PRECISAMOS DE REGRAS CLARAS QUE MOSTRAM COMO GENERALIZAR A APLICAÇÃO
Sou a favor da sistematização no sentido de que certo grau de generalização é necessário para que as particularidades da perícope não paralisem o esforço de recontextualizar seu sentido para um público distante no tempo e no espaço. Por exemplo, o antigo "vinho" em "não vos embriagueis com vinho" (Ef 5.18) deve ser generalizado para "álcool" para se evitar intoxicação com a atual vodca ou uísque (sobre isso, veja o capítulo 1). Igualmente importante é o papel da Teologia Sistematizada na constituição de uma regra de fé para a interpretação da Escritura; essa regra estabelece os limites interpretativos que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, o "anjo de Yahweh" em certas passagens da Escritura não pode ser interpretado como a quarta Pessoa da divindade -a Teologia Sistemática (a regra de fé) exclui esse tipo de inferência (veja as Regras de interpretação no capítulo 1, que assumem essa função sistemática de guar dia). Também concordo com a ideia da atomização de que se deve fazer aplicação em todo sermão: as vidas devem transformar-se em resposta a cada perícope da Escritura, a cada semana. No entanto, nem a sistematização nem a atomização cuidam da trajetória do texto particular que está em consideração (o que o autor está fazendo com o que ele está dizendo). Por um lado, há o erro de generalizar excessivamente e, desse modo, negligenciar as especificidades do texto; por outro, o erro de vasculhar a Bíblia aleatoriamente para encontrar uma sucata que se aproveite. Ambos os procedimentos mostram descaso pelo que o autor está fazendo com o que está dizendo, e ambos deixam os pregadores - sem falar no público - com a impressão de que falta algo. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 21
APRESENTAÇÃO DA OBRA NA INTRODUÇÃO
A introdução mostra o que se pretende abordar em cada capítulo.
COMO APLICAR OS PRECEITOS VETEROTESTAMENTÁRIOS NA ATUALIDADE
A teologia da perícope comporta intrinsecamente uma ordem divina -o chamado do povo de Deus para viver segundo os preceitos, as prioridades e as práticas que regem o mundo ideal de Deus. Isso dá origem à pergunta sobre como se deve interpretar o gênero específico da Escritura que explicitamente expressa as ordens divinas da lei do Antigo Testamento. As perícopes desse gênero se aplicam aos cristãos de hoje? Um exame geral mostra que as abordagens reformadas, luteranas e dispensacionalistas, bem como a dos que propõem a Nova Perspectiva sobre Paulo (NPP), concordam que essa lei antiga não é aplicável, com exceção talvez das facetas "morais" da mesma. Esta obra, em vez de criar categorias dentro da lei, da moral ou fora delas, propõe que todas as ordens de Deus são aplicáveis para todos os homens em todos os lugares e em todas as épocas - teologicamente aplicáveis. [...] [o capítulo 3 desta obra] utiliza a teologia da perícope para demonstrar como isso funciona na prática: essenciais para a teologia das perícopes legais são os fundamentos lógicos dessas leis, e são esses fundamentos que são obrigatórios para o povo de Deus. Essa obediência à ordem divina não tem propósito salvífico. Em vez disso, é um dever filial. Em outras palavras, a relação entre Deus e o homem precede (e não elimina) a responsabilidade do homem para com Deus - "a obediência por fé". Primeiro o relacionamento; depois a responsabilidade. Essa hermenêutica teológica da lei bíblica (e da ordem divina em todos os outros gêneros) considera que o papel das perícopes é exortar os filhos de Deus a cumprirem seu dever de ser santo como Deus é santo. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 26
DEVE-SE BUSCAR ENCONTRAR CRISTO, DE FORMA PLENA, EM CADA PERÍCOPE?
Esse capítulo e esta obra concluem com a proposta de um novo modelo de interpretação cristológica da Escritura: a interpretação cristoicônica, que vê cada perícope da Escritura como retrato de uma faceta da imagem canônica de Cristo. O propósito de Deus para seus filhos é que eles se conformem a essa imagem (eikyu eikon) do seu Filho (Rm 8.29). À medida que as pericopes são sequencialmente pregadas e a teologia de cada uma é aplicada, o povo de Deus vai sendo gradativamente moldado à imagem de Cristo, uma transformação que obviamente será consumada apenas no final dos tempos. É, portanto, uma hermenêutica teológica trinitariana para a pregação: o texto inspirado pelo Deus Espírito, que retrata Deus Filho, vai se tornar então vida no povo de Deus, e desse modo a vontade de Deus Pai se cumprirá - o reino de Deus estabelecido e seu nome glorificado. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 27
CAPÍTULO 1 | HERMENÊUTICA GERAL E HERMENÊUTICA ESPECIAL
ESCLARECIMENTO ACERCA DA HERMENÊUTICA GERAL
A Escritura, o principal meio de comunicação de Deus com os homens, é textual. Então, qualquer abordagem de interpretação da Escritura deve começar com a linguagem, a essência dos textos, o princípio de toda comunicação e, na verdade, o meio universal do ser do nascimento à morte estamos imersos em um mar de linguagem Portanto, a hermenêutica geral, a ciência da interpretação de qualquer texto (por isso, hermenêutica geral), entra em jogo na interpretação bíblica. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 28-29
ESCLARECIMENTO ACERCA DA HERMENÊUTICA ESPECIAL
Mas a igreja também tem interpretado a Escritura como a Palavra de Deus, um discurso divino. Em outras palavras, a Escritura não é apenas qualquer texto: é um texto especial. Portanto, a hermenêutica especial, a ciência da interpretação desse texto bíblico e único (por isso, hermenêutica teológica ou especial), também deve atuar na interpretação bíblica. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 29 EXEMPLO DE APLICAÇÃO CONTEXTUALIZADA Temos aqui uma analogia: o Ato da polícia metropolitana de Londres de 1839 considera uma ofensa fazer consertos numa "carruagem" numa rua na Inglaterra: "Estará sujeita à penalidade [...] toda pessoa que, dentro dos limites do distrito policial metropolitano, em qualquer via pública ou espaço público [...] para incômodo dos habitantes ou transeuntes [...] fizer consertos em qualquer parte de carroça ou carruagem, exceto em casos de acidente, em que o conserto imediato seja necessário". Normalmente, o "sentido" ficaria restrito à "carruagem" (sentido original do texto). Mas é óbvio, considerando-se o gênero do texto - literatura legal - que o que era pretendido por "carruagem" ia além de um "veículo puxado por cavalos". Num sentido orientado para o futuro, o que a lei queria dizer com "carruagem" era "veículo usando a via pública" (intenção trans-histórica). Embora o Ato tenha sido legislado numa época em que os automóveis eram desconhecidos, essa intenção trans-histórica abrange não apenas a "carruagem" (sentido original do texto), mas também "carros", "caminhões", etc. (exemplificações, ou seja, potenciais aplicações futuras que surgem da intenção trans-histórica). Nesse sentido, os três elementos sentido original do texto, intenção trans-histórica e exemplificações futuras – são, segundo Hirsch, partes do "sentido" do texto, pelo menos para uma interpretação que conduz à aplicação. Exemplificações são aplicações válidas do texto original simplesmente porque estão dentro dos limites da intenção trans-histórica do texto. Assim, a lei de 1839, que proíbe o conserto de carruagens em vias públicas, foi válida mente lida no futuro como proibindo também o conserto de carros e caminhões, em decorrência da sua intenção trans-histórica (vias públicas livres de veículos sendo consertados). KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 40-41
A HERMENÊUTICA DEVE BUSCAR RESGATAR A INTENÇÃO DO AUTOR
Por exemplo, quando A diz a B "Ei, você está pisando no meu pé!", o sentido semântico (o que o autor está dizendo) afirma a localização espacial de B sobre o membro inferior de A, en quanto o sentido pragmático (o que o autor está fazendo com o que está dizendo) é uma tentativa de fazer com que B desloque-se dessa posição traumática sobre a anatomia de A, embora essa reação não seja solicitada explicitamente. Em vez disso, o discurso tem um sentido que vai além do sentido literal - pragmático que vai além do sentido semântico. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 46
UM EXEMPLO BÍBLICO DE APLICAÇÃO CONTEXTUALIZADA
Considere o exemplo de Efésios 5.18: "Não vos embriagueis com vinho". Embora esse texto não trate exclusivamente de embriaguez, para fins de ilustração da pluralidade de sentido, focar na palavra "vinho" nesse versículo será útil.62 O imperativo nesse versículo exige que a pessoa não se embebede com "vinho". Como “vinho” é mencionado expressamente no texto, seria aceitável embriagar-se com outra bebida, digamos vodca? O distanciamento do texto das circunstâncias e da cultura do século 1° d.C., em que a única bebida alcoólica conhecida era “oinos” (vinho), requer que o imperativo de Efésios 5.18 seja recontextualizado nas novas circunstâncias de leitores e ouvintes para gerar uma aplicação válida. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 53 EM QUE IMPLICA A HERMENÊUTICA ESPECIAL A interpretação da Bíblia como Escritura e como discurso divino pela igreja (de fato, um texto especial) dita como esse clássico deve ser lido para fins de pregação. É como "Escritura" e tudo o que essa designação implica que o cânon é visto como aplicável, com posição perene, plural e prescritiva. Não somente a coleção como um todo, mas os textos individuais e suas perícopes possuem essas características. O clássico canônico é, portanto, um texto de grande importância, e o mundo dele é um construto referencial fundamental. A Escritura, portanto, não deve ser negligenciada, mas lida, e seu mundo projetado apropriado. KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 60
AS REGRAS INTERPRETATIVAS APLICADAS EM EFÉSIOS 5.18
As regras apenas afirmam a validade de se usar o livro de Efésios (Regra da exclusividade), incentivam a interpretação a ser coerente com o restante da Escritura (Regra da singularidade), aprovam o uso da forma textual de Efésios 5.18 como o temos (Regra da finalidade), permitem a descoberta de aplicações desse texto (Regra da aplicabilidade), advertem contra a interpretação que é incoerente com o que a igreja tem consistemente ensinado (Regra da eclesialidade) e nos lembra que a exigência do texto é uma faceta do que significa ser "semelhante a Cristo" (Regra da Centralidade). KURUVILLA, O Texto Primeiro. p. 61 AS SEIS REGRAS INTERPRETATIVAS DA HERMENÊUTICA ESPECIAL (P. 63-78)