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Análise Psicológica (1991), 2 (IX): 203-209

As Manifestações dos Mecanismos


Adaptativos/Defensivos nos Rorschach de
Adolescentes (*)

MARIA EMÍLIA MARQUES (**)

i. INTRODUÇÃO assimiláveis a mecanismos psíquicos


primitivos, não levam obrigatoriamente a
1. Pretendemos mostrar como é que uma perda de controle, pelo contrário podem ser
Técnica Projectiva de grande sensibilidade encarados como processos reveladores de
I clínica - o Rorschach - permite revelar as enormes capacidades de integração e
particularidades de funcionamento mental dos adaptação (Giovancchini, 1984; Shentoub,
adolescentes, o que é marcado por uma grande 1973).
diversidade e riqueza e, por isso mesmo, por Encaramos assim o produto em análise
uma grande complexidade. - o protocolo - como algo que pode
Os utilizadores do Rorschach debatem-se, revelar capacidades criativas ou, se essas
quando confrontados com os protocolos de capacidades não estão patentes, algo que
adolescentes, com a questão de apreciar se as revela falhas de integração e adaptação. Está
imagens em presença são reveladoras de um c o n t i d o nesta explicitação o nosso
processo patológico - e isto ainda mais se o posicionamento face ao Rorschach: um
protocolo for encarado nas suas dimensões espaço onde n ã o são contidas,
essencialmente quantitativas, formais. deliberadamente, as possibilidades e as
As interrogações que se levantam, prendem- virtualidades diagnósticas.
-se com dois aspectos fundamentais:
a) Os protocolos apresentam características b) Os modelos teóricos que sustentam a
que, num primeiro olhar, são reveladoras de análise do Rorschach são, nas suas referências
alguma tensão interna que conduz a originais, estabelecidos a partir dos modos
exteriorização daquilo que podemos designar de funcionamento mental dos adultos
por processo patológico, mas que nós - normais e patológicos.
preferimos designar por processo criativo. A perspectiva na qual nos colocamos,
Através desta designação pretendemos contudo, centra a análise do Rorschach de
referir-nos a capacidade em incorporar/ adolescentes num modelo em que é atribuido
/revelar elementos que, mesmo podendo ser um peso específico ao jogo entre a realidade
interna e a realidade externa e As suas
(*) Comunicação apresentada no I Colóquio de vicissitudes neste período tão particular.
i, Psicologia Clínica, ISPA, 1989.
(**) Assistente, ISPA. Psicóloga Clínica.
Concebemos como modelo interpretativo do
Rorschach de adolescentes, aquele que

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confere a adolescência o estatuto de período essencial a adolescência representa: o abandono
do desenvolvimento marcado por alterações da infância, dos seus objectos e dos seus
e transformações importantes, período objectivos. Esse momento era perfeitamente
marcado pela necessidade de negociar enquadrado, apoiado e regulado pelos adultos.
tendências diferentes, opostas, mesmo Era um momento curto e bem delimitado -
contraditórias. o recurso a rituais de passagem (a idade adulta)
revelava claramente ao jovem qual o novo papel
Destacaríamos desde já algumas dessas a assumir: o de reprodutor e produtor.
tendências: O poder assumir uma identidade sexual
-A permanente interrogação, para não precisa era facilitado, ou melhor, regulado pelo
dizer mesmo perplexidade, sobre o sentido papel dos adultos-iguais o que acarreta menor
d a vida, d a própria existência em instabilidade/fragilização d a identidade
confronto com atitudes marcadas pela subjectiva.
excessiva afirmação de si, reinvidicação Se nos reportarmos a Literatura, vemos que
ou oposição. esta apresenta exemplos magníficos de como
- A necessidade de se viver como diferente, a adolescência é um período parficular, onde
se assiste a uma amplificação daquilo que na
para se poder afirmar como único.
- A difícil negociação entre as posições sua expressão-repressão constitui a essência da
activas e passivas, masculinas e femininas. existência humana: as capacidades reais e/ou
- A exigência em investir intensamente a imaginárias de amar e odiar, levadas pelos
adolescentes por vezes a extremos incríveis onde
realidade externa a par das pressões
internas sentidas como muito prementes, a vida e a morte se debatem ou, pelo menos,
que conduz a enormes dificuldades em as ilusões e as desilusões se confrontam (Ver
obter gratificação dos objectos externos nomeadamente Sena, 1981).
(Jeammet, 1980). O essencial da problemática do adolescente
passa justamente por estas dimensões: forte
Nestes processos, marcados por tendências conflitualidade intra e inter-psíquica.
contraditórias, há a necessidade de uma No que se refere as teorias e às praticas
negociação incessante, para a qual é mobilizada psicológicas, vemos q u e estas procuram
uma enorme quantidade de energia, sendo o estabelecer, com maior ou menor acuidade, as
mundo interno e externo vivenciados com delimitações deste processo naquilo que de
enorme intensidade, acuidade, tornando muitas essencial ele representa. Há, no entanto, que
vezes instáveis e precárias as capacidades de reconhecer que esta tarefa não é fácil, atesta-o
adaptação, mas, e isto é o aspecto fundamental a inúmera literatura sobre a matéria
que pretendemos salientar, neste jogo levado a (Destacamos Blos, 1985; Laufer & Laufer, 1984;
extremos incríveis, é possível ver surgir Mâle, 1982; Feinstein, Giovancchini & Miller,
capacidades e possibilidades adaptativas 1982).
igualmente incríveis. Há tendências que são marcadas pela
c e n t r a ç a o nas dimensões externas da
2. Impõe-se-nos agora um pequeno recuo que adolescência. Aparecem então valorizadas as
nos permitirá levantar algumas interrogações e condutas agidas, sendo os processos intra-
legitimar algumas das nossas afirmações -psíquicos relegados para segundo plano. Estas
anteriores. O recurso as refêrencias da tendências conferem a adolencência o carácter
Antropologia, da Literatura e da própria de «crise», em que o essencial do processo é
Psicologia, são fundamentais para levantar visto a luz das manifestações mais evidentes e
algumas das questões essenciais que se prendem «ruidosas», mas onde o externo é fortemente
com a adolescência. infiltrado pelo interno.
Há muito que o adolescente capta e fascina H á outras tendências que se centram
os olhares. Nas sociedades ditas primitivas, ao dominantemente n a apreciação d a s
adolescente era conferido um lugar de destaque. manifestações intra-psíquicas deste período. Há
O corpo social legitimava aquilo que de então a valorização da ideia de «ruptura» em

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relação a infância, da perda de continuidade, estruturas consciente e inconsciente é
da perda de coerência psíquica (Braconnier, posto em causa, mas onde é esperável que
1985; Ladame, 1985). a secundarização domine, ainda que
Estas concepções, não apresentando nenhuma alimentada pela vida pulsional - aquilo
incorrecção de maior, não valorizam, no a q u e chamamos ressonância
entanto, aquilo que nos parece mais interessante fantasmática;
ressalvar: o espaço real em que vive e como se - Representa finalmente um espaço de jogo,
vive o adolescente, nos diferentes períodos/ criação e recriação, solicitado pela
/processos que atravessa. especificidade da situação, que ao mesmo
Convém, finalmente, sublinhar que a tempo que apela à expressão das
literatura psicológica sobre a adolescência fantasias, obriga a necessidade de manter
contém uma imprecisão permanente: fala-se de presente o princípio da realidade (Rausch
adolescência no singular, não aparecendo de Traubenberg, 1983; Shentoub, 1983).
geralmente referências claras aos processos
Parece-nos ser o Rorschach, concebido nesta
particulares que ocorrem durante este período
perspectiva, um instrumento valioso para revelar
que é bastante longo. Parece-nos mais correcto
os conflitos e as estratégias usadas pelo sujeito
reter a ideia de que a adolescência deve ser
para os tentar «neutralizar».
sempre referida no plural, já que é marcada por
A forma como o adolescente se implica e
processos diferentes.
participa na tarefa que lhe propomos: criar uma
Entre as múltiplas imagens do adolescente imagem precisa face a uma mancha que não
reconstruidas pelo adulto: a d a p t a d o / tem significado preciso, permite revelar como
/desadaptado; doentehaudável; asceta ou com é que ele liga a realidade interna a realidade
tendência excessiva para o agir, existe um espaço externa, já que o acto de atribuir um significado
a explorar, um espaço a ser ocupado pelo as manchas pode ser concebido como um
adolescente real que tenta viver e viver-se num
trabalho de criação onde os objectos (internos
espaço real e imaginário próprios, singulares, e externos) aparecem ligados e recriados.
a caminho da constituição de uma identidade
e alteridade coerentes e bem delimitadas -
sendo este caminho marcado por constran-
gimentos e vicissitudes vários (Giovancchini, 2. OS RORSCHACH ADOLESCENTES
1984).
Vamos assim mostrar como é que o processo
3. Esta tarefa a que nos propomos, fascinante, adolescente se pode revelar no Rorschach.
é contudo marcada por dificuldades inerentes Como a adolescência é um período longo,
ao facto de que pretender revelar factos marcado por várias tendências, pensamos ser
psicológicos através de teorias é uma prova dura adequado diferenciar dois grandes momentos:
através da qual a riqueza das coisas pode a entrada na adolescência e a adolescência
rapidamente transformar-se em pobreza das propriamente dita.
palavras. O recurso ao Rorschach permite-nos, Escolhemos assim dois grupos de protocolos
no entanto, a facilitação da tarefa, já que este, de Rorschach um grupo de 13 anos e um grupo
pela sua especificidade, nos permite revelar de 17 anos, certos de que revelarão elementos
como é que cada sujeito reage às situações de diferenciadores.
conflito. Antes de mais, o próprio Rorschach Os dois grupos de protocolos, referem-se a
constitui, no essencial, um conflito por aquilo sujeitos do sexo masculino, ditos normativos:
que de fundamental representa: sem insucesso escolar, sem consultas de
Psicologia ou Psiquiatria, oriundos de famílias
- Um espaço de negociação entre as aparentemente estáveis, e homogeneizados do
moções pulsionais e a expressão das ponto de vista do estatuto socio-económico.
representações e dos afectos que lhe estão Os resultados a apresentar vão ser sobretudo
associados; centrados na análise dos elementos relevantes
- Um espaço onde o equilíbrio entre as do psicograma, tal como eles aparecem

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explicitados na Escola Francesa, com o - Procura activa e intensa de uma
objectivo de mostrar como é que eles podem identificação - um número de grandes
ser considerados como reveladores mais de um Kinestesias (K) elevado, que se faz
processo criativo do que patológico (Rausch de acompanhar de um número de imagens
Tmubenberg, 1983; Chabert, 1983). humanas (HVo) elevado, aparecendo esta
percentagem de H dominantemente
constituida por imagens inteiras e
2.1. Apresentação dos Resultados
bastantes imagens para-humanas.
- Uma grande reactividade ao mundo
2.1.1. Elementos que decorrem da análise dos externo - priviligiar da sensorialidade
elementos formais dos protocolos (CC e CE dilatados) - sem no entanto
haver hipersugestionabilidade. Estas
A necessidade de expressão nos rapazes de respostas, determinadas pelo pólo
13 anos é muito mais intensa - o número de sensorial, são dominantemente
respostas (R) é muito mais elevado. Afigura- controladas pelo aspecto formal (FC e
-se-nos que esta necessidade está ligada a um FE). Nesta faixa etária, os movimentos
momento em que as tensões internas são muito presentes são caracterizados por uma
mais intensas, enquanto que no grupo de 17 extrema intensidade e mobilidade, onde,
anos se assiste a um maior abrandamento da apesar da forte pressão/expressão interna,
t e n s ã o pulsional, que conduz a um não há perca de controlo, ou melhor, é
abrandamento da necessidade de expressão. possível a recuperação - os mecanismos
As estratégias cognitivo-perceptivas usadas - adaptativos acabam por dominar.
reveladas através dos modos de apreensão -,
mostram uma maior preocupação no grupo dos O grupo dos rapazes mais velhos apresenta
rapazes mais novos, em bem delimitar os uma maior adequação e conformidade a
perceptos - isto através da verbalização usada realidade objectiva e apresenta também uma
e pela tendência em privilegiar o modo de menor expressão de tensões internas - F%,
apreensão global (G), mas onde os grandes F+%, K, H%, Ban dentro dos valores
detalhes (D) também são investidos. Revela-se normativos.
assim uma maior preocupação em se viver - Os conteúdos apresentados têm características
representar íntegro face a um meio investido, diferentes.
para melhor assegurar uma clara delimitação. Os rapazes de 13 anos recorrem a um maior
No grupo dos 17 anos, o privilegiar um tipo leque de conteúdos que podem ir das Abstrações
de modo de apreensão ou outro é mais função as Explosões, revelando assim um maior
de condições singulares, e não revela essa balanceamento e maleabilidade, sem que se
necessidade de investimento dos limites. expresse uma temática muito clara. Há, no
Os modos expressivos dominantes revelam-se entanto, que sublinhar um peso maior dos
também, qualitativa e quantitativamente, conteúdos regressivos, que atestam o recursos
diferentes. a mecanismos narcisicos dominados pelo
Nos rapazes mais novos, o investimento dos retraimento libidinal.
limites n ã o é a c o m p a n h a d o por um Nos rapazes de 17 anos, assiste-se a uma
investimento na realidade objectiva - as expressão mais reduzida, tomando significado
imagens de dominância formal (FVo) são pouco especial as imagens parciais (nomeadamente
investidas. Verifica-se, sobretudo, o recurso a Hd) e as respostas Anatomia (Anat) - sem,
outras modalidades expressivas onde as no entanto, se verificar nada de fixo e repetitivo.
kinestesias (K) e as respostas cor (C) assumem Esta maior centração sobre as imagens parciais
papel relevante. Destaca-se no entanto que a e sobre as referências corporais, parece-nos
adequação formal existe - visível através do revelar muito mais uma recrudescência da
F% alargado que é aceitável na sua expressão. angústia de castração, face a qual o recurso a
Esta faixa etária revela uma preocupação mais imagens de interior do corpo como eixo
centrada em dois pólos: organizador se impõem.

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As expressões directas da angústia são pouco que os arranjos identificatórios que se
presentes nos dois grupos. A angústia existe impõem nesta altura levam a uma
sobretudo ligada as representações, circunscrita fragilização da representação de si integra,
a atitudes defensivas variadas. ou melhor, levam a que a identidade
subjectiva apareça pouco estável.
Que conclusões tirar então destes elementos - No grupo dos rapazes de I7 anos, a
d o psicograma? Parece-nos importante necessidade de representação directa de
aprofundar estes aspectos e procurar atribuir- si diminui, marca-o o abaixamento das
-lhes um significado no que se refere a dinâmica percentagens de H e A, bem como da
afectiva, para o que será necessário recorrer a implicação projectiva. Não há, também,
outros elementos. a expressão de uma representação de si
através da representação da relação,
2.1.2. Grelha de Análise da Dinâmica Afectiva atesta-o o número de K diminuto.
(Rausch de Traubenberg et al., 1989) Aparecem no entanto, preocupações
A projecção das pulsões libidinais e/ou centradas sobre o corpo, vivido como
atingido. Os elementos relativos a
agressivas apresenta-se diferente nos dois grupos
e têm um destino diferente. castração são muito presentes: maior
Nos rapazes mais novos, assiste-se a uma presença de imagens parciais, muitas
maior oscilação, a um maior balanceamento preocupações sobre o carácter imperfeito
entre uma expressão pulsional objectal e não das manchas, muitos comentários, ou
objectal. A um investimento no objecto externo mesmo imagens, onde a elementos viris
sucede-se um investimento no objecto interno são atribuidas características de pequenez.
e vice-versa. A expressão da agressividade A expressão do narcisismo nos dois grupos
domina, mas marcada por um cariz oscilatório, de protocolos apresenta igualmente
onde o activo e passivo e o agredir e ser características diferentes.
agredido se expressam e «anulam» mutuamente. Considerada a expressão do narcisismo na sua
Nos rapazes mais velhos a expressão pulsional tripla dimensão-retraimento libidinal,
é mais estável mas menos presente, continua a desvalorização ou valorização - constatamos
dominar a expressão da agressividade, mas esta que o retraimento narcísico é muito presente
é mais mentalizada ainda que não apareça ainda em todos os protocolos, só que com
inscrita no relacional. características diferentes quanto a sua expressão,
A constituição da identidade aparece estável mas permitindo sempre a restauração.
nos dois grupos etários, havendo, no entanto, Enquanto que no grupo dos rapazes mais
alguns elementos diferenciadores:
novos o retraimento surge no lugar duma
- No grupo de I3 anos assinala-se uma representação directa de si que mobiliza
grande diversidade de representações angústia, onde a desvalorização e/ou a
humanas e para-humanas, animais e valorização de si se joga, no grupo dos rapazes
para-animais, femininas e masculinas, mais velhos vemos surgir principalmente
dominantemente inteiras. A presença imagens de valorização e imagens de interior
destas imagens é marcada por uma de corpo, onde se esperaria que a representação
permanente oscilação, passagem de umas da relação aparecesse.
imagens a outras, atestando uma busca Mais concretamente, nos grupos de protocolos
activa de uma identificação sexual estável, dos rapazes mais novos, aparece muito o recurso
onde por vezes se receia uma perda de a referências de espelho, reflexo, simetria onde
controlo. Esta busca activa d a se poderia esperar que a representação de si
identificação conduz, de facto, a imagens estável e/ou a representação da relação fosse
onde a identidade aparece ameaçada na investida, no grupo dos rapazes mais velhos
sua integridade, mas nunca se assiste a aparecem mais facilmente imagens de «flores»,
imagens reveladoras de falhas «vasos», imagens de valorização narcísica, que
fundamentais da identidade. Pode-se dizer visam neutralizar a representação directa de si

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ou da relação. A par destas imagens, surgem a extremos que nos fazem recear sobre as
também referências do tipo «coluna vertebral)), possibilidades adaptativas, coexistem
imagens que cumprem a mesma função. surpreendentemente com movimentos de
Nos dois grupos, os mecanismos de defesa recuperação surpreendentes. Concebemos estes
presentes são variados e flexíveis, a excepção movimentos, como movimentos de recuo até
dos cartões 11, IV e VI que apresentam, mais patamares mais securizantes - recuar para
frequentemente, defesas mais rígidas, melhor saltar -, como se o ir até aos limites
dominando a inibição e o recalcamento. fosse a tarefa fundamental: testar todas as
Apesar da presença de uma forte implicação hipóteses, comprometer todas as fontes e
projectiva, a possibilidade de recurso a defesas recursos (internos/externos) num jogo onde o
com valor de desimpedimento domina transgredir o (ir)razoável se impõe e é imposto,
francamente estes protocolos. mas onde há a possibilidade de voltar atrás para
se reafirmar num espaço onde se vive e situa
o adolescente real.
3. CONCLUSÃO Estamos face a funcionamentos mentais
extremamente ricos, maleáveis, abertos (as vezes
A diversidade dos processos evidenciados nos mesmo permeáveis) onde o vencer e o ser
dois grupos de protocolos, leva-nos a considerar vencido é o espaço de negociação.
de toda a legitimidade e interesse o diferenciar, No entanto, a constatação de que nos rapazes
em função do critério idade (e provavelmente de 13 anos há uma maior exuberância imagética,
também d o critério sexo), o processo tida nas suas características de maior
adolescente, que tem faces múltiplas. Este intensidade e diversidade e nas suas
processo é marcado por motivações positivas características por vezes mesmo opostas, leva-
dominantes, mesmo quando aparecem -nos a considerar que neste grupo existe uma
transitoriamente sob uma configuração maior orientação narcísica nas atitudes e
negativa. condutas, enquanto que no grupo dos rapazes
Daqui decorre o nosso interesse em mais velhos a menor necessidade de expressão
aprofundar muito mais estes aspectos e o se deve a uma orientação objecta1 dominante:
trabalho que actualmente desenvolvemos pode, o objecto, sobretudo externo, é mais investido
desde já, conter estes elementos que se nos por permitir uma realização mais imediata,
apresentam como novas hipóteses a considerar. mesmo que o recurso a intelectualização e a
Ainda que alguns dos elementos atrás racionalização domine.
evidenciados possam ser tidos como Este aspecto, que pode aparecer como um
preocupantes, o que é facto é que, na sua elemento que contraria as observações clínicas
essência, eles não podem ser encarados dos adolescentes destas faixas etárias, parece-
negativamente, e isto porque eles surgem -nos dever ser entendido como revelador do
episodicamente, intimamente ligados a trabalho de ligação entre a realidade interna e
solicitação simbólica dos cartões e havendo externa característico destes períodos: um
sempre recuperação, o que atesta uma boa aumento da tensão interna de difícil regulação,
distância em relação ao fantasma. característico da primeira fase da adolescência,
Os imperativos da secundarização estão dá lugar a um funcionamento que, na sua
presentes, apresentando-se no entanto coloridos configuração aparente externa, é marcado por
afectivamente. O real interno e externo podem uma espécie de pobreza fantasmática. A forte
confrontar-se, expressar-se sem que a perda de conflitualidade interna é como q u e
controlo persista mais do que o desejável. Estes «neutralizada» pelo excessivo recurso ao factual,
aspectos podem ser vistos como movimentos ao a-conflitual. É como se ao manter bem
oscilatórios, pendulares, percorrendo uma presente o real nas suas características precisas,
panóplia imensa de estratégias cognitivo- objectivas, concretas pudesse organizar o mundo
-afectivas que possibilitam a expressão. Tudo interno que é vivenciado como impreciso, as
isto é revelado num quadro vivo onde as vezes mesmo, caótico.
possibilidades, as capacidades de levar as coisas Quanto ao grupo dos rapazes mais velhos,

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que aparece na observação directa como mais Ladame, F. (1985). Ruptures ou descontinuité?
apto a mentalizar e a simbolizar, mas que no Adolescence, 3(1): 155-158.
Rorschach aparece mais «empobrecido», Laufer, M. & Laufer, E. (1984). Adolescence and
entendemos que é justamente porque a tensão Developrnental Breakdown. New Haven and
London: Yale University Press.
pulsional diminuiu, que se torna possível
Mâle, P. (1982). La crise juvénile. Paris: Payot.
organizar e ligar de uma forma mais precisa, Sena, J. (1981). Sinais de Fogo. Lisboa: Edições 70.
mais investida as duas realidades que estão em Shentoub, V. (1973). A propos du normal et du
confronto: a interna e a externa. pathologique dans le T.A.T.. Psychologie
Todo o tipo de condutas reveladas durante Française, 18(4): 251-259.
a adolescência, sobretudo a oscilação entre a Shentoub, V. (1983). T.A.T.: Teoria e Método. Análise
expressão pulsional não objectal e objectal, entre Psicológica, IV(1): 23-30.
a realidade interna e a externa, entre os Rausch de Traubenberg, N. (1983). La pratique du
comportamentos de autonomização e os de Rorschach, Paris: PUF.
Rausch de Traubenberg, N. (1983). Actividade
dependência cumprem um objectivo preciso: a perceptiva e actividade fantasmática no Teste de
constituição, a construção e reconstrução de um Rorschach - O Rorschach, espaço de interacções.
espaço psíquico mais alargado mas sempre Análise Psicológica, IV(1): 17-21.
singular, onde o presente-passado-futuro se Rausch de Traubenberg, N., Bloch-Laine, E, Boizou,
sintetizam de novo em função das novas M.-E, Duplant, N., Martin, M. Poggionovo, M.P.
possibilidades e potencialidades. (1990). Modalités d’analyse de la dynamique
O Rorschach, pelo conjunto de processos que affective au Rorschach. Gulle d’analyse de la
t
mobiliza, permite que se revele justamente este dynamique affective. Revue de Psychologie
aspecto: como é que do confronto entre o Appliquée, 40(2).
mundo interno e o mundo externo podem surgir
novos objectos, ou melhor dizendo, como é que
se podem recriar os objectos internos e externos RESUMO
face a uma situação conflitual-tipo. A
A autora procura mostrar, através do recurso ao
adolescência como período marcado por várias Rorschach, que a adolescência deve ser considerada
conflitualidades expressa-se de uma forma como um período/processo com expressões múltiplas,
exemplar num espaço como o Rorschach. no qual é esperável e desejável a expressão de
mecanismos primitivos.
O Rorschach é analisado de forma a poder revelar
BIBLIOGRAFIA a natureza desses mecanismos primitivos e as
estratégias usadas contra a sua expressão.
Blos, P. (1985). Adolescência, S. Paulo: Martins
Fontes.
Braconnier, A. (1985). Ruptures et séparations. ABSTRACT
Adolescence, 3(1): 5-19.
Chabert, C. (1983). Le Rorschach en chique adulte. Using the Rorschach, the author attempts to
Paris: Dunod. demonstrate that adolescence should be viewed as
Feinstein, S.C., Giovancchini, P.L. & Miller, A.A. a period/process with multiple mechanisms is to be
(1982). La Psychiatrie de 12dolescent. Paris: PUF. expected and desired.
Jeammet, Ph. (1980). Realité externe et realité interne The Rorschach test is analysed in such away as
- Importance et spécificité de leurs articulations to reveal the nature of these primitive mechanisms,
a l’adolescence. Revue Française de Psychanalyse, and also the strategies used by the subjects against
44: 481-522. their expression.

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