Você está na página 1de 2

DOI: 10.1590/1413-812320202510.

33702019 4087

Stephan HR. Cultural politics and the GMO conseguido consagrar no Protocolo de Cartagena de

RESENHAS BOOK REVIEWS


divide: cultures of nature. University of Stirling, 2000 sobre Biossegurança (na Convenção da ONU
New York: Palgrave Macmillan; 2015. sobre Diversidade Biológica). Em parte, isso se deu
porque os EUA não fizeram parte do Protocolo.
Hermes de Andrade Júnior Embora não examine especificamente a disputa
(https://orcid.org/0000-0002-3667-1354) 1 comercial EUA-UE, o livro é inspirado pela persis-
tente divisão transatlântica sobre os OGM e também
1
Universidade Católica Portuguesa. Centro Regional de na busca pelas razões para as divergências regionais
Braga Porto Portugal. entre a opinião pública no tocante às incertezas de
segurança para consumir tais produtos modificados.
Seu objetivo é revisitar o “estoque existente”
Este livro traz um estudo de natureza cultural e crítica de explicações e aumentar a compreensão dessa
para formulações de políticas públicas adequadas ao divergência regulatória, desenvolvendo uma análise
enfoque de organismos geneticamente modificados cultural e política distinta. Procura mostrar que os
(OGM). O autor é professor de políticas públicas estudos devem ser complementados por uma apre-
na Universidade de Stirling, no Reino Unido. Ele é ciação de fatores estruturais evoluídos historicamen-
co-organizador do Grupo Permanente de Política te, como atitudes públicas divergentes e seus valores
Ambiental do Consórcio Europeu de Pesquisa Política e as identidades culturais relevantes para os OGM.
(ECPR) e já publicou anteriormente sobre governança No cerne das disputas polarizadas sobre a opção do
de mudanças climáticas, política de energia e biotec- uso da biotecnologia de alimentos em escala devem
nologia agrícola.Apesar de ser um livro publicado há ser considerados pressupostos culturais presentes
quatro anos, sua aplicabilidade é extremamente atual nas perspectivas sociológicas da modernidade2.
para o campo da saúde coletiva, em especial no tocante No debate da modernidade, as contraposições da
à segurança alimentar e dos alimentos. Principalmente segurança versus perigo e da confiança versus risco
no caso do Brasil, que é um dos maiores exportadores é um fenômeno de dois gumes. A compreensão
de grãos do mundo e considerando a multiplicação do da modernidade deve contemplar seu extremo
agronegócio brasileiro, a crítica das politicas públicas dinamismo, o caráter globalizante das instituições
adotadas para o setor é ainda bastante pertinente. modernas e compreender as descontinuidades das
No preâmbulo, o autor sinaliza o panorama de culturas tradicionais. Ou seja, a tecnicidade do papel
conflito regulatório e diferenciado entre os Estados sociológico acaba por prescrever comportamentos
Unidos (EUA) e a Europa (UE) no tocante ao controle, que serão discutidos nos altos fóruns.
aos riscos e à segurança alimentar em termos globais, A contribuição da obra para a saúde coletiva está
apresentando o veredicto do Painel de Disputas da presente em vários aspectos: (1) procura estabelecer
Organização Mundial do Comércio (OMC, 2006) elementos sócio-culturais para a compreensão das
que marcou tratamento regulamentar divergente de narrativas e disputas de mercado que envolve produ-
organismos geneticamente modificados (OGM) dos tos transgênicos ou geneticamente modificados; (2)
produtos derivados, pelos EUA e pela UE. O Painel enfatiza que há culturas hegemônicas diversas nos
criticou o atraso indevido da UE na aprovação de EUA e na Europa, que tendem a privilegiar, cada um
variedades geneticamente modificadas (GM) (para ao seu modo, a regulação do uso da tecnologia de
importação ou cultivo) e a proliferação de medidas produção alimentos de escala com a visão do DNA
nacionais de salvaguarda com base em avaliações recombinante e de ênfase genômica aplicada; (3)
científicas inadequadas dos riscos. Entretanto, Cheyne enfatiza os riscos ambientais derivados da prática
afirma que o Painel “evitou as áreas mais controversas, como provocativos de agravos à saúde; (4) permite
como a questão da segurança física e a legalidade dos observar melhor as diferenças de mercado dos EUA
requisitos de rotulagem, concentrando-se nos aspec- e da EU, no tocante à normalização da vigilância
tos processuais e produzindo uma opinião jurídica sanitária, à segurança alimentar e à interpretação
relativamente estreita”1. de políticas públicas de segurança de alimentos dos
Na época, a UE declarou que não via motivos EUA e da EU para ativar marcos regulatórios e a
para mudar seu atual quadro regulatório, ao mesmo aplicabilidade de políticas públicas brasileiras, espe-
tempo em que aumentava a pressão sobre os Estados cialmente no tocante às ressalvas de saúde coletiva e
membros recalcitrantes para que deixassem de usar de saúde ambiental.
medidas nacionais de salvaguarda. Assim, estava No capítulo 1, o autor examina os marcos re-
criada a controvérsia transatlântica, onde o veredic- gulatórios para as tendências agrobiotecnológicas e
to da OMC negou a relevância da “abordagem de de opinião pública de ambos os lados do Atlântico
precaução” da UE à biotecnologia, que a UE havia e traça sua evolução nas últimas décadas.
4088
Resenhas Book Reviews

A técnica do DNA recombinante hoje é consi- continente “selvagem”. Essa dinâmica teria dado
derada como ciência primordial, sendo permitido origem a “disposições civilizatórias” divergen-
produzir, modificar produtos e processos ou criar tes – a tendência de perceber as relações entre a
serviços de alto impacto para diversos segmentos humanidade e a natureza como “interativas” ou
industriais3, sendo isso aceito culturalmente pelo “bifurcadas”.
governo brasileiro4. Nos EUA, segundo o autor, a natureza assu-
No capítulo 2, as perspectivas político-econô- miu um significado de “grandeza magnífica e
micas apresentadas tendem a oferecer explicações de pura verdade”, enquanto que o ideal pastoral
da dinâmica regulatória centradas no ator e na da paisagem e da natureza, que inclui elementos
sociedade, dando a devida consideração a vários socioeconômicos e estéticos, permaneceu forte
grupos de interesse e à opinião pública. Em con- na Europa. Ali, isso teria alimentado importantes
junto, essas explicações são altamente causais e movimentos de resistência contra as modernas
persuasivas da divergência regulatória transatlân- mudanças industriais ou tecnológicas. Talvez,
tica. A combinação de incerteza científica e cober- afirma o autor, “a chegada de novas tecnologias
tura regulamentar inadequada levou a pedidos não seja um problema em si, mas depende muito
cada vez mais altos de reforma regulatória. Brown dos significados culturais a eles associados”.
afirmara, na época de seu estudo, que fazia já mais Com base na comparação histórica acima,
de uma década que uma nova lei de biotecnologia o Capítulo 6 desenvolve ainda mais o vínculo
mais abrangente ficava “em silêncio na prateleira’’5. entre atitudes culturais e a resistência do público
O capítulo 3 explora os conceitos de cultura e europeu à agrobiotecnologia. Por outro lado, a
civilização e sugere que a visão de cultura como sociedade americana é retratada como um con-
contexto permite uma reconciliação parcial com texto cultural modernista no qual os valores de
o estudo da política. eficiência, simplicidade e abundância tendem a
No capítulo 4, examina-se com mais detalhes o afastar preocupações neo-tradicionalistas sobre
desempenho dessa política cultural ou de cultura- identidades culturais estáveis, a paisagem inter-
lização em prol dos OGM dentro dos “muros” da mediária e a herança culinária.
UE. Embora a mobilização de ONGs na Europa O livro elabora a tese de que as sociedades
tenha sido vital para aumentar a pressão popular americanas e européias historicamente se move-
por um rigor regulatório, o autor afirmaria que ram ao longo de trajetórias culturais distintas e
“o sucesso dessas campanhas está relacionado que isso exerce uma poderosa influência sobre a
não apenas às estruturas que permitem as opor- política de biotecnologia nos EUA e na UE, tor-
tunidades políticas, mas também à capacidade nando-se, por este perfil, atraente aos sociólogos
dos discursos anti-OGM de ‘ativar’ ansiedades e politólogos afetos aos assuntos de agroecologia
generalizadas e preexistentes, baseadas na cultura”. e de agrobiotecnologia, uma vez que podem con-
Comparando com o outro lado do Atlântico, as tracenar no espetáculo do “DNA Recombinante”
ONGs americanas tentaram replicar o sucesso de forma destacada.
europeu, mas os ativistas dos EUA enfrentaram
estruturas políticas menos favoráveis e uma po- Referências
derosa coalizão pró-biotecnologia.
O capítulo 5 baseia-se no trabalho de histo- 1. Cheyne I. Life After the Biotech Products Dispute, En-
riadores ambientais e culturais, resumindo o que vironmental Law Review 2008; 10(1):52-64.
seria o papel da “natureza” e do “não natural’ na 2. Giddens A. As conseqüências da modernidade. São Paulo:
Unesp; 1991.
América (desde os primeiros assentamentos ingle- 3. Rocha DRD, Marin VA. Transgênicos - Plantas Pro-
ses) e na Europa (desde a Idade Média), buscando dutoras de Fármacos (PPF). Cien Saúde Colet 2011;
obter um padrão analítico. Afirma que, enquanto 16(7):3339-3347.
as relações europeias com o ambiente natural 4. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil
eram marcadas por interdependência material e de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.
5. Brown WY. It’s Time for a New Biotechnology Law [In-
de preceitos espirituais, os colonos americanos ternet]. The Brookings Institution 2011 [acessado 2019
abandonaram suas atitudes herdadas com relativa Out 09]. Disponível em: https://www.brookings.edu/
rapidez e assumiram o desafio de dominar um opinions/its-time-for-a-new-biotechnology-law/

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar