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Como chamar as pessoas que têm deficiência?

*
Romeu Kazumi Sassaki **

* Publicado no livreto Vida Independente: história, movimento, liderança, conceito, filosofia e


fundamentos. São Paulo: RNR, 2003, p. 12-16.

** Consultor de inclusão social. E-mail: romeukf@uol.com.br. Autor do livro Inclusão:


Construindo uma Sociedade para Todos (3.ed., Rio de Janeiro: Editora WVA, 1999) e do
livro Inclusão no Lazer e Turismo: Em Busca da Qualidade de Vida (São Paulo: Áurea,
2003). Co-autor do livro Trabalho e Deficiência Mental: Perspectivas Atuais (Brasília:
Apae-DF, 2003) e do livro Inclusão dá Trabalho (Belo Horizonte: Armazém de Idéias,
2000)

Em todas as épocas e localidades, a pergunta que não quer calar-se tem sido esta, com alguma
variação: “Qual é o termo correto - portador de deficiência, pessoa portadora de deficiência ou
portador de necessidades especiais?” Responder esta pergunta tão simples é simplesmente
trabalhoso, por incrível que possa parecer.

Comecemos por deixar bem claro que jamais houve ou haverá um único termo correto, válido
definitivamente em todos os tempos e espaços, ou seja, latitudinal e longitudinalmente. A razão
disto reside no fato de que a cada época são utilizados termos cujo significado seja compatível com
os valores vigentes em cada sociedade enquanto esta evolui em seu relacionamento com as pessoas
que possuem este ou aquele tipo de deficiência.

Percorramos, mesmo que superficialmente, a trajetória dos termos utilizados ao longo da


história da atenção às pessoas com deficiência, no Brasil.

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

No começo da história, “os inválidos”. O termo Aquele que tinha deficiência


durante séculos. significava “indivíduos sem era tido como socialmente
valor”. Em pleno século 20, inútil, um peso morto para a
Romances, nomes de
instituições, leis, mídia e ainda se utilizava este termo, sociedade, um fardo para a
outros meios mencionavam embora já sem nenhum família, alguém sem valor
“os inválidos”. Exemplos: “A sentido pejorativo. profissional.
reabilitação profissional visa a Outros exemplos:
proporcionar aos beneficiários Outro exemplo: “Servidor inválido pode
inválidos ...” (Decreto federal
voltar” (Folha de S. Paulo,
nº 60.501, de 14/3/67, dando “Inválidos insatisfeitos com
20/7/82).
nova redação ao Decreto nº lei relativa aos ambulantes”
48.959-A, de 19/9/60). (Diário Popular, 21/4/76). “Os cegos e o inválido”
(IstoÉ, 7/7/99).

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ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

Século 20 até ± 1960. “os incapacitados”. O termo Foi um avanço da sociedade


significava, de início, reconhecer que a pessoa com
“Derivativo para
“indivíduos sem capacidade” deficiência poderia ter
incapacitados” (Shopping
e, mais tarde, evoluiu e capacidade residual, mesmo
News, Coluna
passou a significar que reduzida.
Radioamadorismo, 1973).
“indivíduos com capacidade
“Escolas para crianças residual”. Durante várias
incapazes” (Shopping News, décadas, era comum o uso Mas, ao mesmo tempo,
13/12/64). deste termo para designar considerava-se que a
pessoas com deficiência de deficiência, qualquer que
Após a I e a II Guerras
qualquer idade. Uma variação fosse o tipo, eliminava ou
Mundiais, a mídia usava o
foi o termo “os incapazes”, reduzia a capacidade da
termo assim: “A guerra
que significava “indivíduos pessoa em todos os aspectos:
produziu incapacitados”, “Os
que não são capazes” de fazer físico, psicológico, social,
incapacitados agora exigem
algumas coisas por causa da profissional etc.
reabilitação física”.
deficiência que tinham.

De ± 1960 até ± 1980. “os defeituosos”. O termo A sociedade passou a utilizar


significava “indivíduos com estes três termos, que
deformidade” (principalmente focalizam as deficiências em
“Crianças defeituosas na Grã- física). si sem reforçarem o que as
Bretanha tem educação pessoas não conseguiam fazer
“os deficientes”. Este termo
especial” (Shopping News, como a maioria.
significava “indivíduos com
31/8/65).
deficiência” física, mental, Simultaneamente, difundia-se
auditiva, visual ou múltipla, o movimento em defesa dos
No final da década de 50, foi que os levava a executar as direitos das pessoas
fundada a Associação de funções básicas de vida superdotadas (expressão
Assistência à Criança (andar, sentar-se, correr, substituída por “pessoas com
Defeituosa – AACD (hoje escrever, tomar banho etc.) de altas habilidades” ou “pessoas
denominada Associação de uma forma diferente daquela com indícios de altas
Assistência à Criança como as pessoas sem habilidades”). O movimento
Deficiente). deficiência faziam. E isto mostrou que o termo “os
começou a ser aceito pela excepcionais” não poderia
sociedade. referir-se exclusivamente aos
Na década de 50 surgiram as “os excepcionais”. O termo que tinham deficiência
primeiras unidades da significava “indivíduos com mental, pois as pessoas com
Associação de Pais e Amigos deficiência mental”. superdotação também são
dos Excepcionais - Apae. excepcionais por estarem na
outra ponta da curva da
inteligência humana.

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ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1981 até ± 1987. “pessoas deficientes”. Pela Foi atribuído o valor


primeira vez em todo o “pessoas” àqueles que tinham
mundo, o substantivo deficiência, igualando-os em
Por pressão das organizações “deficientes” (como em “os direitos e dignidade à maioria
de pessoas com deficiência, a deficientes”) passou a ser dos membros de qualquer
ONU deu o nome de “Ano utilizado como adjetivo, sociedade ou país.
Internacional das Pessoas sendo-lhe acrescentado o
Deficientes” ao ano de 1981. substantivo “pessoas”.
A Organização Mundial de
Saúde (OMS) lançou em 1980
E o mundo achou difícil A partir de 1981, nunca mais a Classificação Internacional
começar a dizer ou escrever se utilizou a palavra de Impedimentos,
“pessoas deficientes”. O “indivíduos” para se referir às Deficiências e Incapacidades,
impacto desta terminologia pessoas com deficiência. mostrando que estas três
foi profundo e ajudou a dimensões existem
melhorar a imagem destas simultaneamente em cada
pessoas. pessoa com deficiência.

De ± 1988 até ± 1993. “pessoas portadoras de O “portar uma deficiência”


deficiência”. Termo que, passou a ser um valor
utilizado somente em países agregado à pessoa. A
Alguns líderes de de língua portuguesa, foi deficiência passou a ser um
organizações de pessoas com proposto para substituir o detalhe da pessoa. O termo foi
deficiência contestaram o termo “pessoas deficientes”. adotado nas Constituições
termo “pessoa deficiente” federal e estaduais e em todas
alegando que ele sinaliza que as leis e políticas pertinentes
a pessoa inteira é deficiente, o Pela lei do menor esforço, ao campo das deficiências.
que era inaceitável para eles. logo reduziram este termo Conselhos, coordenadorias e
para “portadores de associações passaram a incluir
deficiência”. o termo em seus nomes
oficiais.

De ± 1990 até hoje. “pessoas com necessidades De início, “necessidades


especiais”. O termo surgiu especiais” representava
O art. 5° da Resolução
primeiramente para substituir apenas um novo termo.
CNE/CEB n° 2, de 11/9/01, “deficiência” por
explica que as necessidades “necessidades especiais”. daí
especiais decorrem de três a expressão “portadores de Depois, com a vigência da
situações, uma das quais necessidades especiais”. Resolução n° 2, “necessidades
envolvendo dificuldades Depois, esse termo passou a especiais” passou a ser um
vinculadas a deficiências e ter significado próprio sem valor agregado tanto à pessoa
dificuldades não-vinculadas a substituir o nome “pessoas com deficiência quanto a
uma causa orgânica. com deficiência”. outras pessoas.

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ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

Mesma época acima. “pessoas especiais”. O termo O adjetivo “especiais”


apareceu como uma forma permanece como uma simples
Surgiram expressões como
reduzida da expressão palavra, sem agregar valor
“crianças especiais”, “alunos
especiais”, “pacientes “pessoas com necessidades diferenciado às pessoas com
especiais”, constituindo um deficiência. O “especial” não
especiais” e assim por diante
numa tentativa de amenizar a eufemismo dificilmente é qualificativo exclusivo das
aceitável para designar um pessoas que têm deficiência,
contundência da palavra
“deficientes”. segmento populacional. pois ele se aplica a qualquer
pessoa.

Em junho de 1994. “pessoas com deficiência” e O valor agregado às pessoas é


pessoas sem deficiência, o de elas fazerem parte do
quando tiverem necessidades grande segmento dos
A Declaração de Salamanca educacionais especiais e se excluídos que, com o seu
preconiza a educação encontrarem segregadas, têm poder pessoal, exigem sua
inclusiva para todos, tenham o direito de fazer parte das inclusão em todos os aspectos
ou não uma deficiência. escolas inclusivas e da da vida da sociedade. Trata-se
sociedade inclusiva. do empoderamento.

Em maio de 2002. “portadores de direitos Não há valor a ser agregado


especiais”. O termo e a sigla com a adoção deste termo,
apresentam problemas que por motivos expostos na
O Frei Betto escreveu no inviabilizam a sua adoção em coluna ao lado e nesta.
jornal O Estado de S.Paulo substituição a qualquer outro
um artigo em que propõe o termo para designar pessoas
termo “portadores de direitos que têm deficiência. O termo A sigla PODE, apesar de
especiais” e a sigla PODE. “portadores” já vem sendo lembrar “capacidade”,
Alega o proponente que o questionado por sua alusão a apresenta problemas de uso:
substantivo “deficientes” e o “carregadores”, pessoas que 1) Imaginem a mídia e outros
adjetivo “deficientes” “portam” (levam) uma autores escrevendo ou falando
encerram o significado de deficiência. O termo “direitos assim: “Os Podes de Osasco
falha ou imperfeição enquanto especiais” é contraditório terão audiência com o
que a sigla PODE exprime porque as pessoas com Prefeito...”, “A Pode Maria
capacidade. deficiência exigem de Souza manifestou-se a
equiparação de direitos e não favor ...”, “A sugestão de José
direitos especiais. E mesmo Maurício, que é um Pode,
O artigo, ou parte dele, foi que defendessem direitos pode ser aprovada hoje ...”
reproduzido em revistas especiais, o nome “portadores
especializadas em assuntos de de direitos especiais” não 2) Pelas normas brasileiras de
deficiência. poderia ser exclusivo das ortografia, a sigla PODE
pessoas com deficiência, pois precisa ser grafada “Pode”.
qualquer outro grupo Norma: Toda sigla com mais
vulnerável pode reivindicar de 3 letras, pronunciada como
direitos especiais. uma palavra, deve ser grafada
em caixa baixa com exceção
da letra inicial.

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ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De ± 1990 até hoje e além. “pessoas com deficiência” Os valores agregados às


passa a ser o termo preferido pessoas com deficiência são:
por um número cada vez
A década de 90 e a primeira maior de adeptos, boa parte
década do século 21 e do dos quais é constituída por 1) o do empoderamento [uso
Terceiro Milênio estão sendo pessoas com deficiência que, do poder pessoal para fazer
marcadas por eventos no maior evento escolhas, tomar decisões e
mundiais, liderados por (“Encontrão”) das assumir o controle da situação
organizações de pessoas com organizações de pessoas com de cada um] e
deficiência. deficiência, realizado no
Recife em 2000,
conclamaram o público a 2) o da responsabilidade de
A relação de documentos adotar este termo. Elas contribuir com seus talentos
produzidos nesses eventos esclareceram que não são para mudar a sociedade rumo
pode ser vista no final deste “portadoras de deficiência” e à inclusão de todas as
artigo. que não querem ser chamadas pessoas, com ou sem
com tal nome. deficiência.

Os movimentos mundiais de pessoas com deficiência, incluindo os do Brasil, estão debatendo o


nome pelo qual elas desejam ser chamadas. Mundialmente, já fecharam a questão: querem ser
chamadas de “pessoas com deficiência” em todos os idiomas. E esse termo faz parte do texto da
Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com
Deficiência, a ser aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 2004 e a ser promulgada
posteriormente através de lei nacional de todos os Países-Membros.

Eis os princípios básicos para os movimentos terem chegado ao nome “pessoas com
deficiência”:

1. Não esconder ou camuflar a deficiência;


2. Não aceitar o consolo da falsa idéia de que todo mundo tem deficiência;
3. Mostrar com dignidade a realidade da deficiência;
4. Valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência;
5. Combater neologismos que tentam diluir as diferenças, tais como “pessoas com capacidades
especiais”, “pessoas com eficiências diferentes”, “pessoas com habilidades diferenciadas”,
“pessoas dEficientes”, “pessoas especiais”, “é desnecessário discutir a questão das deficiências
porque todos nós somos imperfeitos”, “não se preocupem, agiremos como avestruzes com a
cabeça dentro da areia” (i.é, “aceitaremos vocês sem olhar para as suas deficiências”);
6. Defender a igualdade entre as pessoas com deficiência e as demais pessoas em termos de
direitos e dignidade, o que exige a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência
atendendo às diferenças individuais e necessidades especiais, que não devem ser ignoradas;
7. Identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir daí encontrar
medidas específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as “restrições de
participação” (dificuldades ou incapacidades causadas pelos ambientes humano e físico contra
as pessoas com deficiência).

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Conclusão

A tendência é no sentido de parar de dizer ou escrever a palavra “portadora” (como substantivo


e como adjetivo). A condição de ter uma deficiência faz parte da pessoa e esta pessoa não porta sua
deficiência. Ela tem uma deficiência. Tanto o verbo “portar” como o substantivo ou o adjetivo
“portadora” não se aplicam a uma condição inata ou adquirida que faz parte da pessoa. Por
exemplo, não dizemos e nem escrevemos que uma certa pessoa é portadora de olhos verdes ou pele
morena.

Uma pessoa só porta algo que ela possa não portar, deliberada ou casualmente. Por exemplo,
uma pessoa pode portar um guarda-chuva se houver necessidade e deixá-lo em algum lugar por
esquecimento ou por assim decidir. Não se pode fazer isto com uma deficiência, é claro.

A quase totalidade dos documentos, a seguir mencionados, foi escrita e aprovada por
organizações de pessoas com deficiência que, no atual debate sobre a Convenção da ONU a ser
aprovada em 2003, estão chegando ao consenso quanto a adotar a expressão “pessoas com
deficiência” em todas as suas manifestações orais ou escritas.

Documentos do Sistema ONU

• 1990 - Declaração Mundial sobre Educação para Todos / Unesco.


• 1993 - Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência / ONU.
• 1993 - Inclusão Plena e Positiva de Pessoas com Deficiência em Todos os Aspectos da
Sociedade / ONU.
• 1994 - Declaração de Salamanca e Linhas de Ação sobre Educação para Necessidades Especiais
/ Unesco.
• 1999 - Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala) / OEA.
• 2001 - Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF) / OMS, que
substituiu a Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e Incapacidades
/ OMS, de 1980.
• 2003 - Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das
Pessoas com Deficiência / ONU.
Documentos de outros organismos mundiais
• 1992 - Declaração de Vancouver.
• 1993 - Declaração de Santiago.
• 1993 - Declaração de Maastricht.
• 1993 - Declaração de Manágua.
• 1999 - Carta para o Terceiro Milênio.
• 1999 - Declaração de Washington.
• 2000 - Declaração de Pequim.
• 2000 - Declaração de Manchester sobre Educação Inclusiva.
• 2002 - Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão.
• 2002 - Declaração de Madri.
• 2002 - Declaração de Sapporo.
• 2002 - Declaração de Caracas.
• 2003 – Declaração de Kochi.
• 2003 – Declaração de Quito.

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