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INSTITUTO JUNGUIANO DA BAHIA

V CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PROCESSO CRIATIVO E


FACILITAÇÃO DE GRUPOS - ABORDAGEM JUNGUIANA

ALINE COSTA D'EÇA

ESTUDO DE CASO:
MATERNIDADE ATÍPICA E REENCONTRO COM O PRÓPRIO
CAMINHO EM UM CÍRCULO DE MULHERES

Salvador-Bahia
2021
ALINE COSTA D'EÇA

ESTUDO DE CASO:
MATERNIDADE ATÍPICA E REENCONTRO COM O PRÓPRIO
CAMINHO EM UM CÍRCULO DE MULHERES

Monografia apresentada como Trabalho de Conclusão do


Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Processo Criativo
e Facilitação de Grupos – Abordagem Junguiana, do
Instituto Junguiano da Bahia e da Fundação Bahiana para
Desenvolvimento das Ciências

Orientador: Profa. Dra. ERMELINDA GANEM


FERNANDES

Salvador-Bahia
2021
Dedico este trabalho ao meu filho Gustavo, que me
apresentou à maternidade atípica e ao melhor que existe
em mim.
AGRADECIMENTOS

Na memória e no coração guardo o incentivo, a acolhida, a compreensão, a doação, a


confiança, as partilhas e os gestos que fizeram parte da minha jornada nos últimos anos de
profundo mergulho nos estudos da Psicologia Analítica, de Carl Gustav Jung. Reconheço a
graça de não estar sozinha ao longo do caminho. Por isso, sou grata às pessoas e aos eventos
sincronísticos que fizeram parte de todo o processo. Agradeço ao meu filho Gustavo por me
inspirar a seguir o chamado da minha alma; ao meu marido Jackson pelo companheirismo;
aos meus pais Benedita e Demétrio, aos meus irmãos Isis, Lucas e Eliene, aos meus tios e à
minha família pelo encorajamento e apoio; aos amigos pela compreensão das ausências; aos
professores pela doação de conhecimento, em especial Absolon e Roberta; à professora
Ermelinda pela condução do curso e pelo tão importante suporte terapêutico; aos colegas de
turma pela acolhida calorosa; e aos cúmplices que fiz nesse processo criativo: Alice, Cida,
Carla, William e Marcelo, por dividirem e por multiplicarem momentos, conhecimentos,
agonias e alegrias. Por fim, um agradecimento especial às mulheres que confiaram na
terapeuta que existe em mim e partilharam comigo a dor e a delícia da maternidade atípica.
"Grupos conduzidos por e para mulheres são nosso refúgio
psíquico; nosso local para descobrirmos quem somos ou o
que podemos nos tornar como seres integrais e
independentes. Em algum momento em nossas vidas, cada
uma de nós precisa de um território livre. Um pequeno
território psíquico. Você tem um?". (Gloria Steinem)
RESUMO

Uma mulher que se descobre mãe de uma criança com desenvolvimento atípico ou com
necessidades especiais tem a sua história pessoal e múltiplos aspectos de sua vida
repentinamente alterados. A proposta de realizar um estudo de um círculo de mulheres
formado por mães atípicas consistiu em analisar como o suporte terapêutico, com
embasamento teórico e utilização de ferramentas da terapia junguiana, poderia proporcionar
uma melhor adaptação aos desafios impostos pela maternidade atípica. A pesquisa objetivou
identificar aspectos da subjetividade pessoal manifestados pelas participantes, refletir sobre a
situação psíquica dessas mulheres e observar os efeitos da terapia grupal em suas dinâmicas
de vida. A utilização de recursos simbólicos permitiu às participantes reconhecer conflitos que
não conseguiam verbalizar; acessar situações emotivas carregadas de significados; promover
transformações criativas em suas vidas; e atingir um novo nível de consciência. A abordagem
utilizada na pesquisa foi a qualitativa, a modalidade o estudo de caso e o aporte teórico a
psicologia analítica proposta por Carl Gustav Jung.

Palavras-chave: Maternidade. Criança atípica. Círculo de Mulheres. Terapia em Grupo.


Complexos. Símbolos. Arquétipos.
ABSTRACT

A woman who finds herself the mother of a child with atypical development or special needs
has her personal history and multiple aspects of her life suddenly changed. The proposal to
carry out a study of a circle of women formed by atypical mothers consisted of analyzing how
therapeutic support, with a theoretical basis and the use of Jungian therapy tools, could
provide a better adaptation to the challenges imposed by atypical motherhood. The research
aimed to identify aspects of personal subjectivity manifested by the participants, reflect on the
psychic situation of these women and observe the effects of group therapy on their life
dynamics. The use of symbolic resources allowed the participants to recognize conflicts that
they were unable to verbalize; access emotional situations loaded with meanings; promote
creative transformations in their lives; and reach a new level of awareness. The approach used
in the research is qualitative, the modality is the case study and the theoretical contribution to
analytical psychology proposed by Carl Gustav Jung, with the perspective of analysis based
on the symbol and the archetype.

Keywords: Maternity. Atypical child. Circle of Women. Group Therapy. Complexes.


Symbols. Archetypes.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 — Panfleto de divulgação do grupo vivencial junguiano Um Olhar sobre a Mãe ... 22
Figura 2 — Status .................................................................................................................... 34
Figura 3 — Água ..................................................................................................................... 35
Figura 4 — Reflexão ............................................................................................................... 36
Figura 5 — Dúvida .................................................................................................................. 37
Figura 6 — Colagem de Vermelho.......................................................................................... 39
Figura 7 — Colagem de Índigo ............................................................................................... 40
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
2 BASES TEÓRICAS............................................................................................................ 11
2.1 Maternidade atípica e luto ........................................................................................... 11
2.2 Fusão emocional e psique infantil ............................................................................... 12
2.3 Arquétipos e complexos ............................................................................................... 13
2.3.1 Arquétipo e complexo maternos ............................................................................... 15
2.3.1.1 O complexo materno da filha.............................................................................16
2.4 Maternidade e individuação ........................................................................................ 17
2.5 Grupo vivencial junguiano .......................................................................................... 18
3 O GRUPO OLHAR SOBRE A MÃE ............................................................................... 22
4 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 41
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 43
9

1 INTRODUÇÃO

A maternidade atípica, nomenclatura utilizada para se referir ao exercício da função


materna por mulheres com filhos em condições médicas ou genéticas fora do esperado, é
responsável por uma verdadeira revolução na vida de uma mulher. Paralelamente à descoberta
da condição atípica do filho, que demandará dela atenção e cuidados diferenciados, uma
transformação radical é observada no seu dia a dia, afetando diretamente o desempenho dos
diversos papéis por ela exercidos – mãe, esposa/solteira, profissional, amiga, mulher – e na
forma de administrar o seu tempo, a sua rotina, as suas finanças, dentre outros aspectos. O
impacto que o estado de constante vigilância da mãe e os cuidados diários com a criança,
muitas vezes ininterruptos, têm sobre a saúde física e mental dessas mulheres é um tema
comumente ignorado pela sociedade em geral e por grande parte dos profissionais de saúde,
que voltam a atenção especialmente para a situação e demandas da criança. Frequentemente,
essas mães não recebem o acolhimento e a atenção necessárias à adaptação a sua nova
condição.
Ser responsável, muitas vezes sozinha, pelos cuidados de uma criança com alguma
dificuldade no desenvolvimento físico ou neurológico é uma condição que gera para a mãe
uma sobrecarga emocional traduzida em estresse, ansiedade, medo, irritabilidade, descontrole
emocional, bem como no aparecimento de condições psíquicas mais graves, como o pânico e
a depressão. O nível do estresse materno varia de acordo com a gravidade da condição da
criança, o acesso aos recursos terapêuticos, a condição financeira, o impacto na vida
profissional, o suporte oferecido pela família, a rede de apoio existente, dentre outras
questões, como transporte, moradia e contexto social. Diante desta perspectiva, questiona-se:
quais são as necessidades especiais dessa mãe?
A proposição de criar um grupo vivencial junguiano que reunisse mães de crianças com
desenvolvimento atípico ou necessidades especiais teve por objetivo tentar oferecer a elas um
suporte psíquico capaz de proporcionar a sustentação do exercício da função materna e,
concomitantemente, o atendimento às demandas da mulher que existe além do papel de
mãe. Responsável, em grande parte das famílias, por desempenhar a maioria dos cuidados
com as crianças, a mãe é a principal referência para um filho, motivo pelo qual seria
importante lançar um olhar para ela também, atentando-se à sua saúde física e emocional. A
caminhada com uma “criança atípica” é, sem dúvidas, repleta de momentos difíceis e
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angustiantes, que alteram o curso da vida e impactam de forma significativa nos projetos e
sonhos da família, mas que também pode ser repleta de descobertas.
A proposta do Grupo Um Olhar sobre a Mãe foi possibilitar às participantes o
reencontro consigo mesmas por meio de exercícios simbólicos que permitissem o acesso a
conteúdos do inconsciente pessoal até então desconhecidos e a temas arquetípicos. Além
disso, propiciou o acolhimento mútuo e a troca de experiências entre as participantes,
investindo no autoconhecimento e na capacidade reflexiva sobre si mesmas, suas tarefas
individuais e o uso de seus potenciais em favor próprio, de seus filhos e do mundo.
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2 BASES TEÓRICAS

2.1 Maternidade atípica e luto

A constatação de que uma criança apresenta algum tipo de necessidade especial ou


atrasos significativos no seu desenvolvimento representa para a família uma experiência
brusca de adaptação a uma realidade não esperada. A imagem do filho idealizado, construída
desde a gravidez, morre para ceder espaço ao filho real. Morrem também muitas expectativas
e sonhos projetados sobre a criança. Essa morte simbólica do “filho perfeito” deflagra um
processo de luto que precisa ser reconhecido e vivenciado, para que seja possível estabelecer
um vínculo de amor e cuidado com o filho que nasceu (ALVES, 2012).

Desde a infância a mulher idealiza o filho que um dia poderá ter e, ao engravidar,
deseja que o seu filho seja o mais bonito, inteligente, o melhor. Ninguém engravida
para ter filho com deficiência! Durante a gravidez, apesar da constante preocupação,
o casal prefere acreditar que o bebê terá saúde e será perfeito e, na maioria das
vezes, é assim, mas, nem sempre... A morte do filho idealizado pode acontecer a
qualquer momento: ao nascer, caso tenha algum tipo de deficiência física, sensorial
e/ou mental imediatamente percebida; durante o desenvolvimento, quando as
deficiências física, sensorial e/ou mental tornam-se evidentes; ao nascer ou durante o
desenvolvimento, ao surgirem doenças crônicas, graves e/ou estigmatizadas, tais
como: diabetes, cardiopatias, HIV/aids, psiquiátricas entre outras; ao longo da vida,
em casos de acidentes/violência em que o filho se torna deficiente físico, mental
e/ou sensorial; ao longo da vida, caso se torne dependente de álcool ou outro tipo de
droga. (ALVES, 2012, p. 90).

Esse luto, entretanto, além de carregar a dor, o sentimento de culpa, a frustração, o


medo e a tristeza, vem acompanhado de julgamentos e cobranças.

Quando morre o filho idealizado, surge a dor, a angústia, o desespero, o medo, a


tristeza: o luto. O filho está lá! É outro, completamente diferente do que foi
desejado, mas está lá, e o casal (muitas vezes somente a mãe) não tem autorização
para chorar e ficar de luto pelo filho que morreu. As pessoas ao redor cobram ações
e atitudes, indiferentes ao conflito de sentimentos dos pais. (ALVES, 2012, p. 91).

Em razão da sociedade ainda não estar preparada para respeitar e conviver com as
diferenças, os responsáveis pelas pessoas com necessidades especiais ou desenvolvimento
atípico ainda precisam lidar com o preconceito, o abandono e a solidão. Em muitos casos,
nem na própria família é possível encontrar o apoio necessário, com a justificativa de não
saberem lidar com a criança, fato que aumenta a sensação de solidão. O acolhimento muitas
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vezes acontece entre os pais/mães que enfrentam situações similares e que se conhecem em
salas de espera de clínicas, espaços de terapias ou grupos de redes sociais.

O acolhimento aconteceu na sala de espera das clínicas de tratamentos que a Beatriz


frequentava. Enquanto ela fazia as terapias, eu aguardava com outras mães. Lá
falávamos de nossas experiências com médicos, tratamentos, familiares, escolas e
sociedade: frustrações, solidão, conquistas, sentimentos, preconceitos, tratamentos,
ervas, receitas, marido, filhos, passeios, enfim, um mundo em que viviam e
circulavam pessoas com deficiências e o que essas famílias enfrentavam. Encontrei
pessoas que sabiam o que eu sentia, respeitavam e ouviam. Lá, via crianças em
condições que eu considerava melhor, igual ou pior do que a da Beatriz, e mães que
estavam em diferentes estágios de enfrentamento daquela nova realidade. Foi na sala
de espera que eu fiz minha difícil digestão de ter uma filha com deficiência. A sala
de espera e aquelas mulheres me fortaleceram e, lá, eu consegui emergir do luto pela
minha filha idealizada e morta. Lá eu gestei e dei à luz a Beatriz.(ALVES, 2012, p.
92)

Diante deste contexto, foi proposta a criação de um grupo terapêutico com o objetivo de
promover a mães de crianças com desenvolvimento atípico ou com necessidades especiais um
espaço de acolhimento, reflexão e autoconhecimento.

2.2 Fusão emocional e psique infantil

A atitude emocional, pessoal e inconsciente dos pais e educadores diante da criança é,


para Jung (2012), o maior fator de influência sobre a forma como ela moldará a sua
personalidade.

A desarmonia latente entre os pais, uma preocupação secreta, desejos secretos e


reprimidos, tudo isso produz na criança um estado emocional, com sinais
perfeitamente reconhecíveis, que, devagar mas segura e inconscientemente, vai
penetrando na psique dela, levando às mesmas atitudes e, portanto, às mesmas
reações aos estímulos do meio ambiente. Sabemos por experiência que, ao lidar com
pessoas tristes e melancólicas, nós mesmos ficamos deprimidos. Uma pessoa sempre
agitada e nervosa passa ao meio ambiente sua intranquilidade, um insatisfeito passa
sua insatisfação etc. Se nós, adultos, mostramo-nos sensíveis a estas influências do
meio ambiente, o que dizer então de uma criança cuja psique é mole e moldável
como cera! (JUNG, 2012, p. 524).

Nesta perspectiva, é a partir da sua fusão emocional com os outros, especialmente com
seus cuidadores, que ocorre a construção psíquica da criança.

Tudo é retratado inconscientemente na criança; mesmo coisas das quais nunca se


falou. A criança imita os gestos; e, assim como os gestos dos pais são a expressão de
13

seu estado emocional, estes gestos que ela imita vão produzindo aos poucos um
estado emocional semelhante dentro dela. Assim como os pais se colocam diante do
mundo, também ela se coloca (JUNG, 2012, p. 524)

Podemos aferir que os bebês e as crianças pequenas são “seres fusionais” (GUTMAN,
2020, p. 24). Inicialmente o bebê só está fundido com a emoção da figura materna, e a medida
que vai crescendo criará laços de fusão com aqueles que a cercam. Para a autora, o bebê se
constitui de “um sistema de representação da alma materna”, pois vive como se fosse dele
tudo aquilo que a mãe sente e recorda, aquilo que a preocupa ou que ela rejeita. De outro lado,
a mãe também permanece fundida com seu bebê.

No campo emocional, a mãe atravessa esse período “desdobrada”, pois sua alma se
manifesta tanto em seu próprio corpo como no corpo do bebê. E o mais incrível é
que o bebê sente como próprio tudo o que sua mãe sente, sobretudo o que ela não
consegue reconhecer, aquilo que não reside em sua consciência, o que relegou à
sombra (GUTMAN, 2020, p. 22)

A subjetividade materna, nessa linha de pensamento, deve ser considerada sempre que
se pretenda analisar o desenvolvimento da psique infantil. Além disso, para Gutman (2020),
na medida em que a mãe tenha a intenção genuína de encontrar a si mesma e se permita
receber ajuda, encontrará respostas para questões por ela relegadas à sombra. Nesse sentido,
cada bebê é uma oportunidade para o autoconhecimento da sua mãe ou figura materna; um
“mestre”, que consegue manifestar as emoções maternas, suas dores e vulnerabilidades.

2.3 Arquétipos e complexos

Segundo Jung (2014), em todas as atividades humanas, há um fator apriorístico que é a


estrutura individual inata da psique, pré-consciente e inconsciente. A partir das primeiras
manifestações da vida psíquica, é possível identificar o caráter individual dessas
manifestações, isto é, a personalidade singular.

É impossível conhecer a natureza das disposições psíquicas inconscientes, mediante


as quais o homem é capaz de reagir humanamente. Deve tratar-se de formas de
função as quais denominamos “imagens”. “Imagens” expressam não só a forma da
atividade a ser exercida, mas também, simultaneamente, a situação típica na qual se
desencadeia a atividade. Tais imagens são “imagens primordiais”, uma vez que são
peculiares à espécie, e se alguma vez foram “criadas”, a sua criação coincide no
mínimo com o início da espécie. (JUNG, 2014, p. 85-86).
14

Para ele, essas imagens primordiais são os arquétipos, que se originam da repetição de
uma mesma experiência vivida por várias gerações, armazenadas no inconsciente coletivo.
Estas imagens são universais, entretanto “o que é herdado não são as ideias, mas as formas”
(JUNG, 2014, p. 87). Um indivíduo experencia diversos arquétipos, que serão ativados ao
longo de sua existência com base nas experiências vividas.

Há tantos arquétipos quanto situações típicas na vida. Intermináveis repetições


imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens
preenchidas de um conteúdo, mas principalmente apenas forma sem conteúdo,
representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação.
Quando ocorre algo na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge
uma compulsão que se impõe a moda de uma reação instintiva contra toda razão e
vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma
neurose (JUNG, 2014, p. 57).

Os complexos, por sua vez, são constelações específicas de lembranças de experiências


ou de fantasias carregadas de forte emoção que são ordenadas em torno de um tema
semelhante (KAST, 1997). Eles são núcleos afetivos da personalidade, provocados por um
embate doloroso ou significativo do indivíduo com uma demanda ou um acontecimento no
meio ambiente, acontecimento para o qual ele não está preparado (JUNG apud KAST, 1997,
p. 31). Deste modo, quando esses temas ou os afetos correspondentes a eles são tocados, a
pessoa reage de maneira complexada, ou seja, interpretando a situação pela perspectiva do
complexo e reagindo de forma emocional e exagerada.
O complexo possui energia própria e pode atuar determinando o modo de agir, pensar e
sentir do sujeito. É nesse sentido que Jung afirma que “os complexos podem ‘nos ter’” e que
“um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não liberdade, de
pensamentos obsessivos e de ações compulsivas”.

Toda constelação de complexos implica um estado perturbado de consciência.


Rompe-se a unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da
vontade, quando não se tornam de todo impossíveis. A própria memória, como
vimos, é muitas vezes profundamente afetada. Daí se deduz que o complexo é um
fator psíquico que, em termos de energia, possui um valor que supera, às vezes, o de
nossas intenções conscientes; do contrário, tais rupturas da ordem consciente não
seriam de todo possíveis. (JUNG, 2013, p. 43).

Jung assevera ainda que, com algum esforço de vontade, pode-se reprimir o complexo,
“mas é impossível negar sua existência, e na primeira ocasião favorável ele volta à tona com
toda a sua força original” (JUNG, 2013, p. 44).
15

O complexo apresenta-se por meio de símbolos. A partir do contato com esses símbolos
ou representações simbólicas é possível experenciar as emoções ligadas aos complexos e, da
interação com estes, advir uma nova compreensão da situação marcante.

Contudo, o essencial na perspectiva da psicologia junguiana é que esses símbolos,


que retratam os complexos, têm em si um potencial energético, que se expressa nas
fantasias ligadas a eles. Os complexos são vistos como algo que inibe a pessoa e faz
o indivíduo, nas situações que exigiram dele uma resposta diferenciada, responder e
reagir sempre da mesma maneira estereotipada; todavia os complexos também
contêm os germes de novas possibilidades de vida (KAST, 2014, p. 36)

2.3.1 Arquétipo e complexo maternos

O arquétipo materno, como os demais arquétipos, possui uma variedade de aspectos.


Mas existem alguns traços que são essenciais para ele.

Seus atributos são o "maternal": simplesmente a mágica autoridade do feminino; a


sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que
sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o
lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis;
o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e
venenoso, o apavorante e fatal (JUNG, 2014, p. 88).

Essas qualidades opostas, que correspondem à “mãe amorosa” e à “mãe terrível”,


conferem ao arquétipo um caráter bivalente, com aspectos positivos e negativos. O arquétipo
materno é a base do chamado complexo materno. Dado o caráter universal do arquétipo, o
complexo não está tão somente ligado a experiências com a figura da mãe pessoal.

Isto significa que não é apenas da mãe pessoal que provêm todas as influências
sobre a psique infantil descritas na literatura, mas é muito mais o arquétipo projetado
na mãe que outorga à mesma um caráter mitológico e com isso lhe confere
autoridade e até mesmo numinosidade. Os efeitos etiológicos, isto é, traumáticos da
mãe devem ser divididos em dois grupos: primeiro, os que correspondem à
qualidade característica ou atitudes realmente existentes na mãe pessoal. Segundo,
os que só aparentemente possuem tais características, uma vez que se trata de
projeções de tipo fantasioso (quer dizer, arquetípico) por parte da criança (JUNG,
2014, p. 89).

Deste modo, Jung considera que associar o complexo materno sempre a uma ideia de
dano e sofrimento, a um quadro psicopatológico, é demasiadamente estreito. Pode-se também
16

dar-lhe uma conotação mais ampla e abrangente, em que é possível mencionar também a sua
influência positiva (JUNG, 2014, p. 92).
No seu livro "Arquétipos e o Inconsciente Coletivo", Jung se atém a diversos tipos de
complexo materno e aos aspectos comumente relacionados a eles. Neste trabalho, focaremos
no complexo materno da filha, uma vez que tratamos sobre o exercício da maternidade atípica
por "mulheres-filhas".

2.3.1.1 O complexo materno da filha

As imagens arquetípicas de mãe são evocadas pelas mulheres tanto no seu


relacionamento com a mãe pessoal quanto na sua própria experiência de tornar-se mãe. Essas
imagens, em parte inconscientes, exercem uma grande influência sobre as suas expectativas
em relação ao materno, mas também sobre a definição do papel de mãe (KAST, 2014, p. 80).
Deste modo, o complexo materno, seja ele positivo ou negativo, resultará em marcas
significativas na psique feminina. Poderá, por exemplo, incentivar o instinto materno de
forma exagerada ou mesmo atrofiá-lo.
Considerando as consequências dos tipos negativos do complexo materno sobre as
filhas, Jung (2014) destaca a hipertrofia do aspecto maternal, com uma supervalorização do
instinto materno; a exarcebação do eros, que é dirigido ao pai e acarreta em competição com a
mãe; a identificação com a mãe, com completa dependência desta e bloqueio da iniciativa
própria feminina; e a defesa contra a mãe, em que a filha resiste fortemente ao poder materno.
Identificar qual o complexo, seja ele positivo ou negativo, é responsável pelo
desequilíbrio para a psique, auxiliará na compreensão da dinâmica psíquica do indivíduo,
indicando quais são as facilidades, dificuldades de desenvolvimento e possibilidades
específicas de sua vida.
Verena Kast, ao abordar o complexo materno na filha, sustenta que na vivência com
outras mulheres, a mulher percebe em si características que podem ser semelhantes às de sua
mãe pessoal, até mesmo aquelas que considerem desagradáveis, e pode aprender a lidar de
outro modo com elas. Ademais, mesmo apesar das semelhanças, percebe que é um ser
humano completamente diferente. Deste modo, para a autora, a relação com outras mulheres
pode promover a reconciliação com a mãe, lidar com ela de maneira mais empática, podendo
"deixar que a mãe também se coloque como uma personalidade independente e seja
compreendida em sua transformação".
17

A relação com outras mulheres possibilita o processo de tornar-se consciente de si


mesma como mulher: as mulheres, então, não se vêem apenas com os próprios
olhos, mas também por meio dos olhos de outra mulher. Elas se refletem
mutuamente, se percebem, se aceitam. Mas a relação com outras mulheres
proporciona também uma qualidade de vivência que pode ser, em minha opinião,
caracterizada antes de tudo pela "qualidade anima": uma atmosfera de comunhão
entre si e do "tornar-se amplo" espiritualmente, sem que seja necessário proteger-
se, é uma forma de abordagem erótica que não procura imediatamente a ação; uma
fascinação com as possibilidades, ternuras femininas etc., que simplesmente podem
ser experimentadas. Por meio disso também se vivificam imagens femininas
inconscientes ligadas com as emoções que lhes pertencem, cada uma, de modo
especial; as quais têm muito a ver com união - união terna, união selvagem - e
abrem diversas dimensões do ser mulher. (KAST, 1997, p. 29).

2.4 Maternidade e individuação

Ao exercer a maternidade, a mulher é submetida a mudanças internas naturais ao


processo de adaptação à sua nova condição. A primeira experiência com a maternidade dá
início a um processo de mudança de identidade na mulher, que passa da condição de filha
para mãe, ativando conteúdos conscientes e inconscientes relacionados ao arquétipo materno.
“A mulher passa por uma mudança simbólica radical em sua consciência de si-mesma ao
tornar-se mãe” (GALLBACH apud SARMENTO, 2004, p. 4). A intensidade dessa mudança
pode favorecer a ampliação da consciência feminina sobretudo quando da confrontação com o
arquétipo materno e do seu caráter bivalente.
Dentre os atributos do arquétipo materno, vimos que Jung (2014) citou aspectos como o
“lugar de transformação mágica” e de “renascimento” e, ao mesmo tempo, o “devorador” e
“apavorante”. A possibilidade de transformação subjetiva da mulher por meio da maternidade
pode estar, portanto, na integração de conteúdos inconscientes que lhe possibilitem a
ampliação da consciência sobre a experiência simbólica de morte-renascimento em curso. Sob
este ponto de vista, o sacrifício da filha para a iniciação da mãe poderia encetar o processo de
individuação na mulher, tornando-a mais consciente de si mesma e de seus papéis como filha,
como mãe e como mulher.

A psique que preexiste à consciência (por exemplo, no caso da criança) participa,


por um lado, da psique materna e, por outro, chega até a psique de filha. Por isso
poderíamos dizer que toda mãe contém em si sua filha e que toda filha contém em si
sua mãe; toda mulher se alarga na mãe, para trás e na filha, para frente. Desta
participação e mistura resulta aquela insegurança no que diz respeito ao tempo:
como mãe, vive-se antes; como filha, depois. Da vivência consciente desses laços
resulta um sentimento da extensão da vida, através de gerações: um primeiro passo
18

em direção à experiência e convicção imediatas de estar fora do tempo dá-nos o


sentido de imortalidade. A vida individual é elevada ao tipo, isto é, ao arquétipo do
destino feminino em geral. Ocorre assim uma apocatástase das vidas dos
antepassados que, mediante a ponte do ser humano contemporâneo individual,
prolongam-se nas gerações futuras. Através de uma experiência deste tipo o
indivíduo é incorporado à vida cheia de sentido das gerações, sendo que seu fluxo
(da vida) deve fluir através de cada um. Todos os obstáculos desnecessários são
afastados do caminho, mas este é o próprio fluxo da vida. Cada indivíduo, porém, é
ao mesmo tempo liberto de seu isolamento e devolvido à sua inteireza (JUNG, 2014,
p. 190).

Ainda segundo Jung (2014), existem três aspectos essenciais na mãe: a "sua bondade
nutritiva e dispensadora de cuidados, sua emocionalidade orgiástica e a sua obscuridade
subterrânea". Entretanto, observa ele, embora a figura de mãe seja de certo modo universal,
"sua imagem muda substancialmente na experiência prática individual", sendo recomendável
uma cuidadosa investigação de cada caso.
Deste modo, para que a maternidade funcione como um processo de iniciação e
desenvolvimento da personalidade feminina, como símbolo do "rito de passagem" do papel de
filha ao papel de mãe, é necessário que a mulher acesse e integre à consciência tanto os
aspectos positivos quanto os aspectos sombrios do arquétipo materno. Apenas nesse sentido é
possível que o exercício da função materna impulsione o processo de individuação da mulher.

A sociedade e a cultura super valorizam o aspecto positivo da maternidade,


não considerando a dimensão do feminino e portanto não orientando a mulher
para esta iniciação. Este tabu criado em torno da maternidade e as implicações
da percepção de seu aspecto sombrio, dificulta a verbalização desta experiência, o
que leva as mulheres a não revelarem umas às outras a situação conflitiva que se
deparam quando do nascimento de um filho, o que dificulta ainda mais a
elaboração do processo (SARMENTO, 2004, p. 9).

Neste ponto, revela-se a importância das mulheres compartilharem entre si suas


experiências reais e mais profundas, seja com a maternidade ou com outros temas do universo
feminino.

2.5 Grupo vivencial junguiano

A troca de experiências e vivências pessoais em um espaço dialógico grupal, no qual os


participantes possam se manifestar sobre questões da vida, colabora para a aprendizagem e
formação de novas formas de pensar e de agir. Os grupos vivenciais junguianos, também
chamados de círculos de iniciação, são pequenos grupos criativos de aprendizagem
compartilhada, que utilizam símbolos para propiciar a transformação do indivíduo por meio
19

dos relacionamentos interpessoais (FERNANDES, 2019, p. 2). Utilizando o formato de


psicoterapia breve, esses grupos funcionam como um espaço arquetípico em que é exercitado
o diálogo entre os conteúdos das dimensões consciente e inconsciente dos participantes de
maneira simbólica. Por meio deste diálogo acontece a criação de conhecimento a partir de
uma 'fenomenologia coletiva' (SILVEIRA, 2012), onde os participantes (de forma grupal),
com envolvimento, suspendem os seus hábitos de julgamento, tentando ver as coisas de
diversos ângulos e perspectivas.

Na fenomenologia coletiva, os participantes refletem no significado das suas


perspectivas para as suas próprias vidas e colocam esse significado em estórias e
palavras. O “ba”, apoiado no existencialismo, engloba, acolhe o significado
profundo ou essência, que quer emergir através de uma situação particular. O
significado serve como fonte profunda de inspiração e como um ponto de partida
para a co-criação do novo (NONAKA; KONNO apud SILVEIRA, 2012, p. 79).

O formato dos grupos junguianos é circular, e não há hierarquia entre os participantes.


O terapeuta funciona como focalizador, sendo responsável pelo desenvolvimento e condução
dos encontros, mas é ele também um dos integrantes do círculo. Alguns autores junguianos
costumam relacionar o trabalho terapêutico em grupo com o arquétipo da deusa grega Héstia,
associada à proteção do lar, comumente representada por um círculo ou pela chama de uma
lareira sempre acesa, um espaço quente e acolhedor. Segundo Freitas (2005), Héstia
relaciona-se com o focalizar, um processo dinâmico que procura iluminar uma parte do todo,
chamando a atenção para sua especificidade, sem perder a situação global, e que cria a
condição para criação e vivência de um campo onde a percepção e a imaginação possam
coexistir.

O trabalho com grupos vivenciais consiste na criação de um campo interacional


específico, no qual se relacionam forças dinâmicas que põem em contato todos os
participantes e, simultaneamente, encarregam-se do estabelecimento de uma coesão
tal, que considero possível e pertinente propor os conceitos de consciência grupal,
sombra grupal e símbolos grupais. É o campo simbólico constelado que acolhe e
conduz ao conceito de self grupal, algo intrinsicamente associado a Héstia: lugar,
num sentido que transcende o físico, de repouso, acolhimento, interação,
pertinência, devaneio, criação de sentido, meditação e surgimento de imagens. O
verbo preponderante é “estar”: mais do que fazer ou ser algo, basta estar e deixar
que as coisas aconteçam. (FREITAS, 2005, p. 58).

De acordo com a analista junguiana Jean Shinoda Bolen, a experiência em um círculo


de mulheres pode gerar um efeito positivo radical na vida daquelas que o integram, já que se
constitui um espaço para praticar uma comunicação honesta. "Estar em um círculo é uma
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experiência de aprendizado e crescimento que aglutina a sabedoria e a experiência, o


compromisso e a coragem de cada mulher que o compõe" (BOLEN, 2003, p. 31). Segundo a
autora, um círculo é um lugar igualitário de aprendizado, que permite à mulher exprimir
muitas vezes sentimentos que foram sufocados, minimizados ou mesmo nunca antes
reconhecidos, bastando para ela apenas estar lá.

Um círculo confiável tem um centro espiritual e respeito pelos seus limites. É um


agente poderosamente transformador das mulheres que o compõem. Círculos
também funcionam como grupos de apoio: se você quer transformar algo em sua
vida ou em você mesma, o Círculo é uma base segura para suas tentativas. Em um
ambiente patriarcal, um Círculo de iguais pode ser como uma ilha onde se pode falar
livremente e rir. Ele nos faz conscientes dos contrastes, através dos quais ficamos
alertas sobre o que fazemos para perpetuar o status quo e como podemos alterá-lo
(BOLEN, 2003, p. 33).

Para a Psicologia Analítica, o ambiente onde acontece a terapia é um espaço acolhedor


chamado de “vaso alquímico”, um local sagrado no qual ocorrem as interações entre o
analista e o cliente, o masculino e o feminino (o animus e a anima), o consciente e o
inconsciente, se transformando para produzir a meta da individuação, ou seja, a auto-
realização de ambos (SILVEIRA, 2012, p. 85). Segundo a autora, este conceito de "vaso
alquímico" também pode referir-se aos grupos vivenciais junguianos.

Os indivíduos revelam-se no espaço livre e protegido do ambiente grupal, retirando


as suas “máscaras”, trabalhando as suas personas. É o vaso alquímico do grupo que
vai dar continente e proteção ao ego dos sujeitos envolvidos nos seus processos de
mudança. (SILVEIRA, 2012, p. 86).

No trabalho com a análise junguiana em grupo, os participantes começam a produzir


conhecimento à medida em que adquirem confiança e vão "desnudando" seus conteúdos
psíquicos. Progressivamente, há um processo de externalização e assimilação de aspectos
sombrios da personalidade. No "mergulho" em direção ao inconsciente, a utilização de
técnicas vivenciais e pedagógicas faz-se necessária tanto para promover, em um primeiro
momento, o fortalecimento do ego para suportar as vivências simbólicas do processo de
construção do conhecimento arquetípico (SILVEIRA, 2012, p. 87), quanto para, em seguida,
impulsionar o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos.
O terapeuta tem como desafio perceber os arquétipos constelados pelo grupo e a relação
individual de cada participante com eles, bem como a dinâmica do próprio grupo, para então
propor as técnicas e vivências necessárias à condução do trabalho. De acordo com Alt (2013),
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para se trabalhar com grupos, dois pontos são fundamentais: a importância de um Self grupal
e a relação do Self individual com o Self grupal.

A ideia central, mesmo inconsciente, pela qual o grupo se reúne é o que designa o
Self grupal. Este inclui um fator temporal duradouro, podendo mudar à medida que
há uma mudança da personalidade do grupo. (ALT, 2013, p. 71).

O Self grupal é o arquétipo central de um grupo, que o movimenta em direção à


totalidade (COLMAN apud SILVEIRA, 2012). A identificação do Self individual com o Self
grupal, inclusive, é responsável pela motivação do participante em permanecer ou não no
grupo. Deste modo, cabe ao terapeuta ter a percepção e capacidade empática para identificar o
que se passa com as pessoas e com o próprio grupo.

O papel que o “self grupal” desempenha no “ba arquetípico” é análogo ao papel que
o arquétipo do Si-mesmo desempenha para a psique de um indivíduo, ou seja,
impulsiona o grupo para a individuação. É representado simbolicamente por uma
imagem mandálica, fazendo analogia com a esfera, um dos símbolos utilizados por
Nonaka, Toyama e Scharmer (2001), para expressar um ba adequado. (SILVEIRA,
2012, p. 82).

O mergulho em questões inconscientes e a abordagem de complexos pessoais podem


resultar na saída de alguns participantes do grupo que sejam mais resistentes em reconhecer e
manter contato com aspectos obscuros de suas personalidades. Esse movimento, entretanto,
deve ser compreendido como uma dinâmica própria de continência do grupo.
22

3 O GRUPO OLHAR SOBRE A MÃE

O Grupo Um Olhar sobre a Mãe teve seu primeiro encontro em 18 de agosto de 2020,
reunindo de forma inicialmente seis mulheres desconhecidas que se inscreveram para
participar do trabalho após ter acesso a cartazes de divulgação nas redes sociais. O trabalho
foi realizado durante seis meses, com 30 encontros online por meio da plataforma virtual
Google Meet, com duração de duas horas, das 21h às 23h, sempre às terças-feiras.

Figura 1 — Panfleto de divulgação do grupo vivencial junguiano Um


Olhar sobre a Mãe

Fonte: Aline D'Eça (2020)

Voltado a mães de crianças com desenvolvimento atípico ou com necessidades


especiais, o grupo terapêutico junguiano considerou a necessidade de oferecer a essas mães
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um suporte psíquico para auxiliar a sustentação do exercício da função materna e,


concomitantemente, incentivar o atendimento das demandas da mulher que existe além do
papel de mãe.
A caminhada com uma “criança especial” é, sem dúvidas, repleta de momentos difíceis
e angustiantes, que alteram o curso da vida e impactam de forma significativa nos projetos e
sonhos da família. A proposta do grupo foi ajudar essas mães a se reencontrarem no curso do
caminho com a maternidade atípica, propiciando o acolhimento e a troca de experiências entre
as participantes. Além disso, buscou incentivar o autoconhecimento e a capacidade reflexiva
das participantes sobre si mesmas, suas tarefas individuais e o uso de seus potenciais em favor
próprio, de seus filhos e do mundo. Para isso, foram aplicadas ferramentas e técnicas da
Psicologia Analítica, além de dinâmicas em grupo que proporcionaram às participantes a
compreensão das informações recebidas, expressão de suas emoções e sentimentos a respeito
das temáticas e das experiências desenvolvidas e a ampliação da consciência sobre conteúdos
inconscientes.
Apesar de ter iniciado com seis participantes, o grupo foi efetivamente formado por três
mulheres. As demais não prosseguiram em decorrência da desistência e do excesso de faltas
não justificadas. Deste modo, para este trabalho, consideraremos o perfil e os conteúdos
trazidos pelas três participantes que permaneceram até a conclusão do trabalho.
A maioria das sessões aconteceu em grupo, com as três ou duas participantes, mas ao
longo do desenvolvimento do trabalho, e diante do contexto da pandemia do Covid-19 e de
impedimentos previamente justificados, alguns encontros tiveram a participação de apenas
uma participante, ocasiões em que foram trabalhados mais a fundo aspectos individuais
trazidos por ela. Diante deste cenário, abordaremos o contexto geral do trabalho terapêutico
realizado e as principais questões trazidas pelas participantes.
Para dar início ao grupo, antes mesmo da primeira sessão, foi criado um grupo de
WhatsApp com as participantes, em que solicitei que cada uma se apresentasse em terceira
pessoa, como se um observador externo as descrevesse. O exercício foi para que elas se
olhassem como mulheres, tirando o foco dos seus filhos.
Na primeira sessão, entretanto, incentivei a livre apresentação, quando elas falaram
sobre o exercício da maternidade atípica e porque buscaram o grupo terapêutico. Os
codinomes apresentados relacionam-se às cores escolhidas pelas participantes para representá-
las:
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MULHER ÍNDIGO - psicóloga, 47 anos, casada, mãe de um menino de 11 anos. Foi a


primeira a se apresentar. Demonstrando inicial desconforto, pediu para explicar que é analista
junguiana, não tinha observado que o grupo era para quem tinha filho com necessidades
especiais. Afirmou que gostou do tema e gostaria de conhecer a linha de abordagem. Durante
a sua apresentação, entretanto, lembrou que de fato viveu uma maternidade atípica, pois seu
filho nasceu com uma cardiopatia congênita e não falou até os 4 anos de idade. Relatou que
não queria ser mãe, mas aos 35 anos o relógio biológico a conduziu a isso. Teve gravidez
normal, mas o filho nasceu com a cardiopatia. Afirmou ter um sentimento de culpa pois ela
mesma teve cardiopatia na infância. Emocionada, falou dos perigos da cirurgia no recém-
nascido e que ele quase morreu, ficando 40 dias na UTI no pós-cirúrgico. Afirmou que não
teve apoio, sentiu-se muito sozinha, e que escondeu inicialmente de todos o problema do
filho, omitindo da família, inclusive, que iria para São Paulo com o marido e o pequeno para a
realização da cirurgia. Queixou-se do tratamento frio e não humanizado dos médicos em todo
período de internação e do quanto foram difíceis aqueles dias. O filho não falou até os 4 anos,
mas depois teve uma vida normal, motivo pelo qual ela disse que “apagou” esses primeiros
anos da sua mente.
MULHER VERDE - advogada, 38 anos, casada, mãe de uma menina neurotípica de 7
anos e de um menino de 4 anos com microcefalia. Relatou que engravidou de forma planejada
do segundo filho e falou da felicidade ao descobrir que seria um menino. Emocionada, falou
da imensa dor, aos 7 meses de gestação, durante um exame de ultrassom de rotina em que
estava acompanhada pela mãe e pela sua filha, de receber a notícia de uma anormalidade no
desenvolvimento do bebê. A médica não soube dar a notícia de forma humanizada e,
aparentando estar assustada, encaminhou para outro médico, que confirmou a microcefalia da
criança, consequência da doença Zica. Chorou muito durante o relato. Disse que escondeu o
diagnóstico de todos familiares e amigos e só contou através de uma mensagem de celular
pouco antes do nascimento da criança, quando finalmente sentiu-se aliviada da carga que
carregou até o final da gestação. Relatou que desde então vive "a novela do filho", com
muitas terapias e muitas cirurgias programadas e outras tantas inesperadas.
MULHER VERMELHO - operadora de telemarketing, 34 anos, solteira, mãe de uma
menina de 8 anos com paralisia cerebral leve. Afirmou que engravidou do namorado, mas não
queria ser mãe. A gravidez e o parto foram tranquilos. A criança apresentou dificuldades para
engatinhar e sentar, mas ela achava que era porque a menina era muito gordinha por mamar
demais. Depois de um tempo, procurou um neurologista, que atendeu a criança gratuitamente,
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a examinou de forma rápida e comunicou que a menina tinha um cisto no cerebelo. O relato
do médico a deixou muito chocada. Procurou outros médicos e fez outros exames até
descobrir a paralisia cerebral. Ela não compreende como a filha tem paralisia e aparenta ser
normal, por isso ainda enfrenta muitas dificuldades com a criança, que está em fase escolar,
pois ela não consegue acompanhar as atividades. Afirmou ser muito difícil lidar com o atraso
cognitivo da filha e com os comentários maldosos das outras pessoas, que não percebem a
deficiência e julgam a menina.
Ainda no primeiro encontro, exibi um clipe da música Marco Polo, de Loreena
Mckennitt, em que uma mulher atravessa o deserto. Pedi que elas falassem sobre quais
“desertos” que elas atravessam em suas vidas. A partir disso, de forma unânime, todas falaram
sobre o sentimento de abandono e preconceito social, solidão, esgotamento, falta de rede de
apoio para os cuidados com os filhos, e sobre as dificuldades que envolvem ser mãe de uma
criança que exige cuidados especiais. Outro tema recorrente nos relatos foi a falta de
humanização de médicos e profissionais da área de saúde na prestação de informações sobre
seus filhos e na falta de acolhimento e frieza no trato com elas, mães das crianças. Após os
relatos das participantes, falei também que sou mãe de uma criança com necessidades
especiais, que também recebi um diagnóstico médico de forma muito fria e cruel e que por
isso optei por não falar sobre o diagnóstico dado ao meu filho, mas focar nas suas
potencialidades e investir no tratamento. Conversamos, ainda, sobre a similaridade das
histórias de cada uma.
No final da primeira sessão, pedi que cada participante escolhesse uma cor para
representá-las e assistissem um vídeo em que uma mulher dança com as cores. As escolhidas
pelas participantes foram: VERMELHO, VERDE e ÍNDIGO. A proposta no segundo
encontro foi trabalhar os sentimentos, sensações e pensamentos das participantes a partir da
simbologia das cores, incentivando-as a exprimir em palavras uma ou mais qualidades que
elas dão às cores que escolheram, o que elas representam e imaginar a mensagem da cor
escolhida para elas e o qual a primeira coisa na cor escolhida que vinha à lembrança.
VERMELHO: reportou que a cor tinha um sentido ao mesmo tempo negativo (de dor) e
positivo (de força), mas focaria no positivo pois antes da pandemia estava desempregada, sem
falar com o pai há anos e sem namorado. Escolheu a Maçã e associou à saciedade da fome.
VERDE: cor que sempre escolhe, pois traz a sensação de liberdade intensa.
Correlacionou o momento de pandemia com a privação de liberdade, que gera bastante
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ansiedade. Falou que a situação do filho também priva sua liberdade, mas não aprofundou na
questão. Escolheu a floresta e se imaginou a vendo de cima, em um helicóptero.
ÍNDIGO: associa à energia masculina (animus) pulsante dentro dela, que a impulsiona
para novos projetos, um deles um curso de escrita terapêutica. Disse que tem um bloqueio
para escrever sobre seus sentimentos e sonhos pois na infância teve um diário que foi violado
pela mãe. Escolheu a caneta Bic para associar com a cor pela simbologia da escrita.
Na terceira sessão, começamos com apenas duas participantes: ÍNDIGO e VERDE, que
ficaram conversando sobre as cirurgias que os filhos fizeram. Diante do atraso das demais,
desisti do planejamento da sessão. Informei que uma participante desistiu de continuar no
grupo. ÍNDIGO disse que nem todos estão preparados para mexer nas feridas. Um dos temas
sensíveis exemplificado foi o abuso sexual na infância. Naquele instante, uma das
participantes disse que lembrou de fatos da sua infância que nunca comentou com ninguém:
foi abusada, com carícias não autorizadas, por um funcionário da casa. Disse que dividiu isso
com a mãe na época, mas que depois “esqueceu” completamente o assunto. Com a chegada de
uma terceira participante no encontro, desconversaram e passaram a falar de suas rotinas nos
últimos dias.
Na quarta sessão, o planejamento de promover uma dinâmica com todas as participantes
foi mais uma vez suspenso, pois apenas ÍNDIGO e VERMELHO participaram do encontro.
VERMELHO relatou um sonho:
“Fui a shopping comprar um presente para minha filha, e estava com uma amiga que
disse que ia me ajudar, mas ficava me puxando para ver outras coisas que ela queria
comprar. Então chegou a hora de fechar o shopping e não comprei o presente. Ela sumiu.
Um bando de pessoas tentava sair do shopping, mas os seguranças colocaram uma cerca. A
minha amiga reaparece e insiste em irmos para o ponto de ônibus. Percebi que o bando de
pessoas que saiu por ali tinha morrido e estavam todas no chão. Minha amiga insiste em
passarmos pela passarela e vamos, mas os mortos viram zumbis e vêm nos atacar.”
Incentivada a amplificar as imagens trazidas pelo sonho, falou que tem uma amiga
preguiçosa e desorganizada que veio morar com ela e que está disputando atenção com a sua
filha, sendo que ela tem 22 anos e a filha 8 anos. Disse que não consegue reclamar com a
jovem e “engole” suas insatisfações com ela. Sobre os zumbis, correlacionou com questões
com o pai, segundo ela um militar machista, que estimulava sua dependência a ele. Aos 15
anos, o pai se separou da mãe e sumiu. Seu padrão de vida caiu. Emocionada, disse que o pai
falava: “o único homem que você deve depender sou eu”. Com o abandono, ela relatou que
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não sabia o que fazer a partir de então sem a ajuda dele. A mãe acabou assumindo sozinha a
sua criação e do irmão mais novo. Depois de muitos anos, recentemente o pai tentou retomar
o contato, mas ela acha estranho e não quer muita aproximação com ele. O pai de sua filha,
relatou ela, também foi embora pra Curitiba e não dá muita atenção à filha. “Não é minha
filha que tem que procurar ele. Ele que é pai, procure”, desabafou. Informou que, diante dos
sumiços e da falta de apoio do pai da criança, já tentou na Justiça garantir a pensão
alimentícia, mas sem sucesso pois não localizam ele para notificá-lo.
Na quinta sessão, propus a leitura e interpretação do conto O Patinho Feio, do livro
“Mulheres que Correm com Lobos”, de Clarissa Pínkola Éstes. Em seguida, partimos para a
interpretação individual do conto.
VERMELHO disse que a mãe abandonou o pato pois quis cuidar dele, mas não
suportou as perseguições. Destacou a cena em que o patinho acha que será vítima dos bonitos
cisnes, que na verdade são seus iguais. Confessou que já se sentiu como o patinho, por ser
negra morando no Sul do país. Recordou que viu na escola uma cena em que a fez não gostar
mais de banana, aos 8 anos, quando uma colega foi chamada de macaco. Disse que o pai
reforçou a comparação ao repreender o irmão menor dela, que comia muita banana. Mas disse
que hoje se sente uma mulher bonita.
ÍNDIGO disse que também se sentiu como o patinho, pois era muito alta e muito magra
com cabelos grandes loiros e muitas pintas pelo corpo, o que rendeu a ela o apelido de
“Banana”. Disse que viveu os lados opostos, pois passou a ser uma mulher bonita e
exuberante, que chama atenção por onde passa, a ponto de incomodar outras mulheres.
Confessou que nenhuma das situações é confortável, mas que aprendeu a lidar e a curtir sua
beleza.
Na sexta sessão, trabalhamos o mito sobre o “Rapto de Persérfone”, para falar como
cada uma se sente como filha e como mãe. As participantes chamaram a atenção de
Persérfone ser uma mulher "dividida".
VERMELHO disse que mora com a mãe, mas, com a pandemia de Covid-19, começou
a ficar mais tempo na casa de seu namorado. Está planejando morar com ele, mas sente a
tristeza da mãe, embora ela não fale sobre seus sentimentos. Seu sonho é construir uma
família, mas tem se sentido muito dividida entre a mãe e o namorado, exatamente como
Perséfone no mito. Sente que precisa expressar mais o que sente para as pessoas saberem o
que ela está pensando, mas teme magoar e afastar quem ama.
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ÍNDIGO disse que a maternidade é como comer a romã de Perséfone e se tornar um ser
para sempre dividido. Segundo ela, a maternidade é como uma gaiola dourada, algo bonito,
mas que não deixa de ser uma gaiola. Disse que “andava sentindo falta de si mesma” e que
precisava ter um mundo só dela, sem estar o tempo todo no papel de mãe. Durante a
pandemia, está se dando este tempo, pois ela sabe que também precisa de solidão e de espaço.
Antes da sétima sessão, pedi que cada participante escolhesse o primeiro conto de fadas
que lhe viesse à cabeça para conversarmos no grupo. Pedi que cada uma me contasse de
forma resumida o conto escolhido e o relacionasse com a vida e as questões delas. Foi o
melhor recurso terapêutico utilizado até então para acessar questões mais profundas das
participantes. Os contos escolhidos e trabalhados foram CINDERELA e MOANA, JOÃO E
MARIA e VALENTE.
Cinderela e Moana: VERMELHO escolheu os dois contos, disse que não conseguiu
optar por apenas um deles. Afirmou que se sentia explorada como a Cinderela, que sonhava
em encontrar um príncipe lindo que a tirasse do sofrimento. Hoje ela disse que é a “fada
madrinha” de si mesma. Inicialmente dependia do pai, depois, quando ficou desempregada,
passou a depender da mãe, ganhava roupas usadas das amigas porque não podia comprar
roupas novas, mas hoje está trabalhando e pode comprar as roupas que quer. Sobre o conto de
Moana, disse que não vê a personagem como uma princesa, mas como uma heroína livre e
questionadora. Moana desafiou os limites impostos pelas gerações anteriores. Disse que se
sente assim: questionando o porquê de certas coisas não mudarem. Para ela, a nova geração de
meninas será favorecida pois pode assistir esses novos contos em que as mulheres não
precisam de homens para salvá-las.
João e Maria: ÌNDIGO contou que na estória o pai atende a madrasta e deixa as
crianças na floresta. "Mas João tem a Maria, e Maria tem João." Às vezes, afirmou que se
sente como João e outras vezes como Maria. João é quem marca o caminho. Quando a bruxa
os captura, é de Maria a ideia do ossinho de galinha. Amplificou afirmando que é enxergada
sempre como uma mulher forte e que as pessoas acham que ela não precisa de cuidado.
Relacionou a casa dos doces com as seduções da vida: tentações, falsas ilusões e satisfação de
desejos. Depois de serem presos, os dois conseguem prender a bruxa. “A minha bruxa está na
gaiola, mas ela tem a chave e às vezes ela sai”, disse.
Valente: VERDE resumiu a história contando que Mérida era uma princesa medieval
que não se encaixava nos moldes de sua época. A mãe queria que ela fosse uma princesa
tradicional, mas ela não aceitava. A mãe vira um urso. A participante disse que possui a
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determinação e o jeito moleca de Mérida, além de “ser livre”. Mas hoje se sente presa e
limitada. Lembrou da sua relação com a filha mais velha, de tentar impor limites e regras de
educação, que ela desobedece. Por outro lado, incentiva demais a autonomia da filha. Na
relação com a sua mãe, disse que ela a estimulava a se defender, colocou até em escola de
Karatê. Até hoje se sente desestruturada quando tem alguma briga com a mãe, que a ajuda
muito com os netos, mas que é muito “histérica” e isso a irrita. “Minha mãe tira minha
estabilidade emocional”, disse. Afirmou que não vê o filho mais novo, que possui
necessidades especiais, nesta história.
Após os primeiros encontros com elementos previamente propostos, passamos aos
encontros com temas livres. Como as participantes traziam poucos sonhos, utilizei
eventualmente a técnica de interpretação simbólica de cartas, oráculos e tarôs, bem como de
músicas e textos, na tentativa de acessar temas mais sensíveis e/ou até então inconscientes.
Em razão da grande quantidade de sessões realizadas e das dificuldades em reunir em
todos os encontros as três participantes, resumirei as principais questões trabalhadas ao longo
do processo terapêutico por cada uma delas:
VERMELHO demonstrou inicialmente ter dificuldades em expressar para os outros o
que realmente pensa e sente sobre os fatos de sua vida, mas ao longo do processo terapêutico
se encorajou e passou a se expressar mais sobre suas vontades e sentimentos. Relatou que
tinha grande resistência em falar o que pensava para duas amigas mais novas, que acolheu em
sua casa durante a pandemia: uma porque ficou desempregada e outra que veio do interior.
Reconheceu que ao longo da vida sempre foi a amiga que tomava conta das outras porque era
a mais responsável – e se sentia também como se fosse responsável por elas. Essa abertura
sempre lhe trouxe riscos. Durante o desenvolvimento do trabalho, inclusive, sua mãe
contaminou-se com a Covid-19 após uma dessas amigas testar positivo para a doença, ter o
contato direto e receber os cuidados dela. O fato a mobilizou de tal modo que tomou coragem
de estabelecer um prazo para que as duas amigas saíssem de sua casa e comunicar a elas a
decisão. Sentiu-se aliviada em expressar sua vontade com determinação e sem culpa. Falou
que a mãe também não tinha coragem de falar e sentia-se também responsável pelas amigas
dela. Em um dos encontros, convidada a refletir sobre a história de sua ancestralidade, relatou
que sua mãe foi fruto de um segundo casamento do avô, e que sua avó materna casou e trouxe
os quatro filhos do antigo relacionamento do marido para criar. A mãe cresceu com esses
meios-irmãos, enfrentando dificuldades diversas. Identificou que parecia repetir
inconscientemente a história da avó, acolhendo as amigas como “filhas que não são suas”, e
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reconheceu que a energia despendida com as questões e problemas das amigas estavam
prejudicando o seu relacionamento com a filha, roubando a atenção que deveria ser
prioritariamente da criança, fato que estava promovendo o seu cansaço e irritação. Durante as
sessões, também foram trabalhadas questões relacionadas ao trabalho. Ela falou que sua
dedicação e competência estavam sendo reconhecidas no novo emprego, embora não gostasse
da atividade de telemarketing, e também expressou seu medo de assumir um posto de
liderança. Em uma das últimas sessões, trouxe um sonho relacionado ao tema: “Eu pegava um
elevador, que subia até o último andar onde tinha um homem que passava e abria uma porta
de vidro. Nela, estavam grudadas as fotos de um homem e um menino. Parecia um novo local
de trabalho, mas eu voltava para o elevador com medo de entrar naquele ambiente.”
Utilizando a técnica da imaginação, pedi que ela retornasse ao sonho e que desse continuidade
a ele. Perguntei a ela por que não entrava, e ela respondeu que não se achava preparada. Sobre
o fato de ter só figuras masculinas no sonho, afirmou que tem resistência a enfrentar o tema
do poder, e de não se ver em posições de liderança que comumente são mais masculinas.
Reconheceu a forma como o pai a educou, dependente dele, e seu posterior abandono, como
alguns dos motivos para a sua insegurança. Confessou que tem medo de desagradar as pessoas
que seriam subalternas a ela e que prefere voltar para o posto onde estava. E então lembrou da
sua relação com o irmão mais novo, já que ela tinha que esperar ele para que pudesse fazer
várias coisas, como se matricular em uma auto-escola. Incentivei-a a imaginar que
atravessava a porta do sonho. Ela sentiu-se inicialmente desconfortável, mas aceitou e
descreveu o ambiente como um novo cheio de possibilidades, e que ela poderia sim entrar ali.
ÍNDIGO, desde o início dos encontros, mostrou-se como entusiasta do trabalho do
grupo e a mais confortável em desnudar suas questões e apresentar seus pensamentos e
emoções, bem como em acolher e incentivar as demais participantes. Afirmou que por anos
trabalha suas questões em terapia individual, mas o tema da sua maternidade nunca foi
trabalhado de forma tão visceral quanto no grupo terapêutico. Inclusive o fato de ter exercido
uma maternidade atípica e ter enfrentado todos os dilemas dela só foi reconhecido após
ingressar no grupo. Ao longo do processo, trouxe questões relacionadas ao materno.
Reconheceu-se como “filha do pai” e com dificuldades de relacionamento com a mãe.
Destacou que ela e a irmã sempre foram muito cúmplices, independentes e sem preconceitos,
com a mentalidade diferente da mãe, que sempre foi conservadora. Afirmou que seu filho tem
um caráter mais parecido com o seu. Mas o comportamento da sobrinha tem mexido muito
com ela e com a irmã por se apresentar mais conservadora como a avó, uma adolescente sem
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vaidade e dependente, ressuscitando temas que pareciam superados por ela e pela irmã, mãe
da jovem. Falou que tinha um ótimo relacionamento com o pai, que faleceu há anos, mas a
mãe sempre foi mais dura com elas. Ressentiu-se muitas vezes de não receber colo e carinho
das pessoas, que a julgam uma mulher forte que não precisaria de atenção, sobretudo a mãe e
o marido. Afirmou que tem educado o filho para ser diferente e recebe dele muito carinho.
Durante o processo terapêutico, o sogro que estava muito doente faleceu e ela foi passar um
tempo com o marido na casa da sogra, que reside em outro estado. Neste período, falou sobre
como a morte do sogro reativou a relação simbiótica da sogra com o seu marido, causando
impacto emocional sobre ele. O episódio trouxe reflexões para ela de como a relação mãe-
filho é desafiadora, em especial para criar homens emocionalmente mais seguros e menos
dependentes. Em relação ao trabalho, durante o processo terapêutico ela compartilhou sobre
um novo momento na carreira, com novos projetos, e que estava deixando uma sociedade
para trabalhar sozinha, inclusive com reforma de seu consultório. Trouxe um sonho sobre o
tema: “Estava dirigindo um carro e nele estavam muitas coisas antigas, que fizeram parte da
minha vida, e que eu precisava retirar aos poucos. Mas também estavam baratas, e ao longo
do percurso conseguia limpar o interior do veículo, tudo ia ficando para trás, menos as
baratas. Mas elas já não me incomodavam, sabia que elas faziam parte da viagem”. Falou
sobre a importância de todas as bagagens que teve na sua vida, boas e ruins, e que agora se
sentia mais leve ao dar início a um novo momento profissional. Mas as coisas ruins pelas
quais passou, representadas no sonho pelas baratas, também fazem parte desse processo e é
preciso conviver com elas. Nas últimas sessões, anunciou que daria início a um grupo
terapêutico de mulheres, também de forma online e gratuita, e estava empolgada com o novo
desafio.
VERDE participou do grupo mais ativamente no início, mas ao longo do processo
faltou muitas vezes aos encontros sob a justificativa de que as mudanças de rotina do filho,
em razão das cirurgias realizadas, e a dificuldade da filha em dormir sozinha, sem ela,
estavam promovendo grande exaustão e que, como consequência, ela pegava no sono no
horário das sessões. Ela faltou a todas as sessões no último mês do trabalho, retornando
apenas na sessão final. Foi a participante que mais se queixou de cansaço físico e mental,
naturalmente pelas próprias questões do filho com microcefalia, completamente dependente
de apoio para atividades básicas e constantemente submetido a procedimentos médicos e
cirúrgicos. Tratou de temas como os problemas pós-operatórios da criança, as dificuldades
com a suspensão das terapias - que precisavam ser presenciais -, a difícil inclusão escolar em
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2019, que precisou ser interrompida, quando o menino já parecia mais adaptado e feliz, em
razão de uma necessidade de cirurgia, e a indecisão sobre quando colocar ele novamente na
escola. Ela foi também a participante que menos se aprofundou nas suas questões psíquicas,
tendo maior dificuldade para simbolizar. Por vezes entrou em catarse com o relato de sua luta
diária, sendo acolhida por mim e pelas participantes, demostrando posterior alívio, motivação
e bom humor. Sempre muito comunicativa e brincalhona, falava também de sua rotina com a
família, dos desafios com o trabalho, e queixava-se das restrições impostas pela pandemia.
Relatou que tem uma relação ótima com o marido, e costumavam viajar muito a sós, pois ela
adora aventuras e fugir da rotina. Mas a pandemia a estava privando dessa necessidade de
liberdade, o que estava a afetando muito, deixando muito estressada. Para ter uma sensação
maior de liberdade, deixou diversas vezes o apartamento em que viviam no período da
pandemia para passar dias na casa da mãe, na região metropolitana, onde as crianças tinham
mais espaço e ela ficava mais à vontade, inclusive podendo contar com o apoio adicional da
sua mãe. Em razão de não apresentar sonhos e ter maior dificuldade para simbolizar e trazer
questões de sua vida pregressa, tentamos explorar suas questões por meio da interpretação de
cartas, porém as questões ficavam mais limitadas a reflexões sobre seu cotidiano e sua
necessidade de maior tempo para se cuidar e investir no autoconhecimento, mas sem
aprofundamento nestes temas. Disse que se encontrava em processo terapêutico individual
recente, que estava sendo importante para ela, mas relatou que o tema mais recorrente
trabalhado nas sessões eram as questões relacionadas ao filho. Relatou, em certo momento,
que pensou em suspender e trocar de terapeuta, demonstrou interesse em conhecer outras
linhas de abordagem da psicologia, mas depois desistiu e se manteve com a mesma terapeuta.
As três participantes relataram dificuldades no relacionamento com a mãe, evidenciando
a influência do complexo materno na vivência da própria maternidade, através da expressão
de conteúdos pessoais e arquetípicos.
VERMELHO confessou ter dificuldades no relacionamento com a mãe por ela não falar
o que realmente pensa. Disse que sente que a mãe está incomodada com o fato dela estar
namorando e com pretensão de casar, mas que só percebe isso pelo comportamento de tristeza
da mãe quando avisa que vai dormir ou passar dias na casa dele, e que ela nunca expressou
diretamente o que achava do relacionamento. O seu irmão mais novo, que mora no interior do
estado, também demonstra insatisfação dela em deixar a mãe sozinha para ficar com o
namorado. Na interpretação do conto de fadas Valente, ela amplificou que achava a
personagem Mérida egoísta, ao transformar a mãe em uma ursa e não conseguir se comunicar
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com ela. Mas que, por outro lado, a mãe quis impor a sua vontade, que a princesa deveria ser
jeito que ela queria. Falou que, com sua filha, ela procura ser a mãe que protege, mas que
também ensina a se defender. E lembrou que o pai que ensinou isso a ela, ao matriculá-la em
uma escola de Kong Fu. Apesar de estar distanciada da figura paterna desde a separação dos
pais, VERMELHO trouxe sempre mais lembranças da infância relacionadas à presença e
grande influência dele na sua vida, tanto aspectos positivos, de uma vida com menos
dificuldades por uma melhor condição financeira, quanto negativos, como o machismo que a
fazia depender do pai e do irmão mais novo. Relatou que ela só podia fazer as coisas se o
irmão pudesse acompanhá-la, por exigência do pai. Inclusive só pôde entrar na autoescola
após o irmão ter idade também para dirigir. Demonstrou ressentimento pelo abandono do pai,
que deixou a mãe responsável pelo sustento dela e do irmão, ocasionando uma brusca
mudança no padrão de vida.
VERDE relatou que conta muito com o apoio da mãe com as crianças e que, por isso,
sempre evita brigar com ela. Mas que a mãe tem uma natureza explosiva, em suas palavras
“histérica”, e isso a desestrutura. Afirmou ter um grande sentimento de culpa quando não
consegue ficar calada e acaba respondendo à mãe. “Minha mãe tira minha estabilidade
emocional, eu saio do eixo quando brigamos”, afirmou. Em uma das sessões, relatou que
estava tão estressada que teve um episódio de uma grande discussão com um entregador do
aplicativo de comidas Ifood. Ela pagou o produto, mas o entregador afirmava que ela optou
pelo pagamento na entrega. Seu celular estava descarregado e ela não conseguia contato com
a loja para comprovar o pagamento. Estava no escritório, com muita fome, e o entregador se
recusou a entregar a ela a comida. Naquele momento, ela discutiu bastante, tomou a comida e
deixou ele lá, voltando para o escritório, onde desabou em choro, reconhecendo a atitude
exagerada e sentindo-se culpada por ter tratado mal o rapaz. Na sessão, reconheceu que
descontou nele o momento de grande estresse que estava passando, com reforma em casa,
filho com dificuldades pós-cirúrgicas, filha que só dorme com ela, e o trabalho em meio à
pandemia.
ÍNDIGO expressou que, por vezes, sente-se sufocada com a mãe, mas que procura ter
paciência com ela, por se tratar de uma idosa. Relatou que, na infância, quando descobriu ter
cardiopatia, a mãe a limitava muito em tudo. Ela era uma criança muito peralta e cheia de
energia, o que causava pavor na mãe, que tinha medo dela estar forçando demais o coração e
acabar morrendo. Associou que reviveu com o filho “a dor de sua ancestralidade”, a dor que
sua mãe viveu com ela e a de sua avó, que perdeu um filho. Disse que a família materna tem
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problemas para expressar emoções e a maioria dos integrantes tem problemas cardíacos.
Falou que ela e a irmã sempre foram muito cúmplices e contavam com o apoio do pai,
tornando-se mulheres independentes. Mas agora a sobrinha tem um comportamento de grande
dependência, falta de vaidade e que tem “uma mente antiga como a da mãe”, e que por isso as
duas (avó e neta) se dão tão bem. Esse fato tem mexido muito com ela e levando-a a refletir
mais sobre suas questões com a mãe.
Na penúltima sessão, com a presença apenas de VERMELHO e ÍNDIGO, trabalhamos a
interpretação de cartas dos baralhos o Poder do Feminino, de Renata Carvalho, e Libertação
do Masculino, de Niels Koldewijn. Cada participante escolheu uma carta de cada baralho.
Inicialmente, trabalhamos o aspecto do masculino (animus):

Figura 2 — Status

Fonte: Libertação do Masculino, de Niels Koldewijn


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VERMELHO fez a leitura da carta afirmando que “os três homens estavam
comemorando suas vitórias, independente da posição conquistada. Cada um deles venceu,
mesmo com suas limitações. Suas pernas não são humanas, mas de bichos”. Relacionou as
três figuras masculinas com os homens do sonho que teve com o elevador e destacou mais
uma vez o tema do medo do poder. Afirmou que achava que não tinha características do
masculino em si, mas foi confrontada por ÍNDIGO, que afirmou que o masculino tem como
característica a provisão, algo característico de VERMELHO. Ela então concordou que é a
responsável por sair de casa para trabalhar e sustentar a sua família.

Figura 3 — Água

Fonte: Libertação do Masculino, de Niels Koldewijn


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ÍNDIGO simbolizou a carta afirmando que “o homem está envolvido pela água que se
transforma do estado de gelo para o líquido. O símbolo da neve aparece como se fosse sua
aura. Ele está feliz com seu processo de transformação. Mas ainda precisa dos óculos para
enxergar melhor as coisas”. Ela associou com o momento de mudanças e novos caminhos
que está vivendo em sua vida profissional, ligadas de igual modo com o reconhecimento de
questões internas e a necessidade de transformação.
Após a interpretação simbólica de aspectos do masculino, procedemos à leitura das
cartas do baralho do Feminino e questões do arquétipo da anima:

Figura 4 — Reflexão

Fonte: Poder do Feminino, de Renata Carvalho


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VERMELHO vibrou ao ver a carta, que traz uma mulher negra com asas, com
características físicas parecidas com as suas, como a cor da pele e o estilo atual do seu cabelo.
Ela disse que se sentiu imediatamente representada pela carta. “Ela é um anjo. Está séria pois
está sempre disposta a ajudar, embora alguns não reconheçam. Por isso aparenta estar
cansada”, disse ela, relembrando em seguida de episódios da sua adolescência. Pela primeira
vez falou de questões sobre sexualidade, relatando que não tinha noção do perigo quando deu
início à sua vida sexual, e por isso acha que sempre tinha um anjo da guarda cuidando dela.
Riu muito das histórias, por ter sido impulsiva e ter bastante iniciativa, incomum para
meninas da idade dela, mas disse que teme que sua filha possa fazer o mesmo, pois a
realidade de hoje é muito mais perigosa.

Figura 5 — Dúvida

Fonte: Poder do Feminino, de Renata Carvalho


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Inicialmente, ÍNDIGO se espantou com a imagem da carta. Disse que representa uma
mulher cujas dúvidas são como gotas da chuva que alimentam o seu florescimento. Depois
afirmou que tem vivido a angústia da dúvida sobre deixar ou não os ansiolíticos que toma
desde o nascimento do filho, quando passou pela pior fase de sua vida. Informou, muito feliz,
que na última semana o cardiologista que acompanha o menino desde bebê, o liberou das
revisões constantes e que, agora, só precisaria passar por revisões com cardiologista a cada
dois anos. Esse é um dos motivos que a encorajam a deixar os medicamentos. Mas ela ainda
não sabe como ficará sem o remédio. Citou que teve uma discussão recente com a mãe,
afirmou que ainda tem dificuldades com a “voz crítica” dela, mas tem tentado enxergá-la cada
vez mais como uma figura "humana", com seus acertos e falhas.
Conversamos, ainda neste encontro, sobre a dinâmica dos aspectos masculinos e
femininos dentro de nós, e pedi que cada uma avaliasse como se enxergam atualmente, após
quase seis meses das sessões grupais.
VERMELHO disse que reconhece muitas mudanças em sua vida, especialmente o seu
olhar sobre os seus pais, sobre o reflexo das histórias deles na sua criação, e quanto tudo isso
impactou nas suas questões mais íntimas. Hoje, reconhece que não precisa repetir a história de
vida dos antepassados e que está se sentindo mais segura para viver de forma mais livre dos
pesos do passado.
ÍNDIGO chamou a atenção para o fato de, durante as sessões, terem falado muito pouco
sobre os filhos e as particularidades deles, e muito mais sobre elas enquanto mulheres, e não
apenas como mães. Destacou que foi muito importante para elas esse olhar sobre si mesmas e
as trocas que tiveram no grupo, com temas muitas vezes comuns a todas. Para ela, foi um
processo libertador.
Para a última sessão, pedi que cada uma escolhesse ao longo da semana imagens
aleatórias e fizessem uma colagem, representando o final do processo terapêutico grupal.
Procedemos então a leitura simbólica das imagens:
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Figura 6 — Colagem de Vermelho

Fonte: Colagem da participante

VERMELHO: A imagem para ela representa as várias facetas que tem que vestir
diariamente: mãe, filha, namorada e profissional. Mas ela só quer ser ela mesma, ter seu
momento a sós, de intimidade consigo mesma. Por isso é necessário de vez em quando se
libertar das vestes e relaxar sozinha na banheira, mesmo que os outros a enxerguem como um
demônio egoísta. Escolheu a imagem da menina com a boneca pois ainda reconhece em si a
criança que foi e até hoje guarda uma boneca negra que ganhou do pai. “Era a última da loja
e ele foi lá e brigou com outra pessoa que queria comprá-la. E conseguiu trazer pra mim”.
Destacou o sonho de casar e ter uma família e, enfim, viver em um lugar que seja seu refúgio
de paz. Por fim, disse: “percebi que ter empatia é importante, mas não preciso tomar as dores
dos outros para mim. Entrei pensando de uma forma e saí pensando de outra.”
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Figura 7 — Colagem de Índigo

Fonte: Colagem da participante

ÍNDIGO: Confessou que foi um momento muito delicioso fazer a colagem das imagens,
que representam o seu momento. “Os cavalos estão bebendo água em grupo para representar
que a minha força precisa de outras forças.” Ela disse que hoje reconhece que ela não se
basta, que precisa dos outros, em especial de outras mulheres. Reconhece também que precisa
ser tratada com justiça, buscar o equilíbrio entre o dar e o receber. A imagem da família
representa o pai e a mãe que formam a casa, nossa morada interna. O coração representa a sua
história, do seu filho, dos seus ancestrais. E, por fim, o fogo é a chama acesa do momento de
transformações que está vivendo. “Foi preciso uma pandemia para eu fazer uma terapia em
grupo. Não imaginava me expor, e foi libertador. Consegui um conforto emocional que eu
nunca pensei. Vivi uma nova maternidade”, concluiu.
Nos minutos finais do último encontro, quando já estávamos nos despedindo, VERDE
ingressou na reunião, e sua participação foi festejada. Ela citou as dificuldades em participar
dos últimos encontros e confessou que precisa investir mais tempo no autoconhecimento e nas
necessárias descobertas.
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4 CONCLUSÃO

O objetivo da terapia de orientação junguiana é auxiliar o indivíduo a resgatar aquilo


que é a sua essência, impulsionando-o a tornar conscientes os padrões comportamentais e de
pensamento que o impedem de viver de acordo com aquilo que ele realmente é, que
atravancam o seu processo de individuação. Revisitar como esses padrões se constituíram,
acessar o banco de dados de lembranças e sentimentos das experiências vividas, que se
encontram no inconsciente pessoal, e como esse se relaciona com as heranças de valores
compartilhados por todos, por meio do inconsciente coletivo, são essenciais no curso do
processo terapêutico. Foi o que aconteceu ao longo dos seis meses de encontros do grupo
vivencial junguiano Um Olhar sobre a Mãe
No presente trabalho, a proposta de deitar um olhar especial sobre mulheres que
exercem a maternidade atípica, não para trabalhar a atipicidade, mas a verdade individual de
cada participante, a sua subjetividade pessoal, foi o fio condutor do processo terapêutico
grupal. O mergulho em questões inconscientes e a aproximação com complexos pessoais
ampliaram a consciência das participantes sobre diversas questões, mas, por outro lado,
também motivaram a saída daquelas mais resistentes em reconhecer e manter contato com
aspectos sombrios de suas personalidades.
A situação psíquica de cada participante foi acessada por meio de recursos simbólicos
que desnudaram conflitos que não conseguiam verbalizar, tocaram profundamente em
situações emotivas significativas e promoveram transformações criativas em suas vidas. O
acolhimento mútuo e as trocas de experiências entre as participantes renovaram a
autoconfiança de cada uma e as encorajaram ao enfrentamento de situações que limitavam o
seu desenvolvimento pessoal, despertando o interesse pelo autoconhecimento, indispensável
ao processo de individuação.
Deste modo, esse trabalho, por utilizar o recurso de terapia breve, não pretendeu
preencher todas as lacunas existentes na psique individual das participantes, mas cumpriu o
seu objetivo ao permitir que elas reconhecessem a importância de acessar as camadas mais
profundas de suas personalidades. Permitiu, ainda, abordar temas sensíveis sem medo de
julgamento, como dificuldades no relacionamento com suas mães pessoais e o impacto disso
no próprio exercício da maternidade.
Por fim, ao exercitar a capacidade reflexiva sobre si mesmas, o trabalho em grupo
permitiu que cada participante reconhecesse o quanto suas questões individuais podem
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impactar positiva ou negativamente na coletividade, e a importância de investirem no


autoconhecimento como forma de contribuírem com a própria evolução, de seus filhos e do
mundo. "Uma vez que o indivíduo não é um ser único mas pressupõe também um
relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de individuação não leva ao
isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente (JUNG, 2013,
p. 468).
Para mim, na dupla condição de terapeuta junguiana em formação e de mãe atípica, a
experiência de convívio com outras mulheres em situações e dilemas muitas vezes
semelhantes e algumas vezes antagônicas provocou uma revisita às minhas próprias questões
psíquicas, especialmente aquelas alusivas ao relacionamento com a minha mãe pessoal e ao
exercício da maternagem com o meu filho. No círculo de mulheres Um Olhar sobre a Mãe fui
muito mais "uma alma humana" acolhendo as minhas dores ao mesmo tempo em que acolhia
as dores das demais participantes; vivendo o meu próprio processo de individuação,
paralelamente às demais "mulheres-borboletas", com as quais tive a honra de dividir o "galho
da árvore" onde tecemos os nossos "casulos".
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REFERÊNCIAS

ALT, Cleide Becarini. Contos de fadas e mitos. 2. ed. São Paulo: Vetor Editora Psico-
Pedagógica, 2013.

ALVES, Elaine Gomes dos Reis. A morte do filho idealizado: The death of an idealized
child. O Mundo da Saúde. São Paulo, 2012. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/morte_filho_idealizado.pdf. Acesso em:
4 abr. 2021.

BOLEN, Jean Shinoda. O Milionésimo Círculo: Como transformar a nós mesmas e ao


mundo: um guia para Círculos de Mulheres. Tradução Elisabetta Recine. 2. ed. São Paulo:
TRIOM, 2003. Tradução de: The Millionth Circle.

FERNANDES, Ermelinda Ganem. Grupos Vivenciais Junguianos. Instituto Junguiano da


Bahia. 2019. Disponível em: https://www.ijba.com.br/grupos-vivenciais-junguianos/. Acesso
em: 18 jul. 2021.

FREITAS, Laura Villares de. Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana.
Psicologia USP. 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pusp/a/6BZ6k6Whgrvsy4YwTCR533j/abstract/?lang=pt. Acesso em:
19 jul. 2021.

GUTMAN, Laura. A maternidade e o encontro com a própria sombra. 18. ed. Rio de
Janeiro: Best Seller, 2020.

JUNG, C. G. A Natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. v. 8/2.

JUNG, C. G. Estudos Experimentais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 2.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. v.


9/1.

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. v. 6.

KAST, Verena. Pais e filhas, mães e filhos: caminhos para a auto-identidade a partir dos
complexos materno e paterno. São Paulo: Edicoes Loyola, 1997.

SARMENTO, Gisele. O Papel da Maternidade no Processo de Individuação Feminino.


2004. Disponível em: https://docplayer.com.br/144138706-O-papel-da-maternidade-no-
processo-de-individuacao-feminino.html. Acesso em: 3 jul. 2021.

SILVEIRA, Ermelinda Ganem Fernandes. Contribuições da psicologia profunda de Carl


Gustav Jung para um modelo de gestão do conhecimento nas organizações. 2012. Tese
(Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Programa de Pós-Graduação em
Engenharia e Gestão do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2012.

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