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Introdução aos Estudos Literários I

Prof. Ariovaldo Vidal

Esboço de análise do poema:


“Para a Feira do Livro”
de João Cabral de Melo Neto

Jessé Rebello de Souza Junior


Maio de 2015
Para a Feira do Livro

A Ángel Crespo

Folheada, a folha de um livro retoma


o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,


inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas, apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
Anotações para um ensaio crítico (esboço da análise)

O poema tem duas estrofes de doze versos, neste que é o quadragésimo oitavo e
último poema de A educação pela pedra, amplamente considerada como a obra máxima
do construtivismo cabralino. Cada uma das estrofes comporta três blocos sintáticos de
quatro versos em rima toante de versos pares. A escansão revela versos que variam de
dez a doze sílabas poéticas, com predominância dos endecassílabos, métrica muito
favorecida na poesia medieval espanhola que, como sabemos, exerceu grande influência
sobre João Cabral, sobretudo a partir de O cão sem plumas de 1950. As duas estrofes
dialogam entre si: em largos traços, a primeira se ocupa da folha (a parte), a segunda do
livro (o todo). Em cada estrofe, os dois primeiros blocos sintáticos, que juntos
constituem uma única sentença separada com ponto e vírgula ao final do primeiro bloco,
falam do que o objeto (folha/livro) é ou faz; o último bloco, encerrado em sua própria
sentença, traz o contraste (o choque, a ironia), introduzido pelas locuções “todavia” e
“apesar”. A simetria formal é um dos pilares do projeto arquitetônico-poético de Cabral,
como destacamos no Comentário (ainda não escrito).

João Cabral, o poeta dos objetos, constrói este poema ao redor de três objetos
concretos, aos quais somos apresentados já no primeiro bloco sintático: a folha, o livro,
a árvore.

Folheada, a folha de um livro retoma


o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;

O poema se vale da metonímia como recurso metalinguístico, dizendo da folha


para falar do livro, e do livro para dizer da poesia. Na linguagem cotidiana, ao falarmos
em folha de um livro estamos, sem nos dar necessariamente conta, criando ou
empregando uma metáfora: o livro é uma árvore. O poema vai, entretanto, além da mera
metáfora, trazendo-a para o plano concreto ou real: o livro é feito da árvore, vale dizer,
de papel. Trata-se, portanto, de uma metáfora apoiada numa metonímia. Ainda neste
bloco somos introduzidos ao vento, quarto termo da equação; termo, por assim dizer,
menos objetal, o único elemento dinâmico, vivo, e, por isso, responsável por animar
tanto a folha da árvore quanto a do livro. Notemos que, no paralelo aqui construído, o
vento é associado ao ato de folhear um livro, de lê-lo, portanto.

O poema se abre com um duplo quiasmo semântico-sonoro, no qual o par


“folheada-folha” do primeiro verso ressoa no “folha-folha” do segundo, reforçando
assim a adjetivação aliterante “lânguido-vegetal” ao livro. No plano sonoro, o quiasmo
se desdobra em “fricativas e labiais”:

/f/ /f/ /v/


/v/ /f/ /f/

Neste primeiro bloco, e na primeira estrofe como um todo, o poeta explora ao


máximo a sonoridade onomatopaica das fricativas labiodentais /f/ e /v/, surda e sonora,
respectivamente, que dominam a percepção acústica da primeira metade do poema e
chega mesmo a citá-las nominalmente no segundo bloco, além de fazê-las comparecer
já no título do poema. Em sua sugestão do som do vento, elas aparecem pelo menos
duas vezes em cada um dos versos e mais de trinta vezes na primeira estrofe. Na
injunção entre semântica e sonoridade, a /f/olha é aqui muda (vegetal) como sua
fricativa é surda, até que vozeada pelo /v/ento (leitura) com sua fricativa sonora. Da
mesma forma, como veremos na segunda estrofe, o livro é “silencioso”, “anônimo” e
“modesto” até que aberto e interrogado. O poema cria um paralelismo entre a
vivificação da folha, de outro modo “lânguid[a] e vegetal”, pelo vento e o dar vida ao
livro – metonímia da poesia – pelo ato de sua leitura. Esta, porém, não deve ser apenas
um mero ler, mas uma leitura atenta, uma interrogação, contraparte do leitor à estética
da aplicação preconizada por Cabral.

A árvore reaparece em cada bloco da primeira estrofe, com sentidos


contrastantes; nos dois primeiros blocos, ela vem como árvore árvore (parafraseando o
brilhante “folha folha” do segundo verso do poema), já no terceiro bloco, o bloco do
contraste (ver abaixo), ela retorna como alegoria do livro. A riqueza simbólica da árvore
como elemento metafórico é por demais conhecida e dispensa maior elaboração.
Todavia, dessa poderosa metáfora, despercebida no falar habitual, o poema extrai –
interroga – um efeito lírico insuspeito. O ato de folhear um livro, de lê-lo portanto, é
assemelhado, de início, à passagem do vento sobre uma árvore. Na dupla metáfora
{livro = árvore; leitura = vento}, o leitor, ele mesmo nunca diretamente referido, é,
desta forma, como o vento, símbolo predileto do evanescente, da transitoriedade, à qual
se opõe a resistência do concreto nu, do mineral, da pedra.

folheada, a folha de um livro repete


fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.

A reiteração da “folheada folha” no início dos primeiros blocos os situa em uma


cadeia discursiva, criando uma expectativa de similitude que o terceiro bloco desfaz
(“Todavia...”). O recurso se repete na segunda estrofe (“Mas, apesar disso...”),
estabelecendo o paralelismo entre os seis blocos sintáticos do poema: AAB/AAB. O
jogo sonoro domina este segundo bloco, tanto no nível fonológico, quanto no plano
semântico, uma vez que o tema explicitamente tratado é o da similitude sonora entre o
ato de folhear um livro e a ação do vento na árvore. Retomando a metáfora central do
poema, enxergamos aqui um talvez raro exemplo de positividade cabralina no
tratamento da relação poesia/realidade: “nada finge [...] melhor...”. Ainda que tingida
pela negatividade do “fingir”, não deixa de ser uma afirmação da singular capacidade
que a poesia tem de traduzir o mundo.

Todavia a folha, na árvore do livro,


mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.

A surpresa ou ironia vem nesse terceiro bloco, onde as semelhanças antes


apontadas são agora transcendidas. O livro, até então objeto passivo da ação do
folhear/ventar, revela sua real ferocidade. As palavras que suas folhas contêm são, elas
próprias, a paronomástica voz/vento/ventania que ruge, na ressonância anagramática de
rara beleza do urge/ruge, “varrendo o podre”, tudo que não se sustenta, que não resiste,
porque desprovido de dureza, de incisão, de concretude.

Silencioso: quer fechado ou aberto,


inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;

Se a primeira estrofe habitou o universo relativamente restrito do livro enquanto


objeto, a segunda se abre para o livro em seu entorno, em seu habitat, em seu uso. A
tensão abertura-fechamento é aludida no primeiro verso e repercutida no plano sonoro,
no qual a estridência de “grita” se fecha em nasais e /o/ (“dentro”; anônimo”) e, no
verso rimante desse, a abertura do “apaga em pardo” contrasta com a clausura do
“lombo”. Neste momento, entretanto, a ênfase é no fechamento, no silêncio que abafa
mesmo o que “grita dentro”, no anonimato ao qual se relega a poesia quando esta não é
mais do que um “lombo na estante”.

modesto: só se abre se alguém o abre,


e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.

Nesse bloco, como em toda esta segunda estrofe, o livro/poesia é descrito por
adjetivos (“silencioso”, “anônimo”, “modesto”, “oposto”, “paciente”, “severo”,
“fechado”), todos eles de uma duplicação sonoro-semântica de fechamento, de aversão
ao explícito, ao exposto, ao fácil. O poema opõe o livro/poesia tanto à pintura, quanto à
música, que lhe são essencialmente opostas, uma pelo despudor com que se expõe aos
olhos, a outra pela efemeridade de seu voo. Faltar-lhes-iam exatamente o comedimento,
o recato sedutor do verso bem elaborado, bem como sua perenidade, sua constância e
permanência.

Mas, apesar disso e apesar de paciente


(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

Nesse bloco de fechamento do poema, reiterativo na sintaxe, mas contrastante no


sentido, revela-se claramente sua intenção metapoética, qual seja, de explicitar a postura
do leitor diante da poesia, uma postura de interrogação, de não esperar passivamente
que a beleza do poema lhe chegue como um perfume exalado, mas antes de extrair-lhe o
sentido (em bela elipse no terceiro verso), “paciente” e “severamente”.

PS:
Caro Ari,
Desculpe a imaturidade dessas análises. Elas não são mais do que “anotações” para o ensaio, que
espero fique mais bem acabado. Conto com sua orientação para dar daqui em diante um rumo
melhor a esta análise.
Um abraço,
Jessé

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