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Psicanálise com crianças:

questões atuais e considerações


sobre o processo de alta

Luciane Falcão

Revista Brasileira de Psicanálise Luciane Falcão  é membro efetivo


volume 50, n.3, p. 168-183 · 2016 da Sociedade Psicanalítica de Porto
Alegre (SPPA) e psicanalista de
crianças e adolescentes.

Resumo
A autora propõe algumas reflexões sobre a alta nos processos
de análise com crianças utilizando-se de exemplos clínicos
e da metapsicologia. Aborda situações que levam esses
pacientes a retornar à análise quando adolescentes. Busca
compreender o que estaria aquém do recalcado e as
construções e representações presentes nesses processos.
Apresenta alguns índices evolutivos das análises com
crianças que possibilitam pensar no seu término, do
irrepresentável ao além do recalcado.
Palavras-chave
análise com crianças; alta; irrepresentável; além do
recalcado.

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Q uais critérios utilizamos quando pen-


samos em alta no tratamento de crianças?
Pensamos que muitos elementos da ordem
das excitações não entraram nas cadeias
Como considerar suas condições de auto- representacionais; reaparecendo na adoles-
nomia psíquica? Como avaliar se forças cência, acrescidos da excessiva excitação
pulsionais destruidoras seguirão domando típica da fase, conduzem ao transborda-
aparelhos psíquicos ainda em formação? mento das angústias avassaladoras, partici-
Como considerar as posições da família? pando da criação de sintomas típicos das
Pensamos, hoje, diferente das pioneiras da doenças do pânico.
psicanálise infantil? Por um lado, muitas dessas crianças
Tenho tido a oportunidade de rever um foram incapazes de realizar, por si só, um
número significativo de crianças que um trabalho de organização psíquica que per-
dia, na tenra infância, estiveram em trata- mitisse um equilíbrio entre as pulsões de
mento psicanalítico comigo. Algumas vol- vida e as destrutivas. O equilíbrio necessá-
tam em plena adolescência, com angústias rio entre a libido do eu e a libido de objeto
importantes e desconcertantes que reque- (Freud, 1915/2004) também não ocorreu.
rem algum tipo de tratamento. Não temos dúvida de que o eu imaturo da
O que terá acontecido com o desenvol- criança que chega para uma análise passa
vimento daquele aparelho psíquico que já por transformações. Ao mesmo tempo,
vivenciou uma outra relação a dois que não naturalmente ele se transformaria em fun-
com os objetos originais? Será que o trabalho ção do seu crescimento e desenvolvimento.
da época não foi suficiente? Ou, ao contrário, Mas quais transformações são devidas à
justamente porque nossa experiência possibi- análise? Será que teríamos como respon-
litou trocas pulsionais que permearam zonas der a essa questão?
psíquicas além ou, se preferirmos, aquém do Não temos respostas objetivas. Em
estabelecimento do recalque? relação à formação e desenvolvimento do
Nosso trabalho como psicanalista de aparelho psíquico, jamais encontraremos
crianças inclui, por vezes, um trabalho respostas lineares. Mesmo diante de evolu-
interpretativo de aspectos do inconsciente ção positiva na análise de crianças, precisa-
quando este for traduzível. Por outro lado, mos ser cautelosos para afirmar que essas
também requer a criação e a ocupação de evoluções se devem ao processo analítico.
um espaço potencial capaz de estabelecer a A permeabilidade do aparelho psíquico da
possibilidade de trocas pulsionais – o duplo criança é grande. Alguns aspectos de uma
retorno das pulsões – através do encontro análise bem conduzida podem entrar nessa
com um outro disponível. A possibilidade de rede e participar, mais ou menos, do desen-
binden/ligação/investimento será elemento volvimento. Entre as necessidades vitais
fundador da relação analítica. Será na teia para o desenvolvimento estão o amor, o
desse enlaçamento que poderá ocorrer a carinho e a possibilidade de trocas afetivas
captura das excitações e afetos que ainda que engendram um progresso harmonioso
não se transformaram em representações. da vida psíquica. Se os objetos primários

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falham nesse engendramento, o analista como Hermine Hug-Hellmuth (Geiss-


pode tentar realizar parte desse trabalho, mann & Geissmann, 1992) e Sophie Mor-
sabendo que as falhas referentes ao amor genstern (1928), empreendem tentativas
primário (Balint, 1965) deixarão marcas – de análise de crianças. Mas a sistematiza-
muitas delas, irrepresentáveis. Ao mesmo ção da técnica viria através de Anna Freud
tempo, esse trabalho também será resul- (1971, 1977) e Melanie Klein (1932/1997b),
tado do trabalho de recalcamento. que buscaram a compreensão do incons-
ciente e do recalcado para construir técni-
cas psicanalíticas, abrindo caminhos para
Entre a história da psicanálise infantil o desenvolvimento da psicanálise infan-
e o método hoje til. Influenciaram importantes psicanalis-
tas que se dedicaram à evolução da teoria
Através da publicação dos Três ensaios e da técnica, entre eles D. W. Winnicott
sobre a teoria da sexualidade infantil, Freud (1969/1975b, 1971/1975a, 1979/1982), A. Abe-
(1905/1972b) mostrou ao mundo que as rastury (1982), D. Meltzer (1971), E. Bick
crianças apresentavam um comportamento (1968/1998) e A. Ferro (1995).
ligado à sua vida sexual: oral, anal, genital, Anna Freud permanece fiel às ideias
complexo de Édipo, de castração, regressões paternas em relação à perspectiva genética e
a esses estágios, entre outros aspectos. evolutiva, adotando uma postura mais peda-
Quatro anos mais tarde, Freud publica gógica. Tecnicamente, fala sobre “conduta
“Análise da fobia de um garoto de cinco muito ativa” do analista (1971, p. 29), cujo
anos” (1909/2015), abrindo caminho para a objetivo é fazer com que a criança possa se
análise de crianças. Destacamos três gran- interessar por ele. Isso nos remete à ideia de
des contribuições desse artigo: analista vivo (Green, 1973), essencial no trata-
mento de pacientes borderline ou limítrofes.
‚‚ a possibilidade do tratamento de crianças e
Como as crianças, esses pacientes também
a comprovação das teorias sexuais infantis;
não possuem um sistema de defesa/recalque
‚‚ o acesso ao desenvolvimento normal das
estruturado e necessitam que nos apresente-
crianças, que inclui o conhecimento sobre
mos como um outro capaz de trocas.
o mundo pulsional paradoxal, condutor
Em A psicanálise de crianças, Mela-
de conflitos pertinentes a todo psiquismo
nie Klein (1932/1997b) propõe a técnica
humano;
do uso do brinquedo nas sessões como
‚‚ a capacidade de Freud de dirigir sua
via de acesso ao mundo intrapsíquico da
escuta para um caso clínico de uma forma
criança. A noção de espaço no interior do
distinta da que vinha usando – por exem-
corpo da mãe é essencial e está na base
plo, no caso Dora (1905[1901]/1972a); uma
de muitos conceitos psicanalíticos atuais:
criança exigiria uma escuta diferente.
A partir daí, surge a criação da técnica
de psicanálise infantil. Algumas pioneiras,

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Bion (1959/1988, 1959/2000), Baranger & do par analista/criança  – ingrediente do


Baranger (1985), Meltzer (1971, 1992/1994), processo, o que nomeei como flash corpo-
para citar alguns. ral e pré-figurabilidade psíquica (Falcão,
Em relação à interpretação da transferên- 2011). Mediante sua forma de se expressar
cia, Melanie Klein recomenda: “o tempo na vida  – chorando, gritando, sorrindo,
todo da mesma maneira que na análise olhando, dormindo, brincando, jogando,
de adultos” (1932/1997b, p. 33). Hoje, nem desenhando –, ela atuará na sessão tanto a
sequer com os adultos empregamos esse “o agressividade quanto a capacidade de liga-
tempo todo”. Utilizamos a escuta, o enten- ção. Sem espaço para a ação da pulsiona-
dimento transferencial e contratransferen- lidade do par analista/criança não haverá
cial, presente o tempo todo, sem que isso processo. A presença da força pulsional
signifique interpretação nem que estamos na transferência é vital para qualquer pro-
captando o tempo todo o que nos é enviado cesso. Caso contrário, será a função deso-
pelo paciente. Sua interpretação ou seu assi- bjetalizante no processo analítico (Falcão,
nalamento requer o mesmo cuidado que 2015) que predominará, correndo-se o risco
qualquer outro aspecto do inconsciente da do não processo, tanto na análise de adul-
criança que emerge no processo: no timing tos quanto na de crianças.
adequado e quando pudermos entender que Se a criança manifesta verbalmente ou
essa interpretação permitirá os enlaçamen- através do brinquedo sua capacidade sim-
tos necessários do trabalho pulsional e que bólica (Klein, 1930/1997a), poderemos auxi-
será a “qualidade da simbolização provo- liar na tradução desse material, portador
cada que assinalará a integração, ou não, do pulsional e das excitações perturbado-
da interpretação” (Ody, 2013, p. 206). ras do equilíbrio ou inibidoras do desen-
Nem sempre a transferência nas análi- volvimento. Por outro lado, quando não
ses com crianças portará em si a clássica há capacidade simbólica, necessitaremos
definição de neurose de transferência, pois de técnicas ativas e criativas para a criação
a neurose da criança permanece, in presen- do espaço potencial (Winnicott, 1947/1969,
tia, nos objetos originários. Mesmo vivendo 1969/1975b, 1971/1975a, 1979/1982; Roussil-
seu mundo pulsional com os objetos ori- lon, 2008, 2009; Falcão, 2008), de modo que
ginários, não estaria impedida de deslocar essa tarefa possa ser vivenciada na análise.
e transferir para o analista suas vivências,
tanto as libidinais amorosas como as agres-
sivas. O jogo, o desenho e o material lúdico Os pais “reais” presentes
são os equivalentes à associação livre de
um adulto. Além disso, consideramos o Nas análises com crianças, a presença dos
corpo na e da cena analítica – portanto, pais é um diferencial – muitas vezes, con-
flitante, pois elas nos chegam através deles,
e seus desejos e percepções em relação à
criança nem sempre são compatíveis com

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nossas percepções. Além disso, assim como muito lenta (permaneceu seis meses após
são os pais que demandam o processo, é o início do tratamento sem ingerir sólidos)
comum que o término se dê da mesma estabelecer uma diferença entre o que é
forma: por decisão deles. Também ocor- da ordem da fantasia, do pensamento e
rem altas em que pais, criança e analista do real. Através de um animal (massa de
estão de acordo. Mas qual seria esse bom modelar) que come sua própria cabeça,
momento? Certamente, se os três objetos descobrimos um monstro autofágico, des-
do processo  – criança, pais e analista  – truidor e engolidor de si, expressão de um
estão de acordo, já temos um índice: algo sadismo que até então não pôde colocar
evolui no aparelho psíquico da criança que para fora. O menino meigo e querido por
lhe permite estar mais feliz. todos não encontra formas de exteriorizar
O problema maior é quando as três par- sua violência. O medo do alimento está
tes do processo não estão de acordo e vemos ainda associado ao medo das fezes, que
(ou não…) se instalar a transferência nega- poderiam estar envenenadas. Gradual-
tiva. Quando não detectada e trabalhada, mente, as fantasias sádicas diminuem e
causará interrupções precoces. Muitas suas ideias de perseguição também.
vezes, ela é silenciosa (Freud, 1920/1976), Nos primeiros meses, eu acabava as
e o caminho do processo será regido pela sessões de análise com Mateus com uma
desobjetalização (Green, 1984/1998, 1993, contratura muscular – meus músculos se
1995, 2002, 2007; Falcão, 2015). enrijeciam. Tempos depois, percebi que
eles se fechavam, provavelmente por temer
alguma invasão corporal. Um dia, mostrei
O enlaçamento da teoria, da técnica e para Mateus que aquele animal que usava a
da vida psíquica/alma (Seele)1 própria boca para se comer e se atacar tam-
bém poderia atacar os outros, e que estes
Mateus: da pulsão de morte e de outros poderiam temer esse ataque.
destruição ao pensar A alta ocorre por desejo dos pais. Mateus
encontra-se bem externamente, sem sinto-
Mateus chega ao tratamento com 4 anos, mas aparentes; retomou uma forma saudá-
num momento em que praticamente vel de se alimentar; vai bem na escola e tem
havia cessado de comer alimentos sólidos, um bom convívio com os amigos, mesmo
já debilitado fisicamente. Suas angústias não sendo uma criança muito expansiva.
terroríficas levavam-no a fantasiar que Percebo, porém, uma fragilidade de ego.
qualquer alimento que ingerisse poderia Muitas vezes, o esbatimento dos sinto-
matá-lo. Qualquer objeto que se aproxi- mas e nossa incapacidade de mostrar para
masse (representado pelo alimento) pre- a família que ainda há “material explosivo”
cisava ser expelido, repudiado. O mundo
da fantasia invade o real. O trabalho ana-
lítico, durante três anos, permite de forma

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dentro do aparelho psíquico daquela No entanto, nós dois não dávamos conta
criança levam a uma alta no tratamento. de suas angústias com apenas uma sessão
Nossa postura tem sido sempre a de respei- semanal. Foi preciso tornar consciente para
tar a decisão da família, ao mesmo tempo ele próprio o que significava a intensidade
que apresentamos nosso parecer sobre o daquelas angústias para que percebesse que
mundo subjacente. Acredito que essa pos- precisávamos de mais sessões. Dois meses
tura permite às famílias manterem bons depois, ele aceitou a análise, numa frequên-
vínculos com o analista, para mais tarde, cia de três sessões semanais, e permanece-
caso os sintomas reapareçam, poderem nos mos nesse ritmo de trabalho por mais dezoito
reencontrar disponíveis. Lembrando Anna meses. Quando se sentiu livre das angústias
Freud (1977): “Indubitavelmente, é maior mais intensas, pediu para combinarmos o
nossa certeza em relação ao momento ade- término. Novamente, eu pensava que ele
quado para iniciar a análise de crianças do ainda não tinha condições psíquicas de lidar
que qual seria o melhor momento para sozinho com suas angústias. Mas concor-
considerar seu término” (p. 107). dei, revelando sempre minha opinião. Aos
Aos 10 anos, Mateus pediu para os pais 17 anos, Mateus me telefona durante uma
para retornar. Estava novamente muito crise de angústia que apresentava sinais de
angustiado e com sentimentos de culpa ater- pânico. Retomamos novamente a análise sis-
rorizadores, o que me fazia pensar que, no temática, com três sessões semanais, e assim
momento da alta, ele estava apenas em con- permanecemos por mais dois anos, quando,
dições de lidar com as angústias da latência, já na faculdade, ele propôs pensarmos em
mas não com as da puberdade. Qualquer sua alta. Dessa vez, contudo, diferentemente
acidente ou fato que ocorresse ao seu redor, das outras duas, também considerei que o eu
sentia-se culpado, ou por alguma ação espe- de Mateus estava em melhores condições
cífica, ou por não ter conseguido evitar a de lidar com suas pulsões. Estávamos com a
“tragédia”. Se por um lado ainda mostrava impressão de que o seu eu disporia do prin-
elementos da latência e se sentia rejeitado cípio da realidade para subjugar o do prazer/
em vários grupos de amigos e mesmo na desprazer. Mateus conseguia se dar conta
família, por outro, as angústias da puberdade do que acontecia antes, quando sua capaci-
se faziam presentes nos sinais de intensidade dade de pensar submergia em suas angús-
das emoções que começavam a extrapolar tias. Acreditamos que a análise o auxiliou a
o seu controle. Ao mesmo tempo que quis ampliar sua capacidade de acessar seu fun-
retornar, não aceitou facilmente a ideia do cionamento psíquico.
tratamento analítico. Preferiu vir apenas
uma vez por semana, confirmando as resis- Peter: dos elementos sem forma
tências desse período do desenvolvimento. ao processo de alta

Peter, 2 anos de idade, chega encami-


nhado pelo pediatra depois de várias crises

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respiratórias e uma dermatite que dificil- inassimilável, incompreensível, não apta


mente respondia aos tratamentos medi- ao trabalho de discernimento. No início
camentosos. As crises se intensificaram da formação do aparelho psíquico, há um
quando os pais decidiram colocar o filho movimento que permite o discernimento
numa creche. Foram de tal envergadura pelo qual o eu poderá distinguir entre os
que eles desistiram de deixá-lo aos cuidados investimentos de percepção e as informa-
de terceiros: a mãe se licencia do trabalho ções que vêm do corpo. Sem a possibili-
para atendê-lo. dade de diferenciar entre si e a mãe, Peter
Além desse quadro somático, Peter era não conseguia diferenciar se o que vinha
um menino com importantes dificulda- dela (externo) era bom ou ruim, ou se
des de linguagem. Sua fala se restringia a ele próprio produzia algo bom ou ruim.
“mama”, para chamar a mãe, e “dadá”, para Freud (1925/2007) afirma ser necessário
tudo o que não fosse a mãe. Apresentava atribuir uma propriedade à coisa – discer-
um desenvolvimento psicomotor compa- nimento de atribuição –, o que permitirá
tível com o de uma criança menor. Mos- distinguir se uma coisa é boa ou ruim e se
trava alguns movimentos que me faziam poderemos aceitá-la, introjetá-la, comê-la,
pensar em sinais de autismo, o que não se introduzi-la dentro de nós ou expulsá-la,
confirmou. Ele rodopiava sobre si mesmo rejeitá-la. Num segundo momento, então,
e, rindo, se jogava no chão. Durante o pri- será possível atribuir a existência de uma
meiro ano de análise, os pais participaram representação na realidade, instituindo o
de várias sessões por exigência de Peter e discernimento de existência: uma coisa que
pela necessidade da mãe em manter um está presente no eu poderá existir fora, “o
núcleo simbiótico com ele. Por volta dos objeto está somente dentro, também fora”
3 anos, Peter passou a ficar sozinho com a (Botella & Botella, 2001, p. 125). O discer-
analista, e então estabelecemos uma fre- nimento proporcionará a capacidade de
quência de três sessões semanais. Os sinto- reconhecer o objeto perdido da satisfação e
mas somáticos diminuíram de frequência reencontrá-lo. Num primeiro tempo, existe
no final do primeiro ano de tratamento o pensamento anímico: representação, per-
e praticamente desapareceram ao longo cepção e motricidade são equivalentes;
do segundo ano de análise. Uma intensa num segundo tempo, com a instituição da
angústia diante da separação da mãe per- prova da realidade, o objeto será instituído
maneceu durante o primeiro ano de tra- também fora, reencontrado fora (Botella &
tamento, para gradualmente ceder espaço Botella, 2001).
à elaboração da separação. Peter e a mãe Peter começa a expressar sinais de poder
eram uma coisa só. Testemunhávamos a diferenciar-se e, numa sessão, se nomeia:
impossibilidade de uma diferenciação eu/ “Peter quer desenhar.” Algumas semanas
não eu. Freud (1950[1895]/1977) refere-se
a das Ding, a coisa, para nomear aquilo
que no complexo perceptivo seria a parte

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mais tarde, diz: “Eu quero desenhar.” Sem a mamãe que tu agora estás jogando esses
a separação Peter/mãe não existiria a repre- cocôs aqui para fora, para mim e para ela!
sentação de si próprio. Para Peter, perceber
a mãe como objeto separado de si implicou Rindo com uma satisfação explícita,
constituir-se como um objeto diferente do Peter me olha novamente e, com a ponta
outro. No início, não suportava a ausência dos dedos, me mostra o de fora. E diz:
física da mãe; não havia uma representa- “Outo” (outro).
ção de mãe. Respondo: “Ah, sim, claro! Tem um outro
Um dia, Peter desenha uma espécie de aqui fora, esse que tu estás segurando com
círculo. Olha para mim, sorri. Assinalo os teus dedos! Como o teu pipi!” Olha para
que ele está me mostrando alguma coisa a mãe, depois para mim, sempre satisfeito.
em que há lugares dentro e lugares fora. Pega o lápis de cor marrom e pinta o de
Ele então faz um rabisco dentro do cír- dentro. Com um lápis azul-escuro, pinta
culo, que me leva a pensar num cilindro/ o de fora. Digo: “É, tu tens razão, eles são
cocô/pênis, e novamente olha para mim diferentes!”
sorrindo. Era evidente seu contentamento. Na sessão seguinte, Peter entra sozi-
Faz outro rabisco, agora do lado de fora, e nho e assim permanece até o final de seu
me olha de novo. Eu digo: “Ah, tu estás tratamento.
me mostrando que nesse teu espaço tem coi- A palavra outo (outro) revela seu duplo
sas ali dentro! E outras fora! O que será?” sentido: não só o outro cocô, diferente de
Olhando para a mãe e rindo mais ainda, pênis, como também a presença do outro,
diz: “Cocô!” Depois de rirmos juntos, pois enquanto sujeito diferente.
sua alegria foi contagiante, pude lhe dizer: A partir desse momento, o trabalho ana-
“Ah, que coisa importante tens aí contigo! lítico passa a ser de nós dois. Eu, analista,
Tem um espaço com umas coisas aí dentro representando uma alteridade e auxiliando
de ti, como o teu cocô!… Coisas que estão nas vivências diferenciadas e traduzidas.
dentro, mas que também podem sair e che- Fezes e pênis poderiam ser percebidos e
gar na mamãe! Um dentro e um fora!” Ele representados de forma distinta. Aqueles
estava muito atento às minhas palavras. aspectos da com-fusão, entre processo pri-
Olhou então mais uma vez para o desenho, mário e secundário, entre a força pulsional
especificamente para o cocô de dentro, e do id e a incapacidade, ainda, de uma força
novamente para mim. Completei: de eu para reger esses movimentos, come-
çaram a se tornar mais evidentes no pro-
É, fabricaste uns cocôs dentro de ti, e que- cesso. Talvez, até então, lidássemos com
res que eles venham aqui para fora… E eu forças ainda relacionadas a um recalque
acho que tu queres mostrar para mim e para primário, para que, a partir desse processo
de diferenciação e criação da representa-
ção eu/não eu, Peter/mãe, dentro/fora, ele
pudesse começar a trabalhar e instituir o

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recalque propriamente dito. Resumiríamos de um processo de rêverie (Bion, 1962/1977) e


assim: antes da instituição das diferenças trabalho em duplo (Botella & Botella, 2001),
dentro/fora e dos juízos de existência  – vamos transformando esses elementos em
aquém do recalque; depois, a possibilidade algo pensável. Seu brinquedo se enriquece,
de um mais além do princípio do prazer, assim como seus desenhos. O que ini-
com o estabelecimento do recalque. cialmente se constitui em riscos soltos, ou
Alguns meses após o início do trata- manchas em que a mistura predomina, trans-
mento, Peter começa a apresentar algumas forma-se em construção de livros de histórias.
aquisições em sua linguagem, sendo a pri- Nesse momento, passo a considerar a
meira o nome da analista. O tratamento alta de Peter. Ele já havia vivido em tra-
analítico evolui, permitindo-lhe fabricar tamento mais tempo do que, na sua vida,
muitos brinquedos, desenhar e, inclusive, passara sem a análise. Um dia, começa uma
construir livros de histórias, narrativas com- de suas tantas histórias desenhadas esbo-
paradas ao trabalho do sonho. çando uma estrada, um caminhão, com
Depois de três anos de análise, começo a portas, teto solar, equipamentos e um moto-
pensar que Peter, agora com 5 anos, encon- rista “muito bom”, que levaria o caminhão
tra-se relativamente bem. Ingressa numa para seu trabalho. Esse livro nos ocupa
escola e consegue superar as dificuldades por alguns meses. Com base nesse mate-
que vão surgindo. Sua preferência é por rial, começo a pensar que ele poderia estar
brincar sozinho, mas, quando convidado, pronto para enfrentar essa estrada. Vou mos-
brinca com os amigos de forma tranquila. trando como ele parece capaz de dirigir sua
Eventualmente, expressa agressivamente vida – ele, o motorista muito bom. Nós dois
sua indignação quando perde algum jogo. A pensávamos na alta, juntos. Meses depois,
pulsionalidade agressiva faz-se presente com converso com os pais, que também con-
muita frequência na transferência, e nós dois cordam. Marcamos uma data para dali a
fomos aprendendo a identificar aquilo que o quatro meses. Peter parece muito bem com
deixava muito bravo: a frustração. É sempre a ideia. Imaginei estar diante de um pro-
difícil para Peter suportá-la. Quando eu pre- cesso quase ideal: todos de acordo. Durante
cisava me afastar temporariamente de nossas três meses, depois da data marcada, pude-
sessões, alterando nosso ritmo com as pre- mos analisar os diferentes aspectos relativos
senças da minha ausência, Peter retornava a nossa separação. Peter apresenta alguns
aos encontros de forma agressiva. movimentos regressivos (voltou a querer
Durante uma etapa do tratamento, Peter dormir no quarto dos pais, urinou na cama
se percebe como sendo o phallus do pai e da duas noites e se mostrou mais agressivo
mãe. As sessões em que trabalhávamos esses em alguns encontros com amigos). Vamos
aspectos são tecnicamente recheadas de ele- analisando sua insegurança, seu desejo de
mentos do psicodrama psicanalítico, facilita-
dores da expressão e descarga das excitações
e pulsionalidades. Simultaneamente, através

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continuar comigo. Fantasias de que eu o produtoras de angústias e excitações que,


estava mandando embora são examinadas, provavelmente, naquele primeiro tempo da
mas ele precisa atuá-las: um dia, diz para os análise, ainda não haviam passado pelo pro-
pais que não quer ir à sessão e assim o faz. cesso do recalque. Peter, diante da consta-
Interpreto que quis fazer ativamente aquilo tação psíquica da diferença anatômica dos
que sente estar sofrendo passivamente: per- sexos, não conseguia integrá-la em seu psí-
manece o sentimento de ser abandonado quico. Eu não havia percebido que isso não
e o atua, me abandonando; eu deveria estava bem estabelecido. Todo o seu poten-
sofrer o que ele estava sofrendo. Quando cial construtivo parecia capaz de lhe dar
lhe mostro esse movimento  – caracterís- condições para tal. Mas, como na análise
tico da pulsão! (Freud, 1915/2004) –, Peter, de adultos, os pontos cegos estavam presen-
olhando bem nos meus olhos, diz: “Sim, é tes. Graças à capacidade de ligação, Peter
isso mesmo! Queria que tu visses como é que conseguiu trazer sua violência e sua raiva
tu vais ficar quando eu não vier mais aqui!” contra mim para que, através dela, pudés-
Seu tom é de triunfo, que ocupa o lugar semos perceber que eu poderia estar cega.
da tristeza. Nesse momento, ainda sou eu Ele, com sua pulsão de vida, fez um grande
quem sofrerá com a nossa separação. Aos barulho para que eu notasse. Hoje, quando
poucos, volta ao seu ritmo mais organi- olho para esse tratamento, penso que Peter
zado. Duas semanas antes da data combi- tinha razão em não querer a alta naquele
nada, Peter se desorganiza de forma muito momento. Eu me precipitei? Pensei que ele
intensa: vem para a sessão furioso comigo, estava bem e não avaliei que ele corria esse
quer rasgar muitos dos nossos livros, e per- risco, mesmo conhecendo o caminho que
cebo que a desorganização está mais forte ele fizera para lidar com o sexual oral, anal
do que a que ele apresentara como “nor- e genital? Ele precisou me mostrar.
mal” para uma alta. Na sessão seguinte, ele Seus movimentos de independência
me pede para não ter alta; diz, chorando, em relação a mim ficam mais evidentes,
que ainda não consegue ficar sem as ses- e retomamos o tema da alta. Nesse mês,
sões, que sabe que ainda não pode ficar sem tem uma crise de asma, mais passageira
a L. Peter tem 5 anos. Optamos, naquele do que as do início de sua vida, mas que
momento, por cancelar a data previamente o obriga a consultar o pediatra. Na sessão
combinada; iríamos pensar sobre o assunto após essa consulta, ele me pergunta: “Tu
juntos, quanto tempo fosse necessário. achas que eu adoeci porque nós vamos nos
Peter precisou de mais dois anos de aná- separar? Fiquei pensando nisso lá no Dr. X.”
lise até conseguirmos voltar a trabalhar a Essa possibilidade de insight a nosso res-
ideia do fim do processo. Nesse período, foi peito, fora da sessão, mostra sua capacidade
possível analisar questões do sexual infantil, de criar e manter a representação de um
objeto/analista. Digo-lhe isso, e ele então
completa: “É, assim eu vou poder resolver
as minhas coisas, quando eu não vier mais

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aqui” – um tipo de pensamento revelador representance não será mais considerado


de sua capacidade real de lidar com a alta, apenas como acompanhamento do for-
agora já fora das sessões. mal, como a figurabilidade, mas como tes-
Talvez tenhamos que nos perguntar se o temunha em si da vida psíquica, no próprio
afeto que desenvolvemos pela criança pode id, o mais opaco. Essa visão permitiu nos
nos cegar diante da ideia de que ela já não voltarmos para aquilo que é irrepresen-
precisa mais de nós, ou se, ao contrário, tável (Botella & Botella, 2001). O vir a ser
pelo temor de ficarmos presos a esses afe- consciente (Bewusstwerden) será, portanto,
tos – que pertencem ao nosso pulsional –, uma primeira forma de insight, sendo que
não conseguimos perceber o quanto elas haverá uma segunda: a da noção de elabo-
ainda precisam do processo analítico que ração – ou perlaboração (Durcharbeitung)
não se findou. (Ody, 2013). Pensamos que o elaborar e o
vir a ser consciente num processo analítico
significam um dos critérios para alta, impli-
O insight e a tomada de consciência cando a capacidade do paciente de traduzir
suas angústias para uma linguagem do eu.
Michel Ody (2013) sugere pensarmos Para Ody, todos os problemas de perla-
sobre o que seria o insight na análise de boração, do tornar consciente, do insight
crianças. Se traduzido como tomada de das crianças na análise dependerão da qua-
consciência, implicaria pensarmos na pri- lidade da constituição daquilo que é ante-
meira tópica freudiana: Incs/Pcs/Cs. Pro- rior ao segundo tempo: o tempo da latência.
põe a articulação com Bewusstwerden, o Com as crianças, há uma complicação em
vir a ser consciente, que em Freud está rela- virtude de seu aparelho psíquico estar em
cionado com o processo de pensar, enrai- processo de evolução (2013, p. 209).
zado no inconsciente a partir das ligações Causa de interrupção de muitos pro-
entre as representações-coisa. O vir a ser cessos que não finalizam conforme nos-
consciente dependerá da ligação dos res- sos desejos (de analistas) é o fato de que
tos verbais que conduzirão às represen- as crianças, em pouco tempo de análise,
tações-palavra. Freud (1915/2004) havia apresentam o esbatimento do sintoma
referido que a existência da censura entre manifesto e os pais solicitam alta sem per-
Pcs e Cs indica que o vir a ser consciente ceberem que ela ainda não integrou no
não é somente um puro ato de percepção, seu eu essa capacidade elaborativa. Muitas
mas também um superinvestimento, um vezes, conseguimos mostrar que o sintoma
novo progresso na organização psíquica. é apenas a ponta de um iceberg, mas em
Segundo Ody, esse superinvestimento tantas outras fracassamos. Em nossa expe-
será o da representação-coisa pela repre- riência, esse entendimento é mais fácil com
sentação-palavra, “trabalho psíquico que se
situa no nível do Pcs” (2013, p. 208). Aquilo
que concerne à representação-afeto da

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Psicanálise com crianças: questões atuais e considerações sobre o processo de alta 179
Luciane Falcão

pais que também se dedicam a uma análise analítico, seguirão sem representação,
pessoal ou pais capazes de lidar com seu podendo estar à espera de representação/
mundo interno de forma mais sensível. Pais de ligação/de investimento/de tradução. A
mais comprometidos psiquicamente ten- forma como as novas construções psíquicas
dem a fazer parte do grupo de famílias que se darão dependerá de como as energias
interrompem o tratamento antes daquele libidinais e agressivas se deslocarão nessa
período considerado por nós como mais estrutura que ainda é imatura. O mundo
adequado. externo será fundamental para essa cons-
O sexual infantil vivido e revelado pela trução. Se a alta ocorrer numa idade em
criança na análise auxiliará sua emergên- que a criança é capaz de lidar com o pul-
cia na vida sexual adulta, considerando sional e com as suas exigências da época,
que o seu desenvolvimento e o ambiente nada garante que, no desenvolvimento
também serão responsáveis pelo potencial ulterior, esses mesmos mecanismos preva-
transformador. O pulsional vivenciado na lecerão. Melanie Klein (1932/1997b) refere
análise entrará nas cadeias de representa- que a análise não poderá parar a operação
ções. Algumas vivências na própria análise, das situações de ansiedades arcaicas por
como as sensoriais, podem não se tornar completo, tanto nos adultos quanto nas
material recalcado, pois nem elas pró- crianças, não poderá nunca “efetuar uma
prias sofreram a ação do recalque: foram cura completa […]. Mas ela pode ocasio-
vivências, signos, sensações, Darstellung nar uma cura relativa na criança e, assim,
e nunca chegam a uma representação-pa- diminuir gradativamente as chances de
lavra. Poderíamos arriscar a ideia de que uma doença futura” (p. 298).
sofreram um recalque primário em função
das vivências corporais, como as próprias Mas como avaliarmos as transformações
excitações vivenciadas num brinquedo, e que são devidas à análise se, naturalmente,
que não receberam por parte do analista muitas ocorrem em função do crescimento
nenhuma interpretação/palavra. Algumas e desenvolvimento da criança? Teríamos
vivências e fantasias sofrerão a força do como responder a essa questão? Creio que
recalque necessária a qualquer desenvol- toda resposta permaneceria dúbia.
vimento e estarão sujeitas a um retorno do Vimos que muitos elementos da ordem
recalcado, apesar de que, por mais capaz das excitações e dos afetos não se incluem
que seja uma criança, os trajetos que esse nas cadeias representacionais, mesmo
recalcado percorrerá não necessariamente numa análise, e podem retornar durante o
conduzirão a insights conscientes. Outros desenvolvimento via transbordamento das
elementos desse aparelho psíquico, mesmo angústias. Isso leva algumas crianças ou ado-
que tenha se submetido a um trabalho lescentes a buscar novamente o tratamento.
Green (2002) pensa que muito daquilo que
retorna e surge em uma comunicação ana-
lítica se espalha sobre um espectro que

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volume 50, n.3 · 2016

mistura, em proporções diversas, compo- Ao mesmo tempo, ocorrerão momentos


nentes cujos conteúdos são percebidos em em que essa distinção se imporá,
termos de ideias e pensamentos, enquanto
outros não poderão ser englobados pelos no caso de o afeto parar de estar fundido
precedentes (p. 195), ficando fora da cadeia na comunicação, mas dominando-a nitida-
associativa das representações. Alguns ele- mente, de tal maneira que não podemos
mentos sofrerão a força do recalque. Outros, escapar à impressão de que aquilo que está
os não ligados, seguirão assim durante boa sendo assim expresso pretende mobilizar o
parte da infância, para mais tarde, na ado- essencial daquilo que o paciente busca trans-
lescência, sucumbirem a essas mesmas for- mitir nesse momento – ou sua reação contra
ças e transbordarem em forma de sintomas. isso. (p. 199)
São esses aspectos que exigirão o entendi-
mento metapsicológico da representação- Tendo um aparelho psíquico em desen-
-afeto (Green, 1973, 2002; Falcão, 2013), volvimento, nossos pequenos pacientes se
que nos coloca diante da necessidade de apresentarão com afetos fundidos ou desli-
uma escuta analítica que reconheça que as gados, alguns traduzíveis na sessão, outros
comunicações dos pacientes, assim como jamais acessíveis, pois ainda não se trans-
as brincadeiras das crianças, não mostram formaram em representação-afeto.
necessariamente “sua decomposição em
afeto e representação. Ou seja, que o mate-
rial não torna essa distinção nem indispen- Alguns critérios para a alta na análise
sável nem necessária” (Green, 2002, p. 198). com crianças

Resumo alguns critérios básicos exempli-


ficados neste artigo.

Do ponto de vista do analista:


‚‚ conhecer e avaliar o nível de desenvol-
vimento psicossexual de acordo com a
faixa etária da criança no momento da
alta;
‚‚ considerar que a criança possui um
aparelho psíquico que está em via de
se organizar;
‚‚ conhecer as diferenças entre caracte-
rísticas da criança, do seu meio, da sua

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Psicanálise com crianças: questões atuais e considerações sobre o processo de alta 181
Luciane Falcão

família e as patologias do desenvolvi- investimentos da criança se constroem


mento e doenças graves; como uma identificação a essa função;
‚‚ perceber a criança globalmente como ‚‚ adquirir a autonomia necessária de
um ser humano importante, e não ape- acordo com sua faixa etária;
nas parcialmente; ‚‚ ter capacidade de trocas afetivas fami-
‚‚ estar apto para ver, ouvir e sentir o que é liares e sociais.
revelado pelo paciente, reconhecendo-o
acima das nossas convicções teóricas/clí- Finalizo dizendo que esses critérios
nicas prévias; não são absolutos. Foram construídos
‚‚ avaliar as capacidades de sublimação da como resultado de experiência clínica,
criança; de estudos teóricos baseados na metapsi-
‚‚ estar atento à capacidade perlabora- cologia e discussões clínicas com colegas
tiva e processual do funcionamento da que nos enriquecem com suas próprias
criança. experiências.

Do ponto de vista da criança:


‚‚ possuir uma capacidade de lidar com
o mundo pulsional, tanto do ponto de
vista da libido amorosa quanto da destru- Nota
tiva: interações do id com o eu, proces- 1 Freud usa, em alemão, Seele (= alma) para se
sos primários e secundários e avaliação referir àquilo que alguns tradutores optaram
das ações do supereu; por psíquico.
‚‚ apresentar uma labilidade dinâmica entre
os processos primários e secundários;
‚‚ esbatimento dos sintomas que pertur-
bavam o desenvolvimento psicossexual;
‚‚ ter capacidade de insight, ao mesmo
tempo compreendendo que possa desa-
parecer em função do recalque;
‚‚ incorporar o brincar proporcionado pela
experiência analítica, expandindo-o na
vida da criança;
‚‚ manter internalizada a capacidade de
se identificar com a função analítica:
os investimentos do analista e seu tra-
balho interpretativo acrescidos dos

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Psicoanálisis con niños: temas de actualidad y Child psychoanalysis: current issues and considerations
consideraciones sobre el final del proceso analítico on the end of the psychoanalytic process

La autora propone, por medio de ejemplos clínicos The author proposes a reflection on discharging the
y de la metapsicología, algunas reflexiones sobre patient from the psychotherapy in child psychoanalysis
el alta en los procesos de análisis con niños. by using clinical vignettes and metapsychology. The
Presenta reflexiones sobre situaciones que llevan author analyzes situations that lead these patients
a estos pacientes a regresar al análisis cuando son to relapse and return to psychoanalytically oriented
adolescentes. El artículo trata de entender lo que therapy by the time of their adolescence. This paper
está más acá de lo reprimido y las construcciones is an attempt to understand what would be unaware
y representaciones presentes en estos procesos. of repressed memories, and the constructions and
Presenta algunos índices evolutivos de análisis con representations inside these processes. The author
niños que permiten pensar en su final, de lo no also presents some evolution indexes of child
representable hasta más allá de lo reprimido psychoanalysis – from the unrepresentable to the
Palabras clave: análisis con niños; alta; no return of repressed memories. These evolution indexes
representable; más allá de lo reprimido. enable the psychoanalyst to consider the termination of
psychoanalytic processes for children.
Keywords: child psychoanalysis; discharge from
psychoanalytic therapy; unrepresentable; return of
repressed memories.

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[Recebido em 21.7.2015, aceito em 20.4.2016] Luciane Falcão


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