Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
correto
Adalberto Pasqualotto
Professor titular de Direito do Consumidor na PUC-SP. Doutor em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ex-presidente do Instituto Brasileiro de
Política e Direito do Consumidor - Brasilcon.
Introdução
Um garçom é chamado à mesa por um casal, que questiona se os pratos que lhe foram
servidos significam algum tipo de discriminação. Afinal, o arroz, que é branco, está
separado do feijão, que é preto, e assim por diante. Uma festa infantil é interrompida
por alguém que interpela o palhaço, porque a sua representação significaria enganar as
Página 1
A comédia da publicidade: entre a sátira e o politicamente
correto
crianças.
Essa sucessão de fatos terá sido mera coincidência? A resposta a essa pergunta é
secundária. Objetivamente, é evidente que eles se contrapõem. Enquanto o Conar
satiriza, o Conanda invoca o princípio constitucional da proteção integral da criança para
restringir técnicas publicitárias usualmente empregadas na comunicação com o público
infantil. Por trás dessa polêmica, há poderosos interesses em jogo.
A criança encontra-se cada vez mais exposta à publicidade. Em pesquisa realizada pelo
Ibope no ano de 2011, verificou-se que as crianças passam mais de cinco horas por dia
2
em frente à televisão. Outros dados do IBOPE referem que no mês de maio de 2012,
crianças entre dois e onze anos passaram, em média, dezessete horas durante o mês
3
conectadas à internet. Dentre os problemas decorrentes do uso em excesso de
tecnologia pela chamada Geração Z, sem dúvida está a exposição exagerada aos
anúncios publicitários.
Em vista da sua natureza de órgão do Poder Executivo, fica desde logo afastada a
hipótese de que o Conanda tenha legitimidade para expedir normas que se equiparem à
lei. Pela Resolução, porém, o Conanda demonstra que pretende exercer uma função
assemelhada às agências reguladoras no que concerne à sua área de atuação: a de
conceituar, interpretar e explicitar conceitos jurídicos indeterminados contidos em lei
6
sobre publicidade dirigida às crianças.
As delibações do Conanda são tomadas por meio de resoluções. Por isso, é importante
que se esclareça o conceito de resolução.
7
unicamente complementá-los e explicá-los”.
Já não é sem tempo que um texto normativo faz esse necessário complemento à correta
aplicação das disposições do CDC sobre publicidade. Por publicidade, nos dias de hoje,
não se pode entender, restritamente, a mensagem comercial direta, “identificada como
tal”, conforme diz expressamente o art. 36, caput, do CDC. Há diversas formas de
comunicação da empresa com o seu público que, imediata ou mediatamente, buscam o
mesmo fim da publicidade convencional. Entre elas incluem-se os press release e as
relações públicas. Os dois exemplos a seguir são muito ilustrativos.
No REsp 60.809/SP, o STJ julgou o caso de uma empresa de software, que divulgou na
imprensa notícia distorcida, afirmando que um programa por ela desenvolvido fora
premiado nos Estados Unidos como o melhor do mundo em segurança de dados de
16
microinformática. Não se tratava de publicidade convencional, mas de um press
release, com o idêntico objetivo de afirmar o conceito da empresa no mercado e facilitar
as vendas dos seus produtos.
Página 3
A comédia da publicidade: entre a sátira e o politicamente
correto
17
O segundo exemplo é o caso Tylenol. Em 1982, sete mortes ocorreram nos Estados
Unidos de pessoas envenenadas por cianeto, depois de usarem o analgésico Tylenol. O
laboratório fabricante informou que ocorrera uma adulteração criminosa do
medicamento, mas jornalistas apuraram que o cianeto era usado como agente analítico
para testes do Tylenol. A Johnson & Johnson, proprietária da marca, explicou que os
testes eram feitos em edifício diferente da linha de produção, mas as vendas do produto
caíram em poucos dias 87 por cento. A empresa, então, resolveu retirar todos os
produtos do mercado, a um custo de 50 milhões de dólares, e usou uma estratégia de
relações públicas, cujas providências, entre outras, incluíram a transmissão pela
televisão de uma reunião do comitê de gerenciamento da crise e entrevistas do
presidente da companhia a programas de grande audiência da TV. Paralelamente, a
empresa relançou o medicamento com embalagem de segurança reforçada. Comentando
este caso, Lipovetsky diz que a empresa conseguiu converter o problema em um
espetáculo público, revertendo a crise. Para Lipovetsky, o caso Tylenol simboliza o que
ele descreve como marketing de valores. Conforme explica, atualmente as companhias,
além de gerir seu lucro, devem também gerir suas relações com seus públicos,
conquistar e promover sua legitimidade institucional. Por conseguinte, o sistema
clássico, fundamentado no direito natural à propriedade e no conceito de “mão invisível”
do mercado, foi substituído por um sistema de legitimação aberta e manifestadora,
problemática e comunicativa. A legitimidade da empresa não é mais algo admitido ou
contestado, mas construído e vendável. As legitimações promocionais passaram a ser
uma etapa definitiva da secularização pós-moralista. Conclui Lipovetsky que, se, por um
lado, é verdade que nossa época presencia o renascer da temática de valores, por outro
é ainda mais verdade que constitui também um testemunho do triunfo da comunicação,
a qual foi capaz de integrar à sua órbita o próprio referencial ético. A ética
18
transformou-se em vetor estratégico.
Por outro lado, comunicação mercadológica não é praticada apenas pelos meios de
comunicação social. Na publicidade dirigida a crianças, são frequentes as ações de
Página 4
A comédia da publicidade: entre a sátira e o politicamente
correto
Todo abuso pressupõe, de um lado, um limite que não pode ser excedido (pelo virtual
ofensor) e, de outro lado, uma situação jurídica a ser protegida (do potencialmente
20
ofendido).
deliberada finalidade de captar a atenção desse público específico, qualquer que seja o
veículo utilizado”.
Se o uso de símbolos nacionais no vestuário pode ser visto como uma declaração
informal de amor à pátria, e, portanto, prática social que não fere o espírito da lei, o
Página 6
A comédia da publicidade: entre a sátira e o politicamente
correto
Aparentemente alheio ao que prescreve o Código que promete aplicar, uma vez que as
decisões sequer invocam os artigos do CBAP, o Conar utiliza uma fórmula reducionista
para mensurar a conformidade dos anúncios: o “apelo imperativo”, como se a extensa
lista de restrições contida no art. 37 do CBAP, pudesse ser sintetizada em palavras de
ordem, as únicas condenáveis. Serve como exemplo desse reducionismo a publicidade
“Colecione Playmobil”, veiculada no ano de 2008. A Representação 350/08, de iniciativa
do próprio Conar, julgada em março de 2009, decidiu por recomendar a alteração do
anúncio, com a retirada da expressão “colecione”, já que esta estimularia a criança a
querer determinado produto em quantidade.
Como resta claro, o problema não é a falta de normas, mas a sua aplicação. Os números
demonstram que o controle da publicidade, no Brasil, é enganoso. De um lado, o Conar
omite-se na aplicação do seu próprio código; de outro lado, não há iniciativas contra
publicidade enganosa ou abusiva, nem na esfera administrativa, nem na judicial.
defesa dos consumidores de Porto Alegre, em razão de dois filmes publicitários que
exploravam a atuação de crianças em situações lúdicas, as quais, todavia, configuravam
constrangimento ilegal e furto. O Conar era corréu, juntamente com o fabricante do
produto e a agência de publicidade. A entidade afirmou que aplica apenas sanções de
ordem moral, sem caráter vinculativo, pedindo sua exclusão do processo, com base no
que dizem os seus estatutos. O juiz acolheu o pedido, mas consignou que o Conar
induzira em erro a autora da ação, pois mediante campanha de publicidade que
patrocinava na televisão naquela época – transcorria o ano de 1991, ano em que entrou
em vigor o Código de Defesa do Consumidor – apresentava-se ao público como
reguladora da publicidade, com presumíveis poderes punitivos. A sentença afirmou que o
34
Conar fazia propaganda enganosa de si próprio.
Conclusão
Referências bibliográficas
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Ed. RT, 2010.
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos
vulneráveis. São Paulo: Ed. RT, 2012
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo, Malheiros,
2003.
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Ed. RT, 2013.
1 Disponível em:
[http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/11/criancas-movimentam-r-50-bilhoes-por-ano-entre-pro
Acesso em: 11.06.2014 às 18h34min.
3 Disponível em:
[http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/criancas-brasileiras-sao-as-que-ficam-mais-tempo-con
Acesso em: 13.11.2013 às 15h.
4 Lei 8.242/1991. Art. 1.º, § 1.º Este conselho integra o conjunto de atribuições da
Presidência da República.
7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2003. p. 178.
8 Neste sentido, nota pública divulgada por diversas entidades ligadas aos anunciantes,
aos meios de comunicação social e às agências de publicidade. Disponível em:
[http://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/22580-nota-publica-publicidade-infantil].
Acesso em: 04.07.2014.
9 Nesse sentido, Dalmo de Abreu Dallari, em coluna no Jornal do Brasil. Disponível em:
[http://www.jb.com.br/dalmo-dallari/noticias/2014/04/26/publicidade-danosa-a-crianca/].
Acesso em: 04.07.2014.
11 “Art. 2.º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de
idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo
único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas
entre dezoito e vinte e um anos de idade.”
salientar que todas essas etapas são sensíveis aos estímulos do meio ambiente. (…) O
desenvolvimento sensório-motor atinge o pico entre os 2 e os 4 meses de idade,
estendendo-se até o segundo ano de vida; segue-se o desenvolvimento do córtex
associativo ou interpretativo (córtex posterior e temporal) com pico entre 6 e 8 meses e
se estendendo até o 8.º ano e finalmente o desenvolvimento do córtex pré-frontal
(funções executivas) com pico entre o 1.º e o 4.º ano de vida, estendendo-se até 14-16
anos de vida (…). A atividade cerebral é modulada de modo simplificado por estímulos
gerados internamente de natureza excitatória ou inibitória mediados por contatos
(sinapses). O desenvolvimento das sinapses excitatórias e inibitórias ocorre em tempos
diferentes, surgindo mais precocemente as sinapses excitatórias e, portanto, gerando
um período de predomínio das atividades excitatórias e facilitando as escolhas por
impulso.” COSTA, Jaderson Costa da. A publicidade e o cérebro da criança. In:
PASQUALOTTO, Adalberto; ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel (org.). Publicidade e
proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 23.
29 “Art. 19. Toda pessoa física ou jurídica que fizer ou promover publicidade enganosa
ou abusiva ficará sujeita à pena de multa, cumulada com aquelas previstas no artigo
anterior, sem prejuízo da competência de outros órgãos administrativos. Parágrafo
único. Incide também nas penas deste artigo o fornecedor que: a) deixar de organizar
ou negar aos legítimos interessados os dados fáticos, técnicos e científicos que dão
sustentação à mensagem publicitária; b) veicular publicidade de forma que o consumidor
não possa, fácil e imediatamente, identificá-la como tal.”
30 Disponível em:
[http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={B1A0C80D-4D38-48B6-A086-BC1D189A4CBB}].
Acesso em: 18.07.2014.
[http://revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad60079000001461
Acesso em: 19.05.2014. A íntegra do CBAP está disponível em:
[http://www.conar.org.br]. Acesso em: 15.07.2014.
Página 13