eixo a aproximação é razoável.
Neste caso podemos supor que o momento angular tem a a direção do eixo de simetria
de rotação e de ω
L = Iω. (96)

A equação de movimento permite estudar a variação de L e vai mostrar que este precessa
em torno da vertical.
A segunda aproximação tem a ver com as condições iniciais. Nas demonstrações habi-
tuais da precessão começa-se por xar a posição do eixo (velocidade de precessão nula);
quando o eixo é libertado, inicia a precessão. Um análise mais cuidada mostra que, se
partir do repouso, o eixo cai inicialmente na direção esperada intuitivamente: no plano
denido pelo eixo de rotação e pela vertical; mas imediatamente recupera, começa pre-
cessar e o ângulo ϕ com a vertical oscila entre dois valores limite. Nas condições da
demonstração, em que a velocidade angular ω é muito superior à velocidade angular de
precessão, essa oscilação (nutação) tem uma amplitude muito pequena.
Nestas condições vamos ver o que a equação de movimento,

dL
= N, (97)
dt
nos diz sobre a maneira como L e o eixo de rotação variam.

14
Supomos que a extremidade do eixo pousada na superfície é o ponto xo do sólido.
Fica conveniente usar esse ponto para calcular, quer o momento angular, quer o torque
externo. A razão é que forças de reacão e ou atrito da superfície dão torque nulo pois
estão a aplicadas no ponto que estamos a usar como origem,

r×Fsup = 0 r = 0. (98)

em que Fsup é a força exercida pela superfície no eixo do giroscópio. O resultado é que
o único torque é o do peso do giroscópio
X
N= ri × (mi g) (99)
i

em que g = −gêz é a aceleração da gravidade. Ora como este campo gravítico é em


excelente aproximação o mesmo para todas as partículas do giroscópio,
!
X
N= mi ri × g = M Rcm × g
i
P
em que Rcm = ( i mi ri ) /M é a posição do centro de massa do giroscópio relativamente
ao ponto de contacto com o solo. Assim

N = Rcm × P (100)

em que P é o peso do giroscópio. Esta é uma situação (rara) em que podemos exprimir
o torque à custa da resultante das forças externas. Suponhamos então que o eixo está
vertical. Como o CM está sobre o eixo de revolução do giroscópio, Rcm = Rcm êz e o
torque é nulo. Nesse caso o momento angular é constante

dL
=0 (101)
dt
Porque o giroscópio está a rodar em torno de um eixo de simetria

L = Iω (102)

e

I =0 (103)
dt
A velocidade angular mantém-se constante.
Contudo, se o eixo não estiver vertical, o torque externo, acima calculado, Rcm × P,
deixa de ser nulo. Atentando na gura 8, e usando as coordenadas com versores êr , êθ e
êz , com êz na direção vertical e êr na direção da projeção da posição do centro de massa
do pião no plano Oxy , vemos que

P = −M gêz (104)

Rcm = R⊥ êr + Rk êz (105)

L = L⊥ êr + Lk êz (106)

15
Figura 8: Precessão do giroscópio. O eixo de rotação roda em torno da vertical, mantendo um ângulo ϕ xo
com a mesma.

Note-se Lk e L⊥ são positivos para a rotação no sentido indicado na gura (anti-horário);


se a rotação for no sentido oposto, o momento angular aponta no sentido oposto e Lk ,
L⊥ < 0 (ver gura 9; recorde-se que êr é determinado pela posição do CM).


N = Rcm × P = R⊥ êr + Rk êz × (−M gêz )
= −M gR⊥ (êr × êz ) = M gR⊥ êθ (107)

Se usarmos a equação de movimento

dL
= M gR⊥ (êz × êr ) (108)
dt
A primeira coisa a notar nesta equação é que dL/dt é perpendicular a L pois é perpen-
dicular que a êz que a êr . Isso implica que

d dL
(L · L) = 2L · =0 (109)
dt dt
ou seja o módulo de L é constante. A variação do momento tem a direção de N

∆L = N∆t (∆t → 0) (110)

Se projectarmos os vectores no plano Oxy (vista de cima), vemos que o momento angular,
um vector de módulo constante, vai-se deslocar num circunferência de raio L⊥ = L sin ϕ
, em que ϕ é o ângulo do eixo de rotação com a vertical. O ângulo que L roda num
intervalo ∆t é
∆L N
∆θ = = ∆t (∆t → 0) (111)
L⊥ L⊥

16
(a) Vectores do movimento do giroscópio no plano (b) Vectores do movimento do giroscópio
Oxy ; Lz > 0 projectados no plano Oxy . Lz < 0

Figura 9: Variação do momento angular e torque no movimento do giroscópio.

o que dá uma velocidade angular de precessão

dθ N M gdcm sin ϕ M gdcm


= = = (112)
dt L⊥ L sin ϕ Iω
em que dcm é a distância do CM ao ponto xo.
Como se vê na Fig. 9, o sentido da precessão é determinado pelo sentido de L e deω.
A condição para que a velocidade angular de precessão seja pequena comparada com ωé
dθ/dt
1 (113)
ω
ou
M gdcm
1 (114)
Iω 2
Como iremos ver na próxima secção, esta é uma razão entre uma energia potencial
gravítica (numerador) e a energia cinética de rotação (denominador).

4. Energia Mecânica e Energia Interna.

Para um corpo cujo centro de massa tem velocidade vcm e com velocidade angular de
rotação ω, a velocidade de uma partícula com vector de posição ri relativamente ao
centro de massa, é
vi = vcm + ω × ri (115)

Quando nos referimos a partículas neste contexto, não estamos na realidade a falar dos
átomos ou moléculas que compõem o corpo. As partículas em Mecânica Newtoniana
são volumes sucientemente pequenos para que possamos atribuir-lhe uma posição e
uma velocidade local, mas mesmo assim macroscópicos, contendo um enorme número
de átomos. Por exemplo, se estamos a estudar o movimento de uma esfera de 10 cm
de diâmetro, um volume de 10−3 mm de diâmetro tem uma posição na esfera, ri , bem

17
denida (com uma incerteza na posição da ordem de 10−5 vezes menor que o diâmetro
da esfera), mas mesmo assim tem um diâmetro da ordem de 104 Å, podendo conter cerca
de 10
12 átomos. Todas as grandezas na Eq. 115 são macroscópicas. Podemos aceder-lhes

e medi-las sem necessidade de instrumentos que permitam resolver a estrutura atómica


da matéria. Aquilo que poderíamos escrever para a velocidade do átomo i supondo que
o conceitos de posição e velocidade se continuam a aplicar ao nível atómico seria

(at) (at)
vi = vcm + ω × ri + ui (116)

em que o último termo traduz o movimento desordenado do átomos depois de subtraído


o movimento coordenado que se exprime macroscopicamente através das velocidades de
rotação e de translação. O momento total é
 
(at)
X
P= mi vcm + ω × ri + ui (117)
i

Como a denição de vcm é precisamente

(at)
X
M vcm = mi vi (118)
i

decorre imediatamente que


 
(at)
X
mi ω × ri + ui =0 (119)
i

e
P = M vcm (120)

Para o momento angular total


h  i
(at)
X
L= mi ri × vcm + ω × ri + ui (121)
i

ri , são medidos com


O primeiro termo é zero pois os vectores de posição, origem no CM,
e o vetor de posição do CM, rcm = 0 , uma vez que o CM é a origem:
" #
X
mi ri × vcm = M rcm × vcm = 0. (122)
i

O segundo termo
X
L(rot) = mi [ri × (ω × ri )] (123)
i
foi o que calculamos na secção 3. Ao contrário do que acontece com o momento linear,
não há qualquer garantia que o último termo seja nulo
h i
(at)
X
L(at) = mi ri × ui (124)
i

18
Por vezes não é. Uma esfera de ferro magnetizada, mesmo em repouso, com ω = 0, tem
um momento angular macroscópico. Para alterar a orientação do eixo que une os pólos
magnéticos, é necessário um torque externo.
(at) Mas em muitas situações, L(at) = 0 ou
pelo menos L  L(rot) e a lei de conservação de momento angular (válida para o
momento angular total) é aplicável apenas ao termo associado velocidade macroscópica
de rotação.
Mas no caso da energia cinética, a situação é totalmente diferente. Usando a Eq. 116

1X 
(at) 2

Ec = mi vcm + ω × ri + ui
2
i
1X 
(at)
 
(at)

= mi vcm + ω × ri + ui · vcm + ω × ri + ui
2
i
1X 2
X 
(at)

= mi vcm + vcm · m i ω × r i + ui
2
i i
1X X (at)
+ mi (ω × ri ) · (ω × ri ) + mi (ω × ri ) · ui
2
i i
1X 
(at)
2
+ mi ui (125)
2
i

Esta é uma expressão complicada, com muitos termos, mas felizmente há vários que se
anulam e os restantes interpretam-se com facilidade.
O termo
1X 2 1 2
mi vcm = M vcm (126)
2 2
i

é a energia cinética de translação. Os outros termos que envolvem vcm são nulos; ui =
(at)
ω ×ri +ui é a velocidade de partícula i no referencial do centro de massa e a velocidade
do centro de massa no seu referencial é nula
  X
(at)
X
mi ω × ri + ui = mi ui = M ucm = 0. (127)
i i

Seguidamente temos um termo associado à velocidade de rotação ω que iremos estudar


já de seguida:
1X
Ec(rot) = mi (ω × ri ) · (ω × ri ) . (128)
2
i

O termo seguinte, que também envolve ω , é interessante. Usando a propriedade de


rotação do produto triplo (a × b) · c = (b × c) .a

 
(at) (at)
X X
mi (ω × ri ) · ui = mi ri × ui ·ω
i i
(at)
=L ·ω (129)

19
Se também desprezarmos este termo, tomando L(at) = 0, como referido acima, obtemos
um resultado muito simples

Ec = Ec(trans) + Ec(rot) + Ec(at) (130)

que

1
Ec(trans) = M vcm
2
(131)
2
1X
Ec(rot) = mi (ω × ri ) · (ω × ri ) (132)
2
i
1X 
(at) 2

Ec(at) = mi ui (133)
2
i

Os dois primeiros termos estão caracterizados pelas velocidades macroscópicas do corpo,


vcm e ω; o último termo é de natureza microscópica. Mas este termo é em geral muito
mais importante que os restantes. Se quisermos a energia total do nosso sistema de
partículas temos ainda que adicionar as energias potenciais associadas às interações entre
as partículas. A energia total será

1X 
(at) 2

E = Ec(trans) + Ec(rot) + mi ui + V (at) (134)
2
i

Os dois últimos termos designam-se por energia interna e o seu estudo é assunto da
Termodinâmica e Física Estatística. Em resumo

1 2 1X
E = M vcm + mi (ω × ri ) · (ω × ri ) + U (135)
2 2
i

A parte da energia associada ao movimento macroscópico são os dois primeiros termos


e fazem parte do estudo da Mecânica. Mas o princípio da conservação de energia só se
aplica à totalidade de energia. Quando dois corpos interagem (por exemplo numa colisão)
a energia total E1 + E2 é conservada, mas a soma das energias mecânicas (rotação e
translação de cada corpo) pode variar se a soma das energia internas U1 + U2 variar. Por
isso não existe nenhum princípio geral de conservação de energia cinética de rotação e
translação.

4.1. Energia cinética de rotação

A expressão da energia cinética de rotação pode simplicar-se com a nossa escolha de


eixos que usámos na secção 3

ω = ωêz (136)

ri = ri⊥ êr + zi êz (137)

vi = ω × ri = ωri⊥ (êz × êr ) = ωri⊥ êθ (138)

20
Grandeza Translação Rotação

velocidade v ω
momento conservado P L
força/torque R N
dP dL
Eq. Movimento
dt = R dt = N
massa/momento inércia m I
momento e velocidade P = mv L = Iω
Energia mv 2 /2 Iω 2 /2
Tabela 1: Paralelismo das denições e leis para movimento de translação e rotação

(ω × ri )· (ω × ri ) = ω 2 ri⊥
2
(139)

1X
Ec(rot) = mi (ω × ri ) · (ω × ri )
2
i
!
1 X
= mi ri⊥ ω 2
2
2
i
1
= Iω 2 (140)
2
Este expressão é geral mas tem de ser usada com cuidado se a direção do vector ω variar
no sólido. Nesse caso varia também o eixo êz , variam as distâncias de cada partícula
ao eixo,
2
ri⊥ porque este já não é o mesmo: o momento de inércia I depende do eixo
2
considerado . Nas situações em que o eixo de rotação do sólido não varia, I é constante.
Para terminar, podemos completar o paralelismo existente entre as equações relativas
à translação e à rotação, resumido na Tabela 1.

A. Momentos de inércia

O momento de inércia de um disco pode ser calculado imaginando que a massa entre r
e ∆r , no limite ∆r → 0 é um anel de raio ri

∆I = ∆mr2 (141)

A área desse anel é


π (ri + ∆r)2 − πri2 = 2πri ∆r + π∆ri2 (142)

e a massa
2πri ∆r + π∆r2
 
ri ∆r
∆m = M =M 2 2+ 2 ∆r (143)
πR2 R R
2
Exemplo: o momento de inércia de uma barra de comprimento l relativamente a um eixo perpendicular
à barra que passe no seu centro é I = ml2 /12; mas se o eixo passar numa extremidade I = ml2 /3. A
partículas da barra estão mais longe (em média) do eixo no segundo caso e por isso I é maior.

21
No limite em que ∆r/R  1 podemos escrever

ri
∆m = 2M ∆r (144)
R2
e a soma sobre todos os anéis ca

X X ri 2M X 3
I= ri2 ∆m = ri2 2M 2
∆r = 2 ri ∆r
R R
i i i

Podemos agora tomar o limite ∆r → 0, ao mesmo tempo que o número de anéis tende
para innito, e o resultado é o integral

R
1 R4
Z
2M 1
I= 2 r3 dr = 2M 2
= M R2 (145)
R 0 R 4 2

Para sólidos com geometria simples é possível calcular os momentos de inércia de modo
semelhante:

ˆ Cilindro homogéneo, massa M, raio R, rotação em torno do eixo de revolução:

1
I = M R2 (146)
2

ˆ Esfera de massa M, raio R, rotação em torno de qualquer eixo pelo seu centro:

2
I = M R2 (147)
5

ˆ Paralelípedo de massa M secção Lx ,Ly e altura Lz a rodar em torno do eixo Oz


pelo seu centro:
M 2
Lx + L2y

I= (148)
12
ˆ Barra linear de massa M, comprimento L em relação a um eixo perpendicular à
mesma que passe no seu ponto médio:

1
I= M L2 (149)
12

22
Rolamento
Lições de Mecânica

J. M. B. Lopes dos Santos*

27 de Novembro de 2021

Departamento de Fı́sica e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Estudamos a fı́sica do movimento de um sólido com simetria de revolução,


como uma roda, sobre uma superfı́cie plana com atrito. A principal lição é
que o atrito pode ser estático, mesmo quando o sólido se desloca. Chama-se a
este movimento rolamento, e a sua importância tecnológica data da invenção
da roda.

1 Estático ou cinético?
Quem já tentou caminhar sobre o gelo sabe como é difı́cil deslocar-se. A razão é simples.
A superfı́cie do gelo funde sob a pressão dos nossos pés e, na realidade, estamos a tentar
caminhar sobre uma camada fina (filme) de lı́quido, quase sem atrito. O resultado é
que não conseguimos do chão uma força de atrito, com componente horizontal, que nos
acelere numa dada direção paralela à superfı́cie. Onde estamos, ficamos!
Com sapatos bem aderentes (sola de borracha, por exemplo), sobre uma superfı́cie
de madeira, terra, cimento ou tijoleira, não temos qualquer dificuldade. É claramente a
força de atrito que nos permite variar a velocidade no plano da superficie, em módulo
e/ou em direção.
Mas se pensarmos bem, vemos que o pé não escorrega, em geral, sobre o solo. Ao
caminhar normalmente, pousamos primeiro o calcanhar, depois a planta e, antes de
retirar o pé do chão, a ponta. Mas desde que pousamos o calcanhar (ou outra parte do
pé) até ao momento em que sai do chão, não se desloca; ou seja o atrito é estático, pois
não há movimento relativo das duas superfı́cies. Basta caminhar com alguma atenção e
verificamos que nenhuma parte do sapato escorrega sobre o solo.
Quando um corpo, como uma roda, um disco, ou uma esfera (um sólido de revolução)
se desloca sobre uma superfı́cie sólida pode fazê-lo também sem escorregar. Isso acontece
*
jlsantos@fc.up.pt

1
Figura 1: Pés a caminhar, https://www.clipartbay.com/clipart/49115

Figura 2: Quatro posições do rolamento de um disco numa superfı́cie horizontal. Os pontos marcam as posições
sucessivas, em intervalos de tempo constantes, de um ponto da periferia do disco. Note-se a que velocidade desse
ponto na direção paralela a superfı́cie é nula quando ele toca o solo.

se o corpo combinar um movimento de translação do seu eixo de revolução com um


movimento de rotação em torno desse eixo, de tal modo que o ponto (esfera) ou linha
(cilindro) que em cada instante toca o solo, tenha velocidade nula. Esse movimento
chama-se rolamento.

2 Rolamento
Passemos a uma compreensão mais quantitativa do conceito de rolamento. Se O for um
ponto no eixo de rotação com velocidade vO , rP o vetor de posição de um ponto do
sólido relativamente a O, e ω o vetor velocidade angular, a velocidade de P é

vP = vO + ω × r P . (1)

2
y

ω
z
x

vo

rP
Figura 3: Cilindro (ou esfera) em rolamento

Se atentarmos à Figura 3 e à escolha de eixos aı́ representada, vemos que

ω = −ωêz (2)
vO = vêx (3)
rp = −rêy (4)

é que ω > 0 é a velocidade angular (em módulo), vO a velocidade de translação do CM


da roda e rP (de módulo r) o vetor de posição do ponto da superfı́cie da mesma que está
em contacto com o solo. Então

vP = vêx + (ωr) (êz × êy )


= (v − ωr)êx (5)

A rotação dá uma contribuição para a velocidade de P que é na direção negativa do eixo
Ox. Como vemos, a condição para o cilindro não escorregue é

v = ωr, condição de rolamento (6)

Note-se que podı́amos para o mesmo movimento ter definido

ω = ωêz (7)

Para o sentido de rotação da roda da Figura 3 terı́amos ω < 0 e a condição de rolamento


que obterı́amos seria
v = −ωr (8)
o que descreve extamente a mesma situação, pois, com esta escolha, o valor de ω é o
simétrico da escolha anterior.

3
Em conclusão, o rolamento é definido pela Eq. 6 e, se esta se verificar, o sólido em
movimento não escorrega sobre a superficie e o atrito é estático. Ora, no caso de atrito
estático, apenas podemos dizer que o valor da força é Fa < Fmax = µN ou seja, para a
componente x da força de atrito,
− µN < Fx < µN (9)
A questão é, então, quanto vale esta força?

2.1 Força de atrito em rolamento horizontal


Suponhamos que temos a roda a rolar sobre um superfı́cie horizontal, sujeita apenas à
força de atrito estático com o solo, que escrevemos como
Fa = Fa êx (10)
Repare-se que não precisamos de saber o sentido de Fa ; será para a direita se Fa > 0
e para a esquerda se Fa < 0 . Se a aceleração do CM for a = aêx , a segunda Lei de
Newton diz
dv
ma = m = Fa (11)
dt
Mas a força de atrito também tem um torque relativamente ao CM de
Ta = rp × Fa = −rFa (êy × êx ) = rFa êz (12)
O torque do peso relativamente ao CM é nulo. Uma vez que o momento angular do
sólido relativamente ao CM é
L = Iω = −Iωêz (13)
em que I é o momento de inércia relativamente ao eixo de revolução. Assim,
dL
= Ta (14)
dt
dá

−I = rFa (15)
dt
Obtivemos duas equações de movimento, ambas envolvendo a força de atrito:
dv
m = Fa (16)
dt

I = −rFa . (17)
dt
Se se verificar a condição de rolamento, v = ωr, podemos usar ω = v/r na segunda
equação e obter
dv
m = Fa (18)
dt
I dv
= −Fa (19)
r2 dt

4
Como tanto m como I/r2 são positivos e não podemos ter dv/dt ao mesmo tempo
positivo e negativo, só existe uma solução para estas equações: Fa = 0 e

Fa = 0 (20)
dv
=0 (21)
dt

=0 (22)
dt
A força de atrito é nula e as velocidades de translação e rotação são constantes. A roda
não pára!

2.2 Equações de movimento com torque e força externa


As considerações anteriores aplicam-se para um rolamento horizontal, quando só existem
forças (no plano do movimento) com origem no atrito. Mas generalizam-se muito facil-
mente se existirem outras forças e/ou torques externos sobre a roda. Porque estamos
apenas interessados em rolamento ao longo de uma linha reta, escolhemos a direção de
translação como sendo Ox e o torque na direção de Oz:

Fe = Fe êx
T = Te êz

Os valores de Fe e Te podem ou não estar relacionados. Por exemplo, uma força aplicada
ao eixo de rotação dará um torque nulo. Mas se for aplicada acima do eixo dará um
torque com Te < 0 (que contribuirá para aumentar ω. Mas se for aplicada abaixo do
eixo dará Te > 0. O eixo de transmissão de um carro poderá aplicar à roda um torque
e uma força independentes um do outro. Um motor que faz girar um eixo a que está
presa a roda, aplica um torque à mesma.
Seja como for, as equações são facéis de escrever

dv
m = Fa + Fe (23)
dt

−I = rFa + Te (24)
dt
De novo, se a condição de rolamento se verificar,
dv
m = Fa + Fe (25)
dt
I dv Te
− 2 = Fa + (26)
r dt r
Subtraindo as duas equações membro a membro, eliminamos a força de atrito e
 
I dv Te
m+ 2 = Fe − (27)
r dt r

5
y
x
T
z

R Fa

R
Fa
Figura 4: Esquema de um carro, visto de cima, com duas rodas motrizes. Sobre cada roda motriz temo a força
de atrito com o solo, o torque transmitido pelo eixo e a reação do resto do carro sobre as rodas R.

ou  
dv 1 Te
= Fe − (28)
dt m (1 + I/mr2 ) r
e
 
dv 1 Te
Fa = m − Fe = Fe − − Fe
dt (1 + I/mr2 ) r
 
1 I Te
=− Fe + (29)
(1 + I/mr2 ) mr2 r

Conhecendo a força externa e o torque, podemos calcular quer a força de atrito, quer a
aceleração do CM do corpo.

2.2.1 Tração de automóvel


Estamos agora em condições de analisar como acelera ou trava um automóvel.
O esquema da figura 4 mostra um automóvel com duas rodas motrizes, visto de cima.
Por simplicidade, vamos supor que as forças de atrito nas rodas não motrizes (da frente)
podem ser ignoradas. Sabemos que não são nulas, um vez que, se se mantiver a condição

6
de rolamento, estas rodas tem de variar a sua velocidade angular e o torque para o fazer
deve vir das forças de atrito. Mas esse pormenor fica como exercı́cio.
Olhemos para as rodas de trás e fixemos a nossa atenção nas forças com componente
horizontal. Em cada uma das rodas motrizes teremos:
ˆ A força de atrito, exercida pelo solo, F = Fa êx ;

ˆ A reação do eixo à força que a roda exerce no eixo, R = Rêx ;


O corpo do carro é acelerado pelas forças que as rodas motrizes exercem nele. Logo,
sobre a roda tem de existir o respetivo par, R. Além destas forças, temos o torque que
o veio do motor exerce em cada roda, T = Tm êz ; na literatura automóvel esse torque é
referido como o binário do motor. Sendo assim a equações de movimento de cada roda,
de massa mr , são
dv
mr = Fa + R (30)
dt

−I = rFa + Tm (31)
dt
Por outro lado, se for mc a massa do carro, sem as rodas motrizes, a sua aceleração é
dada pela segunda lei de Newton
dv
mc = −2R (32)
dt
(o fator 2 vem de serem duas rodas; o sinal menos de estas forças serem opostas às
exercidas nas rodas). Substituindo na primeira equação,
dv mc dv
mr = Fa − (33)
dt 2 dt

−I = rFa + Tm (34)
dt
ou
 mc  dv
mr + = Fa (35)
2 dt
I dω Tm
− = Fa + (36)
r dt r
Finalmente temos a condição de rolamento se as rodas não derraparem, v = ωr, e
 mc  dv
mr + = Fa (37)
2 dt
I dv Tm
− 2 = Fa + (38)
r dt r
Se eliminarmos a força de atrito, obtemos
 
mc I dv Tm
mr + + 2 =− (39)
2 r dt r

7
e  mc  dv (mr + mc /2) Tm
Fa = mr + =− (40)
2 dt mr + mc /2 + I/r2 r
Como a massa total do carro é M = mc + 2mr , podemos multiplicar a primeira equação
por 2,  
2I dv 2Tm
M+ 2 =− (41)
r dt r
e
M Tm
Fa = − (42)
M + 2I/r2 r
Estas equações mostram que a aceleração do carro é proporcional ao binário do motor
B = 2Tm e que a força de atrito é também determinada por esse binário. Para o
carro acelerar na direção Ox, o valor de Tm será, naturalmente, negativo, conforme
representado no figura. Note-se que, substituindo a Eq.42 na Eq.41, obtém-se
dv
2Fa = M (43)
dt
que é, nada mais nada menos, a segunda lei de Newton: a resultante das forças externas
(2Fa ) é igual à massa vezes a aceleração do CM. Mas nessa forma é pouco útil pois não
permite saber qual é a força de atrito. A análise completa mostra que essa força e a
aceleração do carro são, como esperado, determinadas pelo binário do motor.
A condição de rolamento só pode existir se a força de atrito estático, aqui calculada,
não superar o seu valor máximo,
µM g
Fa < . (44)
4
Uma vez que há 4 rodas assentes no chão, a reação normal do chão em cada roda é
1/4 do peso total do carro. Se este limite for violado pela expressão obtida na Eq. 42,
passará a haver escorregamento e o atrito será do tipo cinético.

8
Força centrífuga e de Coriolis
Referenciais em rotação mútua


J. M. B. Lopes dos Santos

24 de Novembro de 2018

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Dois observadores que aplicam as leis de Newton em dois referenciais em


rotação mútua vericam que as forças que medem são diferentes. A diferença
são forças universais que atuam em todos os corpos e são proporcionais à
respectivas massas: forças inerciais.

1 Referenciais em rotação mútua


Para simplicidade de representação consideremos dois referenciais que partilham o eixo
Oz e a origem, mas em que o referencial S0 tem uma velocidade de rotação ω = ωêz
no referencial S. Como se vê na Figura (1) a relação entre os versores de cada um dos
sistemas de eixos é:

ê0x = cos (ωt) êx + sin (ωt) êy (1a)

ê0y = − sin (ωt) êx + cos (ωt) êy (1b)

ê0z = êz (1c)

Para inverter estas relações, basta-nos substituir ω → −ω : se o sistema S0 está rodado


de um ângulo ωt em relação a S, é claro que S está rodado de −ωt em relação a S0:

êx = cos (ωt) ê0x − sin (ωt) ê0y (2a)

êy = sin (ωt) ê0x + cos (ωt) ê0y (2b)

êz = ê0z (2c)


jlsantos@fc.up.pt

1
y’ y

^
ey
^e’ ^e’ x’
y x
ωt

^
ex x

Figura 1: Relação entre os eixos de dois referenciais em rotação mútua

Estas equações suscitam a seguinte questão: quais são os versores que são dependentes
do tempo?
Nas Eqs. (1) parece claro que são os versores de S0; mas na Eq. (2) são os de S.
Curiosamente, as duas respostas estão correctas, mas em referenciais diferentes. Por
ê0x , ê0y , ê0z S0

denição, em S {êx , êy , êz } são xos e dependem do tempo. Em temos o
inverso. Isso obriga-nos a distinguir desde já o cálculo de variações e derivadas temporais
nos dois referenciais. Por exemplo, a variação temporal do versor ê0x .

d 0
ê = −ω sin (ωt) êx + ω cos (ωt) êy (3a)
dt x S

d 0
ê =0 (3b)
dt x S 0
em que usamos a notação
d 0

dt x S(S 0 )
signicar que estamos a medir variações no referencial S(S 0 ).
Este ponto é de certo modo óbvio, mas importante no que se segue. Note-se que não
estamos apenas a exprimir o mesmo vector em dois sistemas de eixos diferentes. Podemos
projectar o vector do primeiro membro em qualquer dos sistemas de eixos. Em S

d 0
ê = −ω sin (ωt) êx + ω cos (ωt) êy (4a)
dt x S

d 0
ê = 0êx + 0êy (4b)
dt x 0 S

2
e em S0, usando ê0y = − sin (ωt) êx + cos (ωt) êy ,


d 0
ê = ωê0y (5a)
dt x S

d 0
ê = 0ê0x + 0ê0y (5b)
dt x 0 S

A conclusão clara é que os vectores são diferentes,



d 0 d 0
ê 6= êx . (6)
dt x S dt S 0

Esta diferença vai-nos dar a lei de transformação da velocidade de uma partícula entre
os dois referenciais.
Suponhamos um ponto P com o respectivo vector de posição expresso em qualquer
dos sistemas de eixos.

rP = xêx + yêy + zêz ; (7)

= x0 ê0x + y 0 ê0y + z 0 ê0z (8)

A velocidade da partícula em S é

dx dy dz
vP |S = êx + êy + êz ; (9)
dt dt dt
e em S0
dx0 0 dy 0 0 dz 0 0
vP |S 0 = êx + êy + ê (10)
dt dt dt z
Para relacionarmos as duas velocidades, notemos que também é verdade que

dx0 0 dy 0 0 dz 0 0
vP |S = êx + êy + ê
dt dt dt z
dê0 dê0y dê0
+ x0 x + y 0 + z0 z . (11)
dt dt dt
Os termos da primeira linha são vP | S 0 . Para a segunda linha, usando as Eqs. (2) e (4),
obtemos

dê0x
= ωê0y
dt
dê0y
= −ωê0 x
dt
dê0z
=0
dt

3
Não por acaso, existe uma maneira simples de resumir estas três equações:

dê0x
= ω ê0z × ê0x = ω × ê0x

dt
dê0y
= ω ê0z × ê0y = ω × ê0y

dt
dê0z
= ω ê0z × ê0z = ω × ê0z = 0

dt
Estas equações já foram obtidas no texto Velocidade Angular secção 2, quando discu-
timos a rotação de um sólido, com qualquer velocidade angular ω. Vimos que para um
sistema de eixos xo no sólido (Eq. 30)

dê0i (t)
= ω(t) × ê0i i = x, y, z (12)
dt
Com este resultado, o segundo termo da Eq. (11) ca

vP |S = vP |S 0 + ω × x0 ê0x + y 0 ê0y + z 0 ê0z


 

= vP |S 0 + ω × rP (13)

Este é o resultado fundamental desta secção,

vP |S = vP |S 0 + ω × rP (14)

em que ω é a velocidade angular de S 0 em S. Esta é a lei de transformação de velocidades


entre os dois referenciais, escrita numa forma que é válida para qualquer ω. O vector rP é
o mesmo vetor nos dois referenciais embora possa ser expresso em diferentes componentes,
em qualquer dos sistemas de eixos, de acordo com as Eqs. 7 e 8.
Esta equação de transformação de velocidades deve ser comparada com a que se obtêm
para referenciais com velocidade uniforme relativa

vP |S = vP |S 0 + VS 0 :S (15)

0
que VS 0 :S é a velocidade do referencial S no referencial S , isto é, a velocidade em S de
0
qualquer ponto em repouso em S . A Eq. 14, tem exactamente a mesma forma, excepto
que cada ponto em repouso em S0 tem uma velocidade diferente em S, dada por ω×r
(Fig 2).
Se revisitarmos este argumento, vemos que ele se aplica a qualquer vector, não apenas
ao vector de posição. Isto é, se

A = xêx + yêy + zêz


= x0 ê0x + y 0 ê0y + z 0 ê0z (16)

temos
d d
A = A + ω × A (17)
dt S dt S 0
Por vezes, como A porque pode ser qualquer vector, escreve-se esta equação como uma
relação entre os operadores de derivação,

d (. . . ) d
= + ω × (. . . ) . (18)
dt S dt S 0

4
y’ y ωxr
P

u
v x’
ωt

Figura 2: O ponto P tem velocidade u em S 0 . A sua velocidade em S é v = u + ω × r, a soma de u com a


velocidade local do referencial S 0 em S.

2 A relação entre acelerações


No caso de referenciais em rotação mútua, mesmo que a velocidade angular seja constante,
a aceleração nos dois referenciais é distinta. Para ver isso importa considerar as denições
de aceleração nos dois sistemas.
Como vimos que as velocidades de uma partícula em S e S0 são diferentes, vamos usar
temporariamente a seguinte notação,

v = v|S (19)

u = v|S 0 (20)

de onde decorre que (Eq. (14))


v =u+ω×r (21)

Ora, as acelerações, nos dois referenciais, são



d
a|S = v (22)
dt S

d
a|S 0 = u . (23)
dt S 0
Então,

d d
a|S = v = (u + ω × r)
dt S dt S

d d
= u + (ω × r)
dt S dt S

5
Para obter a aceleração em S0, usamos a Eq. 17, aplicada aos dois termos

d d
u = u + ω × u,
dt S dt S 0
e
d d
(ω × r) = (ω × r) + ω × (ω × r)

dt S dt S0
Para uma velocidade angular constante (único caso que vamos considerar)

d d
(ω × r) = ω × r = ω × u

dt S0 dt S 0
e assim
a|S = a|S 0 + 2(ω × u) + ω × (ω × r) (24)

Com uma derivação exatamente idêntica, podemos concluir

a|S 0 = a|S + 2(−ω × v) + ω × (ω × r) (25)

Para passar da Eq. (24) para (25) apenas trocamos o papel dos referenciais e substituímos
ω por −ω .
É útil escrever o segundo membro à custa da velocidade em S0

a|S 0 = a|S + 2(−ω × (u + ω × r)) + ω × (ω × r)

ou
a|S 0 = a|S − 2ω × u − ω × (ω × r) (26)

e de forma completamente equivalente

a|S = a|S 0 + 2(ω × v) − ω × (ω × r) . (27)

As duas equações lêem-se exactamente da mesma maneira:


A primeira:

A aceleração de um corpo num referencial S 0 ( a|S 0 ) que tem velocidade angular ω,


constante, num referencial S , é a aceleração em S ( a|S ) mais a aceleração de Corilois
−2(ω × u) mais a aceleração centrífuga, −ω × (ω × r), em que u é a velocidade do
0
corpo em S e r a sua posição (em qualquer dos referenciais):

a|S 0 = a|S − 2(ω × u) − ω × (ω × r)


A segunda:

A aceleração de um corpo num referencial S ( a|S ) que tem velocidade angular −ω ,


0
constante, num referencial S ', é a aceleração em S ( a|S 0 ) mais a aceleração de Coriolis
−2((−ω)×v) mais a aceleração centrífuga −(−ω)×((−ω) × r), em que v é a velocidade
do corpo em S e r a sua posição (em qualquer dos referenciais):

a|S = a|S 0 + 2(ω × v) − ω × (ω × r) .

6
3 Forças inerciais
Qual dos referenciais, S ou S0 é inercial? De acordo com a perspectiva Newtoniana,
apenas um deles. Mas se os observadores de S (Alice) e o de S0 (Bob) frequentaram o
mesmo curso de Mecânica e não suspeitam se o próprio referencial é não inercial, serão
naturamente levados a aplicar a segunda Lei de Newton. Então a Alice, observador de
S escreverá que a força que actua num corpo com aceleração a|S é

F = m a|S . (28)

1
Bob, observador de S0 vai escrever para o mesmo corpo,

F0 = m a|S 0 (29)

Então usando a relação entre acelerações, Eq. 26

F0 = F − 2m(ω × u) − mω × (ω × r) (30)

Antes de sermos tentados a concluir:

AhAh! Bob é o referencial não inercial porque inventa a existência desta


forças −2m(ω × u) + mω × (ω × r) que na realidade não existem!,

notemos que também podemos escrever, com inteira simetria,

F = F0 − 2m((−ω) × v) − m (−ω) × (−ω × r)


= F0 + 2m(ω × v) − mω × (ω × r) (31)

Portanto pode muito bem acontecer que seja em S que existem estas forças e não em S0.
A única coisa segura que podemos dizer é:

As forças medidas nos dois referenciais, se aplicarmos a segunda lei em ambos,


não são invariantes, e a diferença

F0 −F = −2m(ω × u) − mω × (ω × r)
= −2m(ω × v) + mω × (ω × r)

são duas forças universais que actuem em todos os corpos e são proporcionais
à massa de cada corpo (dependendo da sua posição e velocidade). Estas
forças designam-se por forças inerciais.

4 Exemplos
Vamos agora ganhar alguma intuição sobre estas duas forças inerciais considerando que
o eixo de rotação mútuo dos referenciais é êz = êz e que a velocidade de S0 em S é ωêz .
1
Se admitirmos que m é invariante

7
4.1 Corpo em repouso em S0
Neste caso
v|S 0 = u = 0
e
v|S = ω × r = ωr (êz × êr ) = ωrêθ
Nenhuma surpresa! O corpo tem um movimento circular uniforme em S. Como para
qualquer movimento circular,
F = −mω 2 rêr
Mas em S0 o corpo está em repouso. Logo temos de ter

F0 = 0.

Ora

−ω × (ω × r) = −ω 2 rêz × (êz × êr )


= −ω 2 rêz × êθ = −ω 2 r (−êr )
= ω 2 rêr

F0 = F − mω × (ω × r)
= −mω 2 rêr + mω 2 rêr = 0

A força −mω × (ω × r) é radial, dirigida para fora e é conhecida como força centrífuga.

4.2 Corpo em repouso em S


Neste caso

v =u+ω×r=0
u = −ω × r

e
F = m a|S = 0
Então

F0 = F − 2m [ω × (−ω × r)] − mω × (ω × r)
= F + m [ω × (ω × r)] = −mω 2 rêr
= −mω 2 rêr

Exactamente o que esperamos, uma vez que em S0 o corpo ( parado em S) tem um


movimento circular.

8
ω
F cor

Figura 3: O sentido da força de Coriolis. (de dreamstime.com)

4.3 Corpo em movimento no plano perpendicular a ω.


Consideremos o caso mais geral de um corpo que se move quer em S quer em S0 no plano
Oxy = Ox0 y 0 . As forças inerciais em S 0 são

F0 − F = −2m(ω × u) − m [ω × (ω × r)] . (32)

Usando coordenadas polares, o segundo termo pode ser calculado

ω = ωêz (33)

r = rêr (34)

ω × r = ωr (êz × êr ) = ωrêθ (35)


2 2
−ω × (ω × r) = −ω r (êz × êθ ) = ω rêr (36)

Uma partícula em S0 tem em cada ponto, uma força adicional, de direção radial (dirigida
para fora) a que chamamos força centrífuga.
Além deste campo de forças centrífugo (a força só depende da posição da partícula)
existe uma outra força inercial que depende da velocidade da partícula. É sempre per-
pendicular à mesma

F0cor = −2m(ω × u) = −2mωu (êz × û)


Se imaginarmos um observador de pé, com a sua vertical ascendente no sentido de ω a
olhar na direção do versor da velocidade u a força de Coriolis será dirigida para a sua
direita e perpendicular a ω e a u (Fig. 3).

9
Capı́tulo 12

Relatividade

Quando se eliminou o impossı́vel, o que quer que reste,


por mais improvável que seja, tem de ser a verdade.

Sherlock Holmes

12.1 Duas revoluções, duas constantes

No último ano do século XIX, um respeitado académico e Professor


de Fı́sica, já nos seus quarenta anos, iniciou, sem querer, uma das
maiores revoluções do conhecimento humano.
Max Planck não podia prever que a sua proposta de que a trans-
ferência de energia entre a radiação e a matéria se processava em
pacotes discretos de energia, os quanta, culminasse, um quarto de
século mais tarde, na descoberta da Mecânica Quântica. Tanto
mais que considerava a hipótese dos quanta como um mero ex-
pediente de cálculo, cujo objectivo era obter uma fórmula para
descrever a distribuição experimental da energia da radiação tér-
mica pelos vários comprimentos de onda. O nome de Planck ficou
para sempre ligado a uma nova constante universal, h, a constante
de Planck, que aparece pela primeira vez no seu artigo de 1900,
e relaciona a frequência da radiação electromagnética, ν, com a
energia dos pacotes transferidos de, e para, a matéria:
Figura 12.1: Max Planck,
1858–1947 [1]
E = hν.

A outra revolução da Fı́sica do século XX começou um pouco mais


tarde, em 1905, pela pena de um obscuro funcionário de um escri-
tório de patentes, que nunca tinha tido um posto universitário, e

199
200 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Albert Einstein, 1879–1955

Albert Einstein, por volta de 1905

Albert Einstein nasceu em Ulm na Alemanha em 1879. Passou


a sua infância em Munique, onde começou a frequentar a escola.
O mito de que Einstein era um fraco aluno não corresponde à
verdade: as suas classificações eram boas e em matemática eram
mesmo excepcionais. Mas desde muito cedo Einstein revelou uma
profunda aversão ao autoritarismo e falta de liberdade de pensa-
mento do sistema escolar alemão. Em 1896, ainda menor, con-
seguiu mesmo renunciar à cidadania alemã, tornando-se cidadão
Suı́ço em 1901, um ano depois de obter o seu diploma na Es-
cola Politécnica de Zurique. A sua independência não o tornava
popular entre os seus professores e só em 1909 conseguiu o seu
primeiro posto académico.
Foi em 1905, como funcionário de um escritório de patentes,
que Einstein publicou cinco trabalhos sobre três temas distintos
(efeito fotoeléctrico, relatividade restrita e movimento browni-
ano), qualquer deles merecedor de Prémio Nobel.
Contudo, o seu trabalho mais excepcional estava ainda para vir.
Em 1916, após 11 anos de labor intenso, Einstein publicou as
equações da Relatividade Geral, que identificam a Gravitação
com a geometria do espaço-tempo.
Einstein teve ainda uma influência notável no desenvolvimento da
Mecânica Quântica, embora nunca a tivesse aceitado como teoria
satisfatória.
Faleceu em Princeton em 1955. A sua contribuição para a Fı́sica
só encontra paralelo em Isaac Newton.

Caixa 12.1: Albert Einstein, um ı́cone do século XX.


12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 201

que se chamava Albert Einstein. Também estava relacionada com


uma constante universal, mas desta vez não tinha sido descoberta
por Einstein.
Em 1864, um fı́sico escocês, James Clerk Maxwell, tinha conse-
guido reunir num conjunto de equações, que receberam o seu nome,
todas as leis que regem as interacções eléctricas e magnéticas e a
cuja investigação estavam ligados os nomes de Volta, Coulomb,
Ampère, Lenz, Oersted, Biot, Savart e Faraday.
Uma constante que aparecia nas suas equações, e cujo valor se po-
dia obter a partir de medições de forças eléctricas e magnéticas,
tinha as unidades de uma velocidade. Quando Maxwell a calculou Figura 12.2: James Clerk
Maxwell, 1831-1879.
e verificou que o seu valor era praticamente o da velocidade da luz,
concluiu, e bem, que a luz era de facto um fenómeno electromag-
nético e a constante em causa, c, a sua velocidade.
As raı́zes da revolução iniciada e terminada por Einstein, estão
precisamente neste facto: a existência de uma constante universal
que é uma velocidade. Este simples facto deu origem a uma revisão
profunda das nossas concepções mais básicas sobre natureza do
espaço e do tempo.
A nossa tarefa neste capı́tulo é compreender esta relação entre a
existência de uma velocidade que é uma constante universal e a
natureza do espaço e tempo. Mas primeiro temos que entender o
que é o Princı́pio da Relatividade, uma ideia tão antiga como a
Fı́sica e já conhecida de Galileu e de Newton.

12.2 Princı́pio da Relatividade

Suponhamos que nos é proposto o seguinte desafio:

Vamos ser colocados numa carruagem de comboio, sem


janelas. O comboio vai percorrer uma trajectória plana,
rectilı́nea, a velocidade uniforme. Podemos dispor de
todos os instrumentos que quisermos, réguas, cronó-
metros, balanças, sensores de pressão, de som, de luz,
fontes de alimentação, pilhas, amperı́metros, voltı́me-
tros, osciloscópios, etc. O desafio é simples: determi-
narmos a velocidade do comboio, sem olhar para fora
nem receber nenhuma informação do exterior, apenas
através de experiências feitas na carruagem.
202 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

O Princı́pio de Relatividade afirma que esta tarefa é impossı́vel!


Quaisquer experiências ou observações têm sempre implı́cito um
sistema de referência. Quando fizemos experiências de coli-
sões entre carros em calhas de alumı́nio, colocámos as calhas em
cima de uma mesa de laboratório com sensores de movimento nas
pontas. Todos estes objectos tinham posições fixas entre si e rela-
tivamente às paredes e soalho da sala. As distâncias e velocidades
dos carros eram medidas relativamente a estes objectos. Se qui-
sermos repetir uma tal experiência no comboio, a mesa, as calhas
e os sensores terão posições fixas relativamente à carruagem e em
conjunto com ela, constituem um novo sistema de referência,
que pode estar em movimento relativamente ao anterior.
Grandezas fı́sicas, como coordenadas de posição, ou componentes
de velocidades, acelerações, forças, ou energias são sempre relativas
a um dado sistema de referência. Um corpo, pousado numa mesa
na carruagem do comboio, tem uma velocidade e energia cinética
nulas no referencial do comboio; se este estiver em movimento,
tem velocidade e energia cinética não nulas no referencial da sala
da escola onde são feitas as experiências deste projecto.
Dito isto, o Princı́pio de Relatividade tem a seguinte expressão:

Princı́pio de Relatividade

As leis da Fı́sica são as mesmas em dois referen-


ciais em movimento relativo uniforme e rectilı́-
neo (velocidade constante).

Assim, a realização de experiências num dado sistema de referên-


cia, nada nos pode dizer sobre a sua velocidade (constante) em
relação a outro referencial, pois os resultados dessas experiências
são os mesmos qualquer que seja essa velocidade relativa.

12.2.1 O Princı́pio da Relatividade e a velocidade da


luz

Suponhamos que viajamos numa carruagem do Metro do Porto e


somos testemunha de um disparo feito do fundo da carruagem. As
câmaras de vigilância do comboio registam o evento e a análise das
respectivas imagens permite-nos determinar que a bala demorou
12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 203

t 0= 0.0

t 1= 0.33

t 2= 0.67

t 3= 0.10

db dc

Figura 12.3: Um disparo dentro da carruagem filmado numa câmara


exterior.

∆T =0,1 s a viajar o comprimento da carruagem. Medindo essa


distância, ∆X = 20 m, calculamos a velocidade da bala:
∆X 20
V = = = 200 m s−1 . (12.1)
∆T 0,1

Todas estas medições foram (ou podem ser feitas) no referencial


da carruagem: as câmaras, com o seu relógio interno, e as fitas
métricas são instrumentos relativos a este referencial.
Imaginemos agora que o mesmo acontecimento foi registado por
uma câmara fixa no solo. Os tempos e as distâncias são agora
medidos por outro conjunto de instrumentos ligados a este re-
ferencial. Neste capı́tulo vamos muitas vezes ter necessidade de
escrever grandezas em dois referenciais; passaremos a distinguir
as grandezas nos dois referenciais usando maiúsculas num deles e
minúsculas no outro. Por isso usámos na equação 12.1 X, T e V
em vez dos sı́mbolos mais usuais, x, t e v; estes ficam reservados
para o referencial do solo.
Até Einstein, todo o mundo achou óbvio que o filme registado no
exterior tinha exactamente o aspecto da figura 12.3:

• O intervalo de tempo ∆t que a bala demora a atingir a frente


da carruagem é o mesmo que o intervalo correspondente, ∆T ,
medido no referencial da carruagem:

∆t = ∆T. (12.2)
204 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Isto é, as câmaras dos dois referenciais registam exactamente


o mesmo número de imagens entre o inı́cio e o fim do pro-
cesso.
• A distância que a bala avançou relativamente à carruagem,
na perspectiva da câmara exterior, d b , tem o mesmo valor
que a distância que foi medida no referencial da carruagem:
db = ∆X = V ∆T. (12.3)

Sendo assim, a velocidade da bala medida no referencial do solo é:


∆x db + d c
v= = =
∆t ∆t
V ∆T
= +u=V +u
∆t
em que u é a velocidade do comboio no referencial do solo.
Em resumo:

Dados dois referenciais R e R0 , e u a velocidade de R0


em R, numa dada direcção; um corpo com velocidade
v em R na mesma direcção que u, tem uma velocidade
V em R0 dada por:
V = v − u. (12.4)

No caso referido acima V = 200 m s−1 ; se a velocidade u da carru-


agem for 20 m s−1 na direcção de movimento da bala,
v = 220 m s−1 .
A bala viajou 22 m no referencial do solo no mesmo tempo que via-
jou 20 m no do comboio, pois este avançou 2 m no mesmo intervalo
de tempo, no referencial do solo.
Se a bala fosse disparada no sentido oposto ao do deslocamento
do comboio terı́amos V = −200 m s−1 e
v = −200 + 20 = −180 m s−1 .

A equação 12.4 generaliza-se facilmente a referenciais em movi-


mento relativo de translação arbitrário, (ver Caixa 12.2 na pá-
gina 206):
~ = ~v − ~u
V (12.5)

Ao lidar com aplicações desta equação é muito fácil, e frequente,


confundirmos as definições e trocarmos os sinais. Talvez seja útil
notar o seguinte:
12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 205

• Duas das velocidades são medidas no mesmo referencial:


a velocidade de um corpo, ~v , e a velocidade de um outro
~ eU
referencial, ~u. Ou, alternativamente, V ~ ; como é óbvio
~
U = −~u;

Com esta convenção de capitalização, a seguinte regra dá sempre


a fórmula correcta:

• As velocidades do corpo estão em membros opostos da equa-


ção com o sinal positivo;

• A velocidade do referencial é escrita no mesmo membro que a


outra velocidade medida no mesmo referencial (~u no mesmo
membro que ~v , ou U~ no mesmo membro de V ~ ) com o sinal
negativo. Ou seja,
~ = ~v − ~u
V
ou
~ −U
~v = V ~.
2km

corrente
Se o corpo se move com a mesma velocidade que o referencial, u
~ =U
~v = ~u ou V ~ , a sua velocidade no outro referencial deve ser
nula. 2 km

Figura 12.4: Os barcos


demoram o mesmo tempo
ET V 1 : A velocidade máxima de dois barcos de trans- na viagem de ida e volta?
porte de passageiros relativamente às águas de um rio é de
25 km h−1 . Um dos barcos faz serviço entre duas plataformas
a dois quilómetros de distância na mesma margem. O ou-
tro entre plataformas em margens opostas, uma em frente
à outra, também a dois quilómetros de distância. Quando a
velocidade das águas do rio é de 5 km h−1 , qual é a diferença
de tempos das viagens de ida e volta dos dois barcos?

12.2.2 O tempo e espaço Newtonianos

A equação de transformação de velocidades, eq. 12.5, era bem


conhecida de Galileu. Newton, nos Principia, explicitou as noções
de tempo e espaço que suportam esta relação:
206 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Transformação de Galileu entre referenciais com


movimento relativo de translação

Medir coordenadas num referencial R requer a definição de um


sistema de eixos. Além disso existe sempre implı́cita a suposição
que podemos determinar o instante de tempo t, nesse referencial,
para qualquer acontecimento, em qualquer ponto do espaço. Ima-
ginemos um outro referencial, com eixos paralelos e cuja origem,
O0 , tem vector de posição ~rO0 em R. O vector de posição de qual-
quer partı́cula em R pode escrever-se com grandezas relativas
apenas ao referencial R como

~r(t) = ~rO0 (t) + ~r1 (t),

em que r1 (t) = ~r(t) − ~rO0 (t) é o vector que une a origem O 0 à


partı́cula.
Se supusermos que no referencial R0 ,

• O tempo T é o mesmo que em R, T = t,


~ ) = ~r1 (t),
• o vector de posição da partı́cula é R(T

podemos concluir a seguinte transformação:


~ ) = ~r(t) − ~rO0 (t).
R(T

Derivando e usando ∆T = ∆t, obtemos a lei de transformação


de velocidades entre os dois referenciais,
~ (T ) = ~v (t) − ~vO0 (t),
V

em ~vO0 (t) é a velocidade de R0 em R. A equação 12.4 na pá-


gina 204 é um caso particular de uma componente desta equação.

R’

R
r
r1
r0
O’

Caixa 12.2: Transformação de Galileu.


12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 207

O espaço absoluto, na sua natureza, sem qualquer


relação com alguma coisa externa, permanece sempre
idêntico e imutável.
O tempo absoluto, na sua natureza, flui uniforme-
mente sem qualquer relação com alguma coisa externa.

Estas grandiosas palavras exprimem conceitos que estão na base


das equações 12.2 e 12.3 na página 203:

A distância entre dois pontos é um invariante; dois


referenciais diferentes medem entre os mesmos pontos
a mesma distância;
. invariante: uma gran-
deza cujo valor não varia
O intervalo de tempo entre dois acontecimentos é um ao mudar de referencial.
invariante: dois referenciais diferentes medem entre
os mesmos acontecimentos o mesmo intervalo de tempo.

Estas duas leis implicam a lei de transformação da velocidade,


~v → V ~ , que não é um invariante entre referenciais em movimento
relativo:
~ = ~v − ~u.
V (12.6)
Aqui reside o problema que preocupou Einstein em 1905: esta lei
de transformação implica que o Princı́pio da Relatividade não é
válido para fenómenos electromagnéticos.
A descoberta de Maxwell é que as leis dos fenómenos eléctricos
e magnéticos determinam a velocidade c de um sinal luminoso,
independentemente do modo como é emitido. Mas, de acordo com
a análise de Galileu e Newton, a velocidade da luz não pode ser a
mesma no referencial do comboio e no referencial do solo.
Suponhamos que as equações de Maxwell são válidas no referencial
do comboio. A velocidade de um sinal luminoso neste referencial
será c, a constante universal das equações de Maxwell. Mas, se o
sinal viajar da traseira para a frente do comboio, no referencial
do solo a sua velocidade será:
v = c+u
Se viajar na direcção oposta a velocidade do solo será
v = c−u

A velocidade da luz não só não é c, como é variável com a direcção


de propagação.
Em resumo:
208 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

As leis de Maxwell não podem ser válidas nos dois


referenciais, ou seja, as leis das interacções eléctricas
e magnéticas são diferentes em referenciais em movi-
mento relativo uniforme e rectilı́neo. O Princı́pio da
Relatividade não pode valer para fenómenos eléctricos
e magnéticos, se a lei de transformação de velocidades
for dada pela transformação de Galileu (equação 12.5
na página 204).

12.2.3 Princı́pio da Relatividade e a Fı́sica Newto-


niana.

Dicionário de cinemática

Para apreciar melhor a maneira como Einstein abordou o problema


referido, fazemos aqui um pequeno interlúdio para ver como as leis
de Newton são compatı́veis com o Princı́pio da Relatividade e a
transformação de Galileu.
Consideremos então dois referenciais, R e R 0 , em movimento rela-
tivo e tentemos estabelecer um dicionário entre grandezas medidas
em R (minúsculas) e R0 (maiúsculas). Admitimos que os dois sis-
temas de eixos são paralelos, e que a origem de R 0 tem um vector
de posição ~rO0 (t) em R: o movimento relativo dos dois referenciais
é apenas de translação. A velocidade e aceleração de R 0 são:
d~rO0 (t)
~uO0 (t) =
dt
d~uO0 (t)
~aO0 (t) = .
dt
O nosso dicionário tem as seguintes entradas:

Grandeza R R0

Distância entre dois pontos d D=d

Intervalo de tempo entre acontecimentos ∆t ∆T = ∆t

Vector de posição ~r(t) ~ ) = ~r(t) − ~rO0 (t)


R(T

Vector velocidade ~v (t) ~ (T ) = ~v (t) − ~uO0 (t)


V

Vector aceleração ~a(t) ~ ) = ~a(t) − ~aO0 (t)


A(T

Contudo, a cinemática não é suficiente para formular as leis da


dinâmica Newtoniana. Precisamos dos conceitos de massa e força.
Comecemos pela massa: como se transforma entre referenciais?
12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 209

R
antes
m −v m

                                             
depois

v’ = 0




antes R’

v M1 M2
2v

                                             
depois

v V’

                      
                       
                     

Figura 12.5: Uma colisão inelástica analisada em dois referenciais mostra


que dois corpos com massas iguais em R têm massas iguais em R0 . No
primeiro caso, como as massas são iguais e as velocidades são opostas, a
velocidade final é nula. Se o referencial R0 tiver uma velocidade ~u = −~v ,
igual ao do carro da direita, este está parado em R0 e o outro tem
velocidade V~ = ~v − ~u = 2~v. Após a colisão o conjunto, parado em R,
tem velocidade V~ 0 = −~u = ~v em R0 . Logo a conservação de momento
implica M1 × 2~v = (M1 + M2 ) ~v , ou seja, M1 = M2 . Este argumento
pode ser generalizado para qualquer razão entre massas.

Massa como invariante

Suponhamos que observamos uma colisão entre duas partı́culas de


massas m1 e m2 em R; a conservação de momento linear implica:

m1~v1 + m2~v2 = m1~v 01 + m2~v 02 (12.7)

em que no primeiro membro temos o momento total antes da co-


lisão e no segundo depois da colisão.
A lei de conservação de momento no referencial R 0 terá a forma:
~ 1 + M2 V
M1 V ~ 2 = M1 V
~ 0 + M2 V
~0 (12.8)
1 2

em que, de acordo com a nossa convenção, designamos as massas


no novo referencial por maiúsculas. Usando o dicionário acima
referido,
~1 = ~v1 − ~u
V
~2 = ~v2 − ~u
V
~ 0 = ~v 0 − ~u
V 1 1
~20 = ~v20 − ~u,
V
210 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

para substituir na equação 12.8, obtém-se,


M1~v1 + M2~v2 = M1~v10 + M2~v20 , (12.9)
visto que os termos em ~u cancelam nos dois lados da equação. As
duas equações 12.7 e 12.9 só podem ser ambas válidas se a razão
entre as massas for a mesma nos dois referenciais 1
m1 M1
= .
m2 M2

Em resumo: as razões entre as massas de dois quaisquer corpos


são as mesmas nos dois referenciais, se a conservação de momento
linear se verificar em ambos. Escolhendo o mesmo corpo para
unidade de massa em ambos os referenciais (por exemplo, um dm 3
de água), esta relação implica que a massa é um invariante:
M = m.

ET V 2 : Numa experiência de colisão entre dois carros, um


deles tem massa 0,5 kg e o outro 0,25 kg. O primeiro carro
colide como segundo, que está parado, com uma velocidade
de v = 2 m s−1 .

a) Qual é velocidade do centro de massa do sistema?

b) Quais são as velocidades iniciais dos dois carros no re-


ferencial do centro de massa?

c) Supondo que a colisão é elástica, calcular as velocidades


dos dois carros no referencial do centro de massa, após
a colisão.

d) Calcular as velocidades finais dos dois carros no referen-


cial do laboratório.

Referenciais inerciais
No caso de dois referenciais em movimento relativo uniforme, ~u O0 (t) =
constante, ~aO0 = 0, a aceleração é um invariante:
~ = ~a(t)
A(t) (~uO0 (t) = constante)
1
Isso vê-se facilmente, pondo em evidência uma das massas nas duas equa-
ções.
12.2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE 211

Se a massa e a aceleração são as mesmas, m~a tem o mesmo valor


e a segunda Lei de Newton será válida nos dois referenciais se as
forças forem as mesmas!
Por exemplo, a lei da Gravitação Universal especifica uma força
que depende da massa das partı́culas em interacção e da distância
entre elas: como são ambas grandezas que não variam, a força
gravı́tica é invariante na mudança de referencial. Se todas as leis
de força tiverem esta propriedade, o Princı́pio da Relatividade será
válido e as leis de Newton terão a mesma forma em referenciais
em movimento relativo uniforme.
Se imaginarmos, por um momento, que conhecemos todas as leis
de força, podemos, pelo menos em princı́pio, certificarmos-nos que
a força total sobre uma certa partı́cula é nula. De acordo com a lei
da inércia, o movimento desta partı́cula deve ser uniforme, ~a = 0.
Se isso acontecer num dado referencial, R, acontecerá em qualquer
outro que esteja em movimento uniforme relativamente a R; mas
não em relação a um referencial R 0 acelerado em relação a R, em
que:
~ = ~a − ~aO0 (t).
A
e portanto
~ = m~a − m~aO0
mA

Há duas maneiras, diferentes na perspectiva, de resumir esta situ-


ação:
à La Newton

As forças newtonianas são invariantes na mudança de


referencial,

f~ em R → F~ = f~ em R0 ;

a segunda lei de Newton só é válida numa classe de re-


ferenciais chamados referenciais inerciais, nos quais
uma partı́cula livre de forças (de acordo com as leis
que determinam as forças newtonianas) se move com
velocidade uniforme. Os referenciais inerciais tem mo-
vimento relativo uniforme e rectilı́neo. Num referen-
cial acelerado em relação a um referencial inercial a
segunda lei não é válida.

à La Einstein
212 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

A segunda lei de Newton é válida em qualquer referen-


cial,

f~ = m~a em R
F~ = mA ~ em R0 ,

mas entre referenciais com aceleração mútua (R 0 com


aceleração ~aO0 em R) as forças não são invariantes:

f~ em R → F~ = f~ − m~aO0 em R0 ;

Assim, as forças no referencial R0 , acelerado em relação a R, di-


ferem das forças em R de um termo −m~a O0 . Esta força adicional
tem as seguintes caracterı́sticas:

• actua indistintamente sobre qualquer corpo;

• é proporcional à massa de cada corpo.

Como veremos, esta segunda perspectiva foi muito importante


para Einstein, quando estendeu a Teoria da Relatividade para
incluir as forças gravı́ticas. Mas estamos a adiantar-nos: inici-
almente Einstein só se preocupou com referenciais em movimento
relativo uniforme.

12.3 Os postulados da Relatividade Restrita

12.3.1 Três ideias incompatı́veis

Temos então três ideias claramente em contradição:

12.1. A lei de transformação de velocidades entre referenciais em


movimento relativo, baseada nas ideias Newtonianas de es-
paço e tempo:
~ = ~v − ~u.
V

12.2. O Princı́pio da Relatividade abrangendo todos os fenómenos,


incluindo os electromagnéticos.

12.3. As equações de Maxwell, uma descrição completa de todas


as leis das interacções electromagnéticas com a sua constante
universal, c, a velocidade da luz.
12.3. OS POSTULADOS DA RELATIVIDADE RESTRITA 213

Uma pelo menos tem que cair! Qual?

No final do século XIX e princı́pio do século XX, a opinião mai-


oritária dos fı́sicos inclinava-se para deixar cair a segunda ideia,
excluindo os fenómenos electromagnéticos, propagação de luz in-
cluı́da, do âmbito do Princı́pio da Relatividade.

Havia boas razões para acreditar na sı́ntese de Maxwell. Ela culmi-


nava pelo menos dois séculos de investigações de fenómenos eléc-
tricos e magnéticos; reunia várias leis bem conhecidas e testa-
das da electricidade e magnetismo numa formulação única; tinha
previsto, brilhantemente, o carácter electromagnético da luz, que
Hertz confirmara experimentalmente, gerando, deliberadamente,
ondas electromagnéticas.

Quanto à lei de adição de velocidades ela baseia-se na nossa expe-


riência diária. Quando viajamos entre Lisboa e Porto e acertamos
o relógio pelo da Gare do Oriente, ao chegar ao Porto, podemos
conferir que o nosso relógio está certo pelo da Estação de Cam-
panhã (isto supondo que a CP mantém os relógios certos entre
si). De igual modo, se medirmos o comprimento de uma carrua-
gem em movimento, fotografando-a de fora, encontramos o mesmo
comprimento que se a medirmos a partir do interior, no referencial
da mesma.

Claro que há também boas razões para acreditar no Princı́pio da


Relatividade aplicado aos fenómenos electromagnéticos. Ao fim ao
cabo, essas são a interacções que dominam toda a Fı́sica e Quı́mica
da matéria vulgar. Não era nada agradável se essas leis mudassem
tanto que o nosso coração deixasse de bater num referencial com
velocidade de 60 km h−1 em relação ao solo.

Seja como for, havia uma consequência óbvia de manter as hipó-


teses 1 e 3: as Leis de Maxwell só seriam válidas num referencial
determinado e em qualquer outro em movimento relativo a esse re-
ferencial, a velocidade da luz seria diferente de c e variaria com a
direcção. A própria Terra constitui um laboratório onde seria pos-
sı́vel medir variações da velocidade da luz. Ao fim ao cabo, a Terra
tem uma velocidade em relação ao Sol de 30 km s −1 , ainda por cima
de direcção variável ao longo do ano. A experiência deste tipo mais
famosa foi realizada por Albert Michelson e Edward Morley, dois
fı́sicos americanos, na Universidade de Case Western Reserve em
1887.
214 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

E’

cT /2 cT /2
L L
E

uT
D

L u

(a) (b)

Figura 12.6: A experiência de Michelson-Morley consiste em medir a


diferença de tempos de propagação da luz em dois trajectos perpendi-
culares de igual comprimento, 2L. O dispositivo usa um espelho semi-
transparente, D, para dividir um feixe de luz em dois feixes perpendi-
culares que são reflectidos em dois espelhos, E e E 0 , colocados a igual
distância, L, de D. Se a velocidade da luz for a mesma na duas di-
recções, c, os tempos de viagem são iguais e valem 2L/c. A figura (b)
ilustra o cálculo do tempo na direcção perpendicular se o dispositivo ti-
ver uma velocidade ~u em relação ao referencial onde a velocidade da luz
é c. A determinação da diferença de tempos é conseguida observando a
interferência entre os dois feixes.

12.3.2 A experiência de Michelson-Morley

O princı́pio da experiência de Michelson e Morley é o de uma


corrida entre dois feixes de luz em dois trajectos perpendiculares de
igual distância (fig. 12.6)2 . Se a velocidade da luz for a mesma em
todas as direcções, c, ou seja, se o dispositivo estiver no referencial
onde as equações de Maxwell são válidas, os tempos serão iguais:
2L
T⊥ = T k = .
c
Suponhamos agora que o dispositivo tem uma velocidade ~u na
direcção DE, no referencial onde a velocidade da luz é c. A velo-
cidade da luz no sentido DE é c − u e no sentido oposto c + u. O
tempo para ir a E e voltar é
L L 2cL 2L 1
Tk = + = 2 = .
c−u c+u c − u2 c 1 − u2 /c2

O cálculo de T⊥ está ilustrado na figura 12.63 ; enquanto o divisor


se desloca de uT⊥ a luz viaja uma distância cT⊥ que pelo teorema
2
É uma corrida inteiramente análoga ao problema dos dois barcos no ET V 1 !
3
Este cálculo também pode ser feito referencial do dispositivo, usando a lei
de transformação de velocidades de Galileu: ver a resposta ao ET V 1 .
12.3. OS POSTULADOS DA RELATIVIDADE RESTRITA 215

de Pitágoras vale:
 2  2
cT⊥ uT⊥
= + L2 .
2 2
Resolvendo em ordem a T⊥ , vem
2L 1
T⊥ = p .
c 1 − u2 /c2
Como vemos, se u 6= 0, Tk 6= T⊥ .
Tomando como exemplo o valor de u = 30 km s−1 , a velocidade
orbital de Terra, temos um efeito deveras pequeno:
Tk − T ⊥
= 1 − 1 − u2 /c2 ≈ 0,5 × 10−8 !
p
Tk
Contudo, a observação da interferência entre os dois feixes permite
medir esta diferença sem problemas. A experiência foi realizada
cuidadosamente; a possibilidade de os dois braços não terem o
mesmo comprimento foi levada em conta, rodando o dispositivo
de 90o e trocando as duas direcções. A experiência foi realizada
em várias alturas do ano de modo a variar a direcção da velocidade
orbital da Terra. Michelson e Morley nunca detectaram qualquer
diferença entre os tempos Tk e T⊥ .
O referencial privilegiado em que as leis de Maxwell seriam válidas
é referido na literatura como o referencial do Éter. O Éter seria
uma misteriosa substância, presente em todo o Universo, no qual
se propagariam as ondas electromagnéticas, à semelhança do que
acontece com onda mecânicas, como o som, que se propagam num
meio material. Só um referencial em repouso em relação ao Éter
mediria uma velocidade da luz idêntica em todas as direcções.
Nesse sentido, a experiência de Michelson e Morley não detectou
qualquer movimento da Terra em relação ao Éter.

12.3.3 Os dois postulados

Não há registo que Einstein tivesse conhecimento de Sherlock Hol-


mes, ou do seu autor, Arthur Conan Doyle, mas a sua lógica faz
eco da citação do famoso detective, reproduzida no inı́cio deste
capı́tulo.
No seu artigo de 1905 com o tı́tulo, Sobre a Electrodinâmica dos
Corpos em Movimento 4 , menciona de passagem a falta de qualquer
4
Zur Electrodynamik bewegter Körper, Annalen de Physik, 17 (1905)
216 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

evidência de que o Princı́pio de Relatividade não se aplique ao


Electromagnetismo e assume-o como princı́pio universal:

Princı́pio de Relatividade

As leis da Fı́sica, incluindo as do Electromag-


netismo são as mesmas em dois referenciais em
movimento relativo uniforme e rectilı́neo (velo-
cidade constante).

Seguidamente, assume que a velocidade da luz é a mesma em to-


dos os referenciais em movimento relativo uniforme, abrindo deste
modo a possibilidade que as equações de Maxwell terem validade
numa classe de referenciais que têm movimento relativo uniforme.

Princı́pio de constância da velocidade da luz

Existe uma classe de referenciais, ditos inerciais,


com movimento relativo uniforme e rectilı́neo, e
nos quais luz tem a mesma velocidade, c: isto
é a velocidade da luz é um invariante nesta
classe de referenciais.

A Relatividade Restrita acaba aqui. São estes dois princı́pios


e mais nada.
Chama-se Restrita, porque aborda apenas uma classe de refe-
renciais, que se movem uns em relação aos outros com velocidade
uniforme. Onze anos mais tarde Einstein verificou que, ao incluir
no Princı́pio da Relatividade (agora com nome diferente) todos os
referenciais, obteve a teoria relativista das interacções gravı́ticas.
O nome Relatividade não foi escolhido por Einstein e é um pouco
infeliz, pois estes dois postulados referem, exclusivamente, coisas
que não são relativas:

• As leis da Fı́sica (todas) são as mesmas em todos os referen-


ciais inerciais;
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA217

• A velocidade da luz é um invariante, a mesma em todos os


referenciais inerciais.

Das três ideias incompatı́veis referidas acima, Einstein deixou cair


a primeira ao sugerir que existe uma velocidade invariante: a
velocidade da luz. Ao fazê-lo pôs em cheque os conceitos Newtoni-
anos de espaço e de tempo, que, como vimos, estão por trás da lei
de transformação das velocidades. Com que é que os substituiu?

12.4 O Espaço e Tempo em Relatividade


Restrita

12.4.1 Uma corrida, dois filmes

Para explorar a natureza do espaço e tempo que decorre dos postu-


lados fundamentais da relatividade vamos recorrer à ajuda de dois
animais bem habituados a corridas de alta velocidade: o Coiote e
o Road Runner (figs. 12.7 e 12.8).
Quem conhece os desenhos animados desta dupla, criada pela ima- Figura 12.7: Um animal
ginação delirante de Chuck Jones, deve ter reparado que o Road habituado a corridas de
Runner parece ter sempre a mesma velocidade relativamente ao alta velocidade.
Coiote, independentemente da velocidade deste. É uma boa me-
táfora para a velocidade da luz! Para simplificar as contas e não
carregarmos com muitas potências de dez, vamos imaginar que no
universo onde vivem c = 300 m s−1 e que o Road Runner se move
a esta velocidade.
Como é comum na sua existência, estes personagens vão fazer
uma corrida ao longo de uma longa recta pontuada por um fiada Figura 12.8: Pode o Road
regular de postes, que, desta vez contêm relógios. A distância Runner correr à
entre os postes é de 150 m (a luz demora meio segundo a percorrer velocidade da luz?
essa distância) e os dois toons partem do mesmo poste no mesmo
instante t = 0. A velocidade do Coiote é c/2 e a do Road Runner
é c. O nosso objectivo é analisar esta corrida de dois pontos de
vista:

• do referencial do solo, S;

• do referencial do Coiote, C;

Comecemos pelo primeiro.


218 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Tempo
VI

VI
VI

VI

V
V

V
V

IV
IV
IV

IV

III
III
III

III

II
II
II

II

I
I
I

0
0
0

Figura 12.9: Filme da corrida no referencial do solo. Nota: virar a página


a 90o .
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA219

Poste Coiote Road Runner


0 0,0 0,0
I 1,0 0,5
II 2,0 1,0
III 3,0 1,5
IV 4,0 2,0
V 5,0 2,5
VI 6,0 3,0

Tabela 12.1: O que marca o relógio de cada poste quando passa por ele
cada um dos personagens.

Referencial do Solo, S

A situação neste referencial é a seguinte:

• Partida no poste 0 na altura em que o respectivo relógio


marca t = 0,0 s;

• o Coiote tem a velocidade c/2 = 150 m s −1 , ou seja, cobre a


distância entre postes sucessivos num segundo;

• O Road Runner tem velocidade da luz, c = 300 m s −1 , co-


brindo duas vezes a distância entre postes em cada segundo.

Assumindo que os relógios estão sincronizados, é evidente que


quando o Coiote passa no primeiro poste este marca t = 1,0 s,
no segundo, t = 2,0 s e assim sucessivamente. Do mesmo modo
para o Road Runner teremos t = 0,5 ao passar o primeiro poste,
t = 1,0 ao passar o segundo etc.
A figura 12.9 mostra algumas imagens do filme da corrida. Repare-
se que em cada tira da figura temos o que se passa num “agora”
deste referencial; por isso, os relógios marcam todos o mesmo
tempo. Para referência futura indicamos na tabela 12.1 as indica-
ções dos relógios de cada poste quando cada um dos personagens
passa por ele.
É extremamente importante para o que se segue notar o seguinte:

Esta tabela é válida em qualquer referencial!


220 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Quando o Coiote passa no poste I, olha para o respectivo relógio


e regista o tempo que ele indica na sua memória, num papel, ou
no que quiser. Este valor não pode depender do referencial de
observação. O Coiote não pode ter na sua cabeça um valor para
um referencial e um valor diferente para outro.
A tabela 12.1 regista o que Einstein chamou eventos ou aconte-
cimentos. A coincidência de posições do Coiote e do poste I com
o relógio a mostrar 1,0, ou do Road Runner com poste III com
1,5 no mostrador do respectivo relógio são eventos. Eventos são
absolutos e todos os referenciais têm que concordar sobre eles; ne-
nhum referencial pode observar o Road Runner a passar no poste
III quando este marca 2,0; o animal lembrar-se-ia disso!

Referencial do Coiote, C

Qual é o aspecto desta corrida no referencial do Coiote? Vamos


supor que o Coiote tem consigo um relógio em tudo idêntico aos
dos postes e que quando se encontra com o poste 0 marca exac-
tamente o mesmo T = 0,0 s. Como habitualmente vamos usar
maiúsculas pra nos referirmos aos tempos medidos pelo relógio do
Coiote.

• O Coiote está parado e são os postes que se movem em di-


recção a ele. Se a velocidade do Coiote em relação aos postes
é de c/2 a velocidade do postes em relação ao Coiote é de
−c/2.
• Se o relógio do Coiote marcar T0 s quando o primeiro poste
passar por ele, marcará 2T0 s na passagem do segundo poste,
3T0 s na passagem do terceiro e assim sucessivamente. Isto
é, a distância entre postes é cT0 /2, já que eles se movem com
velocidade −c/2.

Newton diria que T0 = 1 pois, como podemos ver na tabela 12.1


na página anterior no referencial do solo decorre um intervalo
∆t = 1 s entre a partida do poste 0 e o cruzamento do poste I com
o Coiote. T0 s é o intervalo de tempo ∆T entre estes dois eventos
no referencial C. Mas já vimos que, se seguirmos Newton, não
conseguiremos garantir a segunda condição que Einstein escolheu
como postulado:

• a velocidade do Road Runner neste referencial também é


c, ou seja o dobro da velocidade dos postes. Isto é: ao fim
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA221

Tempo

VIII
VI

VII

IX
VIII
VII
VI
V

VII
VI
V
IV

VI
III

IV

V
IV
II

III

IV
III
I

II

2T0

3T0
III
T0

II
0

I
0.0

Figura 12.10: Filme da corrida no referencial do Coiote. Nota: virar a


página a 90o .
222 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

de um tempo T , o Road Runner está a uma distância cT do


Coiote.

Este ponto é absolutamente crucial: tudo o que se segue de-


pende dele!
Passemos então ao filme no referencial C.

Imagem 1 A primeira imagem do nosso filme não causa proble-


mas: em T = 0,0 s (marcado no relógio do Coiote) os dois
animais estão juntos ao poste 0, que está a passar pelo Coiote
com velocidade −c/2.

Imagem 2 Suponhamos que a segunda imagem é tomada em


T = T0 s, quando o poste I passa pelo Coiote. Onde
está nesse momento o Road Runner ? Segundo Einstein, a
uma distância do Coiote (e do poste I) igual a cT 0 . Mas a
distância entre postes é cT0 /2; logo o Road Runner está a
cruzar o poste III, que marca 1,5 s (ver Tabela 12.1).

Usando o mesmo tipo de argumentos facilmente concluı́mos que a


figura 12.10 na página precedente mostra correctamente o filme da
corrida visto do referencial do Coiote, de acordo com os postula-
dos da relatividade. O ponto fundamental que condiciona toda a
representação é que a velocidade do Road Runner neste referencial
ainda é c: a distância a que o Road Runner se encontra do Coiote
tem que ser o dobro da distância percorrida por cada poste, desde
o inı́cio do filme.
As figuras 12.9 e 12.10 contêm todas as surpresas relativistas da
natureza do espaço e tempo. É só uma questão de olhar para elas
atentamente.

12.4.2 Relatividade da Simultaneidade

O primeiro ponto que ressalta da análise das duas figuras é o se-


guinte.
Cada imagem é correspondente a um “agora” em cada referencial;
ou seja a um dado instante nesse referencial.

• Assim, no referencial do solo, quando o Coiote está no poste


I (t = 1 s) o Road Runner está no poste II;
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA223

• Todavia, no referencial do Coiote, quando este está no poste


I (T = T0 s) o Road Runner está no poste III, e portanto já
passou há um bocado no poste II.

O eventos que estão na mesma tira num referencial (simultâneos)


não estão na mesma tira no outro. Por exemplo, os dois even-
tos registados no instante T = 2T0 s (terceira tira) da figura na
página 221:

• Coiote no poste II;

• Road Runner no poste VI;

ocorrem com um segundo de diferença no referencial do solo.


Este mesmo facto está patente no facto de os relógios dos postes
não estarem sincronizados no referencial do Coiote. À medida que
caminhamos no sentido oposto ao movimento dos postes, verifica-
mos que os relógios estão cada vez mais adiantados; O relógio VI
marca 3,0 quando (referencial C) o II marca 2,0: mas no referen-
cial S o relógio VI só marca 3,0 um segundo depois de o relógio II
marcar 2,0 (ou seja quando este marca 3, 0 também). Temos dois
eventos em que:

∆T = 0: simultâneos em C;
∆t = 1 : um mais tarde que o outro em S.

Assim:

O intervalo de tempo entre dois acontecimentos não é


invariante. A simultaneidade de eventos é relativa! O
“agora” é diferente em cada referencial.

Estranho? Certamente; mas apenas uma consequência necessária


da invariância da velocidade da luz.

Sincronização de relógios

O resultado anterior resulta, como vimos, apenas de considerar que


a velocidade da luz é um invariante. Repare-se que o filme feito
no referencial S, prova que os relógios estão bem sincronizados
nesse referencial. O Road Runner parte da origem, onde o relógio
224 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

0 I II

0 I II

(a)

cT/2 L L cT’/2
0 I II

0 I II

0 I II
??

(b)

Figura 12.11: (a) Sincronização de relógios no referencial do solo; (b)


no referencial do Coiote os relógios não ficam sincronizados, porque a
velocidade da luz continua a ser a mesma nos dois sentidos.
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA225

marca 0 e ao passar no relógio I, a 150 m de distância este marca


0,5 s exactamente o tempo que ele demora a cobrir esta distância
em S: o mesmo se aplica aos outros relógios. Esta é uma maneira
perfeitamente legı́tima de sincronizar relógios 5 . Existem muitas
outras.

Vale a pena mencionar um outro procedimento de sincronização,


por tornar muito clara a relatividade da simultaneidade (fig. 12.11).

Suponhamos que o relógio I manda dois sinais luminosos ao mesmo


tempo em direcções opostas. Os relógios 0 e II estão a zero e
começam a contar quando o sinal lhes chegar. Como a velocidade
da luz não depende do sentido de propagação, os relógios 0 e II
estarão, obviamente, sincronizados.

Sim, no referencial do solo, mas não no do Coiote. No referencial


do Coiote os relógios movem-se com velocidade −c/2 e o sinal lu-
minoso continua a ter velocidade idêntica nos dois sentidos,
c. Neste referencial, no tempo T em que a luz viaja até chegar ao
poste 0, este afasta-se uma distância cT /2 do poste emissor. Por
isso a distância viajada pela luz, cT, é

c 2L
cT = T + L ⇒ T = .
2 c

em que L é a distância entre relógio no referencial C. Ao contrário,


o poste II move-se em direcção ao emissor; então,

c 2L
cT 0 = L − T 0 ⇒ T 0 = .
2 3c

Ou seja, neste referencial, o relógio do poste 0 começa a trabalhar


depois do do poste II, mais precisamente depois de decorrer um
tempo,
4L
∆T = .
3c

Em resumo, na nossa corrida, quanto maior o número do poste,


mais adiantado está o respectivo relógio no referencial C. Repare-
se que isto só acontece porque a velocidade da luz é a mesma nos
dois sentidos, nos dois referenciais.

5
Esta maneira exige que se conheça o valor da velocidade da luz no refe-
rencial em causa. Mas esta pode ser medida com um único relógio medindo o
tempo de ida e volta a um espelho a uma distância conhecida.
226 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

ET V 3 : Com referência à figura 12.11, mostrar que se a ve-


locidade de luz satisfizer a lei Galileana de composição de
velocidades, os dois relógios ficam sincronizados nos dois
referenciais.

12.4.3 Dilatação dos tempos

Relógios em movimento andam mais devagar, é uma da frases


que muitas vezes se houve a propósito da Relatividade. Vejamos
exactamente o que quer dizer.
No referencial S, do solo, o relógio do Coiote marca 0,0 s quando
o Coiote está junto ao poste 0 e marca T 0 s quando ele passa no
poste I, um segundo mais tarde. Ou seja,

Afirmação 1: no referencial S, um relógio em movimento com


velocidade c/2 avança T0 s por cada segundo de um relógio
parado.

Assim, quando um relógio do solo regista uma passagem de tempo


de ∆t, o relógio em movimento com velocidade c/2 regista um
intervalo6
∆T = T0 ∆t

Mas quanto vale T0 ?


Reparemos novamente no filme da corrida do ponto de vista do
referencial C (fig. 12.10 na página 221), em particular na segunda
e quarta imagens:

• No instante T = T0 s o relógio do poste III marca 1,5;

• No instante T = 3T0 s, o relógio do poste III, a passar pelo


Coiote, marca 3,0 s.

Ou seja,
6
T0 é um tempo (de relógio em movimento) por unidade de tempo (de
relógio em repouso); por isso é uma grandeza sem dimensões.
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA227

Afirmação 2: no referencial C, do Coiote, um relógio em movi-


mento com velocidade −c/2 (o do poste III) avança ∆t III =
3,0 − 1,5 = 1,5 s, quando passam ∆T = 3T 0 − T0 = 2T0 s
num relógio parado (o do Coiote).

O Princı́pio da Relatividade implica que o referencial C é “tão


bom” como S. Por outro lado, c/2 e −c/2 são velocidades equiva-
lentes, pois as direcções positiva e negativa do eixo Ox são certa-
mente equivalentes. Por isso a Afirmação 1 implica que:

O relógio do poste III avança T0 , por cada segundo do


relógio do Coiote.

Ou seja,
∆tIII = T0 ∆T (12.10)
em que ∆tIII é o tempo marcado pelo relógio III em movimento no
referencial do Coiote, e ∆T o tempo que decorreu entre os mesmos
eventos no referencial do Coiote. Mas a Afirmação 2 significa:

∆tIII = 1,5, quando ∆T = 2T0 . (12.11)

Portanto,
1,5 = T0 × (2T0 )
ou seja,
3
T02 = ,
4
e √
3
T0 = ≈ 0,866.
2

O Princı́pio da Relatividade (equivalência de referenciais) e o da


constância da velocidade da luz dizem-nos então que:

Um relógio em movimento com velocidade c/2 (ou −c/2)


apenas anda 0,866 s por cada segundo de um relógio
parado.

Este efeito chama-se dilatação dos tempos. Repare-se na si-


metria entre os dois referenciais: o relógio do Coiote atrasa-se em
relação aos relógio do Solo, e estes (como o do poste III) atrasam-
se exactamente o mesmo em relação aos relógios do referencial
do Coiote.
228 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

ET V 4 : Hei, calma Stôra, disse o aluno. Isto não bate certo!


Não pode o relógio do Coiote andar mais devagar que os
dos postes e os dos postes mais devagar que o do Coiote.
Aliás repare: logo na segunda imagem do filme se vê isso.
Quando o Coiote parte, o relógio dele marca o mesmo que
o do poste 0, 0,0. Quando cruza o poste I este marca 1,0 e
o dele só 0,866. Isto é, o do poste andou mais depressa o
dele. Não é o que ele tem de concluir?
Como responder a este aluno?

Tudo isto pode, à primeira vista, parecer um absurdo. Como é


que um relógio A se atrasa em relação a B e B se atrasa relação
a A?

De facto não há nenhuma contradição. Quando queremos medir a


taxa do relógio do Coiote em relação ao referencial S, comparamos
as suas leituras em dois relógios do Solo, C e D sincronizados em
S. Ao passar no segundo relógio do Solo, D, o relógio do Coiote
avançou menos que a diferença das leituras que fez em C e D;
para um observador do Solo isso significa que o relógio do Coiote
se atrasa. Contudo, o Coiote não pode tirar essa conclusão pois,
no seu referencial, os relógios C e D não estão sincronizados; como
vimos, D está adiantado relativamente a C. Para tirar conclusões
sobre a taxa dos relógios de S, o Coiote tem que fazer exactamente
o mesmo que um observador do referencial do Solo: comparar um
relógio do referencial do Solo com dois relógios sincronizados no
seu referencial. Por esta razão, ambos chegarão exactamente à
mesma conclusão: os relógios do outro referencial atrasam-se! De
acordo com o Princı́pio da Relatividade não poderia ser de outro
modo.

Repare-se, também, que não precisamos de dizer que tipo de re-


lógio se trata. Seja digital, analógico, seja um pêndulo ou o nosso
coração, qualquer processo de medir o tempo terá que dar o mesmo
resultado para que a velocidade da luz seja um invariante. E to-
dos os processos fı́sicos decorrem exactamente segundo as mesmas
leis nos dois referenciais. A dilatação do tempo não pode afec-
tar apenas certos tipos de relógios: isso violaria o Princı́pio da
Relatividade. É o tempo que anda mais devagar!
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA229

0 I II III IV V VI

T=0,0

I II III IV V VI VII

T= 3
2

Figura 12.12: O tempo indicado pelos relógios de S no mesmo instante


do referencial C, aumenta linearmente com a distância na direcção oposta
ao do movimento dos postes em C.

O filme completo

Estamos agora em posição de determinar o que mostram todos os


relógios no filme feito no referencial C (fig. 12.10 na página 221).
Vejamos, por exemplo, o relógio do poste I:

• entre o instante inicial, T = 0 s, e T = T 0 s, quando passa


pelo Coiote, o relógio do poste avança ∆t = T 0 ×∆T = T02 s;
• Em T = T0 s, ao passar no Coiote, este relógio marca t = 1.

Destes dois resultados podemos concluir que, em T = 0, o relógio


indicava
1
1 − ∆t = 1 − T02 = .
4
Não é difı́cil ver que o relógio do poste n, que passa pelo Coiote
em T = nT0 s, marcava em T = 0,
 n
n − T0 × (∆T ) = n − T0 (nT0 ) = n 1 − T02 = .
4
O mesmo raciocı́nio pode ser repetido para cada instante do refe-
rencial C. A conclusão é a mesma. O tempo t marcado por cada
relógio aumenta de 1 − T02 = 1/4 por poste (ver figura 12.12).
Tal como tı́nhamos concluı́do, do ponto de vista do Coiote, nos
relógios de S há um adiantamento que cresce na direcção oposta
ao do seu movimento em C.
230 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

12.4.4 Contracção dos espaços

A distância entre os postes, no referencial do Solo é, por hipótese,


d = c/2 × 1 = 150 m. No referencial do Coiote passa um poste por
ele de T0 em T0 segundos e os postes movem-se com velocidade
−c/2. Ou seja, a distância entre os postes é

cT0 3
D= = T0 d = d ≈ 130 m!
2 2

A distância entre dois postes no referencial do Coiote


é menor que no referencial do Solo.

Se tivermos um avião de 150 m de comprimento estacionado en-


tre os postes, o Coiote dirá que o seu comprimento é apenas
de 130 m; um carro de 5 m de comprimento medirá para o Coi-
ote 0,866 × 5 = 4,33 m! Note-se que 30 destes carros, topo a todo,
medem para o Coiote 130 m. Todas as distâncias, todos os objec-
tos, terão no referencial em que se movem com velocidade −c/2
um comprimento, na direcção do movimento, inferior: apenas
86,6% do que têm no referencial em que estão em repouso: isto é
a contracção dos espaços.
Isto funciona, obviamente nos dois sentidos: os dois referenciais
têm as mesmas leis. Por isso, se o Coiote conduzir um carro idên-
tico ao que está estacionado, ele terá um comprimento de 5 m no
referencial do Coiote (onde está em repouso) mas do Solo parecerá
encurtado, apenas com 4,33 m. Portanto:

Um corpo com velocidade c/2 (ou −c/2) tem um com-


primento l na direcção do seu movimento, menor que
o seu comprimento L no referencial em que está em
repouso, √
3
l= L.
2

Mas afinal, não quer isso dizer que a contracção dos espaços é
uma ilusão? Um corpo só parece encurtar porque é visto de outro
referencial. No referencial próprio em que está em repouso tem o
seu verdadeiro comprimento?
Esta conclusão é atraente, mas errada. A contracção é real; acon-
tece. Medir um comprimento de um objecto em movimento não
causa qualquer dificuldade. Em todos os referenciais em que se
move ele é mais curto que no seu referencial próprio.
12.4. O ESPAÇO E TEMPO EM RELATIVIDADE RESTRITA231

Só que o comprimento de um objecto não é um invariante. Tal


como a separação temporal entre eventos, a separação espacial
entre dois pontos, ao contrário do que acontecia na concepção
Newtoniana, não é um invariante. Mas isso não a torna menos real.
A maior parte das grandezas fı́sicas, quer em Relatividade, quer em
Fı́sica Newtoniana, mudam de valor ao mudar de referencial. Nem
por isso deixam de reflectir a realidade das coisas. Em Relatividade
Restrita temos que incluir intervalos temporais e espaciais nessa
classe de grandezas relativas.

ET V 5 : Hei, Stôra, disse o mesmo aluno. Esta agora é


que não passa. O Coiote vai a guiar um Cadillac de 5 m
de comprimento e ultrapassa um carro igual, parado, que
segundo ele só mede 4,33 m. Ora veja, quando as traseiras
estão a par sobram 67 cm do carro do Coiote à frente, certo?
5m
Não me diga que o pessoal que está em Terra não nota isso! 4,33 m
Segundo o que a Stôra disse, eles deviam ver que faltam −c/2

67 cm ao Cadillac do Coiote. Em que ficamos?


Como responder a este aluno?

Coiote

A B C

Figura 12.13: O Coiote


12.4.5 Transformação de tempo e espaço para v ar- acha que o seu carro é
bitrário mais comprido. O pessoal
de Terra não vai achar o
Não é difı́cil generalizar os argumentos apresentados para uma mesmo?
mudança entre referenciais com velocidade relativa v, genérica,
em vez de c/2. Isso está feito em apêndice. Os resultados são os
seguintes:

Dilatação dos tempos

Um relógio em movimento uniforme com velocidade v


demora um tempo ∆t a passar entre dois pontos de
um referencial inercial; o intervalo de tempo marcado
pelo relógio, ∆T , ou seja o intervalo de tempo no re-
ferencial em que o relógio está em repouso, designado
por tempo próprio do relógio, é inferior a ∆t:
r
v2
∆T = 1 − 2 ∆t. (12.12)
c
232 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Contracção dos espaços

Um corpo em movimento num referencial R, com ve-


locidade v tem um comprimento na direcção do seu
movimento l. O seu comprimento próprio, L, no
referencial em que está em repouso, é maior que l:

l
L= q . (12.13)
v2
1− c2

Acima escrevemos esta equação de modo diferente, mas exacta-


mente com o mesmo significado:
r
v2
l= 1− L.
c2

p p √
No caso de v = c/2, o factor 1 − v 2 /c2 = 3/4 = 3/2, con-
forme vimos acima.

Para as velocidades correntes no nosso dia-a-dia este factor é muito


próximo da unidade. No caso de um avião à velocidade do som
é tão próximo de um que nem todas as calculadoras o conseguem
diferenciar da unidade:
s
3402
1− ≈ 1 − 0,64 × 10−12
(3 × 108 )2
= 0,99999999999936.

É por esta razão que na nossa experiência corrente os conceitos


Newtonianos de espaço e tempo são perfeitamente adequados: as
correcções relativistas são extremamente pequenas. Podemos con-
tinuar a usar a lei Galileana de composição de velocidades quando
lidamos com carros, barcos, aviões ou mesmo planetas. Contudo,
velocidades próximas da luz são correntes em fı́sica. Para começar,
a própria luz, que é sempre relativista. Quer em aceleradores, quer
na Natureza, por exemplo em fenómenos astrofı́sicos, é comum a
ocorrência de feixes de partı́culas de alta energia com velocidade
próximas da luz. Mas não é preciso ir para o espaço: as unida-
des de tratamento de médico de feixe de electrões usam electrões
relativistas com velocidades muito próximas de c.
12.5. ENERGIA E MASSA EM RELATIVIDADE 233

12.5 Energia e massa em Relatividade

12.5.1 Uma só grandeza conservada

A modificação profunda dos conceitos de espaço e tempo da Re-


latividade Restrita obrigou também a uma revisão da Dinâmica
Newtoniana. Não é possı́vel, no tempo disponı́vel, abordar este
aspecto da teoria, mas é conveniente comentar um resultado desta
reformulação, que é considerado a equação mais famosa de toda a
Fı́sica:
E = mc2 . (12.14)

Em Fı́sica Newtoniana existem dois princı́pios de conservação dis-


tintos e independentes:

• a conservação de massa;

• a conservação de energia.

Note-se que conservação não é o mesmo que invariância:

• uma grandeza invariante tem o mesmo valor em referenciais


diferentes;

• uma grandeza conservada, tem um valor constante no tempo,


no mesmo referencial.

Einstein descobriu que em Relatividade estes dois princı́pios de


conservação são substituı́dos por um só. Vejamos alguns exemplos.

• Suponhamos que medimos a massa de um corpo, usando


a segunda lei de Newton, a partir da sua aceleração sob a
acção de uma força conhecida. Se o corpo absorver uma
quantidade de energia ∆E, segundo a Teoria da Relatividade
a sua massa aumenta de
∆E
∆m = .
c2
Se radiar energia, a sua massa diminui de um valor dado
pela mesma relação.
234 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

• Um núcleo de número atómico Z e número de massa A tem


Z protões e A − Z neutrões. A massa destas partı́culas é

Zmp + (A − Z)mn .

Contudo, a massa do núcleo, M (A, Z), é inferior a este valor.


A energia de ligação do núcleo Eb (A, Z) é a energia que é
necessária para separar o núcleo nos seus constituintes. De
acordo com a Relatividade,

Eb (A, Z)
Zmp + (A − Z)mn = M (A, Z) +
c2
Por outras palavras, ao formar o núcleo a partir das partı́cu-
las que o constituem, o sistema liberta uma energia E b (A, Z)
e a sua massa total diminui de Eb (A, Z)/c2 .

• Um electrão e a sua anti-partı́cula, o positrão podem aniquilar-


se mutuamente e transformar-se em duas partı́culas de radi-
ação, dois fotões γ:

e− + e + = γ + γ

Este processo é muitas vezes referido como conversão de


massa (2me ) em energia. Contudo, se este processo ocor-
rer numa caixa de onde os fotões não possam sair, a massa
total da caixa (medida, por exemplo, usando a segunda lei)
não se altera.

Neste sentido, massa e energia são duas palavras diferentes (e duas


unidades diferentes) para a mesma grandeza conservada. O factor
c2 na fórmula
E = mc2
é essencialmente um factor de conversão entre a unidades conven-
cionais de energia e de massa.
Isto significa que quando aceleramos uma partı́cula e aumentamos
a sua energia, aumentamos também a sua massa: quando entramos
num carro também entramos num automóvel. Que sentido tem,
então, dizer que a massa do electrão é m e = 9,1 × 10−31 kg, ou a
do protão mp = 1,67 × 10−27 kg?
Quando uma partı́cula está em repouso tem a menor massa (menor
energia) possı́vel. Essa massa é a massa em repouso, ou energia
em repouso da partı́cula. É um invariante relativista, isto é, tem
12.5. ENERGIA E MASSA EM RELATIVIDADE 235

um valor idêntico em todos os referenciais inerciais. Também pode


ser especificada em unidades de energia:

me c2 = 0,51 MeV.
mp c2 = 9,3 × 103 MeV.

A Relatividade inclui ainda, de um modo muito natural, a possi-


bilidade de partı́culas de massa em repouso nula; têm em todos
os referenciais a mesma velocidade c, a velocidade da luz, não es-
tando em repouso em nenhum referencial; têm massa no sentido
em que contribuem com um termo E/c2 para a massa total de um
sistema: são os fotões, as partı́culas de luz.

ET V 6 : O principal processo de produção de energia numa


estrela como o Sol é a fusão de protões (núcleos de Hidro-
génio) para formar Hélio. Embora a reacção tenha um con-
junto de passos intermédios, podemos resumir os estados
iniciais e final como
2+
4p + 2e− → 4 He .

As massas são mp = 1,008 u.m.a, m(4 He2+ ) = 4,003 u.m.a


e me = 0, 0005 u.m.a. A unidade de massa atómica vale
1 u.m.a = 1,661 × 10−27 kg.

a) Calcular em Joule e eV a energia libertada por núcleo


de Hélio formado.

O Sol radia uma potência de 3,9 × 1026 W e tem uma massa


de 1, 99 × 1030 kg.

b) Que fracção da sua massa radia por ano?

c) Cerca de 2/3 da massa do Sol são núcleos de Hidrogénio


e cerca de 1/3 de núcleos de Hélio. Quanto tempo, à
taxa actual, vai demorar a consumir o Hidrogénio?
236 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

12.5.2 O limite Newtoniano

A energia total de um sistema pode sempre escrever-se na forma

E = M 0 c2 + E 0 ,

em que E 0 é definida como a diferença entre a energia total e a


energia em repouso do conjunto de partı́culas do sistema.
Nos processos quı́micos habituais, ligação quı́mica, ionização, etc.,
as variações de energia por partı́cula são da ordem do electr~ ao-
Volt, em todo o caso muito menores que a energia em repouso da
partı́cula mais leve da matéria, o electrão. Na ausência de reacções
nucleares, que envolvem energias por núcleo na escala do MeV, e
de processos de aniquilação partı́cula-antipartı́cula:

• Os números de electrões e dos vários tipos de núcleos não se


alteram, pelo que M0 , a soma das massas em repouso das
partı́culas de um sistema, é constante.

• Então E 0 , o excesso de energia relativamente a M 0 c2 , tam-


bém é uma grandeza conservada.

• O valor de E 0 , é em geral, muito menor que a energia em


repouso, E 0  M0 c2 o que significa que

M0 c2 + E 0 E0
M= = M 0 + ≈ M0 .
c2 c2

Reencontramos, neste limite a situação habitual da Fı́sica Newto-


niana:

• conservação separada de massa (M 0 ) e energia E 0 = E −


M0 c2 .

• Massa total praticamente igual à soma das massas (em re-


pouso) das partı́culas constituintes do sistema.

12.6 Perguntas difı́ceis

12.6.1 Vivo mais se viajar numa nave?

Isto é real? Vivo mais se me puser em movimento? Ao


fim ao cabo, se isto tudo for verdade, e eu me puser a
12.6. PERGUNTAS DIFÍCEIS 237

mexer numa nave a metade da velocidade da luz, por


cada ano que passa na Terra só passam 0, 866 anos
para mim: será que isso aumentaria a minha vida em
1/0, 866 = 1,15 ou seja de 15%?

É absolutamente real, mas atenção, a vida aumenta de 15% apenas


no referencial da Terra. Todos os relógios, isto é todos os proces-
sos fı́sicos no referencial da nave serão mais lentos exactamente do
mesmo factor. O princı́pio da Relatividade garante que através
de experiências realizadas apenas no referencial da nave não po-
demos determinar a respectiva velocidade: as leis Fı́sicas são as
mesmas. Portanto, não chegaremos a saber que vivemos mais. É
a Relatividade novamente. A nossa vida é um intervalo de tempo.
Os intervalos de tempo são relativos: dependem do referencial.
Mas o efeito é absolutamente real e pode ser e foi medido, com re-
lógios, muitas vezes. O sistema GP S, por exemplo, exige relógios
em satélites perfeitamente sincronizados com relógios na Terra (ao
nı́vel do nano segundo, 10−9 s). Como os relógios dos satélites es-
tão em movimento relativamente aos da Terra, torna-se necessário
levar em conta a dilatação do tempo relativista. Contudo, a aná-
lise deste caso é mais complexa, não só porque o movimento dos
satélites não é de velocidade constante, mas, sobretudo, porque
o campo gravı́tico também altera a taxa de um relógio. Outra
descoberta de Einstein7 !
Mas existe uma experiência famosa em que se demonstrou a ex-
tensão do tempo de vida pela dilatação relativista dos tempos; não
com pessoas mas com muões.

A experiência dos Muões

Uma das mais famosas experiências de medição da dilatação dos


tempo diz respeito a uma partı́cula instável, o muão ou mesão-µ.
Esta partı́cula tem uma semi-vida de cerca de t 1/2 = 1,56 µs, o que
quer dizer que um feixe de muões, ao fim deste tempo t 1/2 , fica
reduzido a metade das partı́culas. Ora um muão, mesmo viajando
a uma velocidade próxima da luz, numa semi-vida não anda mais
do que
d1/2 = 1,56 × 10−6 × 3 × 108 = 468 m;
Um feixe de muões, em menos de 468 m, deve ficar reduzido a
metade do fluxo.
7
Feitas todas as contas os relógios dos satélites adiantam-se em relação aos
da Terra.
238 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

Em 1941, Rossi e Hall mediram o fluxo de muões no topo do Monte


Washington, no New Hampshire, a cerca de 2000 m de altitude e
também na base da Montanha. Os muões são criados por raios
cósmicos ao incidirem na atmosfera terrestre. Como
2000
= 4,3,
468
o fluxo de muões na base da montanha deveria ser inferior de um
factor 2−4,3 ≈ 1/20 = 5%, cerca de 20 vezes inferior ao medido
no topo. Em vez disso encontraram um fluxo no sopé superior a
metade do fluxo no topo, 71% para ser preciso. Os muões estavam
a ter uma semi-vida muito superior a 1,56 µs! Porquê?
Precisamente, por causa da dilatação de tempo relativista. Os
muões têm uma semi-vida t1/2 = 1, 56 µs em repouso, ou seja
no referencial em que têm velocidade nula. Quando passar
nesse referencial uma semi-vida, passou no referencial onde foram
feitas as medições de fluxo um tempo maior; por isso, a distância
que os muões percorrem nesse referencial é superior a 468 m. Os
resultados desta experiência permitiram obter a velocidade dos
muões, v ≈ 0,994c.
muões
N
ct 1/2
ET V 7 : Calcular a semi-vida de muões num referencial em
L1/2 que estes têm uma velocidade v = 0, 994c e calcular a dis-
tância em que um feixe de muões com esta velocidade tem
N/2 o fluxo reduzido a metade.

Figura 12.14: A distância


em que um feixe de 12.6.2 Velocidades maiores que c. É possı́vel?
muões fica reduzido a
metade, L1/2 pode ser O segundo postulado afirma que a velocidade da luz é
superior a ct1/2 , por
um invariante, não que é uma velocidade limite. Por
causa da dilatação
relativista dos tempos. que é que se diz que não é possı́vel ultrapassar a velo-
cidade da luz?

Os fı́sicos designam partı́culas com velocidade superior à da luz


por taquiões. Taquiões surgem por vezes em certas propostas teó-
ricas, mas não são bem vindos; são um aspecto indesejável da
teoria, que os autores bem gostariam de varrer para baixo do ta-
pete. Efectivamente colocam sérios problemas de interpretação em
Relatividade.
Figura 12.15: Mais rápido
que a luz cria muitos
problemas...
12.6. PERGUNTAS DIFÍCEIS 239

Para ver porquê imaginemos um rato taquiónico (Speedy Gonza-


lez ?) a participar na nossa corrida. Suponhamos que ele parte do
poste I em t = 1,0 s e chega ao poste III, em t = 1,25 s, onde fica
sentado a deliciar-se com um bocado de queijo. O Road Runner,
que viaja a velocidade c, demora um segundo a cobrir a mesma
distância, pelo que estamos a falar de um rato com velocidade 4c.
O problema surge quando tentamos descrever o seu movimento no
referencial do Coiote. Como se vê na figura 12.10 na página 221,
o evento “poste III a marcar 1, 5 s” é simultâneo, em C (mesmo
T ), com o evento correspondente à partida do rato taquiónico,
“poste I a marcar 1,0 s” . Ora, o nosso taquião chegou ao poste
III quando este marcava 1,25 s, ou seja, antes de marcar 1,5 s!
No referencial C, o rato chegou antes de partir. Se levarmos em
conta que no mesmo instante de C o relógio de cada poste está
adiantado relativamente ao do poste anterior de 1 − T 02 = 1/4 s,
podemos reconstruir a viagem do taquião vista do referencial C.
Que estranha que ela é (figura 12.16)!

• O primeiro acontecimento, segundo a cronologia de C, é a


chegada ao poste III: o rato materializa-se do nada!
• A seguir temos um rato descansar junto do poste III, mas
temos outro a meio caminho entre o poste I e III; há dois
ratos!?
• Finalmente, quando o poste I marca t = 1,0 s (T = T 0 ) o
taquião chega ao poste I, onde se esfuma. Para T > T 0 só
temos o taquião a descansar junto ao poste III.

Este exemplo mostra o tipo de dificuldades que levantam sinais de


velocidade superior à da luz. O intervalo de tempo ∆t entre os
eventos de emissão e recepção de um taquião não tem o mesmo
sinal em todos os referenciais: a emissão pode ser posterior à re-
cepção. Teremos referenciais em que há violação de causalidade: o
efeito precede a causa. Esta situação pode dar origem a paradoxos
sem fim como a estranha viagem do rato-taquiónico, que surge do
nada onde termina(?) a viagem, se desdobra e anda para trás no
tempo, da chegada para a partida.
Ao contrário, dois acontecimentos que possam ser ligados por um
relógio de velocidade inferior à da luz, (um relógio coincidente
no espaço com os dois eventos) tem um intervalo de tempo em
qualquer referencial dado por
∆τ
∆t = p
1 − v 2 /c2
240 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

I II III

I II III

I II III

Figura 12.16: Viagem de um taquião do poste I em t = 1,0 s para o


poste III em t = 1,25 s, vista do referencial do Coiote. Chega primeiro
do que parte, desdobra-se em dois, um dos quais fica no poste III e o
outro viaja para o poste I, onde desaparece para t > 1,0 s.
12.6. PERGUNTAS DIFÍCEIS 241

em que ∆τ é o tempo próprio do relógio entre os dois eventos. Por


isso ∆t tem sempre o mesmo sinal em qualquer referencial.

ET V 8 : No referencial C quais são os valores do tempo T


correspondente a cada tira do filme da viagem do rato ta-
quiónico (fig 12.16 na página ao lado)?

12.6.3 Poderemos chegar às estrelas

Então a hipótese de viajar pela galáxia, está definiti-


vamente posta de lado?

Curiosamente não, pelo menos não são as limitações da Relativi-


dade que nos restringem.
Ainda que uma viagem pela galáxia possa demorar um milhão de
anos a uma velocidade sub-c, esse tempo, ∆t, é o do referencial
da Terra. Uma nave com velocidade v em relação à Terra terá um
tempo próprio (o tempo dos tripulantes e passageiros da nave),
r
v2
∆T = 1− ∆t.
c2

Ainda que ∆t possa ser 106 anos, o tempo próprio pode ser um ano,
se a velocidade for suficientemente próxima de c. Claro, entretanto
passaram um milhão de anos da Terra. E só teremos notı́cias da
nave dois milhões de anos mais tarde.
Aliás não deixa de ser curioso que a limitação da velocidade luz,
300 mil quilómetros por segundo, preocupe tanta gente, quando
no presente, conseguimos, no máximo, alguns quilómetros por se-
gundo nos nossos veı́culos mais rápidos!

ET V 9 : Para que o tempo próprio da nave fosse um mi-


lhão de vezes inferior ao tempo no referencial da Terra, que
velocidade teria que ter a nave?
242 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

12.7 Conclusões

É muito comum um sentimento de incredulidade no primeiro con-


tacto com a Relatividade. Figuras proeminentes da cultura do
século XX, como o filósofo francês Henri Bergson, que muito dis-
correu sobre a natureza do tempo, acharam as propostas da Rela-
tividade sobre a natureza do espaço e tempo inaceitáveis.
Neste texto tentou-se mostrar que elas são uma consequência ine-
vitável de duas ideias muito simples e fortemente sustentadas pela
experiência:

• o Princı́pio da Relatividade;

• O princı́pio da invariância da velocidade da luz.

Por outro lado, estranhas como possam parecer as conclusões da


Relatividade, elas não contradizem a nossa experiência quotidiana,
que envolve apenas velocidades v  c. Os efeitos relativistas são
extremamente pequenos para velocidades muito inferiores às da
luz.
Finalmente é preciso dizer que a Relatividade não é uma teoria
em fase especulativa, à espera de confirmação. No dia-a-dia de
um laboratório de partı́culas, os efeitos relativistas são enormes e
presentes em todas as actividades e análises de experiências. Os
atrasos relativistas de relógios em movimento foram medidos e tem
que ser levados em conta em toda a tecnologia GP S.
A escolha então é esta: aceitar uma teoria formulada com enorme
simplicidade e elegância, a partir de princı́pios solidamente fun-
dados na experiência; que dá conta de toda a nossa experiência
sobre o espaço e tempo; com previsões verificadas todos os dias
em inúmeras experiências. Ou, em alternativa, manter os nossos
preconceitos sobre o espaço e tempo constituı́dos a partir de uma
experiência limitada a uma fracção ı́nfima da gama de velocida-
des possı́veis e que está em contradição com inúmeras observações.
Pronto a escolher?

12.8 Resposta aos ET V 0 s


12.1. ET V 1 : Seja ~v a velocidade do barco no referencial da Terra. A
velocidade do referencial do rio no referencial da Terra é ~u =
(u, 0) = (−5, 0). Para a viagem ao longo da margem:
12.8. RESPOSTA AOS ET V 0 S 243

Na subida

Vx = vx − u ⇒ 25 = vx + 5 ⇒ vx = 20 km h−1 ;
Vy = 0.

Na descida:

Vx = vx − u ⇒ −25 = vx + 5 ⇒ vx = −30 km h−1 ;


Vy = 0.

O tempo total da viagem paralela à margem é


2 2
Tk = + = 0, 167 h = 10 min.
20 30

Para a viagem na perpendicular:

Vx = 0 − u = −u = 5;
Vy = vy

Como
Vx2 + Vy2 = V 2 = (25)2 .
vy2 + u2 = V 2 ⇒ vy2 = V 2 − u2 ⇒ vy = 24,5 km h−1 .
O tempo de ida e volta
4
T⊥ = = 0, 163 h = 9,8 min.
24,5

12.2. ET V 2 :

(a) 0,75 vcm = 0,5 × 2 ⇒ vcm = 1,33 m s−1 .


(b) V1x = 2 − 1,33 = 0,67 m s−1 ; V2x = −vcm = −1,33 m s−1 .
0 0 0 0
(c) 0,5 × V1x + 0,25 × V2x = 0 ⇒ V1x = −V2x /2.
Como
2 2 2 2
0,5 × (V 01x ) + 0,25 (V 02x ) = 0,5 × (V 1x ) + 0,25 (V 2x )

e
V 1x = −V2x /2
obtemos:
2 2
(V 01x ) = (V 1x )
2 2
(V 02x ) = (V 2x ) .

As soluções são
0 0
V1x = V1x ; V2x = V2x ,
244 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

ou
0 0
V1x = −V1x ; V2x = −V2x .

A solução com sinal + corresponde à inexistência de colisão.


A segunda solução é a correcta: as velocidades trocam de
sinal.
(d)
0 0
v1x = V1x + vcm = −0, 67 + 1,33 = 0,67 m s−1 .
0 0
v2x = V2x + vcm = 1,33 + 1,33 = 2,67 m s−1 .

12.3. ET V 3 : Os relógios ficam sincronizados no referencial do solo, se


este for o referencial privilegiado, onde a velocidade da luz é a
mesma em todas as direcções. Mas nesse caso, a velocidade da luz
no referencial que se move relativamente ao solo com velocidade v
da esquerda para a direita é:

• c − v para o sinal que viaja para o poste II;


• c + v para o sinal que viaja para o poste 0.

O tempo que a Luz demora a atingir o poste II é


L
(c − v)T = L − vT ⇒ T = ;
c
Para atingir o poste 0,
L
(c + v)T 0 = L + vT 0 ⇒ T 0 =
c
Os relógios ficariam sincronizados nos dois referenciais.

12.4. ET V 4 : O aluno esqueceu-se do problema da relatividade da si-


multaneidade. O argumento seria válido se, no instante em que o
relógio do Coiote marca 0 no referencial do Coiote, o relógio
do poste I marcasse 0,0. Mas não marca, marca mais que zero (ver
figura 12.12 na página 229). Por isso, quando este poste passa pelo
Coiote este pode vê-lo a marcar mais do que 0,866 e concluir que
o relógio do poste anda mais devagar que o seu próprio relógio.

12.5. ET V 5 : O aluno voltou-se a esquecer da ...relatividade da simulta-


neidade. A imagem da figura 12.13 na página 231 é um “instante”
do referencial do Coiote. Quando as traseiras estão em A a frente
do Cadillac do Coiote está em C e a do carro parado no solo (com
velocidade −c/2 em relação ao outro) está em B. Mas já vimos
que eventos simultâneos num referencial, em dois locais diferentes,
não são simultâneos no outro referencial. Se recordarmos o filme
da figura 12.10 da página 221 vemos que eventos simultâneos no
referencial do Coiote quanto mais para a frente estão, mais tarde
ocorrem no referencial do Solo. Suponhamos que A, B e C são
12.8. RESPOSTA AOS ET V 0 S 245

A 5m B C
marcações na estrada. O Cadillac estacionado tem a traseira coin-
cidente com A e a frente com B, sempre. Há um instante em a
traseira do Cadillac do Coiote passa em A. No referencial C, 4,33 m
nesse momento, a frente está em C à frente de B e o seu carro é c/2

maior que o do Solo. Mas, no referencial do S, o filme é dife-


Coiote
rente (fig. 12.17).Quando a traseira do Cadillac está em A, a frente
ainda não chegou a B. Só passa em B e C mais tarde; por isso o
Cadillac do Coiote é mais curto, no referencial C, que o Cadillac
parado. O quando é relativo!

12.6. ET V 6 :

(a)
∆m = m(4 He2+ ) − 4mp − 2me =
= 4,003 − 4 × 1, 008 − 2 × 0,0005 ≈ −0,03 u.m.a

2
∆E = −0,03 × 1,661 × 10−27 × 3 × 108 = −0,4 × 10−11 J. A B C

0,4 × 10−11 Figura 12.17: O


∆E = − = −0,25 × 108 = −25 MeV.
1,6 × 10−19 ”instante”da figura 12.13
da página 231 é este filme
O Sol radia 0,4 × 10−11 J = 25 MeV, por cada núcleo de hélio no referencial do solo.
formado.
(b)
3,9 × 1026
∆m = − × 365,3 × 24 × 3600
c2
= −1,4 × 1026−16+7 = −1,4 × 1017 kg.

O Sol radia 1,4 × 1017 kg por ano, mas isso é uma fracção
mı́nima da sua massa total
−∆m
= 0,7 × 10−13 .
M

(c) Massa em Hidrogénio ∼ 0,67 × M = 1,3 × 1030 kg; Massa


de núcleos de Hidrogénio consumida por segundo:

3, 9 × 1026
× 4mp = 66 × 1026+11−27 = 6,6 × 1011 kg.
0,4 × 10−11
Duração do combustı́vel do Sol em anos:
1,3 × 1030 1
T = × = 0,6 × 1011 anos.
6,6 × 1011 3,15 × 107
p p
12.7. ET V 7 : 1 − v 2 /c2 = 1 − 0,9942 = 0,11;
p
∆t = t1/2 / 1 − v 2 /c2 ≈ 14,2 µs;
l = v∆t = 0,994 × c × 14,2 × 10−6 = 4,23 × 103 m = 4,23 km.
246 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

12.8. ET V 8 . Já sabemos que a última tira corresponde a T = T0 . Se


olharmos, por exemplo, para o relógio III, vemos que entre duas ti-
ras passa ∆t = 0,125; este é o tempo próprio deste relógio, que tem
velocidade c/2 no referencial C. Assim entre duas tiras sucessivas

2 1 1
∆t = T0 ∆T ⇒ ∆T = √ × = √ = 0,144 s.
3 8 4 3

Assim, temos os três instantes:


√ √ √
2 3 3 3
T1 = T 0 − √ = − = = 0,577 s
4 3 2 6 3
√ √ √
1 3 3 5 3
T2 = T 0 − √ = − = = 0,722 s
4 3 2 12 12
T3 = T0 = 0,866 s.

Note-se como em C o instante de chegada, T = 0,577 s, é anterior


ao de partida, T = 0,866 s.
p
12.9. ET V 9 : O factor 1 − v 2 /c2 teria que valer 10−6 .

v2 v p
1− = 10−12 ⇒ = 1 − 10−12
c2 c
≈ 0,9999999999995.

12.8.1 Actividades, questões e problemas

12.1. Escrever pequenos ensaios sobre o seguintes temas:

(a) A invariância da velocidade da luz e a relatividade da


simultaneidade.
(b) Verificação experimental da teoria da Relatividade Res-
trita.
(c) As razões de Einstein na escolha dos postulados funda-
mentais da Relatividade Restrita.
(d) Os conceitos Newtonianos de espaço e tempo e a trans-
formação de Galileu entre referenciais em movimento
uniforme e rectilı́neo.

12.8.2 Questões

12.1. Numa experiência de colisão entre dois carros iguais, um


deles tem velocidade vx = 4 m s−1 , no referencial do centro
de massa dos dois carros. Qual é a velocidade do outro carro?
12.8. RESPOSTA AOS ET V 0 S 247

12.2. Qual dos postulados da Relatividade é imediatamente in-


compatı́vel com a transformação Galileana entre referenciais
em movimento uniforme e rectilı́neo?
12.3. Por que razão é que as equações de Maxwell não satisfazem o
Princı́pio da Relatividade, se a transformação entre referen-
ciais em movimento uniforme e rectilı́neo for a transformação
de Galileu?

12.8.3 Problemas

12.1. Um avião sobrevoa duas cidades A e B a 500 quilómetros


de distância, com um intervalo de meia-hora, em dias sem
vento. Se soprar um vento de com velocidade 100 km h −1 na C B
direcção de A para B quanto demora o avião de A → B e
de B → A? 200 m
u
Nota: a velocidade do avião relativamente ao ar da atmosfera
é sempre a mesma.
A

12.2. Um nadador tem que atravessar um rio de distância entre Figura 12.18: Como
margens de 200 m. A velocidade que consegue em águas pa- minimizar o tempo de
radas é de 1 m s−1 . O rio tem uma corrente com velocidade travessia?
u = 0,5 m s−1 .

(a) Se ele nadar segundo a perpendicular à margem (A →


B) quanto tempo demora a atravessar o rio?
(b) Qual é o tempo mı́nimo em que ele consegue atravessar
o rio e a que distância do ponto B ele chegará se usar
o trajecto em que o tempo de travessia é mı́nimo?

12.3. O seguinte resultado torna especialmente simples a análise


de colisões de carros em movimento numa calha:

Numa colisão elástica de dois corpos em movi-


mento rectilı́neo, as velocidade dos corpos no re-
ferencial do centro de massa trocam de sentido na
colisão. Isto é:
~v10 = −~v1 ;
~v20 = −~v2 .

Demonstrar este resultado.

12.4. O automóvel da figura está a deslocar-se com velocidade de


140 km h−1 e o comboio a 100 km h−1 .
248 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE

1000 m

(a) Escolher os eixos apropriadamente e obter as seguintes



equações paramétricas (distâncias em metros e tempo
300
em segundos):
(
x(t) = 27,8 t
comboio
y(t) = 577
Figura 12.19: Passará a
tempo? (
x(t) = 33,7 t
carro .
y(t) = 19,4 t

(b) Escrever as equações paramétricas das coordenadas X(T )


e Y (T ) do comboio, no referencial do carro assumindo
uma transformação Galileana de coordenadas.
(c) Ler das equações das coordenadas X(T ) e Y (T ) a ve-
locidade do comboio no referencial do carro.
(d) Representar num gráfico X, Y a trajectória do comboio
no referencial do carro.

12.5. Uma nave com comprimento próprio, no referencial em que


está em repouso, l = 200 m move-se com velocidade 3c/4 no
referencial de uma estação espacial. Duas explosões ocorrem
em simultâneo no referencial da nave em extremos opostos
da mesma.

(a) No referencial da estação, qual das explosões ocorre pri-


meiro? A da frente ou a da traseira da nave?
(b) Qual é o comprimento da nave no referencial da estação
espacial?
(c) Que intervalo de tempo decorre entre as duas explosões
no referencial da estação orbital?

Nota: se um sinal de luz for emitido do ponto médio da nave


atinge as extremidades ao mesmo tempo no referencial da
nave, mas não no da estação orbital.

12.6. Qual é mais comprida: uma barra de L = 1 m, em repouso,


ou uma barra com comprimento próprio de 1,20 m com velo-
cidade (segundo o seu comprimento) v = 2c/3?

12.7. No livros do fı́sico George Gamow, As Aventuras de Mr.


Tomkins, Mr. Tomkins, um empregado bancário, depois de
assistir a algumas palestras sobre Relatividade e Mecânica
Quântica é afligido por pesadelos passados em universos em
12.8. RESPOSTA AOS ET V 0 S 249

que a velocidade da luz não é mais que algumas dezenas de


quilómetros por hora, seja c = 80 km h−1 . A mais trivial das
viagens (comboio, ou mesmo bicicleta) é fortemente relati-
vista. Na sua viagem diária para o emprego, Mr. Tomkins
verifica que entre os relógios da estação de partida e chegada
passam 30 minutos. Ao chegar, Mr. Tomkins verifica que
há sempre uma diferença de 5 minutos entre o seu relógio e
o da estação embora ele estivesse certo com o da estação de
partida.

(a) O seu relógio está atrasado ou adiantado, relativamente


ao da estação?
(b) Qual é a velocidade do comboio?
(c) Mr. Tomkins sabe qual é a distância entre estações
(pode vê-la num mapa) e conhece a velocidade do com-
boio. Por isso, em casa, calcula que a viagem lhe de-
mora 30 minutos. Como explica ele que a sua viajem
lhe demore 25 minutos, em vez de 30?

Nota: Ignorar os efeitos de aceleração no inı́cio e fim da y


V

viagem. θ
corrente
x
u

12.8.4 Desafios

12.1. Um barco tem um velocidade máxima, relativamente às água Figura 12.20: Qual é
do rio, igual a vM . Sabemos que, se as águas do rio tiverem velocidade máxima do
uma velocidade ~u, paralela às margens do mesmo, a veloci- barco, V , no referencial
dade máxima do barco em relação à Terra deixa de ser igual da Terra, quando V~ faz
um ângulo θ com a
em todas as direcções.
margem?
(a) Usando a transformação de Galileu, deduzir a expressão
da velocidade máxima do barco, em função do ângulo
θ da sua direcção de deslocamento com a margem, no
referencial da Terra.
250 CAPÍTULO 12. RELATIVIDADE
Apêndice A

Transformação do espaço
e tempo para v qualquer

A.0.5 Dilatação do tempo e contracção de espaço

No texto obtivemos as relações entre o tempo próprio de um re-


lógio, ∆T , e o tempo medido num referencial em que ele se move
com velocidade c/2: √
3
∆T = ∆t.
2
Usando este resultado, verificámos que um objecto de compri-
mento l no seu referencial mede um comprimento menor num re-
ferencial em que se move com velocidade c/2:

3
L= l
2
O método que usámos pode ser generalizado para qualquer velo-
cidade.
No referencial S, (do solo) em vez de postes distando de c/2, usa-
mos postes a uma distância d = v. Um observador ligado a um
referencial C (o Coiote) move-se agora com velocidade v, demo-
rando ∆t = 1 s, em S, a passar entre dois postes sucessivos. Um
sinal de luz (o Road Runner ) é emitido quando o observador passa
na origem e quer o seu relógio quer o do poste marcam 0. Usamos
maiúsculas em C e minúsculas em S.
O observador passa pelo poste n quando este marca n e quando
o seu próprio relógio marca nT0 . Isto é, T0 ∆t é o tempo marcado
pelo relógio com velocidade v, quando em S passa um intervalo de
tempo ∆t.

251
252APÊNDICE A. TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO E TEMPO PARA V QUALQU

Poste Coiote Luz


t T t
0 0,0 0 0,0
I 1,0 T0 v/c
II 2,0 2T0 2v/c
n n nT0 nv/c

Tabela A.1: O que marca o relógio de cada poste quando passa por ele
cada um dos personagens; a velocidade do Coiote é v e ele demora um
segundo a percorrer a distância entre postes sucessivos no referencial S.

O sinal de luz demora, no referencial S,


d v
=
c c
a percorrer a distância entre dois postes. Por isso, quando passa
no poste m este marca um tempo:
v
tm = m .
c

A tabela 12.1 na página 219 passa a ter o aspecto da tabela A.1.


A distância entre entre postes no referencial C é

D = vT0 .

Quando o observador cruza o primeiro poste (T = T 0 ) onde está


o sinal de luz?
Está à frente do observador uma distância cT 0 (velocidade da luz
é um invariante) e por isso está no poste número
cT0 cT0 c
m=1+ =1+ =1+ .
D vT0 v
Nesse momento este poste marca
v  c v v
tm = m = 1 + =1+ .
c v c c

Quando este mesmo poste passa pelo observador, o seu relógio


marca t = m e o relógio do observador T = mT 0 . Portanto os tem-
pos em cada referencial dos seguintes acontecimentos, que ocorrem
precisamente no mesmo ponto do referencial S, no poste m, são:
253

• passagem do sinal de luz pelo relógio m = 1 + c/v:


v
t = 1+
c
T = T0

• passagem do relógio m = 1 + c/v pelo observador:


c
t = m=1+
v
 c
T = mT0 = 1 + T0 .
v

Logo

v2
 
c  v c v c
∆t = 1 + − 1 + = − = 1− 2 ;
v c v c v c
c
∆T = (m − 1)T0 = T0
v
Mas ∆t é tempo medido por um relógio em movimento com ve-
locidade −v no referencial C. Pelo Princı́pio de Relatividade deve
valer:
∆t = T0 ∆T
ou seja,
v2
 
c c 2
1− 2 = T
v c v 0
o que dá r
v2
T0 = 1−
c2
Para v = c/2 voltamos a obter:

3
T0 = .
2

A.0.6 A transformação de Lorentz

A coordenada espacial no poste n no referencial S é

x = nv.

Um evento A que ocorre no poste n com o respectivo relógio a


marcar t tem coordenadas espacial e temporal em S, (x, t). Quais
são as coordenadas X e T em C deste mesmo evento?
254APÊNDICE A. TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO E TEMPO PARA V QUALQU

O relógio n passa na origem do referencial C (o Coiote) em T = nT 0


e t = n. O tempo que decorre desde A até este cruzamento é

∆t = n − t em S;
∆T = nT0 − T em C.

Já vimos que


∆t = T0 ∆T ;
Então

n − t = T0 (nT0 − T )
1
t + nT02 − n .

T =
T0
p
Usando as expressões T0 = 1 − v 2 /c2 e n = x/v, obtemos

x v2
 
1 1  xv 
T =p t− = t − .
v c2 c2
p
1 − v 2 /c2 1 − v 2 /c2

Por outro lado, como a distância entre postes em C é vT 0 e o poste


n avançou deste T = 0 uma distância vT no referencial C:
v  xv 
X = nvT0 − vT = xT0 − t− 2
T0 c
2
   
1 v 1
= x T02 + 2 − vt = p (x − vt)
T0 c 1 − v 2 /c2

Finalmente,
1
X = p (x − vt)
1 − v 2 /c2
1  xv 
T = p t− 2
1 − v 2 /c2 c

são as equações que determinam a transformação de coordenadas


de um evento entre os dois referenciais, (x, t) → (X, T ).
Estas transformações ditas de Lorentz, são uma consequência
dos postulados da Relatividade, mas não foram descobertas por
Einstein; Hendrik Antoon Lorentz, um fı́sico holandês, já tinha
descoberto que as equações de Maxwell mantinham a forma sob
esta transformação de coordenadas. Contudo, foi Einstein quem
primeiro interpretou o significado profundo desta transformação e
compreendeu as suas implicações nos conceitos de espaço e tempo.
Bibliografia

[1] American Institute of Physics. Center for history of physics.


URL: http://www.aip.org/history, 2006.

255
Forças de Ligação
Aplicação das Leis de Newton

*
J. M. B. Lopes dos Santos

6 de Outubro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Reação normal, atrito, forças de cabos e os...

1 Leis de Força
As leis de movimento de Newton caracterizam as inuências mútuas dos corpos nos
respectivos movimentos pelo conceito de força: um corpo A interage com B inuencia
o movimento de B , exercendo sobre B uma força. A terceira lei de Newton estabelece
uma condição geral que qualquer interação satisfaz: a força de A sobre B é simétrica
da força de B sobre A. Mas para além desta condição geral, as três leis de movimento
nada dizem sobre as interações e as leis que as regem. Sem essas leis o programa de
Newton ca incompleto na medida em que, dado um conjunto de corpos, não sabemos
determinar as forças que aparecem no primeiro membro da segunda lei, F = ma, e como
tal não sabemos qual é a aceleração de cada corpo e não podemos determinar o respectivo
movimento.
O próprio Newton preencheu parcialmente esta lacuna ao especicar as lei que governa
uma interação universal que existe entre dois quaisquer corpos, a Gravitação. Essa lei
especica que entre dois corpos em posições rA e rB exercem um no outro uma força na
direção da linha que os une (a direção do vector de posição relativo, rA − rB ), atractiva,
e de módulo
1
mA mB
FAB = G (1)
|rA − rB |2
Se esta fosse a única interação entre corpos, o programa de Newton caria completo.
Conhecendo as posições dos corpos num dado instante, poderíamos calcular as respectivas
acelerações e movimentos.
*
jlsantos@fc.up.pt
1
Ao exprimir a lei nesta forma estamos a assumir que a distância entre A e B é muito maior que as
suas dimensões; ou seja os dois corpos podem ser considerados como partículas.

1
Mas é evidente que as interações entre corpos não são apenas gravíticas. Quando
pousamos um dicionário sobre uma mesa, este ca em repouso. De acordo com a primeira
lei, a resultante das forças que actuam no livro é nula. A menos que consideremos a mesa
como um dispositivo anti-gravidade que anula a atração que a Terra exerce sobre o livro,
este continua sujeito ao peso, P. Como a resultante da forças sobre o livro é nula (segunda
lei), temos de concluir que a mesa (que outro corpo poderia ser?) exerce uma segunda
força sobre o livro, oposta ao peso, −P. Ou seja, uma modesta mesa, que pode ter uma
massa da ordem do quilograma, exerce sobre o livro uma força com a mesma intensidade
que a atração gravítica de toda a Terra, com uma massa de MT ∼ 6 × 1024 kg! É claro
que esta força não é de origem gravítica!
Com efeito, a interação gravítica, na nossa experiência comum, revela-se apenas em
dois contextos: a atração que a Terra exerce sobre os corpos, que como nós, habitam
a sua vizinhança e a atração entre os corpos celestes. Todas as outras forças do nosso
quotidiano puxões e empurrões, força de uma mola, a de um martelo sobre um prego,
do tabuleiro de uma ponte sobre um pilar, de um pneu sobre a estrada, do vento sobre
uma árvore, etc. tem a sua origem última na interação entre cargas eléctricas de que a
matéria é feitainteração electromagnética.
Conhecemos com muito pormenor as leis que governam as interações electromagnéti-
cas; podemos aplicá-las para prever propriedades de átomos ou moléculas com enorme
precisão. Mas quando lidamos com corpos macroscópicos, compostos por números incon-
2
táveis de átomos , não conseguimos aplicar essas leis para calcular as forças. Nesse caso
recorremos a expressões que resumem ainda que de modo aproximado observações
empíricas, ou obtemos as forças a partir dos movimentos observados.
Voltemos ao caso do livro. Como vimos atrás, sabemos exactamente qual é a força
que a mesa exerce sobre o livro, porque o livro não se move. Ou seja, a mesa impõe uma
restrição ao movimento do livro e daí deduzimos o valor da interação entre os dois. Estas
forças são conhecidas como forças de ligação. Talvez valha a pena referir uma concepção
pré-newtoniana comum acerca desta situação.

A mesa não exerce força sobre livro. Como dois corpos sólidos não podem
ocupar o mesmo volume, o peso do livro não o acelera quando este entra em
contacto com a mesa.

O problema desta concepção é que a primeira Lei de Newton não admite excepções.
Aceleração nula implica resultante nula. A ideia corpos sólidos não podem ocupar o
mesmo volume não se sobrepõe, nem contraria a primeira lei. Antes pelo contrário, as
forças de interação entre sólidos tem como consequência este facto e isso permite-nos,
nalgumas situações saber o respectivo valor. De seguida veremos alguns exemplos de
forças de ligação, isto é forças que garantem certas restrições aos movimentos dos corpos.

2
Não são incontáveis por serem innitos; mas são muitos (mesmo muitos!) e o seu número muda de
instante para instante.

2
Figura 1: O cabo está sujeito a duas forças com componente horizontal; uma exercida pelo reboque (F1 ) e outra
pelo carro (−F2 ); (b) diagrama de corpo livre para os três corpos em interacção; (c) diagrama de corpo livre
para o sistema carro+cabo.

2 Forças de Cordas e Fios


Cabos e cordas são frequentemente usados para transmitir forças. Mas o que é a
transmissão de uma força? Imaginemos um reboque que puxa um carro ao qual está
ligado por um cabo. O reboque exerce uma força F1 numa extremidade do cabo. Será
que o cabo exerce a mesma força no carro rebocado (Figura 1)?
O cabo introduz uma restrição ao movimento. O seu comprimento (quase) não varia e
por isso a aceleração das duas extremidades é a mesma. Para analisar este problema do
ponto de vista das leis de Newton, convém considerar as forças nos três corpos: reboque,
cabo e carro.
A gura 1(b) ilustra um diagrama de corpo livre (free body diagram). Do ponto de vista
de adição de forças a forma dos corpos, ou o ponto onde a força é aplicada é irrelevante.
Podemos representar cada corpo por um pequeno símbolo (um quadrado na gura), com
as forças que lhe estão aplicadas. A soma vetorial das forças representadas em cada
quadrado é a resultante das forças que atuam no corpo correspondente e, pela segunda
lei de Newton, determina a aceleração do mesmo.
O reboque exerce no cabo uma força F1 ; o cabo, por sua vez exerce no carro uma
força F2 . Pela terceira lei de Newton, o carro exerce no cabo uma força −F2 ; estas duas
forças são um par acção-reacção. A resultante da forças no cabo é, então, R = F1 − F2 .
Se o movimento do sistema é de velocidade uniforme, a aceleração do cabo é nula e pela
segunda lei a resultante das forças sobre ele exercidas é nula. Nesse caso F2 = F1 e a
força é transmitida pelo cabo. Mas se o sistema como um todo estiver acelerado, a 6= 0,
o cabo terá essa mesma aceleração, e

F1 − F2 = mcabo a ⇒F2 = F1 − mcabo a (2)

A força não é transmitida de uma extremidade à outra do cabo.


A aceleração a do sistema carro+cabo, pode ser obtida da representação da Figura 1.
A única força externa
3 sobre o sistema carro+cabo é F1 . O par F2 , −F2 são forças

3
Com componente horizontal, claro. O peso neste contexto não é relevante.

3
internas deste sistema, não são forças exercidas por outros corpos. A sua resultante é
nula (terceira lei). Assim,
F1 = (mcarro + mcabo ) a; (3)

como
F2 = mcarro a, (4)

a força exercida pelo reboque será maior que a força exercida pelo cabo na outra extre-
midade.
O diagrama da Figura 1(b) mostra um força sobre o reboque com sentido oposto ao
da sua aceleração. Na verdade, não estão representadas todas as forças sobre o reboque,
apenas as que resulta das interações com o cabo e carro. Para o reboque ter aceleração
a, terá de existir uma força F3 , de tal modo que

F3 + (−F1 ) = mreb a.

Essa força é exercida pelo solo sobre os pneus do reboque.


Duas notas sobre este argumento:

ˆ É importante notar que usamos a mesma aceleração para o carro e o cabo e reboque.
Isso é precisamente a restrição que o cabo de comprimento xo impõe; enquanto
o comprimento do cabo se mantiver, os deslocamentos e consequentemente as
velocidades e acelerações, do carro e do reboque são iguais.

ˆ Só usámos as leis de Newton para obter as forças. Não tivemos de invocar qualquer
propriedade de transmissão de forças pelo cabo.

Como conciliar esta análise com a ideia comum que as forças nas extremidades de cabos
e os tem sempre o mesmo módulo? Se a massa do cabo for muito menor que a do carro,
mcabo  mcarro ,
mcarro a  mcabo a
e
F1  mcabo a,
o que implica, pela Eq.2,
F2 ≈ F1
Esta aproximação só é valida quando a massa dos cabos/os é muito menor que a dos
corpos que ligam. Esta é a origem do modelo de cabos e os sem massa; não existem os
ou cabos sem massa, mas apenas cabos/os de massa muito menor do que a dos corpos
que ligam.

3 Forças entre superfícies: reacção normal e atrito


3.1 Reacção normal

No preciso momento em que escrevo estas notas o meu portátil está pousado numa mesa.
O peso do portátil, por si só, imprimir-lhe-ia um movimento vertical descendente. Isso

4
F

Figura 2: Mesmo em situações estáticas (acelerações nulas) a reação normal de uma mesa sobre um corpo não é
sempre igual ao peso do mesmo. Mas é sempre determinada pela condição de que a aceleração nula tem de
corresponder força resultante nula. Na gura a reação normal da mesa é igual ao peso no carro do meio, é maior
no da esquerda e menor no da direita.

não acontece, contudo, porque a mesa está no caminho. De acordo com a primeira lei,
a mesa impede o movimento do portátil porque exerce sobre ele uma força simétrica do
peso do portátil, de tal modo que a resultante das forças sobre o portátil é nula. Esta
é claramente um força de ligação, cujo valor é determinado pela restrição ao movimento
do portátil. Note-se que a força exercida sobre a mesa não é o par acção-reacção do
peso do corpo. A terceira lei é clara: a reação a uma força exercida por B em A é uma
força exercida em B
A). Um par acção-reacção nunca é um par de forças exercidas
(por
num mesmo corpo. O peso P é uma força exercida pela Terra, a sua reacção é uma força
exercida sobre a Terra. A força exercida sobre a mesa pelo portátil, F não é o seu peso:
é uma força de natureza electromagnética. A reação da mesa a esta força, pela terceira
lei de Newton, é −F. Por isso a resultante das forças sobre o portátil é

R = P + (−F)

Se o portátil está em repouso R=0 e por isso é que F =P.


Assim entre superfícies sólidas em contacto podem surgir forças na direção da normal
comum às duas superfícies, que asseguram que os corpos sólidos que as superfícies deli-
mitam não ocupam o mesmo espaço. Estas forças chamam-se forças de reação normal.
Entre superfícies que não estão coladas, estas forças são sempre repulsivas; isto é a força
de A sobre B é dirigida de A para B (para fora do volume delimitado por A). Estas
forças de ligação designam-se por forças de reacção normal. para a situação comum
de um corpo pousado num superfície horizontal, a reação da superfície tem uma intensi-
dade igual ao peso do corpo, como vimos acima. Mas isto não é de modo nenhum uma
situação universal. A reação normal tem sempre de ser calculada, a partir das restrições
que impões ao movimento, de modo a satisfazer, sempre, as leis de Newton.

3.2 Atrito

Empurrar um carro travado é quase como empurrar uma parede. Se o carro não se move,
deve ser, certamente, em virtude das forças exercidas pelos calços dos travões nas rodas.

5
111111111111111111
000000000000000000

11111111111
00000000000
00000000000
11111111111
00000000000
11111111111

Figura 3: A área de efectivo contacto entre os materiais de dois corpos é muito menor do o que que parece à
nossa escala.

Atenção, não é! Pelo princípio de acçãoreacção as rodas exercem no calços uma força
oposta à que os calços exercem nas rodas: estas forças cancelam-se mutuamente e não
podem cancelar a força externa com que empurramos o carro. O que impede o carro de
se movimentar são forças exercidas pelo pavimento nos pneus. Estas forças não são a
reacção normal do pavimento. A força com que empurramos o carro é paralela à estrada
e só pode ser anulada por uma força com a mesma direcção e sentido oposto. A reacção
normal é perpendicular à superfície da estrada.
Entre superfícies sólidas surgem, então, forças que se opõem ao deslizamento relativo
de uma sobre a outra. São um facto da vida e chamam-se forças de atrito4 .
Um mundo sem atrito seria verdadeiramente estranho. Se espirrássemos à mesa, o
copo, o prato e o resto da louça saiam a voar sobre a mesa. A falta de atrito entre a
cadeira onde nos sentamos e o chão faria com que deslizássemos no sentido oposto. Os
talheres escorregar-nos-iam nas mãos como enguias. Se tocássemos numa cadeira ela
poderia deslizar pela sala fora até à parede. O motor de um carro poderia funcionar e
pôr as rodas em movimento; mas estas rodariam sobre o pavimento como sobre gelo e o
carro não andaria. E se andasse, como travá-lo?
Apesar de ser tão comum e familiar, o atrito entre superfícies é um fenómeno extre-
mamente complexo, cuja natureza microscópica não está completamente compreendida.

3.3 Atrito estático

No caso do carro travado, referido acima, quanto vale a força de atrito exercida pelo
pavimento nos pneus?
Se empurrarmos o carro com uma força de 10 N a força de atrito vale 10 N; se a força
aplicada for 100 N a força de atrito vale 100 N; se for de 1000 N a força de atrito vale,
igualmente, 1000 N. Com efeito, se um carro travado se pusesse em movimento com uma
força externa de 1000 N (aproximadamente o peso de 100 kg), ou os travões, ou o piso dos
pneus, não estariam em condições.
Esta situação é semelhante à da força de reacção normal. Aquilo que chamamos super-
fícies lisas são, à escala microscópica, superfícies altamente irregulares com saliências

4
Os travões impedem as rodas de rodar nos seus eixos. Com o carro destravado os pneus podem rodar
e o carro desloca-se sem que a superfície do pneu escorregue na estrada!

6
v =0
F F

(a) (b)
Figura 4: Lei de Amonton-Coulomb: (a) se a força externa, for inferior em módulo a µN , o módulo da força de
atrito é igual ao da força externa; (b) se F > µN o corpo entra em movimento.

Material 1 Material 2 µ (estático) µc (cinético)


Cobre Cobre 1,21 
Vidro Vidro 0,9 ∼ 1,0 0,4
Grate Grate 0,1 
Teon Teon 0,04 
Borracha Asfalto(seco) 0,5 ∼ 0,8 
Borracha Asfalto(molh.) 0,25 ∼ 0,075 
Alumínio Alumínio 1,05 ∼ 1,35 1,4
Tabela 1: Coecientes de atrito entre algumas substâncias (superfícies secas). Estes valores são extremamente
sensíveis às condições das superfícies.

e reentrâncias em escalas muito maiores que o tamanho de um átomo . Quando duas


5
superfícies são pressionadas uma contra a outra a área efectiva de contacto entre os dois
materiais é muito menor que a área de contacto vista à nossa escala. A força de reacção
normal é exercida apenas em pequeníssimas pontes onde os materiais se tocam e se ligam.
Quando tentamos deslocar um corpo sobre o outro, essas pontes de ligação deformam-se
e surge uma força que se opõe a esse deslocamento: a força de atrito estático.
No entanto essas pontes de ligação são frágeis, e com facilidade se quebram, se a força
externa exceder um certo valor limite: a força de atrito entre duas superfícies tem um
valor máximo possível, Fmax . Se o módulo da força externa exceder Fmax , a resultante
deixa de ser nula e o corpo põe-se em movimento.
A lei empírica de Amonton-Coulomb descreve razoavelmente o fenómeno, na situ-
ação de duas superfícies sólidas em contacto. O valor máximo da força de atrito é
proporcional à força de reacção normal que cada superfície exerce na outra:

Fa ≤ Fmax = µN (5)

em que µ, o coeciente de atrito estático, depende da natureza das superfícies em con-


tacto.

5
Há uma excepção. Certos cristais separam-se naturalmente segundo determinados planos atómicos. As
superfícies resultantes, superfícies de clivagem, podem ser muito regulares mesmo à escala atómica.

7
Podemos agora perceber por que é tão difícil deslocar um carro travado. Se o peso do
carro for de 15 000 N (m ∼ 1500 kg) e usando o valor de µ = 0,5, só será possível deslocar
o carro aplicado uma força superior a

µN = µmg = 7 500 N.
(aproximadamente o peso de 750 kg).
Atrito estático: teoria de Bowden e Tabor
A ideia de que a área de contacto efectivo entre duas superfícies, A , é muito menor
que a área macroscópica foi desenvolvida por Bowden, Tabor e colaboradores na
c

Universidade de Cambridge, na década de 1950.


Segundo estes autores, o contacto estabelece-se apenas entre as asperezas dos dois
materiais (ver g. 3) que cam soldadas a frio, pela pressão elevada que suportam.
Bowden e Taylor propuseram que a área efectiva de contacto seria proporcional à
força normal de compressão das superfícies, N,
N = PA , c (6)
em que P é uma pressão característica dos dois materiais em contacto. Se aumen-
tarmos N , a área de contacto aumenta mas P é a mesma.
Por outro lado, estas pontes de contacto, se sujeitas a forças horizontais, paralelas à
superfície, quebram se a força por unidade de área ultrapassar um limite, s. Assim
a força de atrito máxima será
F =A s=N .
max c
P
s
(7)
Segundo esta teoria o coeciente de atrito estático é dado pelo cociente, s/P , de duas
pressões características dos materiais em contacto.
Esta ideia explicaria por que razão a força de atrito não parece depender da área
macroscópica de contacto. Um bloco prismático assente sobre qualquer face terá o
mesmo valor de F , porque a área efectiva de contacto será a mesma.
Investigações recentes têm conrmado a hipótese 6. Contudo o valor de µ previsto
max

por esta teoria, µ = s/P , pode ser calculado para superfícies metálicas e é sistema-
ticamente mais baixo do que é observado.
A investigação dos mecanismos microscópicos do atrito continua muito activa .

3.4 Atrito cinético

6
Quando um carro em movimento trava, bloqueando as rodas , os pneus escorregam
(derrapam) sobre a estrada e esta exerce uma força de sentido oposto à velocidade do
carro, pelo que esta diminui. A borracha que é arrancada aos pneus nas travagens é uma
boa evidência da existência desta força.
Mais uma vez a força de atrito é tanto maior quanto maior for a reacção normal de
uma superfície sobre a outra:
Fa = µc N. (8)

6
Para os conhecedores: é um carro sem ABS. Quando as rodas rolam sobre a estrada, em vez de
escorregar, a análise do fenómeno de atrito é mais subtil e ca para mais tarde.

8
Contudo:

ˆ Este é o valor da força de atrito quando a velocidade relativa das superfícies não é
zero. No caso estático (superfícies em repouso relativo), uma lei semelhante dá o
valor máximo da força de atrito.
ˆ O coeciente µc , coeciente de atrito cinético, não é igual ao coeciente de
atrito estático µ: em geral, é menor.
7

Uma consequência importante desta lei tem a ver com a segurança rodoviária.
Se consultarmos um manual de código, vericamos que as distâncias de segurança
recomendadas, distâncias necessárias para imobilizar um veículo, dependem apenas da
velocidade inicial: a mesma tabela serve para veículos de qualquer peso.
Para um carro de massa m numa estrada horizontal, a reacção normal da estrada, ~,
N
tem módulo N = mg . A aceleração devida à força de atrito é

Fa µc mg
a= = = µc g.
m m
Esta aceleração não depende da massa (ou peso) do veículo, apenas do coeciente de
atrito entre os pneus e o pavimento. Dois veículos de pesos diferentes, terão a mesma
aceleração numa derrapagem; se as velocidades iniciais forem idênticas, carão imóveis
depois de percorrida a mesma distância.

7
Imagina que estás a estender um mola. A força que exerces vai crescendo à medida que o comprimento
da mola aumanta. Mas se atingires o limite de elasticidade e a mola car denitivamente deformada
(deformação plástica), sentirás uma diminuição da força necessária para continuares a estendê-la.
Os mecanismos responsáveis pelas deformações elástica e plástica são diferentes. Possívelmente, algo
semelhante se passa no com o atrito. Os mecanismos do caso de atrito estático e cinético são diferentes
e por isso os coecientes respetivos podem também ser diferentes.

9
Movimento em Três Dimensões
Lições de Mecânica

*
J. M. B. Lopes dos Santos

29 de Setembro de 2021

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

Uma introdução à descrição do Movimento em 3D, e aos conceitos de tra-


jectória, comprimento de arco, curvatura e acelerações normal e tangencial.

1 Trajectória

Quando um corpo se move no espaço tri-dimensional (o qual designaremos por E3 ) e a


sua posição é modelizada por um ponto, o seu movimento dene um subconjunto de E3 ,
designado por trajectória. Formalmente a trajectória é a imagem da função

t 7→ r(t) ∈ E3 (1)

em que t é o tempo, pertencente ao intervalo em que o movimento está denido, e


r(t) representa o vector de posição do corpo num dado referencial. Em linguagem mais
coloquial a trajectória é o conjunto de posições ocupadas pelo corpo.
Eis alguns exemplos:

a) Dado um vector v, a equação


r(t) = r0 + vt (2)

dene uma recta se t ∈ ]−∞, ∞[, ou segmento de recta se t ∈ ]ti , tf [ , já que, para
quaisquer dois instantes t1 , t2 ,

r (t2 ) − r (t1 ) = v (t2 − t1 ) (3)

e o deslocamento tem sempre a mesma direção, a do vector v.

*
jlsantos@fc.up.pt

1
b) Dado um vector v e uma função f (t)

r(t) = r0 + vf (t); (4)

o conjunto de pontos ocupados pelo corpo é em geral um segmento da mesma recta


do caso anterior.

c) Dados uma distância r e uma frequência ω, se

r(t) = r [cos(ωt)ˆ + sin (ωt)ˆ] , (5)

a trajectória é (parte) de um círculo pois a distância à origem é constante:

p q 
r (t) · r(t) = r2 cos2 (ωt) + sin2 (ωt) = r

(6)

Esta denição de um subconjunto de E3 por uma aplicação t 7→ r(t), que surge muito
naturalmente no contexto da descrição de um movimento, é designada em Matemática
por denição paramétrica de uma curva. Uma mesma curva (trajectória) pode ser per-
corrida de modos muito distintos. Por exemplo, se no caso b) escolhermos f (t) = t3 , a
trajectória é a mesma do caso a) (a mesma recta) mas os movimentos são distintos: no
primeiro caso é uniforme e no segundo variado (com aceleração variável).

1.
Na Eq.(4), identica a trajectóriareta real, semi-reta segmento de reta, para os seguintes
Exercício

exemplos, sendo t ∈] − ∞, ∞[ (Unidades SI)


1. f (t) = 2t ; 2

2. f (t) = 2 sin (t)


3. f (t) = e −t

4. f (t) = t + t
2 3

Torna-se útil para a descrição de movimentos separar as características intrínsecas da


trajectória, do modo como ela é percorrida. Nas secções que se seguem teremos isso em
conta.

1.1 Velocidade e Tangente

O deslocamento entre dois instantes é denido por

∆r = r(t2 ) − r(t1 ) (7)

Pode ser geometricamente representado por um segmento orientado do ponto inicial para
o nal, ou por qualquer outro equipolente a este (Fig. 1). As suas componentes num

2
Figura 1: Quando um ponto se desloca no espaço, as suas projecções nos eixos coorde-
nados têm um movimento 1D.

sistema de eixos ortogonais


1 são

∆x = x (t2 ) − x (t1 ) , (8a)

∆y = y (t2 ) − y (t1 ) , (8b)

∆z = z (t2 ) − z (t1 ) , (8c)

isto é,
∆r = ∆xˆ + ∆yˆ + ∆z k̂. (9)

Quando t2 − t1 → 0, ∆x, ∆y, ∆z → 0 também Claramente, o vector deslocamento


∆r → 0, já que o ponto nal e inicial coincidem quando o intervalo de tempo tende para
zero. Como vimos, os limites

∆x
lim = vx (t1 ) (10a)
∆t→0 ∆t
∆y
lim = vy (t1 ) (10b)
∆t→0 ∆t
∆z
lim = vz (t1 ) (10c)
∆t→0 ∆t

denem as velocidades das projeções da posição nos eixos coordenados e são, em geral,
nitos. O vector velocidade instantânea é então denido por

∆r
lim = v (t1 ) = vx (t1 )ˆ + vy (t1 )ˆ + vz (t1 ) k̂ (11)
∆t→0 ∆t
A direcção deste vector é a da recta limite de uma secante à trajectória quando os pontos
de intersecção tendem um para o outro. Parece natural tomar a direcção de v(t) como

1
Neste texto usamos a notação (ˆ, ˆ, k̂) para os versores dos eixos coordenados, (êx , êy , êz ).

3
denindo a direcção da tangente à trajectória em r(t). E de facto é assim que se dene a
direção da tangente a uma curva denida parametricamente por uma aplicação t 7→ r(t).2
1
v̂(t) = v(t) (12)
|v(t)|
e parece claro que é uma propriedade da curva descrita no movimento; não depende do
modo como a trajectória é percorrida, desde que o sentido não seja alterado. O vector
velocidade pode então ter a forma

v(t) = |v(t)| v̂(t) := v(t)v̂(t) (13)

Nestes dois factores separamos as características intrínsecas da trajectória, v̂(t), do mó-


dulo da velocidade, v(t), que depende do modo como a trajectória é percorrida.

2.
Considera a curva plana (trajectória) denida parametricamente por
Exercício

r(t) = 2 cos(2πt)ˆ + tˆ (Unidades SI)


 

Contrói um vetor tangente a esta curva no ponto de coordenadas (x, y) = (2, 2) e determina o
ângulo que faz com o eixo Ox.

2
Este vector só pode ser denido se |v(t)| 6= 0. Se, para um movimento, a velocidade se anular num
dado ponto, isso não signica que a tangente à trajectória esteja indenida nesse ponto. Um outro
movimento com a mesma trajectória (uma mudança da equação paramétrica de curva) pode permitir
denir o versor tangente.

4
Curvas e Parametrizações .

Como vericar que dois movimentos distintos têm a mesma trajectória,


t 7→ r1 (t) (14a)
t 7→ r2 (t)? (14b)
Comecemos por alterar a designação da variável tempo no segundo movimento para as poder distinguir.
τ 7→ r2 (τ ) (15)
Se a trajectória é a mesma, para cada t deveremos ter um τ (t) tal que
r2 (τ (t)) = r1 (t) (16)
A velocidade no segundo movimento é
dr2 (τ )
v2 (τ ) = (17)

o que nos permite escrever, aplicando a regra de derivação da função composta,

dr1 (t) dr2 (τ (t)) dr2 (τ ) dτ
v1 (t) = = =
dt dt dτ τ (t) dt

= v2 (τ (t)) (18)
dt
Na primeira linha, a expressão
dr2 (τ )
dτ τ (t)
designa a derivada da função de r2 em ordem à variável τ , calculada no ponto τ (t), em que t é o que
aparece no primeiro membro da equação. Por exemplo, se t = 5, será a função derivada no argumento
τ (5).
Se a trajectória for percorrida no mesmo sentido nos dois movimentos, as velocidades terão não apenas
a mesma direcção, como resulta da Eq. 18, mas também o mesmo sentido, o que implica dτ /dt > 0.
Fica claro que o versor da velocidade é o mesmo para os dois movimentos: tal como intuímos é uma
propriedade da trajectória.
v1 (t) v2 (τ (t)) dτ
v̂1 (t) = = dt = v̂2 (τ (t)) (19)
|v1 (t)| |v2 (τ (t))| dτ
dt

2 Comprimento de arco.

Medir o comprimento de um segmento de recta é uma operação directa: usamos uma


régua. Por outro lado o conceito de perímetro de um círculo, 2πr, é familiar. Mas não
podemos medi-lo com uma régua: o círculo é uma curva e não podemos sobrepô-lo a
uma régua. Como medir então o seu comprimento?
A Fig. 2 ilustra um método possível. Em (a) inscrevemos um quadrado de lado `1 (cujo
perímetro pode ser medido com um régua) no círculo. Uma aproximação ao perímetro
do círculo seria
L4 = 4`1 . (20)

É, obviamente, uma aproximação com erro por defeito: o perímetro do círculo é superior

5
Figura 2: Como medir o perímetro de um círculo?

Figura 3: O comprimento da corda é 2r sin (θ/2).

a L4 . Em (b), com um régua mais pequena, inscrevemos um octógono. Parece que

L8 = 8`2 (21)

está mais próximo do perímetro do que L4 . Com efeito L8 > L4 , visto que a soma dos
comprimentos de dois lados do octógono é superior ao de um lado do quadrado; mas,
por outro lado, L8 é ainda menor que o perímetro do círculo. Aumentando o número de
lados do polígono inscrito devemos convergir para o verdadeiro comprimento do círculo.
Vejamos que assim é.
O comprimento de uma corda que sub-tende um ângulo θ é , como se vê na Fig. 3,

 
θ
d = 2r sin (22)
2

6
Figura 4: Como calcular o comprimento de uma curva genérica.

Para um polígono regular inscrito de n lados, cada lado sub-tende um ângulo 2π/n e o
perímetro é π  π 
Ln = 2nr sin = 2r × n sin (23)
n n
denindo x = π/n, vem
sin(x)
Ln = 2πr × (24)
x
Quando n → ∞, x → 0. Usando

sin(x)
lim =1 (25)
x→0 x
vem
P = lim Ln = 2πr (26)
n→∞
um resultado bem familiar.
Vejamos com podemos usar esta ideia para uma curva mais geral. Suponhamos uma
curva percorrida por uma partícula entre dois instantes [t0 , t]. A nossa primeira aproxi-
mação ao comprimento será simplesmente o módulo do vector deslocamento entre t0 e
t.
S2 = |r(t) − r (t0 )| (27)

Se dividirmos o intervalo [t0 , t] em n intervalos t0 , t1 , . . . tn−1 , tn = t


n−1
X
Sn = |r(tn+1 ) − r (tn )| (28)
n=0

7
podemos denir o comprimento de arco entre r(t0 ) e r(t) como o limite desta expressão
quando n → ∞. Mas, nesse caso, o deslocamento em cada intervalo innitesimal é

r(tn+1 ) − r (tn ) = v(tn ) (tn − tn−1 ) = v(tn )∆t (29)

e
n−1
X
s (t, t0 ) = lim |v(tn )| ∆t (30)
n→∞
n=0

Mas esta é a denição de integral da função v(t)) = |v(t)| , o módulo da velocidade.

Z t
s (t, t0 ) = v(t0 )dt0 (31)
t0
Este integral dene o comprimento de um arco descrito por uma partícula de velocidade
v(t).
Uma trajectória pode ser percorrida em dois sentidos. Por exemplo, num lançamento
vertical a partícula sobe, para e volta a descer. Se t0 = 0 for o momento de lançamento
e tf o instante de regresso à posição inicial, o que é que obtemos para o comprimento de
arco?
Não é difícil ver que obtemos duas vezes a altura atingida. Com efeito v(t) = v0 − gt e

Z tf
s (tf , 0) = |v0 − gt| dt
0
Z tf /2 Z tf
= (v0 − gt) dt + (gt − v0 ) dt (32)
0 tf /2

em que
tf 2v0
v0 − g = 0 ⇒ tf = . (33)
2 g
Obtemos
 2 "  2 #
tf 1 tf tf 1 tf
s (tf , 0) = v0 − g − v0 + g t2f −
2 2 2 2 2 2
1
= gt2f = 2h. (34)
4
Embora o conjunto de pontos percorridos pela partícula seja apenas um segmento de
comprimento h o arco é esse segmento uma vez para cima e outra para baixo e o seu
comprimento é 2h.
Numa segundo nota reparemos que
Z t2
x(t2 ) − x(t1 ) = vx (t)dt (35)
t1

implica que
dx
vx (t) = (36)
dt

8
Figura 5: Se a trajectória é percorrida em dois sentidos, entre t0 e t a Eq. 31 dá um
comprimento de arco que é a distância total percorrida pela partícula, 2h.

Por, isso podemos igualmente concluir de

Z t
s (t, t0 ) = v(t0 )dt0 (37)
t0

que
d
v(t) = s (t, t0 ) (38)
dt
É este o sentido da armação que o módulo da velocidade é a distância percorrida por
unidade de tempo e
ds
v (t) = v̂ (t) (39)
dt

3 Aceleração e Fórmulas de Frenet

Com o conhecimento que temos do conceito de derivada não surpreende que possamos
denir a aceleração
dv(t)
a (t) = (40)
dt
ou, explicitamente,
1
a (t) = lim [v (t + ∆t) − v(t)] (41)
∆t→0 ∆t
Todas as operações do segundo membro são conhecidas como operações em vectores:
v (t + ∆t) − v(t) é a soma de dois vectores (v (t + ∆t) e −v(t)) e o produto por 1/∆t
é o produto por um escalar. A aceleração, tal como a velocidade, é um vector cujas
componentes cartesianas são

dvx dvy dvz


a (t) = ˆ + ˆ + k̂ (42)
dt dt dt
Uma vez que sabemos que a aceleração é uma vector, que interpretação podemos dar ao
seu módulo e direcção?
A velocidade, sendo um vector, pode variar:

9
Figura 6: Se a velocidade só variar em módulo, ∆v e, consequentemente a(t), são para-
lelas a v(t).

1. Só em módulo;

2. Só em direção;

3. Em módulo e em direção.

No primeiro caso, é claro que a aceleração terá a direção da velocidade: se v(t) e v(t+∆t)
tem a mesma direção, a variação de velocidade ∆v = v(t + ∆t) − v(t) tem a direção
deste dois vectores (Fig. 6) Como

v(t) = v(t)v̂(t), (43)

o caso 1 corresponde a haver uma variação apenas do módulo (v̂(t) constante) e

dv(t)
a(t) = v̂ (t) (44)
dt
O caso 2 corresponde a uma variação apenas na direção: ou seja, v(t) não varia, mas
a direção, dada por v̂(t), altera-se. Um vector de módulo constante varia deslocando a
sua extremidade sobre uma esfera. No limite em ∆t → 0 a direção de ∆v̂ está no plano
tangente à esfera, ou seja normal a v̂.

3.
O argumento geométrico dado acima, de que a derivada de um vector de módulo constante é
Exercício

normal (ortogonal ) a esse vector, pode ser conrmado do modo seguinte. Se a norma de u (t) é
constante, a sua norma quadrada também é
2
ku(t)k = const.

Então 2
u(t) · u(t) = ku(t)k
tem derivada temporal nula. Mostra que isso é suciente para concluir que u e du/dt são
ortogonais.
Por isso, no caso 2, a aceleração é perpendicular à velocidade. Assim

d
a(t) = v v̂(t) (45)
dt

10
Figura 7: Se a velocidade só variar em direção a sua extremidade desloca-se sobre um
círculo (2D) ou uma esfera (3D). Em qualquer caso, no limite em que ∆t → 0,
a direção de ∆v é perpendicular a v.

Um resultando importante pode ser obtido separando na derivada do versor v̂ aspectos


que dependem apenas da geometria da trajectória, e não do modo como esta é percorrida.
Comecemos por notar que escolhendo uma origem (t = 0) para medir o comprimento
de arco Z t
s(t, 0) = v(t)dt := s(t) (46)
0
denimos para cada instante, t e cada ponto da trajectória, r(t) um valor s(t), a distância
percorrida desde t = 0. Então

v̂(t + ∆t) − v̂(t) v̂(s (t + ∆t)) − v̂(s (t)) ∆s


= (47)
∆t ∆s ∆t
em que ∆s = s(t + ∆t) − s(t). Ao tomarmos o limite ∆t → 0 obtemos

dv̂ dv̂ ds dv̂


= = v(t) (48)
dt ds dt ds
Como v̂ tem módulo unitário, a sua derivada em ordem a s é normal à velocidade tem
a forma
dv̂
= κn̂ (49)
ds
em que n̂ é um versor normal a v̂, que aponta no sentido em que este roda. O parâmetro
κ é o módulo de dv̂/ds,

dv̂
κ = .
ds
Neste caso, a aceleração dada por

dv̂ dv̂
a (t) = v = v2
dt ds
= κv 2 n̂ (50)

Quer v̂, quer s, quer n̂ são características geométricas da trajectória. Por isso κ, a taxa de
variação da tangente por unidade de comprimento do arco, é também uma característica
da trajectória, designada por curvatura.

11
Figura 8: A curvatura κ em s1 é o limite ∆θ/∆s quando ∆s → 0.

Em geral a curvatura varia de ponto para ponto. Quanto maior o ângulo que roda a
tangente à trajectória, v̂, por unidade de distância percorrida maior é a curvatura. Se o
ângulo que v̂ roda entre s e s + ∆s for ∆θ, temos

|∆v̂| sin (∆θ/2) sin (∆θ/2)


= 2 |v̂| =2 (51)
∆s ∆s ∆s
No limite em que ∆s → 0

dv̂ sin (∆θ/2) ∆θ dθ
κ = = lim = (52)
ds ∆s→0 ∆θ/2 ∆s ds

A curvatura é a taxa de variação do ângulo da tangente, por unidade de comprimento de


arco. Como as suas dimensões são as do inverso de um comprimento, designa-se por raio
de curvatura o inverso de κ
1
κ= . (53)
R
Conclui-se facilmente desta discussão que no caso geral, em que a velocidade varia em
módulo e em direção, a aceleração tem duas componentes: uma é paralela à velocidade
aceleração tangencial, e resulta da variação do módulo da velocidade; a segunda é
perpendicular à velocidadeaceleração normal e ocorre sempre que a direção da velo-
cidade varia,

dv(t) dv̂
a (t) = v̂ (t) + v(t)
dt dt
dv(t) 2
v (t)
= v̂(t) + n̂(t) (54)
dt R(t)

3.1 Interpretação geométrica do raio de curvatura

Suponhamos que escolhemos três pontos próximos numa curva, A, B


C , que, por sim-
e
plicidade, supomos plana (Fig. 9). A recta perpendicular ao segmento AB pelo seu ponto

12
A B

C
O
R

Figura 9: Construção geométrica do raio de curvatura

Figura 10: Como varia a raio de curvatura de uma elipse, ao longo da mesma?

médio é o lugar geométrico dos pontos equidistantes de A e B. Por isso, a intersecção


desta com a perpendicular pelo ponto médio ao segmento BC é um ponto equidistante
de A, B e C. Com centro nesse ponto podemos traçar um círculo que passa por estes três
pontos A B e C . O raio desse círculo, quando A → B e C → B , é o raio de curvatura da
curva em B. Esta construção dá-nos uma interpretação geométrica de raio de curvatura.
O círculo que melhor encosta à curva em B , no sentido de ser o círculo que passa por
três pontos muito próximos, tem um raio que é o raio de curvatura em B .
Repare-se na relação entre este conceito e o de tangente. A tangente indica a direção
da curva num dado ponto; é a recta que melhor se aproxima da curva num ponto. O
círculo de raio R é, de modo semelhante, o círculo que melhor se ajusta localmente à
curva.

4.
Na curva da Fig.(10) (uma elipse) podemos identicar cada ponto pelo ângulo θ ∈ [0, 2π[.
Exercício

Esboça um gráco do raio de curvatura da elipse em função do ângulo θ.

13
O Raio de Curvatura .

Será que a denição geométrica do texto coincide com a que tiramos das fórmulas de Frenet? Podemos
ligar as duas denições usando a nossa representação da curva como trajectória de um movimento r(t).
Tomemos como origem o ponto B da curva (t = 0), e suponhamos que A é a posição em −∆t e C em
∆t > 0. O centro do círculo é rO . A equidistância a A B e C (rB = 0) exprime-se como

|rO − r (−∆t)| = |rO | = |rO − r (∆t)| (55)


ou
|rO − r (−∆t)|2 = |rO |2 = |rO − r (∆t)|2 (56)
Usando |a| = a · a, tiramos duas equações
2

|r (−∆t)|2 − 2rO · r(−∆t) = 0 (57)


2
|r (∆t)| − 2rO · r(∆t) = 0 (58)
Agora consideramos o limite em que ∆t → 0, A → B e C → B. Se usarmos a fórmula de Euler,
r(−∆t) ≈ −v(0)∆t (59)
r(∆t) ≈ v(0)∆t (60)
nas equações anteriores, vem

|v(0)|2 ∆t2 + 2rO · v(0)∆t = 0 (61)


2 2
|v(0)| ∆t − 2rO · v(0)∆t = 0 (62)
de onde concluímos
2rO · v(0) = 0
o que está correcto, mas também
|v(0)|2 ∆t2 = 0
o que, em geral, não é verdade. Recordemos que a fórmula de Euler ignora a variação de velocidade
no intervalo ∆t. Podemos ir um passo mais à frente e tomar a aceleração como constante (não nula)
nesse intervalo. Nessa aproximação o movimento no intervalo ∆t é
1
r(−∆t) ≈ −v(0)∆t + a (0) ∆t2 (63)
2
1
r(∆t) ≈ v(0)∆t + a (0) ∆t2 (64)
2
e
1
|v(0)|2 ∆t2 + 2rO · v(0)∆t − 2rO · a(0)∆t2 = 0 (65)
2
1
|v(0)|2 ∆t2 − 2rO · v(0)∆t − 2rO · a(0)∆t2 = 0 (66)
2
Daqui decorre, como antes, 2rO · v(0) = 0,o que signica que o vector de posição do centro do círculo
limite está na direção normal à velocidade em B , e
|v(0)|2 = rO · a (67)
Como rO é normal a v(0) podemos exprimir este resultado em termos da aceleração normal an
2
vB
|v(0)|2 = rO an =⇒ an = (68)
rO
ou seja, a distância do centro do círculo limite a B é o raio de curvatura nesse ponto, tal como o
denimos anteriormente.

14
^j

^i
r y

Figura 11: relação entre coordenadas cartesianas e polares.

4 Movimento Circular e Coordenadas Polares

O movimento com trajectória circular é um dos movimentos planos mais simples. Se


pensarmos em máquinas que têm peças em rotação (é muito mais difícil pensar em
máquinas que não têm peças em rotação) vemos que, apesar de simples, tem um papel
central na nossa tecnologia.
É óbvio que escolher a origem do sistema de eixos como centro da trajectória sim-
plica a descrição do movimento. Nesse caso, o raio de curvatura da trajectóriaque é
constante, é também a distância à origem, r . Fica claro que, especicando r e o ângulo
ϕ que o vector de posição faz com o eixo Ox, por exemplo, determinamos completamente
o vector de posição:
r (t) = r [cos (ϕ (t))ˆ + sin (ϕ (t))ˆ] (69)

ou

x(t) = r cos (ϕ (t)) , (70a)

y(t) = r sin (ϕ (t)) . (70b)

Em verdade esta transformação não está limitada a um movimento circular. De um modo


geral conhecer (x, y) ou (r, ϕ) são maneiras equivalentes de especicar a posição de um
ponto no plano (11).
As Equações

x(t) = r(t) cos (ϕ (t)) (71a)

y(t) = r(t) sin (ϕ (t)) (71b)

xam a transformação (r, ϕ) → (x, y), 3


e a transformação inversa é fácil de obter .
p
r= x2 + y 2 (72a)
y
tan ϕ = (72b)
x
3
Note-se que a transformação inversa não está denida para a origem, (x = 0, y = 0). A origem é um
ponto em que ϕ está indenido.

15
θ

Figura 12: ângulos de latitude (θ ) e longitude (ϕ) na superfície da Terra. A coordenda


ϕ indica a posição num círculo, tal como no caso de coordenadas polares.

As coordenadas (r, ϕ) designam-se por coordenadas polares e são muito mais conveni-
entes que as coordenadas cartesianas em muitos movimentos, não apenas no movimento
circular. A simplicação essencial, nesse caso, é que apenas uma das coordenadas polares,
ϕ(t), varia no tempo, uma vez que r(t), a distância à origem, é constante.

5.
Um trajectória parabólica é descrita pelas equações
Exercício

x(t) = v0 t
1
y(t) = h − gt2
2
Obtém expressões para a descrição deste movimento em coordenadas polares (r(t), ϕ(t)).
A conveniência de usar coordenadas não cartesianas não é uma novidade. Quando
queremos indicar a nossa posição na (superfície da) Terra, usamos dois ângulos, a latitude
e a longitude. Para uma latitude xa, a longitude é uma coordenada semelhante à
coordenada polar, indicando a posição num círculo paralelo.
Se queremos descrever um movimento em coordenadas polares, temos que exprimir,
não apenas a posição, mas também a velocidade e aceleração, nestas coordenadas. O
vector de posição escreve-se em coordenadas polares de modo muito económico

r (t) = r(t)êr (ϕ(t)) (73)

em que
êr (ϕ) = cos ϕˆ + sin ϕˆ (74)

é o versor da direção radial. Note-se como o próprio versor êr varia no tempo uma vez
que depende da coordenada ϕ.

16
Figura 13: Linhas coordenadas (com uma coordenada constante, nos sistemas de coor-
denadas cartesianas (azul) e polares (vermelho). Os respectivos versores (ˆ
, ˆ
,
a verde) e (êr , êϕ a magenta) são tangentes às linhas coordenadas.

Num movimento em que apenas varia r (ϕ constante) o deslocamento tem a direção


de êr . Ora os versores ˆ
 eˆ
 são também as direções de movimentos em que apenas varia
uma coordenada: x, no caso de ˆ
 e y no caso de ˆ
. Isso sugere a questão de saber se
podemos denir um versor na direção de movimento de uma partícula em que apenas ϕ
varia. Mas isso é precisamente um movimento circular. Então, se r é constante
     
dr dϕ dϕ
v= =r − sin ϕ (t) ˆ + cos ϕ (t) ˆ
dt dt dt

=r [− sin ϕ (t)ˆ + cos ϕ (t)ˆ] (75)
dt
O vetor unitário tangente à circunferência é então,

êϕ (ϕ) := − sin ϕˆ + cos ϕˆ (76)

Os vectores êr e êϕ têm o mesmo papel em coordenadas polares que ˆ


 eˆ
 em coordena-
das cartesianas; indicam as direções em que varia apenas uma das coordenadas. O versor
ˆ indica a direção em que apenas varia x (y constante) e ˆ
 em que varia y (x,constante);
o versor êr é a direção em que apenas varia r (ϕ xo) e êϕ em que apenas varia ϕ (r
constante). A g. 13 ilustra a relação entre os dois sistemas de coordenadas. A azul estão
as linhas de x ou y constante e a vermelhos as de r (círculos) ou ϕ (raios) constante.
Note-se que tal como (ˆ
, ˆ
) e (êr ,êϕ ) são ortogonais. Mas, ao contrário de ˆ
 e ˆ
, êr e êϕ

17
variam de ponto para ponto, pois dependem de ϕ:

êr = cos ϕˆ + sin ϕˆ (77a)

d
êϕ := − sin ϕˆ + cos ϕˆ = êr . (77b)

Descrever um movimento em coordenadas polares é exprimir a posição, a velocidade e a
aceleração, pelas suas projecções nas direções destes versores, êr e êϕ . É crucial recordar
que os próprios versores variam se variar a coordenada ϕ.
Para terminar esta introdução a coordenadas polares vamos entao escrever as expres-
sões da velocidade e aceleração; não apenas em termos das coordenadas (r, ϕ), mas tam-
bém projectadas segundo os versores êr e êϕ . Veremos que essas expressões são muito
convenientes em movimentos com rotação. Para esse efeito começamos com o vector de
posição que, por denição, só tem componente segundo êr :

r (t) = r(t)êr (ϕ(t)) (78)

Ao calcular a velocidade não podemos esquecer que o versor êr varia no tempo, pois
depende de ϕ(t). Assim,
dr dr d
v= = êr + r êr (79)
dt dt dt
Usando a regra de derivação da função composta ,
4

 
d d dϕ dϕ
êr = êr × = êϕ (80)
dt dϕ dt dt
ou
dr dϕ
v (t) = êr + r êϕ (81)
dt dt
Interpretemos este resultado. A velocidade aparece-nos num dado ponto decomposta
segundo duas direções:

ˆ a direção radial de êr ;

ˆ e a direção tangente ao círculo centrado na origem que passa nesse ponto, êϕ .

O deslocamento na direção radial é a variação de r, ∆r, e por isso essa componente da


velocidade é dr/dt. Um deslocamento innitesimal na direção perpendicular à primeira
é um deslocamento sobre um círculo; o deslocamento é r∆ϕ e por isso a componente
angular da velocidade é r (dϕ/dt). A taxa de variação de ϕ, por razões óbvias, chama-se
velocidade angular.
Passemos agora à aceleração:

   
d dr d dϕ
a(t) = êr + r êϕ . (82)
dt dt dt dt
4
df (g(x)) /dx = f 0 (g(x)) × g 0 (x)

18
r + ∆ r, +∆

r∆ ∆r

Figura 14: Deslocamento projectado nas direções de êr e êϕ .

O cálculo destas derivadas vai gerar vários nos termos, mas no nal poderemos entendê-
los com facilidade.

d2 r
 
d dr dr dêr
êr = êr +
dt dt dt2 dt dt
2
d r dr dϕ dêr
= 2 êr + (83)
dt dt dt dϕ
2
d r dr dϕ
2
êr + êϕ (84)
dt dt dt
O segundo termo é mais complexo

d2 ϕ
 
d dϕ dr dϕ dϕ d
r êϕ = êϕ + r 2 êϕ + r êϕ (85)
dt dt dt dt dt dt dt
Para calcular a última expressão, usamos o mesmo procedimento que usámos para derivar
êr
d dϕ d dϕ
êϕ = êϕ = (−êr ) (86)
dt dt dϕ dt
O último passo obtém-se das denições dos versores êr e êϕ . Juntando termos, obtemos
a expressão completa da aceleração:
" 2 #
d2 r d2 ϕ
  
dϕ dr dϕ
a(t) = −r êr + r 2 + 2 êϕ . (87)
dt2 dt dt dt dt

Vejamos agora a razão do aparecimento destes termos, considerando alguns casos par-
ticulares. No caso em que ϕ = const, ca apenas

d2 r
a(t) = êr para ϕ = const (88)
dt2

19
que é o esperado para um movimento que é rectilíneo na direcção de êr . Por outro lado,
se r = const, a trajectória é circular. Obtemos

" 2 #
d2 ϕ
  

a(t) = −r êr + r 2 êϕ para r = const, (89)
dt dt

Neste caso a direção radial é normal à trajectória e o termo −r (dϕ/dt)2 é aceleração


normal: dirigida para o centro da trajectórias e de módulo

2 2
r2 dϕ/dt vϕ2


an = r = = , (90)
dt r r

um resultado conhecido. Mas note-se que este movimento não tem necessariamente
velocidade constante em módulo e por isso tem em geral uma aceleração tangencial (na
direção de êϕ ) não nula. Ora como


v=r êϕ (91)
dt
temos

v = r (92)
dt
e por essa razão (
dv dϕ
d2 ϕ dt dt >0
r 2 = dϕ (93)
dt − dv
dt dt <0
Note-se que o versor da velocidade é v̂ = êϕ se a trajectória é percorrida no sentido
anti-horário (dϕ/dt > 0), e v̂ = −êϕ se percorrida no sentido horário (dϕ/dt < 0). Por
outras palavras
dv
at = v̂ (94)
dt
a fórmula de Frenet para a aceleração tangencial.
A expressão mais geral, válida para qualquer movimento é a da Eq. 87; o termo mais
difícil de relacionar com os casos que já conhecemos é precisamente aquele que só ocorre
se variarem r e ϕ,isto é,
dr dϕ
2 êϕ . (95)
dt dt
Seja como for, convém não esquecer que a expressão da Eq.(87) aplica-se a qualquer
tipo de movimento. Pode parecer desnecessariamente complicada, em comparação com
a expressão equivalente em coordenadas cartesianas,

d2 x d2 y
a(t) = ˆ
+ ˆ, (96)
dt2 dt2
mas, na verdade, existem inúmeros casos de movimentos em que a análise é muito mais
conveniente em coordenadas polares. À frente veremos exemplos.

20
Antes de terminar convém chamar a atenção para uma confusão comum. A coordenada
r não é o raio de curvatura, excepto no caso de uma trajectória circular; é a distância
à origem. As direções dos versores, não são as direções normal e tangente à trajectória
excepto no caso do movimento circular. Assim, os dois termos da Eq. 87 não devem ser
identicados com as acelerações normal e tangencial.

21
Mudanças de Unidades
Lições de Mecânica
*
J. M. B. Lopes dos Santos

Departamento de Física e Astronomia,


Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
4169-007 Porto

A mudança de unidades é uma tarefa que causa alguma confusão, sobre-


tudo quando a grandeza em causa não é uma das grandezas fundamentais do
sistema de unidades. Nestas notas tenta-se claricar e simplicar o processo,
distinguindo entre a grandeza física e o seu valor num sistema de unidades.

1 O que é mudar de unidades

Não é possível atribuir um valor numérico a uma grandeza contínua, sem denir um
padrão: um objecto ou um valor dessa grandeza que tomamos como sendo a unidade.
Por exemplo, seja l altura de uma mesa e u o comprimento de uma régua. Comparar
comprimentos por justaposição é uma operação simples e podemos simplesmente ver
quantas réguas idênticas precisamos para obter o comprimento igual a l

l =x×u (1)

Nesta equação x é um número (real em geral, podemos ter que subdividir a régua) e
l e u designam propriedades dos objetos. Usando u como padrão, podemos associar a
qualquer comprimento um número real x que é o valor da grandeza com esta escolha de
padrão. Exprimimos esta dependência de x na escolha de padrão indicando

l = xm (2)

ou seja, dando um nome ao padrão, que o identica de modo claro.


Mudar de unidades é mudar de padrão. Suponhamos que passamos a usar um outro
padrão u0 . Ora
u0 = Λu (3)

*
jlsantos@fc.up.pt

1
em que Λ é o comprimento de u0 com o padrão u. Então,

x
l =x×u= × u0 ,
Λ
ou seja na nova unidade o valor associado a qualquer comprimento vem multiplicado por
Λ−1 .
x
l= (4)
Λ
Suponhamos que queremos mudar de m para cm. Se u for um comprimento de um metro
0
e u de 1 cm tem-se, é claro
u0 = 10−2 u (5)

que podemos exprimir como


1 cm = 10−2 m (6)

ou Λ = 10−2 . Logo
l = x m = x (102 cm) = (102 x) cm (7)

O valor numérico de l é agora 102 x.


Um ponto importante a notar nesta manipulação trivial é que estamos a pensar na
grandeza física, comprimento do objeto, representado pela letra l como sendo o mesmo,
seja qual for a unidade. O que muda é o seu valor numérico quando muda o padrão. Esta
distinção é importante porque nos ajuda a perceber que, ao mudar unidades, há algo que
é invariante (a grandeza em si) e algo que muda (o seu valor numa dada unidade).
Uma maneira simples de fazer a manipulação anterior é escrever

m
l = xm = x cm = x × 102 cm (8)
cm
A razão (m/cm) é a razão entre os dois comprimentos dos padrões. Note-se como nesta
maneira de escrever usamos uma só designação (l) para a grandeza em si (invariante),
enquanto que o seu valor muda de x para 102 x.

2 Unidades compostas

Muitas grandeza físicas têm unidades mais complexas; por exemplo uma velocidade tem
unidade SI m s−1 . Que signica isto?
Felizmente não é necessário denir padrões independentes para todas as grandezas.
As leis físicas e as denições permitem-nos reduzir o número de unidades independentes.
A escolha destas nada tem de fundamental, e são apenas razões de conveniência, que
vão variando como o desenvolvimento da ciência, que determinam a escolha de padrões
independentes. Em Mecânica, todos os sistemas de unidades são baseados nas mesmas
três unidades fundamentais, das grandezas comprimento, tempo, e massa. São grandezas
susceptíveis de comparação directa muito simples usando réguas, relógios e balanças.

2
Ora uma velocidade é denida como uma razão comprimento/tempo

∆l
v= (9)
∆t
A escolha de unidades de comprimento e de tempo determina os valores de ∆l e ∆t e
por isso não há necessidade de denir um padrão independente para velocidade. Assim
se

∆l = x m (10)

∆t = y s (11)

xm xm x
v= = = m s−1 (12)
ys y s y
Agora é fácil ver o que acontece se mudarmos unidade de comprimento ou tempo ou
ambas.
 
x(m/km) km x km  m  h x x
v= = = × 10−3 × 3600 km h−1 = 3.6 × km h−1 (13)
y(s/h)h y h km s y y
Ou seja a mesma velocidade, v, em km h−1 é expressa por um valor que é 3.6 vezes o seu
valor em m s
−1 .

Exercício 1.
Determina o valor da aceleração da gravidade usando km para unidade de comprimentos e h
(hora) como unidade de tempo.

3 Transformação de expressões.

Seja x um comprimento e t um tempo e consideremos a equação

x=t (14)

Esta equação faz um físico (ou física) encolher-se todo: um comprimento não pode
igualar-se a um tempo. Porquê? Pela simples razão que numa mudança de unidades
o valores do comprimento e tempo não se transformam da mesma maneira. Por exemplo,
se mudarmos de segundos para horas o valor da grandeza tempo vem multiplicada por
10−3 e a da grandeza comprimento não varia. A igualdade não tem signicado, porque
não é independente do sistema de unidades. Já se escrevermos

x = vt (15)

e v for uma velocidade, a equação tem signicado porque vt em qualquer mudança de


unidades transforma-se como um comprimento:

v = V m s−1 (16)

t=Ts (17)

3
vt = V T m s−1 s =V T m (18)

A grandeza vt tem um valor independente da unidade de tempo. Quando esta muda v e


t variam de factores que são o inverso um do outro.
Mas suponhamos que escrevemos

x = t (unidades SI) (19)

Agora x e t representam, não as grandezas, mas os seus valores, no sistema de unidade


SI. A velocidade v tem o valor 1 neste sistema e não aparece na equação. Assim escrita
esta equação é legítima. Contudo, se mudarmos de unidade, a equação altera-se.
Suponhamos que passamos para km e h. Os valores das grandezas cam

x → x0 = 10−3 x (20)
0
t → t = t/(3600) (21)

pelo que a relação entre x0 e t0 , os valores em km e h, ca

10−3 x = 10−3 (t/3600) × 3600 (mesmo que x = t)


0 0
x = 3.6 × t (km, h) (22)

Esta é a nova forma da relação. A equação, em qualquer sistema de unidades, tem a


forma
x = vt (23)

Em unidades SI v tinha o valor 1 m s−1 (cava escondida), em km h−1 tem o valor 3.6.

Exercício 2.
Determina a relação entre x (comprimento) e t (tempo), com x em km e t em minutos, e

x = t + t2 (unidades SI)

4 Potências e outras funções

A razão entre os valores de duas grandezas física do mesmo tipo (dois comprimentos, duas
velocidades, duas acelerações) não depende do sistema de unidades. Se uma velocidade é
o dobro de outra, é-o em qualquer sistema de unidades. Isto implica que numa mudança
de unidades ambos os valores têm de vir multiplicados pelo mesmo factor. Se A e B são
os valores de duas grandezas do mesmo tipo e A' e B0 os seus valores noutro sistema de
unidades,

A → A0 = ΛA (24)
0
B → B = ΛB (25)

4
para que
A A0
= 0 (26)
B B
Ou seja, numa mudança de unidades a transformação de qualquer grandeza é sempre a
multiplicação de todos os seus valores por um fator de escala comum.
Consideremos, por exemplo, uma mudança de unidade de tempo em que os valores que
exprimem tempos se transformam como

t → t0 = ΛT t (27)


(ex: se s → min,ΛT = 1/60). t ou t2 são grandezas cujos valores se transformam como

√ p √ 1/2 √
t→ t0 =
ΛT t = ΛT t (28)
2 02 2
 2 2 2
t → t = ΛT t = ΛT t (29)

1/2
No primeiro caso o fator de escala é ΛT e no segundo Λ2T .
Para qualquer função f que seja uma potência ou produto de potências, é fácil concluir
que numa mudança de unidades

f (A, B, C, . . . ) → f (A0 , B 0 , C 0 , . . . ) = Λf f (A, B, C, . . . ) (30)

Com efeito, se
f (A, B, C, . . . ) = Aa B b C c . . . (31)

sob uma mudança de unidades, cada grandeza altera-se de acordo com as suas dimensões,

A → A0 = ΛαL1 ΛαT 2 ΛαM3 A = ΛA A,



(32)

e
Λf = ΛaA ΛbB ΛcC . . . (33)

Se a função f for a soma de termos que são produtos de potências,

f (A, B, . . . ) = Aa B b · · · + X x Y y . . . (34)

para que f se transforme por um factor de escala, as dimensões de cada termo têm de
ser iguais
Λf = ΛaA ΛbB · · · = ΛxX ΛyY (35)

No caso de uma função que não seja potência ou produto de potências, como por
exemplo a função seno, numa mudança de unidades

sin(t) → sin(t0 ) = sin(ΛT t) (36)

Para que isto fosse uma transformação de escala seria necessário

sin(ΛT t) = ΛaT sin(t)? (37)

5
para um a xo e qualquer valor de t. Não existe nenhum valor de a para o qual esta
equação se verique para todo o t. Por isso o seno de um tempo não é uma grandeza
física aceitável porque a sua transformação debaixo de mudança de unidades não é sim-
plesmente uma multiplicação por um factor de escala. A razão

sin(t1 ) sin(ΛT t1 )
6= (38)
sin(t2 ) sin(ΛT t2 )

não é invariante debaixo de mudança de unidades.


Por esta razão, em qualquer equação com signicado físico (que mantenha a forma com
mudança de unidades), os argumentos de funções que não sejam potências ou produtos
de potências são adimensionais, de modo a serem invariantes na mudança de unidades.
Isto é,
sin(t1 ) (39)

não aparece nunca numa equação (estragaria a transformação debaixo de uma mudança
de unidades); mas
 
t1
sin , (40)
t2
ou
sin (2πf t) ,
em que f é uma frequência, são termos legítimos, pois são invariantes, porque os ar-
gumentos das função seno são também invariantes: adimensionais. Assim se l for um
comprimento
l sin (2πf t) (41)

será também um comprimento, pois é o produto de um comprimento por um fator adi-


mensional (invariante). Aqui ca então a conclusão:

Numa expressão com signicado físico, com forma independente das unidades
das grandezas que nela intervêm, os argumentos de qualquer função que não
seja uma potência ou produto de potências, ou soma de produtos de potências,
são adimensionais. Os termos de qualquer soma têm as mesmas dimensões,
ou seja, transformam-se com um fator de escala comum.

Exercício 3.
A expressão do deslocamento de uma partícula é

x(t) = 2 sin(4πt) (Unidades SI).

Esta expressão contradiz a conclusão acima? Qual é a expressão do mesmo desloca-


mento se usarmos as unidade cm e minuto para comprimentos e tempos?

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