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Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 349-363

A expressão no Rorschach dos fenó-


menos transitivos e do espaço potencial
na personalidade borderline (*)

MARTA QUEIROZ GODINHO (**)


MARIA EMÍLIA MARQUES (***)
CATARINA BRAY PINHEIRO (****)

INTRODUÇÃO conceitos no caso borderline, procuramos


relacioná-los com o conceito de angústia branca
Partindo de uma abordagem psicodinâmica, de Green.
visamos compreender as características dos Tendo em conta o objectivo do estudo, propo-
fenómenos transitivos e do espaço potencial no mos uma leitura dos conceitos de fenómenos
sujeito borderline, através do método Rorschach. transitivos e de espaço potencial, procurando
Para o estudo destes conceitos, recorremos às integrar e articular a revisão de literatura e os
teorias de Winnicott e de Ogden sobre a psico- elementos Rorschach. Neste contexto, é aplicado
patologia dos fenómenos transitivos e do espaço o Rorschach a um sujeito do sexo feminino com
potencial, respectivamente.
o diagnóstico de perturbação borderline da
Dada a importância dos cuidados primários
personalidade.
no desenvolvimento de uma autonomia física e
A pertinência deste estudo reside no facto de
psíquica que permita ao sujeito construir as
o Rorschach permitir, através do apelo a um
suas próprias experiências, procuramos articular
o conceito de função materna com os conceitos duplo modo de funcionamento (apelo ao real e
em estudo. Para uma melhor compreensão destes ao imaginário), conhecer, numa dimensão
simbólica, a dinâmica relacional entre o mundo
interno do sujeito e o mundo externo e, por
(*) Artigo elaborado a partir da dissertação com o
mesmo título apresentada e defendida no ISPA, em conseguinte, aferir sobre a capacidade do sujeito
2009, no âmbito do Mestrado Integrado em Psicologia em aceder à área dos fenómenos transitivos.
Clínica. Reconhecida a dificuldade do sujeito border-
(**) Psicóloga Clínica. line em aceder à área dos fenómenos transitivos,
(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do
Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
o Rorschach pode dar-nos conta das estratégias
(****) Psicóloga Clínica, Hospital Fernando mobilizadas para estabelecer uma separação e
Fonseca. um contacto mínimo com o Outro.

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FENÓMENOS TRANSITIVOS Winnicott é mostrar que, a certa altura, este
E ESPAÇO POTENCIAL negativo, esta não-existência ou vazio torna-se
na única coisa real para o sujeito.
Winnicott (1971/1975) introduziu os concei- De acordo com as ideias defendidas por
tos objecto transitivo e fenómeno transitivo para Green, Pinheiro (2005) refere que, perante a
designar a área intermediária entre o erotismo perda sofrida, o sujeito utiliza o desinvestimento
oral e a verdadeira relação de objecto. do objecto maternal e a identificação incons-
A primeira possessão “não-Eu” é designada ciente à mãe morta. Surge uma identificação
por Winnicott como objecto transitivo. É através primária à mãe, sendo a relação simétrica a
de um holding adequado que o bebé começa a única possibilidade de restabelecer a reunião. É
construir a chamada “continuidade de ser”. A neste sentido que Green fala na existência de um
falta de um holding adequado, conduz à inter- narcisismo negativo, isto é, um retorno à inexis-
rupção da continuidade de ser (Winnicott, 1986). tência, ao afecto branco, ocorrendo uma aproxi-
De acordo com Davis e Wallbridge (1981), em mação à morte psíquica. Segundo Pinheiro (op.
termos psicológicos, o holding tem a função de cit.), o afecto branco é a indiferença entre o bom
suporte do Eu. e o mau, o dentro e o fora, o Eu e o objecto. A
A característica essencial da área dos objectos esta angústia de perda do objecto, Green dá o
e fenómenos transitivos é o paradoxo e a nome de angústia branca, porque o que existe é o
aceitação do paradoxo: o bebé cria o objecto, vazio. Pinheiro (op. cit.) defende que sem um
mas este já lá estava para ser criado e investido. objecto constituído como continente não é
Quando este paradoxo é aceite, o objecto possível a construção do narcisismo positivo,
transitivo é gradualmente desinvestido isto é, não é possível construir o espaço
(Winnicott, 1971/1975). Segundo Pontalis potencial.
(1999), ao perder gradualmente a sua Davis e Wallbridge (1981) referem que o
significação, o objecto transitivo é substituído na desenvolvimento de um espaço potencial
sua função por uma difusão de fenómenos depende do desenvolvimento de um sistema
transitivos que não precisam do suporte real de interno de limite, espaço e de tempo. Cada
um objecto. sujeito, através das experiências vividas, pode
Winnicott (1971/1975), refere que o objecto e construir um sentido de continuidade.
os fenómenos transitivos correspondem a uma O fracasso precoce da fidedignidade
área neutra de experiência. Segundo Davis e ambiental, que se verifica na patologia
Wallbridge (1981), Winnicott defende que é borderline, não permite ao sujeito ser capaz de
apenas ao ser criativo que o indivíduo descobre o fazer a distinção entre o seu mundo interno e
Self e, ainda, que para viver criativamente o externo e, consequentemente, impossibilita a
indivíduo tem que continuar a ser capaz de criação de um espaço potencial próprio, onde o
descobrir a sua própria realidade interna, através sujeito possa construir e reconstruir as suas
de uma forma pessoal de experienciar a reali- próprias experiências.
dade externa. Para explicar como a actividade psicológica
O problema na patologia borderline é que a cria o espaço potencial, Ogden (1985) utiliza o
persistência de inadequação do objecto externo conceito de processo dialéctico. O processo
leva ao desvanecimento do objecto interno. dialéctico encontra-se no centro da criação da
Segundo Green (1997), o desvanecimento subjectividade, que corresponde aos diferentes
gradual das representações internas está rela- graus de conhecimento próprio, que vão desde a
cionado com a representação interna do negativo auto-reflexão intencional ao mais subtil e
– uma representação da ausência de discreto “sentido do Eu” (I-ness). Paradoxal-
representação – a qual se expressa ou em termos mente, o “sentido do Eu” só se torna possível
de uma alucinação negativa ou no campo do através do Outro. No início, o “estado de dois”
afecto, por anulação, por vazio, ou num grau (two-ness) é uma qualidade da relação mãe-
menor, por futilidade e/ou sem sentido. Este -bebé. A obtenção da capacidade de manter uma
autor refere que a grande contribuição de dialéctica psicológica, envolve a transformação

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da unidade em “estado de três” (three-ness): o de uma cessação da atribuição do significado da
símbolo, o que este simboliza e o próprio sujeito. percepção. A experiência é excluída, e tal
A diferença entre os três cria a possibilidade de acontece, não tanto pelo facto de a fantasia e a
triangularidade, dentro da qual o espaço é criado. realidade serem negadas, mas sim pelo facto de
Segundo Ogden (1985), a função simbólica é nem chegarem a existir. Para Ogden, este estado
uma consequência directa da capacidade para de não-experiência é visto como uma defesa
manter dialécticas psicológicas. super-ordenada, à qual se recorre quando todas
De acordo com Amaral Dias (2004), o as outras operações defensivas se mostraram
problema nos sujeitos borderline é que eles insuficientes para proteger a criança contra o
estão permanentemente a precisar de uma pele sofrimento psicológico opressivo.
mental que organize, ou pseudo-organize, isto é,
utilizam o objecto como uma segunda pele
(mental). Para que o indivíduo viva, é necessário OBJECTIVO DE ESTUDO
que ele esteja no mesmo tempo e no mesmo
espaço que o outro, isto é, tem de estar na
dependência do outro – condição assimbólica. A Apesar da dificuldade do sujeito borderline
identificação à função continente não fica feita em se situar na área dos fenómenos transitivos,
poderia utilizar estratégias que possibilitassem a
de forma completa no borderline, e é por esta
comunicação com o Outro. Partindo do princípio
razão que Amaral Dias (2004) fala na existência
que os objectos servem a função de suporte,
de uma permeabilidade do pensamento, porque,
estes poderiam ser investidos como se de
nestes casos, a pele rompe.
objectos transitivos se tratassem. Tendo em conta
Ogden (1985), refere que a psicopatologia da
o conceito de permeabilidade do pensamento
simbolização que se verifica no sujeito
de Amaral Dias (2004), a utilização do Outro
borderline, é baseada em formas específicas de
como um objecto de suporte evidenciaria
fracasso em criar ou manter adequadamente um
a possibilidade de um contacto mínimo com a
processo dialéctico psicológico, destacando as
realidade, o Outro, podendo haver uma
seguintes: (a) a realidade é substituída pela
aproximação ao espaço potencial – espaço pré-
fantasia – a dialéctica da realidade e da fantasia
-potencial.
cai na direcção da fantasia, de tal forma que a
As ideias supramencionadas poderiam
fantasia torna-se uma coisa em si própria, tão
traduzir-se no Rorschach das seguintes formas:
tangível, poderosa, perigosa e gratificante como
(1) os sujeitos poderiam relacionar-se com as
a realidade externa, da qual não pode ser
imagens Rorschach ou com os cartões como se
diferenciada; (b) a realidade como uma defesa
estes fossem objectos reais; (2) as imagens ou
contra a fantasia – a dialéctica da realidade e cartões seriam transformados em objectos de
fantasia pode tornar-se limitada ou cair na suporte; e (3) seriam atribuídos qualidades
direcção da realidade, quando esta é usada específicas dos objectos transitivos, sendo estes
predominantemente como uma defesa contra a objectos convertidos em objectos reconfortantes.
fantasia. Nestas circunstâncias, a realidade rouba
a vitalidade da fantasia e a imaginação é
excluída; (c) dissociação dos pólos da realidade
e da fantasia do processo dialéctico – a PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
dialéctica entre a realidade e a fantasia torna-se
restrita, quando ambas estão dissociadas de Dadas as características do método
forma a evitar um conjunto específico de Rorschach, propomos uma leitura dos conceitos
significados; e (d) a exclusão da realidade e da de fenómenos transitivos e espaço potencial no
fantasia – quando a constituição da unidade protocolo Rorschach de um sujeito borderline,
mãe-bebé se torna difícil, a consciência através da análise cartão a cartão e dos traços
prematura e traumática desta separação torna a salientes do psicograma. Os elementos usados na
experiência tão insuportável, que as medidas de análise, estão sintetizados na tabela que a seguir
defesa extrema são instituídas, tomando a forma apresentamos:

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Fenómenos Transitivos / Espaço Potencial

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Elementos Acesso à área transitiva / Impossibilidade de acesso à área transitiva / Objecto externo investido como objecto transitivo /
Rorschach / Existência de um espaço potencial / Inexistência de um espaço potencial / Espaço pré-potencial

Simetria Relação dinâmica entre opostos duplo do mesmo/ Incapacidade em articular o duplo e a coesão num
/diferente, eu/outro. Capacidade de manter processo dialéctico. Impossibilidade do sujeito criar
dialécticas de unidade e separação, processo o seu próprio espaço potencial.
indispensável para criação de um espaço potencial.

G simples GF+ Dá conta, através da inversão figura-fundo, da Realidade global e adaptativa como defesa contra
diferenciação e comunicação entre interno e externo. surgimento de representações e/ou afectos.
Fracasso em criar ou manter uma dialéctica entre
realidade e fantasia. Esta cai na direcção da realidade,
não é possível aceder ao mundo fantasmático.

G simples GF– Apego à realidade externa permite manter


diferenciação (ameaçada) em relação aos objectos e
presença (instável) dos mesmos. Comunicação ténue
entre sujeito e objecto. Objecto como objecto de
suporte.

D DF+ Integração adequada no mundo real permite acesso Capacidade de ancoragem no real à custa de apego
ao mundo fantasmático. Capacidade de manter ao mundo externo – objectos como suporte.
dialéctica entre realidade e fantasia – espaço potencial. Diferenciação mínima entre real e imaginário.
Aproximação ao espaço potencial.

D DF– Dificuldade de inserção no real devido à intensidade


das projecções pulsionais e fantasmáticas.
Indiferenciação entre interno e externo. Fracasso em
criar ou manter dialéctica entre realidade e fantasia.
Realidade substituída pela fantasia.

Gbl e Dbl Qualidade de Gbl e Dbl positiva e gratificante se Vazio/ausência – angústia branca de Green – Imagens calorosas, aconchegantes. Procura de apoio,
inversão figura-fundo representar separação e indiferença entre dentro e fora. Associação a temáticas de amortecimento de vivências angustiantes. Branco
comunicação entre eu e outro. Espaço potencial de frio e de hostilidade – invasão do mundo fantasmático. como objecto de suporte. Comunicação ténue entre
entre dentro e fora. dentro e fora.

K Relação de semelhança entre figuras humanas; Impossibilidade de relação: 1) Relação especular;


integração do diferente, do outro. Capacidade de o outro é eliminado. Dialéctica entre unidade e separação
manter dialéctica de unidade e de separação. cai na direcção da unidade; 2) Relação destrutiva e
invasiva. Dialéctica cai na direcção da fantasia.

cont.
Fenómenos Transitivos / Espaço Potencial (cont.)

Elementos Acesso à área transitiva / Impossibilidade de acesso à área transitiva / Objecto externo investido como objecto transitivo /
Rorschach / Existência de um espaço potencial / Inexistência de um espaço potencial / Espaço pré-potencial

kan, kob e kp Mobilização das pulsões para conteúdos não Movimento associado a conteúdos destrutivos.
humanos ou partes humanas não compromete Dialéctica entre realidade e fantasia cai na direcção
adaptação à realidade – compromisso entre da fantasia, que se torna na única realidade,
percepção e projecção. ameaçadora.

C (vermelho) Imagens de destruição/desintegração.


Impossibilidade de manter dialéctica entre realidade
e pulsão/afecto. Realidade substituída pela
dimensão pulsional/afectiva.

C (cores pastel) Conteúdos relacionados com insegurança, falta de Conteúdos aconchegantes, calorosos – procura de
equilíbrio – invasão pelos afectos primários. apoio. Objectos como objectos de suporte.
Incapacidade manter dialéctica entre realidade e Comunicação ténue entre interior e exterior.
dimensão pulsional/afectiva.

C’ (cinzento) Conteúdos ameaçadores, angustiantes,


desvitalizantes – falta de contenção do mundo
fantasmático. Dialéctica entre realidade e fantasia
cai na direcção da fantasia.

Esbatimento de textura Qualidade táctil associada a representações Qualidade táctil associada a representações e/ou Procura de apoio – conteúdos aconchegantes,
e/ou afectos agradáveis – conteúdos afectos desagradáveis – conteúdos pouco reconfortantes – função (suporte) e qualidades
contentores, satisfatórios. Diferenciação e contentores, crus . Falta de limite físico e psíquico tranquilizantes de um objecto transitivo.
comunicação entre sujeito e objecto. entre sujeito e objecto. Comunicação ténue entre sujeito e objecto.

Esbatimento de perspectiva Imagem tridimensional como medida de


securização. Two-ness dá conta de distância
espacial e temporal mínima entre sujeito e objecto.
Aproximação ao espaço potencial .

A Capacidade de relação com o mundo da A% elevado – defesa contra relação: 1) Colagem à


realidade partilhada. Diferenciação entre configuração da mancha. Dialéctica entre realidade e
interno e externo. Capacidade de manter fantasia cai na direcção da realidade, que retira toda a
dialéctica de unidade e separação. vitalidade da fantasia; 2) Registo projectivo regressivo
e arcaico – conteúdos persecutórios.
Dialéctica cai na direcção da fantasia.

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cont.
Fenómenos Transitivos / Espaço Potencial (cont.)

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Elementos Acesso à área transitiva / Impossibilidade de acesso à área transitiva / Objecto externo investido como objecto transitivo /
Rorschach / Existência de um espaço potencial / Inexistência de um espaço potencial / Espaço pré-potencial
H Imagem humana definida – capacidade de Dificuldade de reconstrução no contacto com mancha
reconhecer a sua identidade subjectiva; – ausência ou presença reduzida de H – dificuldade/
representação de si próprio num sistema de /impossibilidade de acesso à área entre interno e externo
relações, o outro é integrado. Espaço potencial,
onde construi e reconstrui experiências.
(H) Não constituem maioria de respostas humanas Constituem maioria de respostas humanas – retirada da
– mundo fantasmático rico . Capacidade em realidade concreta e relacional, refugiando-se no
criar, mantendo contacto com a realidade – mundo irreal. Indiferenciação entre real e imaginário.
acesso à área transitiva.
Hd, Anat e Sg Ausência de limite entre dentro e fora. Dialéctica entre
realidade e fantasia cai na direcção da fantasia, que se
torna numa realidade tão tangível e perigosa como
a realidade externa.
Conteúdos simbólicos Agressividade manifestada por passividade – Dimensão simbólica agressora – tentativa de
de valência agressiva conteúdos mutilados, desintegrados. Indiferenciação diferenciação do outro – conteúdos cortantes,
entre interno e externo. Inexistência de um explosivos. “Esboçar” de um espaço potencial.
espaço potencial.
Conteúdos simbólicos
de valência regressiva Falhas no holding. Associação a temas de água – Procura de apoio – associação ao E textura –
águas turbulentas, afogamento e, associação conteúdos de suporte.
ao E textura – impressões tácteis desagradáveis.
PARTICIPANTE Na análise global do cartão observamos dois
registos de funcionamento distintos. De acordo
O protocolo foi recolhido no Hospital de com a teoria de Ogden, num primeiro momento,
Santa Maria, onde Joana se encontra em a realidade é utilizada como defesa contra a
internamento parcial no Hospital de Dia do fantasia, não sendo possível o acesso ao mundo
Serviço de Psiquiatria. fantasmático do sujeito; num segundo momento,
Da avaliação psicológica realizada, concluiu- a dialéctica entre a realidade e a fantasia cai na
-se tratar-se de uma patologia borderline, direcção da fantasia. Esta situação revela a
destacando-se: (1) emergência em processo impossibilidade do sujeito mobilizar, simultanea-
primário; (2) permeabilidade da pele psíquica; e mente, mecanismos perceptivos e projectivos
(3) clivagem de objecto e identificação na construção de um “novo objecto”. Joana não
projectiva patológica. consegue aceder à área transitiva, embora se
socorra de estratégias para amortecer o impacto
fantasmático.
ANÁLISE DO PROTOCOLO No cartão II, a abordagem global da mancha
evidencia um conteúdo mutilado (“... animal
Análise cartão a cartão morto... vê-se o pêlo de animal e sangue...”), o
que dá conta da destrutividade da relação. Joana
No cartão I, a abordagem aparentemente procura centrar-se no recorte perceptivo da
global e adaptativa da realidade (“um morcego”) mancha (“... animal... não sei se é um cão ou um
pode ser entendida como uma defesa contra o gato...”), mas acaba por ser invadida pelo seu
surgimento do mundo fantasmático do sujeito. mundo fantasmático (“... vê-se o pêlo do animal
De acordo com a teoria da psicopatologia do e sangue...”). A sensibilidade à cor vermelha
espaço potencial de Ogden, a dialéctica entre a (“porque está cheio de sangue”) contribui para a
realidade e a fantasia cai na direcção da realidade, invasão dos afectos, na medida em que os
retirando-se toda a vitalidade à fantasia. Face a movimentos pulsionais agressivos reforçam a
uma nova experiência sentida como ameaçadora, vivência destrutiva da relação. Também a
Joana não é capaz de estabelecer uma relação referência à qualidade táctil (“pêlo”) evidencia a
dinâmica entre o interno e o externo, o real e o associação a uma representação e/ou afecto desa-
imaginário de forma a construir novos objectos. gradável através da relação “pêlo” → “sangue” e,
A relação ao real é marcada pela procura de por conseguinte, a sensibilidade ao esbatimento
neutralidade. Na busca do neutro, o outro é não permite amortecer o impacto fantasmático.
eliminado. Tendo em conta que este é um cartão bilateral,
Tendo em conta o simbolismo materno do a apreensão do todo pode ser encarada como um
cartão I, num segundo momento, o conteúdo defesa contra a relação sentida como perigosa e
“tarântula” pode remeter-nos para uma imago destrutiva. A utilização do todo contra a
materna ameaçadora, persecutória e destrutiva. bilateralidade dá conta da impossibilidade do
No inquérito, a apreensão global da mancha, sujeito em manter um compromisso entre os
através do recurso ao esbatimento de perspec- movimentos de integração e os de desestabi-
tiva, reflecte a procura de um apoio, permitindo lização e dispersão suscitados pela simetria do
ao sujeito manter uma certa distância espacial e cartão. Na acepção de Ogden, esta falta de
temporal em relação ao objecto (“podia estar a compromisso é entendida como o fracasso em
vê-la de um avião...”). A “tarântula” é sentida manter uma dialéctica de unidade e de sepa-
como ameaçadora, mas não constitui um perigo ração. Esta situação põe em evidência a impossi-
para o sujeito, não pode “feri-lo”. Na acepção de bilidade de Joana desenvolver a sua própria
Ogden, o “estado de dois” (two-ness) dá conta da subjectividade, pois, só na relação com o outro é
possibilidade de comunicação, ténue, entre o que o sujeito pode construir as suas próprias
sujeito e objecto e, por conseguinte, os movi- experiências e, assim, possuir um espaço
mentos de Joana evidenciam uma aproximação potencial próprio, constitutivo do sentimento de
ao espaço potencial – espaço pré-potencial. ser.

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No inquérito, Joana revela uma perda de conta da indiferenciação entre o dentro e o fora,
distância face à imagem Rorschach (“quando entre a realidade e a fantasia, não sendo possível
passo de carro vejo um animal no chão e Joana situar-se na área transitiva. Esta situação é
arrepia-me”), o que indica que a imagem é traduzida, na linguagem de Ogden, por um
experimentada como um objecto “real”, sendo fracasso em manter um processo dialéctico, em
incorporada na experiência actual do sujeito. A que a dialéctica entre a realidade e a fantasia cai
imagem Rorschach é justificada pela experiência na direcção da fantasia, tornando-se tão real
passada do sujeito, criando a ilusão de que esta e como a realidade exterior, da qual não se pode
as experiências passadas do sujeito são diferenciar.
permutáveis, permitindo, desta forma, negar a Por fim, a centração no recorte perceptivo da
distância temporal e espacial que existe mancha (“... patas de um boi ou de uma vaca”)
relativamente ao objecto. A indiferenciação entre revela que a adaptação ao real não permite o
o sujeito e o objecto dá conta da impossibilidade emergir do mundo fantasmático. A realidade é
do sujeito se situar na área dos fenómenos utilizada como defesa contra a fantasia. Joana
transitivos. não é capaz de se situar na área transitiva, não
Na abordagem do cartão III, Joana começa conseguindo integrar, na mesma resposta,
por realizar um movimento de separação entre as movimentos perceptivos e projectivos.
duas figuras. No entanto, estas não se encontram Na passagem para o cartão IV deparamo-nos
em relação (“... uma pessoa de cada lado”). A com uma perda de distância relativamente ao
abordagem global e perceptiva da mancha pode objecto, evidenciada pela expressão directa de
ser entendida como um defesa contra o mundo um sentimento de perigo ou ameaça face à
imaginário que ameaça irromper. No inquérito, a imagem Rorschach (“Ui aqui estou a ver um
atribuição de movimento às duas figuras (“... monstro...”). Esta situação representa uma perda
estão tão zangados que têm vontade de arrancar de simbolização, na qual Joana reage afectiva-
o coração um do outro, de matar um ao outro”), mente à imagem, como se esta fosse realmente o
bem como a associação de um movimento próprio objecto (o monstro), negando a diferen-
pulsional a um conteúdo anatómico (“estão tão ciação entre o interno e o externo.
zangados que o coração até salta”), dão conta A abordagem global da mancha dá conta de um
da emergência de um mundo fantasmático conteúdo ameaçador e terrífico (“... monstro...”),
destrutivo e arcaico. Ao centrarmo-nos no que põe em evidência uma invasão fantasmática.
simbolismo do conteúdo anatómico, o A dificuldade de separação entre o real e o ima-
“coração” implica um menor controlo do ginário é, de igual modo, demonstrada pelo facto
pensamento e, neste sentido, a expressão “o de o monstro, figura irreal, ter uma característica
coração até salta” traduz a impossibilidade de humana (“... com enormes pernas...”). No
Joana conter a pulsão, ocorrendo uma invasão inquérito, a atribuição de movimento ao monstro
dos afectos. O contacto com o Outro é vivido evidencia, por um lado, este conteúdo ameaçador
como algo destrutivo e invasivo. Podemos e terrífico (“... por um lado, pode meter medo...”),
considerar a impossibilidade da cinestesia mas, por outro, dá conta de um conteúdo recon-
mobilizar, simultaneamente, movimentos fortante, acolhedor (“... mas por outro (...) pode
perceptivos e projectivos e, por conseguinte, a abraçar ou acarinhar alguém... não é tão mons-
impossibilidade de Joana aceder à área truoso assim”). Esta situação revela a presença
transitiva. de um mecanismo de defesa característico do
Em seguida, a focalização de Joana numa borderline – a clivagem – o objecto é mau, mas
parte da mancha indica uma dificuldade de também é bom. A incapacidade de integrar as
inserção no real, devido à intensidade da boas e más imagens do objecto remete para a
projecção pulsional e fantasmática. O conteúdo impossibilidade de separação e comunicação
“sapateira” revela que o contacto com o outro é entre o interno e o externo, o sujeito e o objecto.
sentido como destrutivo e ameaçador (“... Dá a Apesar desta realidade, a referência a um
impressão que esta sapateira feriu alguém”). A conteúdo reconfortante indica que este pode ser
vivência destrutiva e invasiva da relação dá utilizado como um objecto de suporte, adqui-

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rindo a função de um objecto transitivo, na Nesta linha de pensamento, o eixo simétrico
acepção de Winnicott. A cinestesia permite uma indica que a união das duas patas (... parecem
comunicação ténue com o Outro, embora à custa juntas”) põe em evidência uma relação de fusão
de um modo de funcionamento menos evoluído. entre o sujeito e o outro. Esta situação traduz a
Na passagem para o cartão invertido, ocorre impossibilidade em aceitar a diferença, não sendo
um movimento regrediente em que a restrição a possível estabelecer uma relação com o outro. De
uma parte da mancha dá conta de uma dificul- acordo com a teoria de Ogden, a dialéctica entre a
dade de inserção no real, revelando a dificuldade unidade e a separação cai na direcção da unidade
do sujeito diferenciar a parte (“... a cabeça de uma – sujeito e objecto são o mesmo. A indiferen-
lula”) do todo (“... também parece uma criatura ciação entre o sujeito e objecto revela falhas no
voadora”). A presença de um conteúdo que processo de simbolização e, por conseguinte, o
pode ser tanto inteiro como parcial, põe em sujeito não é capaz de se situar na área interme-
evidência a dificuldade do sujeito se ver como diária entre o real e o imaginário, entre o dentro
um todo, inteiro, completo e separado do mundo e o fora. Não é possível a constituição do “estado
externo e, por conseguinte, a impossibilidade do de dois” (two-ness) nem do “estado de três”
sujeito aceder à área transitiva. A dificuldade de (three-ness).
Joana se adequar ao estímulo perceptivo revela, No cartão VI, a imagem global traduz uma
de acordo com Ogden, que esta não consegue imagem de suporte (“... pele de animal pendu-
manter uma dialéctica psicológica entre o real e rada”). Tendo em conta que a sensibilidade
o imaginário, sendo a realidade substituída pela táctil (“pele”) nos remete para os cuidados
fantasia, ocorrendo uma invasão do mundo primários, o esbatimento de textura dá conta, por
fantasmático. um lado, da existência de falhas no holding e,
A expressão de um sentimento de estranheza, por outro, dá conta da procura de apoio, sendo a
no cartão V, dá conta de uma perda de distância imagem investida como se se tratasse de um
relativamente ao objecto, na qual Joana reage objecto transitivo, na medida em que adquire a
afectivamente ao cartão como se este fosse o pró- sua função de suporte. A utilização do outro
prio objecto (“Isto é só criaturas estranhas...”). como um objecto anaclítico, permite uma
Deste modo, a apreensão global da mancha é comunicação ténue entre o interno e o externo,
utilizada como defesa contra um mundo entre o sujeito e o objecto. A possibilidade do
fantasmático sentido como ameaçador. Por outro sujeito estabelecer uma relação mínima entre o
lado, o recurso à globalidade da mancha só é dentro e o fora, permite-lhe aceder à área
possível através de uma imagem pouco definida transitiva, ainda que à custa de um modo de
(“parece-me um insecto visto numa grande funcionamento mais arcaico.
lupa”). Esta dificuldade do sujeito se representar No cartão invertido, a sensibilidade de Joana à
como um todo definido no contacto com a simetria dá conta de uma tentativa de separação
mancha, evidencia a falta de diferenciação entre que falha, devido à referência à imagem especular
o dentro e o fora e, por conseguinte, indica a (“... um pulmão de cada lado”). A linha média
dificuldade do sujeito aceder à área transitiva. (“a coluna vertebral”) representa a linha que
Apesar desta realidade, Joana consegue alcançar separa duas entidades que são a repetição do
a unidade (ainda que mal definida), utilizando a mesmo. Esta situação traduz, na acepção de
“lupa” como um objecto de suporte, o que Ogden, a impossibilidade do sujeito manter um
permite a comunicação, precária, entre o interno processo dialéctico de unidade e de separação,
e o externo. Joana utiliza a “lupa” como se esta caindo a dialéctica na direcção da unidade. Esta
fosse um objecto transitivo, ao lhe atribuir a impossibilidade representa falhas no processo de
função deste objecto. simbolização, não sendo o sujeito capaz de, no
Em seguida, a restrição a uma parte da mancha, contacto com o Outro, se reconhecer como um ser
bem como a ambiguidade do conteúdo (“... parece íntegro, coeso e diferenciado. A impossibilidade
pernas, patas de um animal...”) dão conta da de Joana distinguir entre o “Eu” e o “não-Eu” dá
impossibilidade do sujeito se ver como um todo conta da inexistência de um espaço potencial
inteiro e completo (... Parece que só tem patas”). próprio, constitutivo do sentimento de ser.

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Em seguida, ocorre um movimento progre- se fosse um objecto transitivo, servindo a sua
diente, em que a sensibilidade aos tons esbatidos função. Joana consegue fazer uso do objecto
da mancha dá conta da possibilidade de Joana transitivo ainda que de uma forma inadequada.
manter uma certa distância face ao objecto (“... A resposta seguinte situa-se no mesmo registo,
uma estrada e de cada lado da estrada há uma em que a “rocha”, tal como o “baloiço”, serve de
lagoa...”). A possibilidade de uma distância suporte à relação, permitindo apenas uma comu-
mínima entre o sujeito e o objecto não é apenas nicação precária com o outro (“... podia ser um
espacial, mas também temporal (inquérito – “... gato (...) estão a fazer equilíbrio em cima de uma
Parece aquelas viagens ao lado do rio e depois rocha”). No entanto, o “baloiço” poderá constituir
há cursos de água.”). A referência ao “curso da um suporte mais evoluído que a “rocha”, uma vez
água” remete-nos para a ideia de continuidade que serve de suporte a uma relação humana.
no tempo. Deste modo, o movimento implícito Atendendo à inversão figura-fundo, a “ilha”
da água também evidencia a possibilidade de pode constituir um conteúdo isolado, que não
uma comunicação precária entre o dentro e o permite o contacto com o outro. Tendo em conta
fora. O eixo de simetria (a estrada) representa a que o branco remete para o vazio, o neutro, o pre-
separação ténue entre o sujeito e o Outro. Apesar enchimento da lacuna extramacular (“... o branco
da impossibilidade de uma relação intersub- é o mar”), no inquérito, representa uma procura
jectiva entre o dentro e o fora, a construção de apoio que traduz a tentativa de Joana para
tridimensional da imagem dá conta de uma restabelecer o contacto com o outro. O “mar”
aproximação ao espaço potencial. Falamos de representa um limite mais vasto e, deste modo,
espaço pré-potencial na medida em que os pode constituir um elo de ligação frágil entre o
movimentos de Joana apenas permitem um sujeito e o outro. A imagem Rorschach é utilizada
“esboçar” deste espaço. como um objecto de suporte, adquirindo a função
No cartão VII, a atribuição de movimento a de um objecto transitivo. O movimento implícito
um conteúdo inanimado, desvitalizado (“... um do mar (pela presença da tendência kob) pode
boneco de cada lado a olhar um para o outro...”), representar a ameaça que a relação constitui.
bem como a referência a duas figuras femininas Por fim, ocorre um movimento regrediente, na
que não se encontram num cenário relacional medida em que a sensibilidade ao branco dá
(“... parece duas meninas com um totó...”), dão conta do sentimento de incompletude (rã sem
conta da impossibilidade de relação. Contudo, a estômago). O branco é claramente representado
referência ao conteúdo “boneco” e ao conteúdo como a ausência, o que nos remete para o
infantilizado “meninas com totó”, pode conceito de angústia branca de Green, na medida
representar uma procura de conforto e, neste em que o que se encontra no lugar do objecto é o
sentido, estes conteúdos adquirem o valor de um vazio. Na linguagem de Ogden, esta situação
objecto transitivo. Não é possível estabelecer evidencia a impossibilidade do sujeito manter
uma relação intersubjectiva entre o interno e o um processo dialéctico entre o dentro e o fora,
externo, o que traduz a impossibilidade de Joana devido à invasão do mundo fantasmático do
se situar na área transitiva. No entanto, esta sujeito e, por conseguinte, dá conta da inexis-
utiliza estratégias arcaicas para estabelecer um tência de um espaço potencial.
contacto com o Outro, procurando transformar a Na abordagem do cartão VIII, os dois animais
imagem Rorschach num objecto confortável. não são colocados em relação (“... uma fera, um
Na passagem para o inquérito ocorre um animal selvagem de cada lado...”). A “fera”
movimento progrediente, na medida em que a pode constituir um sinal de perigo, revelando a
referência ao “baloiço” permite a relação entre ameaça destrutiva que a relação representa. A
as duas figuras femininas (“... duas meninas num restrição a uma parte da mancha constitui uma
baloiço para cima e para baixo...”). O carácter defesa contra a relação que é sentida como peri-
instável e desequilibrado do “baloiço” revela que gosa e destrutiva. No inquérito, Joana procura
este apenas permite um contacto frágil com o restabelecer o contacto com o outro, mas esta
Outro, sendo utilizado como um objecto de tentativa falha (“... dois animais, duas feras, eles
suporte. A imagem Rorschach é investida como estão a querer subir, mas estão com algum

358
receio”). A impossibilidade de relação é eviden- falhas no holding. A atribuição de movimento à
ciada pela busca de neutralidade; as duas feras imagem (“... criatura com os olhinhos a esprei-
procuram estabelecer o contacto uma com a tar...”), no inquérito, dá conta da relação com
outra, mas estão “paralisadas”. Esta “paralisia” uma imago materna persecutória. Os “olhos que
põe em evidência a vivência ameaçadora e espreitam” pode dar conta da falta de diferen-
destrutiva do contacto (“Não sei se é o receio de ciação entre o “Eu” e o “não-Eu”. A cinestesia
subir ou de se magoarem”). A impossibilidade de associada a um conteúdo irreal e persecutório
relação dá conta da inexistência de um espaço evidencia a invasão do mundo fantasmático,
intersubjectivo – o espaço potencial – que permita revelando que não é possível a expressão do
a comunicação entre o dentro e o fora. Na acepção imaginário sem que seja posta em causa a
de Ogden, esta situação traduz o fracasso do adaptação ao real. Na linguagem de Ogden, a
sujeito em manter um processo dialéctico entre a dialéctica entre a realidade e a fantasia cai na
realidade e a fantasia. Num primeiro contacto direcção da fantasia, que se transforma na única
com a mancha, a dialéctica cai na direcção da coisa real e ameaçadora para o sujeito. A dificul-
realidade, impedindo a invasão do mundo fantas- dade em discriminar real e imaginário, traduz a
mático. Num segundo momento, a dialéctica cai incapacidade do sujeito aceder à área transitiva.
na direcção da fantasia, remetendo para um Apesar de representar uma dinâmica regressiva,
mundo imaginário ameaçador e perigoso. o movimento de “pôr em quadro” (“... nesta
A focalização de Joana no contorno das cores pintura vejo uma criatura com uns olhos
(“... uma blusa, uns calções”) indica que esta escondida por trás...”) constitui um movimento
procura refugiar-se na realidade perceptiva do progrediente, na medida em que permite manter
cartão, de forma a impedir a emergência do uma certa distância em relação ao objecto; a
mundo fantasmático. O vestuário pode representar criatura torna-se menos ameaçadora ao estar
uma procura de apoio. Este conteúdo pouco inserida numa pintura. A cor (“uma pintura”)
contentor constitui uma segunda pele. A utili- permite estabelecer um compromisso mínimo
zação do Outro como uma segunda pele mental entre o real e o imaginário, ou, na acepção de
dá conta da ausência de um espaço potencial Ogden, o “estado de dois” (two-ness), que dá
próprio. Contudo, a dimensão protectora conta da possibilidade de uma comunicação
associada ao vestuário revela que a imagem ténue entre o sujeito e o objecto.
Rorschach toma o valor de um objecto transitivo. O preenchimento do branco (“... do lago sai
Por fim, a atribuição de movimento aos dois uma fonte luminosa...”), no cartão invertido, dá
animais referidos anteriormente dá conta da conta da tentativa para colmatar as carências
relação destrutiva e sádica (“... assim continuo a narcísicas, através de uma dinâmica regressiva,
ver os animais à mesma, os dois. Dá-me a sensa- pela referência a um tema de água. De acordo
ção que eles estão a pisar alguma coisa que com Chabert (1997/1998), Traubenberg considera
custa a ferir...”). A emergência da fantasia revela o cartão IX como o “cartão uterino”. Neste
que a relação é vivida como algo que destrói. sentido, a imagem pode remeter para o tema do
Neste cartão é posto em evidência um ciclo nascimento, em que a “fonte luminosa” poderá
vicioso, em que, perante a impossibilidade da representar a fonte de vida e o “lago” o útero
relação, Joana procura restabelecer o contacto. materno. A imagem “calorosa” do útero materno
No entanto, este falha sempre, devido ao carácter dada, quer pela atribuição de movimento ao lago,
destrutivo da relação. Não é possível estabelecer quer pela sensibilidade à cor, pode constituir
um compromisso entre o real e o imaginário e, uma imagem de suporte que permite “camuflar” a
por conseguinte, Joana não se pode situar na área falha narcísica. A imagem Rorschach é investida
transitiva. como se fosse um objecto transitivo, ao adquirir a
A sensibilidade ao branco remete, de acordo sua função de suporte. É este apoio que permite
com Chabert (1997/1998), para a dialéctica uma comunicação frágil entre o dentro e o fora,
relacional primária. Deste modo, a interpretação entre o real e o imaginário.
do branco (“... uma criatura escondida por trás A última resposta põe em evidência a
de um quadro”), no cartão IX, remete para as fragilidade identitária e narcísica de Joana, quer

359
pela referência a uma imagem cujos contornos são não consegue utilizar estratégias arcaicas para se
pouco definidos (“... nuvens escuras...”), quer defender do impacto fantasmático.
pelo preenchimento do branco (“... parece (...) um
tornado...”). O “tornado” pode dar conta de Análise dos traços salientes do psicograma
uma relação ameaçadora e destrutiva. Apesar do
perigo que a relação representa, a capacidade de A análise dos modos de apreensão dá conta de
manter o “tornado” à distância (“... parece que um mundo interno pouco delimitado e coeso. A
ele é um tornado á distância”) indica a impossibilidade do sujeito estabelecer um
utilização do esbatimento de difusão como um compromisso entre o interno e o externo, o real e
suporte que possibilita a manutenção de uma o imaginário, não lhe permite aceder à área
certa distância, espacial e temporal, entre o transitiva. O sujeito não pode construir “novos
sujeito e o objecto. Na acepção de Ogden, o objectos” a partir de novas relações entre o
“estado de dois” (two-ness) dá conta da possibi- dentro e o fora.
lidade de comunicação precária entre o sujeito e A análise dos determinantes evidencia – quer
o objecto. pela baixa percentagem de F, quer pela intensa
Tendo em conta que o cartão X é o “cartão da expressão cinestésica do protocolo –, a dificul-
transferência”, o elevado número de associações dade de Joana em apreender a realidade externa.
dispersas (dez respostas em D) pode ser um Tendo em conta a intensidade pulsional e
indicador da desorganização do sujeito face à fantasmática associada às respostas cinestésicas,
situação de separação. A referência ao K e k podem representar F dinâmicos e projec-
“esqueleto” revela que Joana se vê como um ser tivos, o que reflecte esta dificuldade do sujeito
“sem pele” (“... uma espécie de esqueleto (...) em adaptar-se à realidade. A falta de diferen-
Parece que lhe foi retirado tudo...”), eviden- ciação entre o sujeito e o objecto revela a impos-
ciando o sentimento de perda face à separação. sibilidade de se estabelecer uma relação
Tal como é defendido por Amaral Dias (2004), o intersubjectiva entre o interno e o externo que
sujeito utiliza o objecto como uma segunda pele permita a existência de um espaço potencial
mental e, por conseguinte, a perda do objecto é próprio, onde o sujeito possa construir as suas
vivida como a perda de si próprio. A imagem próprias experiências.
desvitalizada e destruída (“... uma árvore seca, A análise dos conteúdos revela a enorme
queimada”), que marca o fim da relação, dá dificuldade de Joana em aceder à representação
conta, através da sensibilidade ao cinzento, de de si num sistema de relações, devido ao carácter
um sentimento de angústia associado à sepa- destrutivo e invasivo da relação. A dificuldade em
ração. A impossibilidade do sujeito se ver como se reconstruir no contacto com a mancha e com o
um todo inteiro e separado do outro revela a outro, indica que não é capaz de reconhecer a sua
inexistência de um espaço intersubjectivo entre o subjectividade e, por conseguinte, não se pode
interno e o externo. situar na área intermediária entre o interno e o
Ao longo deste cartão verificamos, essencial- externo.
mente, a alternância entre respostas de má quali- As observações de simetria também dão conta
dade formal, que dão conta da tentativa falhada do da dificuldade do sujeito se reconhecer no
sujeito em adaptar-se à realidade (e.g., “... dois contacto com o Outro. A sensibilidade à simetria
ratos...”) e respostas cuja sensibilidade do cartão indica que o sujeito procura fazer a
cromática e cinestésica despertam fantasmas separação entre ele e o Outro. No entanto, esta
ameaçadores e destrutivos (e.g., “... vampiro revela-se sempre inoperante, quer pelo
(...) Parece que atacou alguém e ficou com as desdobramento do mesmo em relação ao eixo de
asas ensanguentadas”), o que evidencia a simetria, quer pelo carácter destrutivo e invasivo
impossibilidade de um compromisso entre o real da relação.
e o imaginário. Na acepção de Ogden, a Relativamente ao T.R.I., identificamos um
dialéctica entre a realidade e a fantasia cai predomínio do pólo C sobre o pólo K (extrover-
sempre na direcção da fantasia, sendo o sujeito sivo misto). Atendendo à intensidade pulsional e
invadido pelo seu mundo fantasmático. Joana fantasmática associada às respostas cinestésicas,

360
a atribuição de movimento às figuras humanas não falta de internalização das propriedades cal-
constitui um processo criativo e evoluído, mas sim mantes e securizantes do objecto transitivo no
a ausência de uma relação dinâmica entre interno decurso do desenvolvimento. O movimento de
e externo. A predominância do pólo C (7,5C) procurar estabelecer uma comunicação ténue
revela também uma falta de controlo afectivo, com o objecto, dá conta de uma aproximação ao
uma invasão dos afectos. A falta de equilíbrio espaço potencial – espaço pré-potencial.
entre os pólos K e C dá conta da impossibilidade A leitura proposta nos procedimentos dos
do sujeito estabelecer uma relação intersubjectiva conceitos de fenómenos transitivos e de espaço
entre o interno e o externo. potencial, revelou-se extremamente útil no
A fórmula complementar atesta um predomínio estudo destes conceitos no protocolo Rorschach
das cinestesias menores sobre o esbatimento da Joana. Nos procedimentos, procurámos dotar
(6k>3,5E), variando no sentido contrário ao T.R.I. os elementos Rorschach de valores interpreta-
Atendendo a que k>K, k dá conta de uma tivos que possibilitassem a leitura dos conceitos
dinâmica regressiva, em que perante a dificuldade em estudo, o que serviu de base à compreensão
em suportar o conflito, Joana desloca os destes conceitos na análise do protocolo.
movimentos pulsionais destrutivos para conteúdos Na situação Rorschach, Joana não é capaz de
não humanos ou partes humanas, o que traduz a estabelecer um compromisso entre a percepção
impossibilidade de contacto com o outro e, por (a realidade) e a projecção (o imaginário): ou (1)
conseguinte, a impossibilidade de aceder à área apega-se à realidade concreta e objectiva,
transitiva. Embora à custa de estratégias pouco procurando defender-se do contacto com o
evoluídas, o esbatimento permite um contacto, Outro; ou (2) deixa-se invadir pelo seu mundo
precário, com o outro. O esbatimento dá conta de fantasmático, reflectindo o carácter destrutivo e
uma procura de apoio, em que a imagem invasivo da relação. Na acepção de Ogden, esta
Rorschach é investida como se fosse um objecto situação dá conta do fracasso do sujeito em
transitivo, adquirindo a sua função. manter uma dialéctica psicológica entre a
A percentagem de RC situa-se acima do valor realidade e a fantasia, o que traduz uma incapa-
estimado. A extrema sensibilidade à cor pastel cidade de simbolização. No primeiro registo de
evidencia uma invasão dos afectos. A funcionamento, a realidade é usada como defesa
impossibilidade de manter uma dialéctica entre a contra a fantasia, retirando toda a vitalidade da
realidade e os afectos indica que Joana não é fantasia; no segundo registo, a realidade é
capaz de aceder à área transitiva. substituída pela fantasia, que se transforma numa
realidade tão tangível e perigosa como a reali-
dade externa, da qual não se pode diferenciar.
CONCLUSÕES Joana não é capaz de, no contacto com um estí-
mulo desconhecido, construir e reconstruir novas
Numa perspectiva psicodinâmica, procurámos relações entre o dentro e o fora. A impossibilidade
compreender as características dos fenómenos de uma relação dinâmica entre o interno e o
transitivos e do espaço potencial no protocolo externo impedem-na de se situar na área transitiva.
Rorschach de um sujeito borderline. O não reconhecimento da própria subjectivi-
Da análise do protocolo pudemos constatar a dade reflecte-se no Rorschach por uma incapaci-
impossibilidade do sujeito estabelecer uma dade de Joana construir imagens com o cunho da
relação intersubjectiva entre o interior e o sua originalidade e unicidade, sem que seja
exterior e, deste modo, aceder à área transitiva. posta em causa a sua adaptação ao real. De
Apesar desta realidade, o sujeito é capaz de acordo com as ideias de Winnicott, esta situação
mobilizar estratégias de forma a estabelecer um revela a ausência de um espaço potencial
contacto mínimo com o outro. A imagem próprio, onde o sujeito possa construir as suas
Rorschach é transformada num objecto real, próprias experiências.
sendo-lhe atribuído a função (de suporte) e as Apesar da ausência de um espaço intersub-
qualidades (reconfortantes, calmantes) de um jectivo entre o real e o imaginário, o dentro e o
objecto transitivo. Este funcionamento revela a fora, Joana é capaz de mobilizar estratégias, de

361
forma a estabelecer um contacto com o Outro. A Green, A. (1997). The intuition of the negative in
procura de apoio, de amortecimento de vivências playing and reality. International Journal of
mais angustiantes, ao longo do protocolo, indica Psycho-analysis, 78(6), 1071-1084.
que a imagem Rorschach criada pelo sujeito é Ogden, T. (1985). On potential space. International
transformada num objecto de suporte, sendo Journal of Psycho-analysis, 66 (2), 129-141.
investida como se fosse um objecto transitivo na Pinheiro, C. B. (2005). Criações sobre Leonardo Da
acepção de Winnicott. A fragilidade e precarie- Vinc. Arte e Psicanálise. Lisboa: Climepsi
dade do suporte (e.g., “baloiço, “rocha”), que
Pontalis, J.-B. (1999). Entre o sonho e a dor. Lisboa:
remete para a carência do holding, permite Fenda.
apenas uma comunicação ténue entre o sujeito e
o outro. Na acepção de Amaral de Dias (2004), o Winnicott, D. W. (1986). The theory of the parent-
infant relationship. In M. D. Peter Buckley (Ed.),
objecto é utilizado como uma segunda pele Essential papers on object relations (pp. 233-253).
(mental) e neste sentido, fala na existência de New York: University Press.
uma pele ou permeabilidade do pensamento.
Winnicott, D. W. (1971/1975). O brincar e a realidade.
Esta dá conta, por um lado, da falta de um
Rio de Janeiro: Imago.
limite claro entre o sujeito e o objecto mas, por
outro, permite manter uma distância mínima em
relação ao objecto. Podemos acrescentar a
tendência de Joana para transformar a imagem RESUMO
Rorschach num objecto reconfortante, de forma
a “mascarar” o sentimento de vazio, sentimento Pretendemos compreender, à luz do método
associado à angústia branca de Green (e.g., IX – Rorschach, as características dos fenómenos
“... do lago sai uma fonte luminosa”). transitivos e do espaço potencial no sujeito borderline.
As estratégias utilizadas por Joana, de forma a O estudo destes conceitos é desenvolvido tendo por
base as teorias de Winnicott e Ogden sobre a
estabelecer uma comunicação ténue com o
psicopatologia dos fenómenos transitivos e do espaço
objecto, dão conta de uma aproximação ao espaço potencial, respectivamente. Para uma melhor
potencial. Neste sentido, falamos na existência de compreensão destes conceitos no caso borderline,
um espaço pré-potencial. procuramos articulá-los com os conceitos de função
Os comentários de Joana, ao longo da prova, materna e de angústia branca de Green.
atestam uma “perda de distância” face ao objecto, O método Rorschach é perspectivado na sua
sendo a imagem Rorschach incorporada na dimensão intersubjectiva e dinâmica, em que o apelo a
um duplo modo de funcionamento (perceptivo e
experiência actual do sujeito (e.g., V – “Isto é só
projectivo) permite uma compreensão mais
criaturas estranhas...”). De acordo com aprofundada da dinâmica relacional entre o interno e o
Winnicott, a dificuldade de Joana em distinguir o externo, no espaço psíquico do sujeito borderline. É
símbolo do objecto simbolizado põe em evidência elaborada uma leitura dos conceitos de fenómenos
a não-aceitação do paradoxo winnicottiano: o transitivos e de espaço potencial, procurando integrar
objecto não estava lá para ser criado pelo sujeito, e articular a revisão de literatura e os elementos
mas antes, é fruto da própria criação do sujeito. Rorschach. Neste contexto é aplicado o Rorschach a
um sujeito do sexo feminino com o diagnóstico de
perturbação borderline da personalidade.
Da análise do protocolo destacamos que, apesar da
REFERÊNCIAS impossibilidade de estabelecer uma relação
intersubjectiva entre o real e o imaginário, o interno e
Chabert, C. (1997/1998). O Rorschach na clínica do o externo, o sujeito é capaz de mobilizar estratégias
adulto – Interpretação psicanalítica. Lisboa: arcaicas que lhe permitem um contacto mínimo com o
Climepsi. outro. A imagem Rorschach é experimentada como um
objecto real, adquirindo a função (suporte) e as
Davis, M., & Wallbridge, D. (1981). Boundary and qualidades (reconfortantes) de um objecto transitivo.
space: An introduction to the work of D. W. Os movimentos do sujeito dão conta de uma
Winnicott. New York: Brunner/Mazel. aproximação ao espaço potencial – espaço pré-
Dias, C. A. (2004). Costurando as linhas da potencial.
psicopatologia borderland (estados-limite). Palavras chave: Borderline, Espaço potencial,
Lisboa: Climepsi. Fenómeno transitivo, Função materna, Rorschach.

362
ABSTRACT interpreted in the light of a literature review, which is
duly articulated with Rorschach elements. In this
This study uses the Rorschach method in order to context we have applied the Rorschach method to a
understand the characteristics of both transitional female individual who had been previously diagnosed
phenomena and potential space in patients with BPD.
Borderline Personality Disorder (BPD). The approach The analysis performed to the protocol
to the aforementioned concepts follows respectively demonstrates the patient’s ability to apply very basic
Winnicott and Ogden’s theories about transitional strategies in order to enter into a minimum contact
phenomena and potential space psychopathology. For with external objects, though she is not capable of
a better understanding of both concepts in the context establishing an inter-subjective relation between
of BPD, we have articulated them with motherhood fantasy and reality or between the internal world and
function and Green’s white anguish. the external world. The patient with BPD experiences
Inter-subjective and dynamic features of the the Rorschach image as if it was a real object that
Rorschach Method, both of which call for a double bears the function (holding) and the (cheering)
working mode (perceptive and projective), are characteristics of a transitional object. These strategies
herewith used eventually leading to a deeper points to an approximation to a potential space, i.e., a
understanding of the existing relational dynamics pre-potential space.
“internal-external” in the psychic space of borderline Key words: Borderline, Motherhood function,
patients. Thus, the main concepts under analysis are Potential space, Rorschach, Transitional phenomena.

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