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A glória

da oração

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“The Glory of Prayer”
Copyright © 2011 by Assembly Testimony,
49 Glenburn Rd, Dunmurry, Belfast, BT 17 9AN, N Ireland.

Tradução: Samuel R. Davidson


Correção: M. Janeta M. Watterson
Primeira edição brasileira — Setembro 2017

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A Gloria da oração / Assembly Testimony ; [tradução
Samuel R. Davidson]. -- Pirassununga, SP : Editora
Sã Doutrina, 2017.

Título original: The glory of prayer.

1. Bíblia - Crítica e interpretação 2. Bíblia -


Orações I. Assembly Testimony.

ISBN 978-85-5510-021-5

17-08395 CDD-242.722

Índices para catálogo sistemático:


1. Bíblia : Orações 242.722
2. Orações bíblicas 242.722

Publicado no Brasil com a devida autorização, e com todos os direitos reservados.


© 2017 Editora Sã Doutrina — Caixa Postal 241 — Pirassununga-SP
CEP 13630-970 — www.sadoutrina.com

Edição, diagramação e publicação: Editora Sã Doutrina


Impressão: Suprema Gráfica e Editora
A glória
da oração
Abreviações
ARC ������������Bíblia, versão Almeida Revista e Corrigida (4ª ed, 2009)
ARA ������������Bíblia, versão Almeida Revista e Atualizada (1958)
AT ���������������Bíblia, versão Almeida Trinitariana (1994)
AV ���������������Bíblia, Authorized Version (inglês)
IBB �������������Bíblia, versão da Imprensa Bíblica Brasileira (1977)
JND �������������Bíblia, versão de J. N. Darby (inglês)
VB ���������������Bíblia, versão Edição Brasileira (1924)
LXX �������������Versão Septuaginta do Velho Testamento (grego)
H. e C. ���������Hinos e Cânticos, 16ª Edição (1981)
cap.  �������������Capítulo
caps.  �����������Capítulos
v.  �����������������Versículo
vs. ���������������Versículos
a.C. �������������Antes de Cristo
a.D. �������������Anno Domini (depois de Cristo)
N.T. �������������Nota de Tradução (nota acrescentada à esta edição,
ausente na edição em inglês)

Todas as Escrituras citadas neste livro são da versão Corrigida e


Revisada Fiel ao texto Original, da Sociedade Bíblica Trinitariana
(AT), exceto quando indicado. O uso de outras versões da Bíblia nesta
publicação não implica o endosso destas versões na sua totalidade.
Índice
Abreviações....................................................................4

Prefácio à edição em inglês..............................................7

Preâmbulo.......................................................................9

Cap. 1 — Introdução.....................................................11

Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó...............33

Cap. 3 — As orações de Moisés.....................................50

Cap. 4 — As orações de Davi........................................74

Cap. 5 — As orações de Salomão..................................93

Cap. 6 — As orações de Esdras..................................104

Cap. 7 — As orações de Neemias................................122

Cap. 8 — As orações de Daniel....................................138

Cap. 9 — A oração dos discípulos................................150

Cap. 10 — As orações do Senhor


no Evangelho de Lucas....................................170

Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17........181

Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos...............196

Cap. 13 — As orações de Paulo...................................217


Prefácio à edição em inglês
A boa aceitação dos livros anteriores e as palavras de apreciação
vindas de tantos lugares nos encorajaram a continuar com a publicação
dos livros da série “A Glória …”. Para decidir qual assunto deveria ser
abordado neste livro, buscamos muito a ajuda do Senhor e refletimos
bastante. Foi considerado que deveríamos tratar de algo que é parte
integrante da vida cristã e aparentemente tão negligenciado, isto é, o
assunto da vida de oração do cristão. A quantidade de exposições úteis
disponíveis parece muito limitada. Muitos livros examinam experiên-
cias de cristãos fieis que tiveram suas orações respondidas. Embora isto
possa ser muito encorajador, precisamos ir além da experiência humana,
e edificar a nossa vida com Deus sobre a rocha sólida das Escrituras,
como a entendemos, pelo poder esclarecedor do Espírito Santo.
É, mais uma vez, o nosso desejo que os salvos sejam desafiados e
edificados como resultado desta publicação. Almejamos que uma co-
munhão mais profunda e uma vida mais sincera de dependência em
Deus seja o resultado de compreender as verdades contidas nas páginas
que seguem.
Para manter o livro dentro dos seus limites foi necessário omitir
algumas orações registradas na Bíblia, que poderiam ter destacado áreas
de verdade que o leitor pode considerar de extrema importância. Entre
as muitas omissões óbvias estão a oração de Jabez, as orações de Elias e
de mulheres piedosas, mas não fazemos qualquer reivindicação de que
este livro seja uma exposição completa do assunto. Pedimos desculpas
pelas incontestáveis falhas no livro. Procuramos ser seletivos para que
as verdades principais necessitando uma exposição fossem abrangidas,
e talvez mais de uma vez. Visto que cada capítulo tem um escritor di-
ferente, e que eles não leram as contribuições uns dos outros, é provável
que haja repetição, mas não consideramos isto, necessariamente, uma
falha.
Mais uma vez queremos agradecer a todos os escritores que, de bom
grado, deram do seu tempo valioso para contribuir com mais um livro.
Sem a sua ajuda estes volumes não seriam possíveis. As horas passadas
a sós, ao invés de com a família, geralmente não são reconhecidas pelos
outros, mas nós sabemos que todo sacrifício para o Senhor e o Seu povo
será plenamente recompensado naquele dia vindouro de juízo. Agrade-
cemos também a comunhão prática recebida, que possibilita a publica-
ção destes livros e sua distribuição gratuita.
O trabalho editorial, as correções gramaticais e a consistência de
apresentação são assuntos que levam horas de leitura e muita concen-
tração. Portanto novamente expressamos os nossos agradecimentos ao
irmão Roy Reynolds, que tem a responsabilidade principal do trabalho
editorial, ao nosso irmão Walter Boyd e às nossas irmãs Ruth Nesbitt e
Joana Currie, que foram muito diligentes em garantir que apresentemos
aos nossos leitores um livro do qual não precisamos nos envergonhar.
Brian Currie, Irlanda do Norte, Janeiro de 2013

Prefácio à edição em português


Desde 2011 temos publicado anualmente um livro desta série “A glória
…”. Já estão disponíveis “A glória da Sua graça”, “A glória do Filho”, “O
Espírito da glória”, “A glória de Deus o Pai”, “A glória da igreja local”, e
“A glória de mulheres piedosas”. Todos os livros foram publicados e distri-
buídos gratuitamente, graças à generosidade dos irmãos responsáveis pela
revista Assembly Testimony, na Irlanda do Norte, que tem o desejo de ajudar
as igrejas locais no Brasil e em outros países de língua portuguesa.
Dando sequência à série, lançamos agora o sétimo volume: “A glória da
oração”. Começando com as orações de Abraão, Isaque e Jacó em Gênesis
e avançando até as orações de Paulo no NT, diversas orações da Bíblia são
analisadas. Os caps. 10 e 11 analisam as orações no nosso amado Senhor
e Salvador Jesus Cristo. Muitas lições práticas são destacadas, tanto em
relação às orações individuais quanto coletivas.
Agradecemos aos responsáveis pela revista Assembly Testimony pela sua
cooperação tão importante nesta obra, e pelos irmãos e irmãs que volunta-
riamente usaram seu tempo e talentos nas diversas fases de produção deste
livro. Principalmente, agradecemos a Deus pela oportunidade que Ele nos
deu, através dos Seus servos na Irlanda do Norte e no Brasil, de oferecer
este livro gratuitamente aos nossos irmãos e irmãs no Brasil, Portugal e
Angola.

Pirassununga, Setembro de 2017


Preâmbulo
Uma das maiores maravilhas do Universo deve ser o fato que nós,
que somos somente “pó e cinza”, não somente temos permissão, mas
somos encorajados e convidados a falar com Deus; e que palavras fala-
das na Terra são ouvidas instantaneamente no Céu, e que nosso Pai está
disposto a responder estas orações. Será possível que nossos fracos ge-
midos podem mover o braço onipotente do Todo-Poderoso? Somente
a eternidade revelará quanto foi realizado pela fiel, frequente e fervorosa
oração do povo de Deus, em todas as gerações. “A oração feita por um
justo muito pode em seus efeitos” (Tg 5:16)
A oração atrai a atenção do Todo-Poderoso e capta o poder do
Onipotente, e muitas vezes nos perguntamos como sobreviveríamos “se
santos sofredores não tivessem um trono de graça”. George Muller, que
provou a fidelidade infalível de Deus, disse o seguinte sobre a oração:
“Eu fui ao meu Deus e orei diligentemente, e eu recebi o que precisava”.
A oração tem sido a característica comum de todos aqueles que têm
feito proezas pelo potente poder de Deus.
Neste presente volume será enfatizada, e com razão, a vida de ora-
ção do Senhor Jesus, porque Ele foi o exemplo perfeito de oração. A
oração era parte integrante da Sua vida, uma característica que se des-
taca na Sua comunhão ininterrupta com o Seu Pai; João cap. 17 vem
à mente como um exemplo supremo daquilo que caracterizava a Sua
experiência diária aqui no mundo. Nós não somente nos lembramos
daquele que, “nos dias da sua carne”, ofereceu, “com grande clamor e lá-
grimas, orações e súplicas” (Hb 5:7), mas também de quão dependentes
somos da Sua incessante intercessão por nós à destra do Pai.
Também expressamos nossa gratidão a todos os escritores que, com
grande sacrifício pessoal, se esforçaram para nos trazer seu trabalho
proveitoso e valioso; trabalho este que representa horas de comprome-
timento e estudo disciplinado. Ninguém diria que esta obra é uma con-
sideração completa do importante assunto de oração, mas publicamos
este volume com o desejo sincero de que todos nós, de modo crescente,
nos tornemos homens e mulheres de oração. Que possamos vir a com-
preender, com mais clareza, que Deus de fato ouve a oração (Sl 65:2),
e que Ele está disposto a responder; “Deus é … galardoador dos que o
buscam” (Hb 11:6).
Mas há um poder que a fé pode exercer,
Quando ajuda mortal é vã,
Para obter aquele olhar, aquele braço, aquele amor,
E alcançar aquele ouvido atento.

Este poder é a oração, que voa alto


Por meio de Jesus até o trono,
E move a mão que move o mundo,
Para trazer-nos libertação. (James C. Wallace)*

Roy Reynolds, Irlanda do Norte, Setembro de 2011

* Tradução literal; o original diz: “But there’s a power which faith can wield/When mortal aid is
vain,/That eye, that arm, that love to reach,/That listening ear to gain.//That power is prayer,
which soars on high,/Through Jesus to the throne,/And moves the hand which moves the world,/
To bring deliverance down.” (N. T.)
Cap. 1 — Introdução
Por Brian Currie, Irlanda do Norte

Preâmbulo
Orar a Deus é um dos sinais de verdadeira conversão. Isso nos lem-
bra do que é dito sobre Saulo de Tarso logo depois da sua conversão: “…
ele está orando” (At 9:11). Talvez antes disso ele orava, usando palavras
relacionadas com a liturgia, mas é incerto se ele orava de verdade. É
verdade que todos nós começamos a nossa vida espiritual com um de-
sejo interior e uma oração, que foi um clamor por salvação. Assim foi o
começo da vida espiritual do publicano em Lucas 18:10.
Sem dúvida, a oração é o ar natural que um cristão respira, e, no
entanto, é algo muito negligenciado por muitos que se chamam cris-
tãos. Outros apreciam o valor da oração. Foi Alfred Lord Tennyson que
escreveu no século XIX: “Muito mais é conseguido pela oração do que
este mundo imagina” (The Idylls of the King). E. M. Bounds, no século
XX, afirmou*: “Quanto mais oração houver no mundo, melhor será o
mundo”. Numerosas citações poderiam ser dadas aqui para demonstrar
que muitas pessoas, de todas as classes sociais, tiveram uma percepção
da importância e do poder da oração. Neste capítulo tentaremos apre-
sentar o vasto assunto de oração e lançar uma base para os capítulos que
seguirão.

O privilégio da oração
Há pessoas que não dão muita importância à oração. Podemos no-
tar isto pela atitude informal que adotam, vista na sua linguagem irre-
verente e na sua postura desrespeitosa. O fato que, em oração, estamos
nos aproximando do “Alto e Sublime, que habita na eternidade, e cujo
nome é Santo” (Is 57:15), deve reger nossa maneira de nos aproximar
dEle. No Velho Testamento o privilégio do sacerdócio, que havia sido
concedido à nação de Israel depois da sua redenção do Egito (Êx 19:6),
foi retirado, e a tribo de Levi em geral, e a família de Arão especifica-
mente, foram escolhidas para gozar deste grande privilégio. Parece que
* BOUNDS, E. M. Prayer. Whitaker House, 1997.
12 A glória da oração

inicialmente Arão tinha acesso à presença de Deus a qualquer hora, mas


depois do julgamento de Nadabe e Abiú, que “ofereceram fogo estranho
perante o Senhor” (Lv 10:1), este acesso foi limitado: “E falou o Senhor
a Moisés, depois da morte dos dois filhos de Arão, que morreram quan-
do se chegaram diante do Senhor. Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize
a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para
dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que
não morra; porque eu aparecerei na nuvem sobre o propiciatório” (Lv
16:1-2). Isso enfatiza o temor reverente que é devido ao nosso Deus, e
também o grande privilégio que temos de nos aproximar dEle.
Nesta era presente da igreja, Deus tem dado aos cristãos o que Israel
perdeu, e agora cada salvo é parte do “sacerdócio santo” que tem a honra
de “oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (I
Pe 2:5). Todos que são nascidos de novo fazem parte deste sacerdócio,
e não existe mais distinção entre os que podem se aproximar do trono e
os que não podem. A linguagem é muito clara: “Porque por Ele ambos
temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito” (Ef 2:18). Devemos ob-
servar que neste versículo a Trindade toda está envolvida em abrir esse
acesso a nós. Também, em Hebreus 10:19, 20 e 22 lemos: “Tendo, pois,
irmãos, ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus, pelo novo
e vivo caminho que Ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela Sua carne
… cheguemo-nos”. Que convite! Que privilégio!

O propósito da oração
Uma pergunta pode surgir: “Por que devemos orar?” Na vida do
cristão há duas grandes influências, a Palavra de Deus e a oração. D. L.
Moody disse:
Se lemos a Palavra, mas não oramos, podemos nos tornar orgu-
lhosos com o conhecimento que adquirimos, sem ter o amor que
edifica. Se oramos sem ler a Palavra, não conheceremos a mente e a
vontade de Deus, e nos tornaremos místicos e fanáticos, e sujeitos a
sermos levados por qualquer vento de doutrina.*

Assim, para termos uma vida espiritual equilibrada, precisamos ter


tempo para a Palavra e para a oração; e de fato, a Palavra frequente-
mente nos exorta a orar. Paulo afirma que a oração precisa ser “feita” (I
Tm 2:1). Assim a oração não é uma experiência etérea, ilusória, na qual

* MOODY, D. L. Prevailing Prayer.Chicago: Moody Press, 1980.


Cap. 1 — Introdução 13

alguma ideia inconsistente flutua até o Céu. A oração é a comunhão in-


teligente com Deus, na qual fazemos “deprecações, orações, intercessões
e ações de graças” (I Tm 2:1). Isso exige concentração e a necessidade de
manter o nosso foco espiritual e excluir toda distração, e provavelmente
é por isso que, geralmente, fechamos os nossos olhos quando oramos.
O Senhor Jesus nos deu o exemplo
Aquele que é o nosso grande exemplo, em todos os aspectos da vida,
foi caracterizado pela oração durante toda a Sua vida. Se Ele precisava
orar, quanto mais nós precisamos deste exercício santo? Selecionare-
mos alguns dos muitos exemplos que encontramos nos Evangelhos. Ele
orou:
• no Seu batismo: “E aconteceu que … sendo batizado também Je-
sus, orando Ele, o céu abriu …” (Lc 3:21);
• na Sua transfiguração: “E, estando ele orando, transfigurou-se a
aparência do seu rosto” (Lc 9:29);
• no Getsêmani: “E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se
sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe
de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como Tu
queres” (Mt 26:39).
Assim, Ele nos deixou o exemplo: às vezes, precisamos ficar sozi-
nhos para orar: “E, despedida a multidão, subiu ao monte para orar, à
parte. E, chegada já a tarde, estava ali só” (Mt 14:23). Ele mostrou, tam-
bém, a validade de orar por um indivíduo: “Eu roguei por ti, para que a
tua fé não desfaleça …” (Lc 22:32). A vida de oração do Senhor Jesus é
considerada também nos caps. 10 e 11 deste livro.
O Senhor Jesus nos exortou a orar
“E contou-lhes também uma parábola sobre o dever de orar sem-
pre, e nunca desfalecer” (Lc 18:1). Este foi o comentário inicial da pa-
rábola da viúva que veio a um juiz injusto e recebeu uma resposta, por
causa da sua insistência: “Todavia, como esta viúva me molesta, hei de
fazer-lhe justiça, para que enfim não volte e me importune muito” (Lc
18:5). Assim, somos ensinados a não desfalecer em oração.
Realmente é uma grande prova da Sua graça que o Senhor deseja
ouvir as nossas orações! “Pomba minha, que andas pelas fendas das pe-
nhas, no oculto das ladeiras, mostra-me a tua face, faze-me ouvir a tua
14 A glória da oração

voz, porque a tua voz é doce e a tua face graciosa” (Ct 2:14).
Ele ensinou os Seus a orar: “Portanto, vós orareis assim …” (Mt
6:9). Ele os encorajou a orar para que mais trabalhadores fossem en-
viados à obra do Senhor: “Rogai, pois, ao Senhor da seara, que mande
ceifeiros para sua ceara” (Mt 9:38). Eles foram ensinados que a oração
é necessária para se obter sucesso no serviço: “Mas esta casta de demô-
nios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum” (Mt 17:21). Eles
deveriam orar com fé: “E, tudo que o que pedirdes na oração, crendo, o
recebereis” (Mt 21:22).
O Pai espera que oremos
Todos que nasceram na família de Deus podem chamar Deus de
“Pai”. É assim que aqueles que estão próximos e em comunhão com
Deus se dirigem a Ele. As epístolas do Novo Testamento nunca nos
ensinam a usar o título “Pai Celestial” em oração. Este título é mais
apropriado para um povo terrestre, não para aqueles que, no propósito
divino, já estão assentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus (Ef
2:6).
Enquanto estava com os Seus no cenáculo, o Senhor Jesus lhes en-
sinou: “Tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vo-lo há de
dar” ( Jo 16:23). Ele também ensinou a mulher de Samaria sobre quem
deve ser adorado: “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai pro-
cura a tais que assim O adorem” ( Jo 4:23). Ele mesmo frequentemente
chamou Deus de Seu Pai: “Pai, glorifica o teu nome” ( Jo 12:28); “Pai,
é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te
glorifique a ti” ( Jo 17:1); “Pai, se queres, passa de mim este cálice; toda-
via não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22:42); “Pai, perdoa lhes,
porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34); “Pai, nas tuas mãos entrego
o meu espírito” (Lc 23:46).
Não podemos errar se seguirmos o Seu exemplo, e assim é normal
para os cristãos chamarem Deus de “Pai”. “E, se invocais por Pai aquele
que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um” (I Pe
1:17). Paulo declarou: “Por causa disto me ponho de joelhos perante o
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 3:14), e depois ensinou: “Dando
sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo” (Ef 5:20).
Cap. 1 — Introdução 15

O Espírito ajuda a orar


Paulo nos ensina que quando recebemos o Espírito Santo, no mo-
mento da nossa salvação, nós nos tornamos filhos de Deus, e uma prova
disso é que, “porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espí-
rito de Seu Filho, que clama: Aba Pai” (Gl 4:6). Esta verdade de filiação
íntima também é ensinada em Romanos 8:15: “Porque não recebestes
o espírito de escravidão, para novamente estardes em temor, mas rece-
bestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai”.
Esta habitação do Espírito Santo em nós, e do Seu pleno conhecimento
da nossa necessidade, permite que Ele interceda por nós quando não
podemos expressar bem os nossos pensamentos: “Porque não sabemos
o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede
por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8:26).
O apóstolo Paulo encoraja a orar
Muitas referências bíblicas poderiam ser acrescentadas para mos-
trar que o apóstolo Paulo incentiva os salvos a orar, e mostra que isto é
uma parte integrante da experiência cristã. Ele nos exorta: “Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam, em tudo, co-
nhecidas diante de Deus pela oração e súplica, com ação de graças (Fp
4:6); “Alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai
na oração” (Rm 12:12); “Orando em todo o tempo com toda a oração e
súplica no Espírito” (Ef 6:18); “Perseverai na oração, velando nela com
ação de graças” (Cl 4:2); “Orai sem cessar” (I Ts 5:17). Ele trouxe isso
à esfera da reunião de oração quando ele escreveu: “Admoesto-te, pois,
antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações
de graças, por todos os homens” (I Tm 2:1).
Não somente Paulo, mas Tiago também, em Tiago 5:13, 18; Pedro
em I Pedro 3:7, 12; 4:7; 5:7, e João em I João 1:9; 3:22; 5:14-16; e Judas
no v. 20, encorajam os santos neste assunto de oração.
A obra de Deus estimula a orar
Já notamos que o Senhor Jesus disse aos Seus discípulos: “Rogai ao
Senhor da seara, que mande ceifeiros para a sua seara” (Mt 9:38). Isto é
refletido no desejo dos apóstolos de saber quem deveria substituir Judas:
“E, orando, disseram: Tu, Senhor, conhecedor dos corações de todos,
mostra qual destes dois tens escolhido” (At 1:24). Quando eram perse-
16 A glória da oração

guidos, o recurso dos salvos era a oração: “E, tendo orado, moveu-se o
lugar em que estavam reunidos; e todos foram cheios do Espírito San-
to, e anunciavam com ousadia a palavra de Deus” (At 4:31). A oração
acompanhava o ministério da Palavra: “Mas nós perseveraremos na ora-
ção e no ministério da palavra” (At 6:4). O apóstolo Paulo reconheceu
que as orações dos coríntios ajudariam a obra de Deus: “… em quem
esperamos que também nos livrará ainda. Ajudando-nos, também vós
com orações por nós …” (II Co 1:10-11). A oração pela obra de Deus,
em seus vários aspectos, pode ser vista em Atos, e o cap. 12 deste livro
mostrará, mais detalhadamente, este aspecto da oração.
Pedidos a Deus explicam o que é orar
As orações dos santos ilustram bem o assunto da nossa vida de
oração, e podemos discernir o seguinte:
Orar é uma expressão de dependência
Quando nos aproximamos de Deus é nossa incumbência reconhe-
cer a Sua grandeza e a nossa fraqueza. Davi sabia que não foi seu pró-
prio poder que o livrou de Saul: “Na angústia invoquei ao Senhor, e
clamei ao meu Deus; desde o seu templo ouviu a minha voz, aos seus
ouvidos chegou o meu clamor …” (Sl 18:6). Asafe escreveu: “E invoca-
-me no dia da angústia; e eu te livrarei, e tu me glorificarás” (Sl 50:15).
Esta verdade é facilmente vista na oração de Jônatas: “Vem, passemos
à guarnição destes incircuncisos; porventura operará o Senhor por nós,
porque para com o Senhor nenhum impedimento há de livrar com mui-
tos ou com poucos” (I Sm 14:6). Asa revelou o mesmo espírito quando
ele demonstrou a sua confiança em Deus: “E Asa clamou ao Senhor
seu Deus e disse: Senhor, nada é para ti ajudar, quer o poderoso quer
o de nenhuma força, ajuda-nos, pois Senhor nosso Deus, porque em ti
confiamos, e no teu nome viemos contra esta multidão” (II Cr 14:11).
Foi assim também com Ezequias: “Com ele está o braço de carne, mas
conosco o Senhor nosso Deus, para nos ajudar, e para guerrear por nós”
(II Cr 32:8). Isaías encorajou o povo quando escreveu: “Dá força ao
cansado, e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor” (40:29).
O mesmo acontece no Novo Testamento quando Paulo se lembrou das
palavras do Senhor a ele: “A minha graça te basta, porque o meu poder
se aperfeiçoa na fraqueza … Porque quando estou fraco então sou forte”
(II Co 12:9-10).
Cap. 1 — Introdução 17

Orar expulsa a hipocrisia


É possível agir com hipocrisia na pregação, no ensino, nas boas
obras, mas não na oração. Na Sua presença precisamos ser sinceros e
honestos. É solene ler: “Todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos
daquele com quem temos de tratar” (Hb 4:13). Davi instruiu Salomão:
“Esquadrinha o Senhor todos os corações, e entende todas as imagina-
ções dos pensamentos …” (I Cr 28:9). O Senhor disse de Si mesmo:
“Esquadrinho o coração e provo os rins” ( Jr 17:10).
Orar manifesta o sacerdócio
Às vezes homens afirmam que não podem orar publicamente por-
que não são tão capacitados quanto outros, e não podem se expressar
tão eloquentemente como eles. Isso sugere que a oração é um dom de
Deus, como o evangelismo, o ensino, etc., entretanto, não é assim. Não
existe o dom de orar; oração é o privilégio de todos que são nascidos de
novo. Como já mencionamos, toda a família dos remidos tem o direito
de chamar Deus de Pai e de entrar na Sua presença a todo tempo e
em todas as circunstâncias. Nosso único Mediador é o Senhor Jesus
Cristo. Ele disse: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” ( Jo 14:6). O
ensino apostólico é claro: “Dando sempre graças por tudo a nosso Deus
e Pai, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5:20); “Fazei tudo
em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3:17).
Assim, na era presente, o normal é falar ao Pai, por meio do Filho, no
poder do Espírito Santo. Não precisamos de homens, nem santos, nem
anjos para dar-nos acesso ao Pai. Cada cristão tem “ousadia para entrar
no santuário, pelo sangue de Jesus” (Hb 10:19).
Orar estimula a comunhão
Robert Murray McCheyne (1813-1843) disse que a oração é o elo
que liga a Terra com o Céu. Este elo, que representa a comunhão, talvez
seja uma das maiores bênçãos que flui da oração. Não é tanto para ga-
rantir que Deus responda quando pedimos uma vida sem preocupações
e dores, mas para nos levar a uma comunhão mais íntima com Deus,
para que possamos apreciar as Suas obras soberanas de um modo mais
inteligente e espiritual. É pela leitura da Palavra de Deus e pela oração
que podemos discernir a Sua vontade e assim orar de maneira aceitável,
pedindo aquilo que está em harmonia com a Sua vontade.
18 A glória da oração

Obviamente, para gozarmos da presença de Deus precisamos estar


em harmonia com o Seu caráter, e assim santidade de vida é necessária
para todos os que desejam se aproximar de Deus, que é três vezes santo.
Esta consideração será detalhada mais adiante neste capítulo, sob o tí-
tulo Obstáculos à Oração.

A persistência na oração
Somos encorajados a mostrar certa persistência quando oramos —
não somente pedir uma vez e nunca mais repetir aquele pedido espe-
cífico.
O ensino do Salvador
Os discípulos vieram ao Senhor Jesus com o pedido: “Senhor, en-
sina-nos a orar …” (Lc 11:1). Ele os atendeu com a oração: “Pai nosso
que estás nos céus …” Em seguida Ele contou uma parábola que con-
trasta a reação negativa de um homem que já estava confortavelmente
deitado em sua cama, e a resposta de um Deus bondoso e amoroso.
Com isso, os filhos de Deus são encorajados a vir com seus pedidos, e
a persistir em vir. Assim o Senhor acrescentou: “Pedi, e dar-se-vos-á;
buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á” (v. 9). Rotherham transmite
bem a ideia no original com sua tradução: “Estejam pedindo, e dar-se-
-vos-á; estejam buscando, e achareis; estejam batendo, e abrir-se-vos-á”.
Esta atitude traz a promessa de coisas boas. Um pai humano não daria
ao seu filho uma pedra que é dura; ou uma serpente que é perigosa; ou
um escorpião que é doloroso. Em contraste com o pai humano está a
bondade insuperável de Deus com os Seus filhos.
O Senhor Jesus novamente ensinou os Seus sobre a persistência
em oração: “E contou-lhes também uma parábola sobre o dever de orar
sempre, e nunca desfalecer” (Lc 18:1). Esta passagem é sobre uma viú-
va que pedia justiça: “Faze-me justiça contra o meu adversário” (v. 3).
Embora esta não seja a atitude correta dos salvos no dia da graça, o
princípio que está sendo ensinado é que precisamos ser persistentes na
oração. O juiz era indiferente, insensível e indolente em relação à situa-
ção daquela viúva, mas ela conseguiu o que queria pela sua persistência.
Se alguém de caráter tão duro agiu, como podemos duvidar da resposta
do nosso Deus, que é um Juiz justo e que cuida especialmente das viúvas
e dos oprimidos?
Cap. 1 — Introdução 19

O exemplo do Salvador
Seria difícil achar uma cena mais comovente do que a do Salvador
prostrado em oração no Jardim de Getsêmani. Provavelmente, a melhor
maneira de apreciar esta cena é simplesmente ler Mateus 26:36-44, em
espírito de adoração. Note especialmente o v. 44: “E, deixando-os de
novo, foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras”.
O exemplo do apóstolo Paulo
Paulo recebeu um “espinho na carne” (II Co 12:7). Ele relata: “Acer-
ca do qual, três vezes orei ao Senhor para que se desviasse de mim” (v.
8). Ele recebeu uma resposta, mas não foi a resposta que ele queria: “E
disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na
fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para
que em mim habite o poder de Cristo” (v. 9). Paulo persistiu até que
sua oração foi respondida, e quando ele se tornou cônscio da vontade
de Deus sobre o seu pedido, o assunto foi encerrado. Este caso ilustra
o fato que haverá situações na vida quando aprenderemos que a oração
não muda as circunstâncias, mas muda a minha atitude nas circunstân-
cias. É dito que a oração muda as coisas, mas em casos como o de Paulo
podemos dizer que a oração muda a pessoa.
O ensino do apóstolo Paulo
As seguintes passagens já foram citadas, mas são repetidas aqui para
enfatizar o valor da persistência em oração: “Perseverai na oração” (Rm
12:12); “Orando em todo o tempo com toda a oração e súplica no Espí-
rito” (Ef 6:18); “Perseverai em oração, velando nela com ação de graças”
(Cl 4:2); “Orai sem cessar” (I Ts 5:17).
O exemplo dos santos
Descobrimos que todas as pessoas que estiveram em contato com
Deus, tanto no Velho como no Novo Testamento, tinham uma vida de
oração consistente.
No Velho Testamento, Samuel disse: “E quanto a mim, longe de
mim que eu peque contra o Senhor, deixando de orar por vós” (I Sm
12:23). Davi escreveu: “De tarde e de manhã e ao meio dia orarei; e
clamarei, e ele ouvirá a minha voz” (Sl 55:17). Lemos de Daniel que
“três vezes no dia se punha de joelhos, e orava, e dava graças diante do
20 A glória da oração

seu Deus” (Dn 6:10).


No Novo Testamento a persistência em oração era uma caracterís-
tica da comunhão cristã. A última vez que lemos sobre Maria, a mãe do
Senhor, é em Atos 1:14: “Todos estes perseveravam unanimemente em
oração e súplicas, com as mulheres, e Maria mãe de Jesus, e com seus
irmãos”. Era também uma característica dos novos convertidos: “Foram
batizados os que de bom grado receberam a sua palavra … e perseve-
ravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e
nas orações” (At 2:41-42). Paulo afirmou: “Por esta razão, nós também,
desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós” (Cl 1:9).
Ele escreveu de Epafras: “… combatendo sempre por vós em orações”
(Cl 4:12).
Assim podemos orar cada manhã: “Pela manhã ouvirás a minha
voz, ó Senhor; pela manhã apresentarei a ti a minha oração e vigiarei”
(Sl 5:3), ou a noite: “E, perto da meia noite, Paulo e Silas oravam e
cantavam hinos a Deus” (At 16:25); ou a qualquer hora do dia podemos
imitar estes exemplos práticos.
Naqueles dias dos apóstolos, a reunião de oração nunca seria con-
siderada menos importante do que as outras reuniões da igreja. É triste
quando a reunião de oração é a reunião menos frequentada. Se após-
tolos, nos dias quando Deus agiu com grande poder, precisavam orar,
quanto mais nós precisamos nos apegar a Deus nestes dias difíceis!

Pessoas que oram


Alguns pensam que somente líderes, pregadores, missionários, pro-
fessores de escola dominical, etc. precisam orar. Encontramos nas Es-
crituras a resposta à pergunta: “Quem deve orar?”
Os jovens oram — Samuel orou: “Fala, porque o teu servo ouve” (I
Sm 3:10). Os idosos oram — Ana “era viúva, de quase oitenta e quatro
anos, e não se afastava do templo, servindo a Deus em jejuns e orações,
de noite e de dia” (Lc 2:37). Homens sofrendo oram — “e, perto da
meia noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus” (At 16:25).
Homens que estão morrendo oram — Estevão disse: “Senhor Jesus,
recebe o meu espírito. E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz:
Senhor, não lhes imputes este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu”
(At 7:59). Nestes exemplos vemos que homens e mulheres devem orar.
Ana é um exemplo especial de uma mulher que orava: “Ela, pois, com
amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente” (I Sm
Cap. 1 — Introdução 21

1:10). Servos oram — “Ó Senhor, Deus de meu senhor Abraão, dá-me


hoje bom encontro, e faze beneficência ao meu senhor Abraão!” (Gn
24:12). Líderes oram — Moisés: “Agora, pois, se tenho achado graça
aos teus olhos, rogo-te que me faças saber o teu caminho, e conhecer-
-te-ei, para que ache graça aos teus olhos” (Êx 33:13). Profetas oram —
Elias orou: “Então se estendeu sobre o menino três vezes, e clamou ao
Senhor, e disse: Ó Senhor meu Deus, rogo-te que a alma deste menino
torne a entrar nele” (I Rs 17:21); Eliseu orou — “Então entrou ele, e
fechou a porta sobre eles ambos, e orou ao Senhor” (II Rs 4:33).
Estes são apenas alguns exemplos para mostrar que cada membro
da família da fé deve orar. Os próximos capítulos deste livro tratarão
destas e de muitas outras orações Bíblicas.

Lugares de oração
A oração pode ser feita em qualquer lugar. Um santuário terrestre
ou “terra consagrada” não são necessários. Deus sempre está disponível
quando entramos no santuário celestial e desfrutamos da nossa posição
como parte do sacerdócio santo (I Pe 2:5). Há muitos exemplos, e os
que seguem são apenas amostras representativas. Jacó orou num campo
(Gn 28:20; 32:9); Elias num quarto de dormir (I Rs 17:20) e no monte
Carmelo (I Rs 18:37); Neemias orou no palácio do rei (Ne 2:4); Jonas,
no ventre do peixe ( Jn 2:1); Habacuque orou numa torre de vigia (Hc
2:1, 3:1); parece que Natanael orou debaixo de uma figueira ( Jo 1:48-
49); os discípulos num barco (Mt 8:25); Pedro quando estava afundan-
do no mar (Mt 14:30), e também no terraço de uma casa (At 10:9-16);
Paulo e Silas oraram na prisão (At 16:25).

Posturas ao orar
Nas Escrituras muitas posturas diferentes são usadas pelas pessoas
que oravam. A posição normal era de joelhos, como no caso de Davi:
“Ó vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que
nos criou” (Sl 95:6). Salomão estava “de joelhos” (I Rs 8:54); Esdras
disse: “e me pus de joelhos” (Ed 9:5). Daniel “três vezes no dia se pu-
nha de joelhos” (Dn 6:10). Estêvão pôs-se “de joelhos” (At 7:60); Paulo
“pôs-se de joelhos” (At 20:36); um grupo pôs-se de joelhos na praia e
orou (At 21:5). Paulo escreveu: “Por causa disso me ponho de joelhos
perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 3:14). Também temos
22 A glória da oração

o exemplo supremo do próprio Senhor Jesus Cristo que, “pondo-se de


joelhos, orava”(Lc 22:41).
Outros oraram em pé. Estes incluem Ana: “Eu sou aquela mulher
que aqui esteve* contigo, para orar ao Senhor” (I Sm 1:26); o fariseu e o
publicano em Lucas 18: “O fariseu, estando em pé, orava consigo desta
maneira” (v. 11); “O publicano, porém, estando em pé, de longe…” (v.
13). Num sentido geral, o Senhor Jesus ensinou: “Quando estiverdes†
orando, perdoai …” (Mc 11:25).
Também, alguns se prostraram perante Deus, como Eliézer: “Ou-
vindo as suas palavras, inclinou-se à terra diante do Senhor” (Gn 24:52);
Moisés e Arão: “… se prostraram sobre os seus rostos” (Nm 16:22); um
leproso “…caiu aos seus pés, com o rosto em terra” (Lc 17:16); o Senhor
Jesus, “indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o Seu rosto,
orando” (Mt 26:39).
Há uma ocasião quando Davi orou assentado. “Entrou o rei Davi, e
sentou-se diante de Jeová e disse…” (II Sm 7:18, VB).
Sempre deve haver reverência quando nos aproximamos da Divin-
dade, mas talvez a atitude de coração seja mais importante do que a
postura física do corpo. Entretanto, reconhecemos que a postura ex-
terna muitas vezes é uma indicação da submissão do coração. Porém,
há situações em que precisamos orar, mas não seria conveniente, ou
apropriado, adotar a nossa posição normal de oração.

Petições na oração
Não há circunstância, pedido, ou problema pequeno demais ou in-
significante demais para ser trazido à presença de Deus. “Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em tudo co-
nhecidas diante de Deus pela oração e súplica, com ação de graças” (Fp
4:6). Às vezes pensamos que Deus apenas deve ser consultado sobre
as grandes provações da nossa vida, mas, porque Ele cuida de nós, po-
demos vir com todas as nossas ansiedades. Pedro nos encoraja nisto:
“Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de
vós” (I Pe 5:7). Quando descobrimos a Sua vontade sobre um assunto
e consequentemente apreciamos a resposta, então “em tudo dai graças
…” (I Ts 5:18). Uma consideração prática é compreender que não de-
* Na AV é dito que Ana esteve em pé (“…woman that stood by thee…”). O verbo no original
é natsab (05324), que quer dizer “em pé”. (N. T.)
† Na AV é dito: “Quando estiverdes em pé orando”. (N. T.)
Cap. 1 — Introdução 23

vemos estar envolvidos em qualquer atividade ou associação pela qual


não pudermos orar. Assim, o “tudo” se limita a tudo que é honroso ao
Senhor.
Estás te aproximando de um Rei,
Grandes pedidos podes trazer;
Pois Sua graça e poder são tais,
Que ninguém pode pedir demais. (John Newton)*
As orações de Elias poderiam ocupar um capítulo inteiro neste li-
vro, mas foram excluídas unicamente por causa das limitações de es-
paço. Entretanto, uma breve consideração aqui servirá para ilustrar a
variedade e imensidão das petições que trazemos a Deus. Foi por causa
da oração de Elias que a chuva parou, e recomeçou: “Elias … pediu que
não chovesse e, por três anos e seis meses, não choveu sobre a terra. E
orou novamente, e o céu deu chuva, e a terra produziu o seu fruto” (Tg
5:17-18). Também foi pela sua oração que um morto foi ressuscitado:
“Então se estendeu sobre o menino três vezes, e clamou ao Senhor, e
disse: Ó Senhor meu Deus, rogo-te que a alma deste menino torne a
entrar nele. E o Senhor ouviu a voz de Elias; e a alma do menino tor-
nou a entrar nele, e reviveu” (I Rs 17:21-22). Foi pela sua oração que a
nação foi recuperada da adoração a Baal: “Elias se aproximou, e disse:
Ó Senhor Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, manifeste-se hoje
que Tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo, e que conforme a tua
palavra fiz todas estas coisas … o que vendo todo o povo, caíram sobre
os seus rostos e disseram: Só o Senhor é Deus! Só o Senhor é Deus!” (I
Rs 18:36-39).

Proibições ao orar
A oração é dirigida a Deus, portanto é vertical. A oração não é
horizontal, e também não é melhorada por verbosidade ou eloquência.
Usar a ocasião de dirigir-se a Deus como uma oportunidade para pregar
a alguém presente é indicação de carnalidade. Se há algum assunto que
precisa ser tratado ou um relacionamento que precisa ser corrigido, isto
deve ser feito de uma maneira pessoal e digna, não por meio de uma
oração hipócrita e covarde que deve entristecer muito o Senhor e o Seu
Espírito Santo.
* Tradução literal. O original diz: “Thou art coming to a King/Large petitions with thee bring/For
His grace and power are such,/None can ever ask too much”. (N. T.)
24 A glória da oração

A oração não é uma ocasião para tentar impressionar a Deus, ou


outros irmãos, com nosso conhecimento da Bíblia, nem para demons-
trar eloquência ou desenvoltura. Algumas das orações mais ricas na
Bíblia são as mais curtas. Davi clamou: “Livra-me Senhor”; Pedro cla-
mou: “Senhor, salva me”; o ladrão na cruz ao lado do Senhor clamou:
“Senhor, lembra-te de mim”. Provavelmente nossa primeira oração foi
curta, no entanto aquele clamor sincero a Deus por salvação, vindo de
um coração arrependido, nos levou a um relacionamento eterno com
Deus. Multidões têm sido salvas por clamarem com arrependimento:
“Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador” (Lc 18:13), e, como o
publicano, receberam misericórdia baseada no sacrifício oferecido.
Apesar do que já foi ensinado sobre trazer “tudo” a Deus em oração,
há assuntos pelos quais não precisamos orar. Como já observamos, a
palavra “tudo” é limitada a tudo que agrada ao Senhor. Muitos exem-
plos práticos poderiam ser dados, mas alguns servirão para mostrar que
quando um princípio divino é revelado, não há mais necessidade de orar
sobre aquele assunto; simples submissão e obediência são necessárias.
Por exemplo, se um cristão se encontra com alguém que não é cristão
e começa uma amizade que pode caminhar para algo mais sério, como
uma sociedade comercial, ou casamento, neste caso não há necessidade
de orar pedindo a direção de Deus, porque as Escrituras afirmam com
clareza: “Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque,
que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz
com as trevas?” (II Co 6:14). Outro exemplo é quando uma pessoa salva
é confrontada com a verdade do batismo e responde que está orando
sobre este assunto. Aqui, o necessário é obediência e não oração, visto
que a vontade revelada de Deus é que Ele espera que todo cristão seja
batizado. Outros exemplos envolvendo o serviço das irmãs na igreja; o
reconhecimento e serviço dos anciãos; a aceitação do mundanismo na
igreja, etc., poderiam ser mencionados, mas precisamos lembrar que o
Espírito Santo nunca guia alguém de maneira contrária às Escrituras.
Portanto, em relação a estes assuntos, a oração é desnecessária.

Obstáculos à oração
Uma pergunta surge na mente de muitos cristãos: por que as ora-
ções nem sempre são respondidas de modo positivo? As razões agora
oferecidas não são exaustivas, mas podem servir como base para uma
meditação mais profunda na presença de Deus.
Cap. 1 — Introdução 25

Incredulidade
Na sua epístola Tiago afirma: “Se algum de vós tem falta de sabedo-
ria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto,
e ser-lhe-á dada. Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando; porque o
que duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento, e lan-
çada de uma parte para outra parte. Não pense tal homem que receberá
do Senhor alguma coisa” (1:5-7). O contexto é sofrimento e provação.
Isso não é um “cheque em branco” para ser usado em qualquer ocasião.
Quando estamos passando por uma provação, precisamos de sabedo-
ria para agir corretamente e descobrir a vontade de Deus no meio da
provação. Alguns prefeririam astúcia para escapar da tribulação, mas
o cristão espiritual deseja sabedoria para vencê-la com Deus. A pes-
soa continuamente vem a Deus e, reconhecendo a sua incapacidade e
fraqueza, com sinceridade pede que Ele lhe dê sabedoria. Ela faz a sua
petição “com fé … nada duvidando” (v. 6). O Senhor Jesus ensinou: “E,
tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis” (Mt 21:22). Paulo
diz que Abraão “não duvidou da promessa de Deus por incredulidade,
mas foi fortificado na fé …” (Rm 4:20). O grande capítulo da fé declara:
“Ora, sem fé é impossível agradar-lhe; porque é necessário que aquele
que se aproxima de Deus creia que Ele existe, e que é galardoador dos
que o buscam” (Hb 11:6).
Pecado não confessado
O salmista expressou este pensamento de maneira negativa, e o
apóstolo Paulo o expressou de maneira positiva.

Negativamente: “Se eu atender à iniquidade no meu coração, o Se-


nhor não me ouvirá” (Sl 66:18). Se eu constantemente atentar para a
iniquidade, isto é, estiver absorto com a maldade enraizada no meu ser,
no meu coração, e me ocupar com isto até que isto me cativa e domina
os meus pensamentos, então a minha oração não será respondida. Se
ao invés de julgar o pecado que está em mim, eu tiver prazer nele, “o
Senhor não me ouvirá”.

Positivamente: “Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, le-


vantando mãos santas, sem ira nem contenda” (I Tm 2:8). É importante
reconhecer que aqui o apóstolo está ensinando sobre a oração coletiva
na igreja local e assim ele enfatiza que “homens” (aner, que significa os
26 A glória da oração

do sexo masculino, distinto do feminino), orem publicamente. A pa-


lavra anthropos, que significa a humanidade, já foi usada neste mesmo
capítulo nos vs. 4 e 5, indicando que aner foi usado de propósito no v. 8,
para enfatizar que participação pública pertence somente aos homens.
Mas nem todos os homens têm o direito de orar em público. Eles
precisam poder “levantar mãos santas, sem ira nem contenda”. O “le-
vantar das mãos santas” exige que a sua condição pessoal esteja em
ordem, pois as mãos são levantadas para mostrar que não estão mancha-
das com qualquer corrupção. Isto é uma qualificação moral mais do que
uma postura física, embora fosse adotada por Moisés, que fisicamente
“estendeu as suas mãos ao Senhor” (Êx 9:33); pelo salmista, que disse:
“Levantai as vossas mãos no santuário, e bendizei ao Senhor” (Sl 134:2);
e por Salomão, que “estendeu as suas mãos para os céus” (I Rs 8:22).
Os homens que oram precisam também estar “sem ira”, que é a
sua atitude em relação a outras pessoas. Não há pensamento na sua
mente de ressentimento, buscando uma oportunidade para se vingar;
também não deve haver “contenda” (“dúvida”, AV); isto mostra a sua
atitude para com Deus. Eles também não têm argumentos interiores
que atacam a fé e que os levam a duvidar que Deus pode e vai responder
às suas orações.
Um espírito não perdoador
O Senhor Jesus mencionou a possibilidade de haver dúvidas e de-
sejos de vingança no contexto da oração quando disse: “Todas as coisas
que pedirdes, orando, crede receber, e tê-las-eis. E, quando estiverdes
orando, perdoai …” (Mc 11:24-25). Talvez Pedro imaginasse que es-
tivesse sendo muito perdoador quando ele disse: “Senhor, até quantas
vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus
lhe disse: Não te digo que até sete vezes; mas, até setenta vezes sete”
(Mt 18:21-22).
Devemos manifestar o caráter de Deus no assunto de perdão: “An-
tes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-
-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo” (Ef
4:32). Nossos relacionamentos uns com os outros precisam estar em
ordem para que nossas orações sejam respondidas: “Se dois de vós con-
cordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será
feito por meu Pai, que está nos céus” (Mt 18:19).
Cap. 1 — Introdução 27

Motivos inaceitáveis
Tiago escreveu: “De onde procedem guerras e pelejas entre vós? De
onde, senão dos prazeres que militam na vossa carne? Cobiçais, e nada
tendes; matais, e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e fazer guer-
ras. Nada tendes, porque não pedis; pedis, e não recebeis, porque pedis
mal, para esbanjardes em vossos prazeres” (Tg 4:1-3, ARA).
Conforme o v. 1, havia divisão entre os salvos e isso era o resultado
de atividades canais. As consequências disto são enfatizadas no v. 2:
“Cobiçais, e nada tendes; matais, e invejais, e nada podeis obter; viveis
a lutar e fazer guerras, e nada tendes, porque não pedis”. Este versículo
poderia ser melhor pontuado da seguinte maneira, para dar uma estru-
tura equilibrada de duas causas e dois efeitos: “cobiçais e nada tendes e
por isso matais, e invejais e nada podeis obter e por isso viveis a lutar e
fazer guerras”. Neste contexto de contendas e divisões o Espírito Santo
afirma: “Pedis e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em
vossos deleites” (v. 3). Será que estavam orando para que o seu “partido”
na igreja prevalecesse? Seu motivo era puramente egoísta e não visava
a glória de Deus. Tal motivação significa que Deus não concederá o
pedido.
Não controlados pela Sua Palavra
Parece que João nos dá um cheque em branco quando ele escreve:
“E qualquer coisa que lhe pedirmos, dele a receberemos” (I Jo 3:22).
Alguns amados irmãos usam este versículo fora de seu contexto, e ficam
muito desanimados quando sua oração não é respondida. Precisamos ler
o versículo todo: “Porque guardamos os seus mandamentos, e fazemos
o que é agradável à sua vista”. Há duas condições apresentadas para que
a oração seja respondida: i) guardar os Seus mandamentos, e ii) fazer
o que é agradável à Sua vista. Estas condições são inseparáveis, porque
se guardarmos os Seus mandamentos, faremos o que é agradável à Sua
vista. O inverso também é verdade, se formos desobedientes não fare-
mos o que é agravável a Ele, e Ele não responderá as nossas orações. O
Senhor Jesus ensinou a mesma verdade: “Se vós estiverdes em mim, e
as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo que quiserdes, e vos
será feito” ( Jo 15:7). Isso é semelhante a Provérbios 28:9: “O que desvia
os seus ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração será abominável”. Se re-
jeitarmos os padrões que Deus revela na Sua Palavra, as nossas orações
serão abomináveis e repugnantes a Ele.
28 A glória da oração

Inadequados à Sua vontade


Em I João 5:14 João deu mais ensino sobre como obter respostas à
oração. “E esta é a confiança que temos nele, que, se pedirmos alguma
coisa, segundo a sua vontade, Ele nos ouve”. Esta confiança é baseada
em pedir de acordo com a Sua vontade absoluta e exclusiva, o que sig-
nifica que a nossa própria vontade é totalmente excluída. A vontade de
Deus é revelada na Sua Palavra, e assim voltamos para o parágrafo an-
terior, onde somos controlados pela Sua Palavra. Às vezes gostaríamos
de ditar os termos e ter o que pensamos seria bom para nós, mas Ele
sabe melhor. Mesmo sendo ajudados pelo Espírito Santo, precisamos
reconhecer que Ele é quem “segundo a vontade de Deus intercede pe-
los santos” (Rm 8:27).
Contendas indecorosas
Em I Pedro 3 o apóstolo escreve sobre a vida no lar. No começo
do capítulo ele pensa no lar dividido, onde a esposa foi salva depois do
casamento, mas não o marido. O alvo da esposa é ganhar o seu marido,
e isto ela faz por meios espirituais, não com adornos mundanos.
No v. 7 ele considera um lar onde os dois são salvos, e ele diz ao ma-
rido: “Igualmente vós, maridos, coabitai com elas com entendimento,
dando honra à mulher, como vaso mais fraco; como sendo vós os seus
coerdeiros da graça da vida; para que não sejam impedidas as vossas
orações”. O marido deve “coabitar” com sua esposa; não como um turis-
ta que só aparece na hora das refeições e de dormir. O melhor amigo de
um homem deve ser a sua esposa. Eles compartilham as suas vidas, eles
confiam plenamente um no outro, e há um ambiente de graça e harmo-
nia no seu convívio. Se não for assim, e se houver um ambiente de con-
tendas e discórdias, as nossas orações serão prejudicadas. Não podemos
orar juntos se não estivermos falando um com o outro, e se estivermos
demonstrando animosidade um com o outro. Poder entrar juntos, reve-
rentemente, na presença de Deus, preservará muito o casamento.

A provisão para a oração


O Senhor Jesus tem, pelo menos, três funções que nos encorajam a
orar. Ele é o nosso grande Sumo Sacerdote, nosso Pastor e nosso Advo-
gado. Cada função tem um foco diferente. Como nosso grande Sumo
Sacerdote Ele demonstra compaixão pelas nossas lutas no deserto; como
Cap. 1 — Introdução 29

nosso Pastor Ele cuida de nós no meio de todas as ansiedades da vida,


e como nosso Advogado Ele restaura a comunhão quando pecamos.
Nosso grande Sumo Sacerdote: para compadecer
Um tema principal da epístola aos Hebreus é a função do nosso
Senhor Jesus Cristo como grande Sumo Sacerdote, e seria um assun-
to grande demais para o espaço disponível neste capítulo. Entretanto,
quando chegamos em Hebreus 10:19 deixamos a parte doutrinária da
epístola e entramos na parte prática, e é logo ali que temos o lindo con-
vite: “Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário, pelo sangue
de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto
é, pela sua carne, e tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus,
cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo
os corações purificados de má consciência, e o corpo lavado com água
limpa” (Hb 10:19-22). Nestes versículos temos três possessões, apre-
sentadas pela palavra “tendo”. Em seguida, nos vs. 22-24 temos três
exortações em relação à fé (v. 22), a esperança (v. 23) e ao amor (v. 24).
As três possessões são:
• v. 19 — ousadia para entrar. “Tendo, pois, irmãos, ousadia para
entrar no santuário pelo sangue de Jesus”.
• v. 21 — um Grande Sacerdote. “E tendo um grande sacerdote so-
bre a casa de Deus”.
• v. 22 — corações purificados. “Cheguemo-nos com verdadeiro co-
ração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má
consciência, e o corpo lavado com água limpa”.
O ensino aqui é que, visto que nascemos de novo (v. 22), temos ou-
sadia para entrar além do véu até o “santuário” (o santíssimo lugar). Esta
ousadia não permite irreverência, mas porque nossos pecados foram tra-
tados com justiça, temos a liberdade de chegar com liberdade de expres-
são. O caminho é “novo” (v. 20), ou literalmente “morto recentemente”,
e visto que a grande obra realizada no Calvário sempre será nova para
Deus, e que o grande Sacerdote está vivo para sempre, é um “vivo ca-
minho”, e isto significa que aqueles que entram no lugar santíssimo não
estão sob a ameaça de morte, como acontecia no Velho Testamento. De
acordo com a figura, o nosso grande Sacerdote pode nos levar até onde
nenhum outro sacerdote poderia nos ter levado — até o outro lado do
véu intacto do Tabernáculo. Foi necessário que o Seu sangue (v. 19), e
30 A glória da oração

a Sua carne (v. 20) nos desse este acesso. Que privilégio maravilhoso é
este, mas quão pouco uso fazemos dele!
Nosso Pastor: para cuidar
O salmista Davi expressou as gloriosas e frequentemente repetidas
palavras: “O Senhor é o meu pastor” (Sl 23:1), e este sentimento tem
sido um grande encorajamento a muitos através das gerações. Foi no
contexto de pastores que Pedro escreveu: “Lançando sobre ele toda a
vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós (I Pe 5:7). A palavra
“ansiedade” significa um cuidado que perturba, que puxa em direções
contrárias, deixando-nos sem saber o que fazer. Obviamente o Senhor
nunca está neste estado de perturbação e, com “cuidado” compreensivo
e amoroso, Ele cuida de nós enquanto Ele leva as nossas ansiedades.
Nosso Advogado: para confissão
João escreveu: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que
não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai,
Jesus Cristo, o justo” (I Jo 2:1). É importante notar que João escreveu
“se alguém pecar”, não “quando alguém pecar”. Se fosse “quando” indi-
caria que seria normal o salvo pecar, mas a palavra “se” mostra que pecar,
para o cristão, deve ser uma ocorrência rara. Entretanto, há um recurso
para este acontecimento raro por intermédio do Senhor Jesus Cristo,
como Advogado. Esta é a palavra grega parakletos, que significa “um
que chega ao lado”. Assim, se nós pecamos, Ele chega ao nosso lado
para nos tornar cientes do fato do pecado e para efetuar a restauração.
O Seu trabalho é “para com” (pros) o Pai, não Deus. A pessoa que pecou
ainda está na família, portanto não é como um pecador se aproximando
de Deus, mas como um filho vindo ao seu Pai, e ele vem para confessar
o seu pecado e conhecer a bem-aventurança de comunhão restaurada.

A perplexidade na oração
Uma pergunta antiga sobre a oração é: “Será que a oração faz Deus
mudar de ideia?” Isto introduz o extenso assunto da vontade permissiva
de Deus e Seu propósito soberano. Claramente há assuntos que Deus,
na Sua soberania, tem predeterminado, e estes não podem ser mudados.
Estes acontecimentos predeterminados frequentemente são o assunto
de profecias divinas, tanto no Velho como no Novo Testamento. Estas
revelações proféticas foram definidas como “história revelada antecipa-
Cap. 1 — Introdução 31

damente”. Incluem o nascimento virginal do Senhor Jesus, Sua morte


e glorificação, Sua Igreja, o Arrebatamento da Igreja, a Tribulação, a
restauração de Israel, o Reino Milenar que introduz o Reino Eterno, e
muitos outros assuntos. Por cima destes assuntos poderíamos escrever o
Seu próprio testemunho de Si mesmo: “Porque eu, o Senhor, não mudo”
(Ml 3:6). Balaão disse: “Deus não é homem, para que minta; nem filho
do homem, para que se arrependa; porventura diria Ele, e não o fa-
ria? Ou falaria, e não o confirmaria?” (Nm 23:19). Samuel disse a Saul:
“Aquele que é a força de Israel não mente nem se arrepende; porquanto
não é um homem para que se arrependa” (I Sm 15:29). Paulo nos lem-
bra que Ele “faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade” (Ef
1:11). O homem sábio entendeu isto quando disse: “Como ribeiros de
águas assim é o coração do rei na mão do Senhor, que o inclina a todo
o seu querer” (Pv 21:1). Talvez seja por causa da imutabilidade de Deus
que Ele é chamado a “Rocha”. Aparentemente, o poeta meditava nisso
quando escreveu:
Mudança e decadência vejo em tudo ao redor;
Ó Tu, que és imutável, permaneça comigo. (Henry F. Lyte)*
Entretanto, há indicações de que Deus muda a Sua atitude para
com a humanidade quando eles se voltam a Ele em arrependimento.
“Se tal nação, porém, contra a qual falar se converter da sua maldade,
também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe” ( Jr 18:8).
Por exemplo, Jeremias cap. 26 parece contradizer a citação de Samuel
no parágrafo acima: “Aquele que é a Força de Israel não mente nem se
arrepende”. Repare: “Bem pode ser que ouçam, e se convertam cada um
do seu mau caminho, e eu me arrependa do mal que intento fazer-lhes
por causa da maldade das suas ações … Agora, pois, melhorai os vossos
caminhos e as vossas ações, e ouvi a voz do Senhor vosso Deus, e arre-
pender-se-á o Senhor do mal que falou contra vós … Antes não temeu
[Ezequias] ao Senhor, e não implorou o favor do Senhor? E o Senhor
não se arrependeu do mal que falara contra eles?” ( Jr 26:3, 13, 19).
Será que estas citações não nos mostram que Deus age de acordo
com o Seu próprio caráter, e mostram a mesclagem da soberania divina
e da responsabilidade humana? Talvez achemos difícil reconciliar estas
coisas, mas isto não significa que rejeitamos uma, ou ambas. Alguns,

* Tradução literal. O original diz: “Change and decay in all around I see;/O Thou Who changest
not, abide with me.” (N. T.)
32 A glória da oração

talvez por causa do seu orgulho intelectual, procuram reduzir Deus


ao tamanho da mente humana, mas se nós entendêssemos Deus, Ele
deixaria de ser Deus. Pela fé cremos no fato que Ele sabe o que está
fazendo, e confiamos nEle. Tiago afirmou: “Conhecidas são a Deus,
desde o princípio do mundo, todas as suas obras” (At 15:18), ou como J.
N. Darby traduz: “Conhecidas desde a eternidade …” Nunca devemos
concluir que Deus não sabia o que iria acontecer, e que foi pego de sur-
presa e teve que mudar os Seus planos. As passagens de Jeremias acima
citadas provam que, de acordo com a Sua santidade, Deus se desvia do
pecado e, de fato, o julga, mas quando há verdadeiro arrependimento
Ele, de acordo com a Sua justiça e Seu amor, perdoará e restaurará.
Concluímos que a oração nos permite ter comunhão com Deus, e
que quando nós nos tornamos mais íntimos com Ele aprendemos mais
da Sua vontade, e assim podemos orar mais dentro desta vontade, o que
resulta nas nossas orações sendo aceitáveis a Ele e respondidas positiva-
mente. Tudo isto providencia encorajamento precioso para cultivar uma
compreensão mais profunda de Deus e uma intimidade maior com Ele,
por meio da oração.
Cap. 2 — As orações de
Abraão, Isaque e Jacó
Por David McAllister, Zâmbia

Introdução
Antes de considerarmos as orações destes três grandes patriarcas,
talvez seria útil falar sobre os parâmetros usados neste capítulo para de-
terminar o que é uma “oração”, uma tarefa que não é tão simples quanto
parece. Por exemplo, será que uma curta afirmação como: “Quem dera
que viva Ismael diante do teu rosto” constitui uma oração? Quando
Abraão começa a conversar com Deus sobre a cidade de Sodoma, e
continua até que o Senhor afirma que não destruirá Sodoma se houver
ali dez pessoas justas, as palavras de Abraão podem ser chamadas de
uma oração? Quando Jacó fala depois da noite em Betel, é claro que ele
fala a Deus, mas será que é uma oração, e se é, quando é que ele começa
a falar com Deus naqueles versículos?
Ao preparar este capítulo o autor seguiu uma regra simples: “Se
houver dúvida, inclua”. Assim estão incluídas aqui todas as vezes que
alguém fala com Deus, como também quando alguém faz um pedido
a Deus. No caso de passagens onde não é claro onde a oração começa,
será entendido que a pessoa está falando com Deus desde o começo da
passagem.
Portanto, pode haver ocasiões quando o leitor poderá pensar: “Eu
não considero que isto seja uma oração”. Se isto acontecer, o escritor en-
tenderá esta dúvida, e oferece somente duas explicações em sua defesa:
em primeiro lugar, onde houver dúvida é melhor incluir mais do que o
necessário, do que omitir algo; e em segundo lugar, mesmo se não for
uma oração, é parte das Escrituras inspiradas, e, portanto, é proveitosa,
mesmo que esteja fora do assunto do capítulo!
Poderíamos considerar as orações de Abraão, Isaque e Jacó de vá-
rios ângulos diferentes, mas temos de nos limitar a somente um aspecto.
Para o propósito deste capítulo, vamos estudá-las do ponto de vista que
considera a favor de quem estas orações foram feitas. Veremos que hou-
34 A glória da oração

ve orações feitas em prol de si mesmo, em prol de uma esposa, de um


filho, de descendentes, de sofredores e de pecadores. Vamos considerá-
-las nesta ordem, pois assim elas representam um avanço: de si mesmo
para a família, para os vizinhos, para um povo desconhecido de quem
fazia a oração.
Mais um detalhe: não deve nos surpreender que quase todas as refe-
rências neste capítulo são tiradas do livro de Gênesis. Somente quando
uma referência não for de Gênesis é que o nome do livro será dado. Por
exemplo, “15:2” significa “Gênesis 15:2”.

Por si mesmo
Há cinco orações que podemos considerar como orações relaciona-
das especificamente a circunstâncias pessoais da pessoa que orava. Há
grande diferenças nelas, mas todas elas contêm instruções para nós, nas
variadas circunstâncias das nossas vidas.
Um problema (15:2-3)
O pano de fundo aqui é muito interessante. No cap. 14, Abrão in-
teragiu com uma variedade enorme de pessoas e, sem exceção, se com-
portou de modo exemplar. Ele:
• Mobilizou seus servos domésticos; lutou para salvar pessoas que
estavam cativas (não somente seu sobrinho Ló, mas também as pes-
soas ímpias de Sodoma que estavam presas com ele);
• Recebeu a bênção do poderoso Melquisedeque;
• Resistiu às sugestões sutis do rei de Sodoma.
Agora Deus chega a ele numa visão (15:1), e diz: “Não temas,
Abrão, eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão”. Mas Abrão
tem um problema. Ele pode armar trezentos e dezoito servos “nascidos
em sua casa” para lutar numa batalha (14:14), mas ele não tem filho. Seu
herdeiro é “um nascido na minha casa” (15:3), pois, como ele diz, “ando
sem filhos” (v. 2), e “não me tens dado filhos” (v. 3).
Um observador insensível talvez poderia criticar Abrão. Talvez diria
a ele: “Abrão, qual o seu problema? Deus tem prometido fazer de você
uma grande nação (12:2), e que a sua descendência será como o pó da
terra (13:16). Você acabou de ganhar uma grande vitória. Você tem ao
seu redor muitas pessoas úteis e do mesmo pensamento. Você está na
companhia dos grandes e sendo honrado por eles. E, melhor de tudo,
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 35

Deus acabou de afirmar que Ele é tudo que você precisa. Por que levan-
tar a questão de não ter um filho?”
Entretanto é bem possível que muitos podem se identificar com
Abrão exatamente nesta questão. Sim, temos recebido muitas grandes
promessas na Palavra de Deus. Além disso, temos conhecido vitórias
espirituais, onde Deus tem provado a Sua fidelidade a nós. Temos tam-
bém gozado da comunhão com outros salvos, e sido abençoados por
eles, a “aristocracia do céu”. Mas, mesmo assim, temos problemas pes-
soais que nos deixam muito tristes. Será que podemos obter algum con-
forto desta passagem em Gênesis 15?
Sem dúvida podemos, pois a maneira como Deus responde a Abrão
é muito instrutiva. Repare que Ele não repreende a Abrão pelas suas pa-
lavras. As palavras hipotéticas do “observador insensível” acima mencio-
nadas estão totalmente ausentes na resposta divina. “Pois ele conhece a
nossa estrutura, lembra-se de que somos pó” (Sl 103:14). Damos graças
a Deus por Ele ser mais compassivo do que os homens.
Não somente isto, mas Deus respondeu exatamente como Abrão
precisava. Abrão falou do “herdeiro” como alguém “nascido em minha
casa”. A resposta de Deus chega bem neste ponto. Ele diz que o herdeiro
de Abrão não será seu servo Eliézer, será “aquele que de tuas entranhas
sair” (v. 4). A resposta é direta, clara, e não é ambígua. É exatamente o
que Abrão precisa ouvir.
Além disso, Deus dá a Abrão uma lição clara para reforçar a Sua
promessa. Ele o leva para fora para observar o Céu noturno, e o desafia a
contar as estrelas (v. 5). Obviamente ele não consegue, e assim ele recebe
a promessa de que também será impossível contar a sua descendência.
Este incidente não deve ser tirado do seu contexto. Deus não fala
conosco verbalmente hoje em dia, nem nos leva para fora para nos mos-
trar coisas. Mas nós temos algo que Abrão não tinha — a Palavra escrita
de Deus, na qual temos bastante evidência do Seu caráter compassivo,
Suas respostas diretas e apropriadas aos pedidos do Seu povo, e lições
objetivas e ilustrações que nos ajudam. E embora as nossas situações
sejam diferentes das de Abrão, os mesmos princípios ainda continuam
verdadeiros. Estes princípios são: Deus é compassivo às necessidades do
Seu povo; Ele responde da melhor maneira possível; e pela Sua Pala-
vra Ele nos supre com o encorajamento que precisamos para podermos
descansar nas Suas promessas.
E assim como Abrão “creu no Senhor” (v. 6), nós também podemos.
36 A glória da oração

O fato deste versículo ser mencionado três vezes no Novo Testamento


(Rm 4:3; Gl 3:6; Tg 2:23) é prova suficiente de que a lição também é
para nós. Não importa o tamanho do problema, Ele sabe, Ele cuida, e
Ele é capaz. Podemos confiar nEle em toda e qualquer situação.
Um lugar (15:8)
Deus fala novamente a Abrão para lembrá-lo: “Eu sou o Senhor
que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para herdá-la”
(v. 7). Mas como no caso anterior, Abrão precisa saber mais e pergunta:
“Senhor Deus, como saberei que hei de herdá-la?” (v. 8).
Novamente vemos a compaixão do nosso Deus. Ele não repreende
Abrão por tal pedido, nem expressa impaciência. Deus já lhe tinha dado
uma indicação clara de que lhe daria um filho, portanto ele deveria estar
preparado para aceitar, sem dúvidas, a Palavra de Deus em relação à
terra. A resposta de Deus nos mostra como Ele o trata com bondade e
compaixão.
Como Ele responde à pergunta de Abrão? Dando-lhe a Sua Pala-
vra, baseada num sacrifício solene (15:9-21). Ele indica, detalhadamen-
te, a posição geográfica da terra que Abrão receberia (vs. 18-21). Assim,
Abrão fica sem qualquer dúvida de que Deus cumprirá a Sua promessa
em relação à terra, assim como Ele cumprirá a promessa em relação à
descendência.
Como podemos aplicar estas coisas à nossa situação hoje? Deus
também nos tem prometido um lugar. O Senhor Se refere a este lugar
em João 14:2: “Vou preparar-vos lugar”. Em seguida Ele promete voltar
para nos levar para estar com Ele (v. 3). Quando o Senhor Jesus fez
esta promessa aos Seus discípulos, Tomé respondeu com uma pergunta
semelhante à pergunta que Abrão fez nesta passagem: “Como podemos
saber o caminho?” (v. 5). Que grande segurança o Senhor dá na Sua
resposta a Tomé: “Eu sou o caminho” (v. 6). E, como no caso de Abrão,
a base desta promessa é um sacrifício — não de animais (como no caso
de Abrão), mas o sacrifício de Si mesmo.
Humanamente falando, não havia muita possibilidade de Abrão e
sua descendência possuírem a terra. Os muitos nomes dos povos que
ocupavam a terra naquele tempo, mencionados nos vs. 19-21, provam
isto. Mas isso de forma alguma reduziu a capacidade de Deus de cum-
prir a Sua promessa. E assim é conosco, hoje em dia. O mundo em
geral falará, talvez em tom de zombaria, dos cristãos aguardando a ida
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 37

ao Céu, como se fosse impossível, mas não devemos ser desencorajados


com isso. A nossa confiança está num Deus que guarda a Sua Palavra, e
que pode fazer exatamente o que tem prometido.
E assim, a oração de Abraão, ou melhor, a resposta de Deus, deve
ser uma garantia a nós. Como podemos saber que Deus nos levará ao
lugar que Ele nos prometeu? Temos a Sua Palavra, baseada no sacrifício
de Cristo. E vemos este princípio, ilustrado aqui, no primeiro livro da
nossa Bíblia.
Uma promessa (28:20-22)
Agora vamos pensar em Jacó na sua viagem até seu tio Labão, de-
pois de precisar sair de casa às pressas. Ele acabara de ter uma experiên-
cia inesquecível — Deus tinha falado com ele durante a noite e tinha
lhe prometido ricas bênçãos.
Lemos a resposta de Jacó em 28:20-22. No começo ele fala de Deus
usando a terceira pessoa, mas no final ele fala dEle na segunda pessoa.
Portanto, quando é que ele começa a falar com Deus? Podemos supor
que ele está falando com Deus o tempo todo, pois parece que ele estava
sozinho, e assim não poderia estar falando com outra pessoa! Além dis-
to, a conversa toda é chamada de um “voto” (v. 20), que teria sido feito
a Deus. Assim, podemos considerar a sua resposta como uma oração, e
dentro da abrangência deste capítulo.
A natureza desta oração, com as palavras “se … então”, tem levado
alguns a acusar Jacó de demonstrar a característica de barganha que
ele já havia usado com seu irmão Esaú (25:29-34), e usaria mais tarde
com seu tio Labão (30:31-43). Entretanto corremos o risco de sermos
severos demais com Jacó. Vamos dar crédito onde é devido: ele aceitou
as palavras de Deus; ele reconheceu que Deus foi bondoso com ele, e ele
respondeu de maneira apropriada, prometendo que o Senhor seria o seu
Deus; que o lugar onde ele passou a noite seria a casa de Deus, e que ele
daria a Deus a décima parte de tudo que Deus desse a ele.
A última parte da sua promessa é muito interessante. Foi feita muito
antes do dízimo ser instituído como uma exigência legal de Deus. Deus
não exigiu o dízimo de Jacó. Isso não seria uma prova de que Jacó queria
dar a Deus a Sua porção? Aqui, muito antes de Paulo escrever: “Deus
ama ao que dá com alegria” (II Co 9:7), vemos a prática do princípio
de um cristão dar liberalmente a Deus. Podemos perguntar, onde Jacó
aprendeu este princípio? Uma possível resposta seria que ele aprendeu
38 A glória da oração

isto com o seu avô Abraão, que deu o dízimo a Melquisedeque (14:20).
Portanto, Jacó está seguindo o bom exemplo do seu progenitor.
O que aprendemos disto? Não que devemos dar o dízimo como no
sistema da Lei. Na nossa época é claro que cada um deve dar “conforme
a sua prosperidade” (I Co 16:2). Não, nós temos um princípio mais
amplo a seguir, e este é que quando consideramos as bênçãos que temos
recebido de Deus, devemos reconhecer que Ele merece tudo que temos.
Não somente as nossas possessões materiais, mas tudo que temos —
tesouros, talentos e tempo. E, como no caso de Jacó, deve ser dado com
um coração voluntário; um coração cheio de apreciação por quem Ele é
e por tudo que Ele tem feito.
Além disso, também aprendemos que, tendo feito uma promessa
a Deus, precisamos cumpri-la. Não erguemos colunas de pedras, nem
derramamos óleo, nem fazemos votos, como Jacó fez, mas quando, à luz
da bondade de Deus para conosco, dizemos a Ele o que faremos por
Ele, quão importante é cumprir a nossa palavra, e não permitir que nada
nos impeça de cumprir a nossa promessa a Ele.
Um perigo (32:9-12)
Chegamos agora a uma situação diferente na vida de Jacó. No caso
já mencionado ele estava fugindo do seu irmão, Esaú; agora, muitos
anos mais tarde, ele está voltando, e está prestes a encontrar-se com o
mesmo Esaú. Naturalmente ele está muito apreensivo, mas ele faz uma
decisão muito sábia ao trazer o assunto a Deus em oração.
Poucos de nós teremos que enfrentar circunstâncias tão difíceis
como estas que Jacó enfrentou, mas todos nós, em alguma ocasião, te-
mos enfrentado situações que causaram incerteza e medo. E, com cer-
teza, se ficarmos muito mais tempo neste mundo, enfrentaremos estas
situações novamente. Em tais circunstâncias, podemos seguir o exem-
plo de Jacó e trazer o assunto a Deus em oração.
A boa ação de Jacó nesta ocasião não somente nos dá um bom
exemplo a seguir, em termos gerais, mas os pontos específicos da sua
oração também são exemplares. Há pelo menos seis aspectos na sua
oração que devemos imitar.
Reconhecendo o caráter de Deus
Jacó O chama de “Deus do meu pai Abraão, e Deus do meu pai
Isaque” (v. 9). O mesmo Deus que eles conheciam e que fora fiel para
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 39

com eles, seria também fiel com ele. Nós conhecemos a Deus de uma
maneira ainda mais maravilhosa, como “o Deus e Pai do nosso Senhor
Jesus Cristo (II Co 11:31; Ef 1:3; I Pe 1:3). É bom, antes de começar-
mos a fazer pedidos, que nos aproximemos de Deus, como Jacó faz aqui,
com reverência, reconhecendo a grandeza da Sua pessoa.
Reivindicando as promessas de Deus
Jacó “lembra” Deus que Ele é aquele que dissera a ele: “Torna-te à
tua terra, e à tua parentela”, e que Ele tinha-lhe prometido: “far-te-ei
bem” (v. 9). Ele sabia que estava andando em obediência à palavra de
Deus, e assim ele podia reivindicar as promessas de Deus. Se (e somente
se) estivermos andando conforme a Palavra de Deus, é que podemos ter
confiança para reivindicar a bênção de Deus.
Confessando o Seu próprio demérito
Jacó se aproxima de Deus com humildade: “Menor sou eu que todas
as beneficências e que toda a fidelidade que fizeste ao teu servo” (v. 10).
Ele não está exigindo os seus “direitos”. Ele francamente reconhece que
tudo quanto ele tem, ou pede, é unicamente por causa da misericórdia
de Deus, e por isto ele implora. Quão bom seria seguirmos também
este exemplo, pois nossos corações facilmente se enchem de orgulho.
Como Jacó, nós não temos “direito” a nada que Deus nos dá, ou do que
pedimos a Ele. É tudo por causa da Sua misericórdia e graça.
Afirmando as bênçãos de Deus
“Porque com meu cajado passei este Jordão, e agora me tornei em
dois bandos” (v. 10). Jacó agora tem uma família tão grande, e tantos
servos, bens e rebanhos, que pode dividir tudo em “dois bandos” (v. 7).
Que contraste — um cajado quando saiu de casa; dois bandos ao re-
tornar! Entretanto, não há sugestão alguma de vanglória. Ele reconhece
que tudo veio de Deus. A lição que aprendemos de Jacó é que tudo
quanto temos, seja material ou espiritual, vem de Deus, e nunca deve-
mos deixar de expressar a Ele o nosso reconhecimento de tudo que Ele
tem feito por nós.
Pedindo a proteção de Deus
“Livra-me, peço-te …” (v. 11). Jacó sabe que a sua situação é grave.
Esaú bem pode querer vingar-se, não somente dele, mas também da
40 A glória da oração

sua família. Mas ele vem à pessoa certa — o Senhor, que pode livrá-lo,
e pede proteção. Como precisamos fazer o mesmo! Quantas e quão
variadas são as circunstâncias difíceis que enfrentamos. O mesmo Deus
que ajudou Jacó pode nos ajudar também.
Citando a Palavra de Deus
“E tu o disseste: Certamente te farei bem, e farei a tua descendência
como a areia do mar, que pela multidão não se pode contar” (v. 12). Jacó
cita o que Deus tinha dito; não porque Deus tinha se esquecido, como
nós esquecemos. Ele nunca se esquece, mas mesmo assim, com sabedo-
ria, Jacó baseia a sua oração na Palavra imutável de Deus. Como é bom
quando nós podemos citar as Escrituras em oração, assim colocando
perante Ele o que Ele tem dito. Não devemos esquecer que embora toda
a Palavra de Deus seja para nós, nem tudo é sobre nós, e nem todas as
promessas de Deus se referem, especificamente, a nós. Podemos provar
este fato desta passagem — Deus não prometeu que a nossa descendên-
cia “será como a areia do mar”! Mas temos recebido dEle “grandíssimas
e preciosas promessas” (II Pe 1:4), e certamente podemos citá-las em
oração, e nos regozijarmos no fato que elas são nossas.
Uma petição (32:26-29)
Antes de encontrar com seu irmão Esaú, Jacó encontrou com “um
homem” (v. 24) com quem ele lutou. Mais tarde lemos que foi “um anjo”
(Os 12:4), e Jacó diz que ele viu “a Deus face a face” (v. 30). Portanto
sabemos que este foi um encontro com o próprio Deus. (Não podemos
entrar nos detalhes deste assunto aqui, mas cremos que foi uma “Cristo-
fania”, e que Aquele que apareceu a Jacó, aqui, foi o Senhor Jesus Cristo,
numa aparição antes da Sua encarnação.) Tendo deslocado a coxa de
Jacó, o Senhor deseja ir, mas Jacó diz: “Não te deixarei ir, se não me
abençoares” (v. 26).
Deus certamente queria abençoar a Jacó, mas antes Jacó precisava
aprender uma lição dada fisicamente, e uma dada verbalmente.
A lição física foi a deficiência que Jacó recebeu, quando o Senhor
tocou na sua coxa (v. 25). Sem dúvida este ato foi importante em vários
aspectos, e um deles deve ter sido mostrar a Jacó que ele não podia de-
pender da sua própria força. O Senhor foi misericordioso ao tratar com
ele, pois Ele poderia ter matado Jacó, ou ter lhe dado uma deficiência
mais grave. O que Ele fez foi relativamente pequeno, mas suficiente
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 41

para lhe mostrar qual dos dois era o mais forte, apesar da luta valente
de Jacó.
A lição ensinada verbalmente se encontra na pergunta do Senhor,
como resposta à petição de Jacó: “Qual é o teu nome?” (v. 27). De acordo
com o relato bíblico, a ocasião anterior quando Jacó teve que se identi-
ficar pelo seu nome foi em 27:18-19, quando ele respondeu, mentindo:
“Sou Esaú”. Será que aqui Jacó se lembrou, com culpa, daquela ocasião,
ao responder usando somente uma palavra: “Jacó”? Como frequente-
mente acontece nas Escrituras, o nome indica a natureza. Jacó era o
“Suplantador”. Ele teve que confessar a sua verdadeira natureza. Deus
lhe diz que Jacó não seria mais o seu nome; ele agora seria chamado
“Israel”. Este nome não somente seria o seu nome, mas também o nome
da grande nação que viria dele; um nome que significava como ele tinha
agido com Deus. Que privilégio!
Em seguida, no v. 29, Jacó pergunta ao Estranho qual é o seu nome,
mas isto não lhe é dito. Por que o Senhor não lhe revela o Seu nome?
Sugerimos que é para ensiná-lo que o Senhor não somente é maior do
que Jacó em força (como é mostrado pela coxa deslocada), mas que Ele
é também totalmente diferente em natureza. Se o Senhor tivesse dito o
Seu nome a Jacó, isto teria colocado os dois no mesmo nível ( Jacó tendo
o direito de exigir e ser informado do nome do Senhor, assim como o
Senhor tinha exigido e sido informado do seu); ao recusar, o Senhor
estava mostrando que Ele é superior a Jacó em caráter.
Assim Jacó recebe a bênção que pediu (v. 29). Sua oração foi res-
pondida, mas nos termos de Deus, não nos seus. A bênção veio quando
a força de Deus foi reconhecida como maior que a dele, e quando o
caráter de Deus foi provado ser diferente do seu. E Deus responderá
as nossas orações quando pedimos a Sua bênção, hoje. Mas, como Jacó,
a bênção será recebida nos termos de Deus, e não nos nossos, quando
nos vemos como realmente somos, em comparação com o Seu poder e
santidade. Com este conhecimento não teremos confiança na carne (Fp
3:3), e nossos pecados serão confessados e perdoados (I Jo 1:9).

Esposa (25:21)
Ao considerar o título deste capítulo, as grandes e eloquentes ora-
ções de Abraão e Jacó logo vêm à mente, mas será que há algo escrito
sobre Isaque? As Escrituras relatam que ele orou? Sim, e foi uma oração
muita preciosa. Encontramo-la em 25:21: “E Isaque orou insistente-
42 A glória da oração

mente ao Senhor por sua mulher, porquanto era estéril”.


Cada um destes três patriarcas tinha uma esposa amada que era
estéril: Sarai (11:30); Rebeca (25:21); e Raquel (29:31). Uma compa-
ração de como agiram em cada situação é muito instrutiva. No caso de
Abraão e Sara, a “solução” foi permitir que outra mulher tivesse um filho
com Abraão (16:2). Com Jacó e Raquel houve uma discussão exaltada, e
uma “solução” semelhante (30:1-4). Nestes dois casos a situação não foi
tratada com fé, nem de uma maneira sensível, e nem segundo a mente
de Deus. E, em ambos os casos, as consequências tiveram um grande
alcance negativo.
Como é bom notar a diferença no modo como Isaque reagiu à es-
terilidade de Rebeca — não houve manipulação nem brigas; somente
súplicas. Isaque e Rebeca não procuraram uma “solução” carnal para o
problema. Também não desceram ao nível de argumentos e acusações
amargas. Eles simplesmente levaram o assunto a Deus em oração. E
Deus respondeu. Por quanto tempo esperaram a resposta? Não sabe-
mos. A oração e a resposta são registradas no mesmo versículo, e podem
ser lidas consecutivamente. Entretanto, é provável que houve um espaço
de tempo considerável. O nascimento de seus filhos gêmeos ocorreu
vinte anos depois do seu casamento (25:20, 26). É muito provável que
a esterilidade de Rebeca foi descoberta logo depois do seu casamento,
e que a oração continuou por muito tempo. Mas eles não desistiram.
Eles confiaram em Deus e esperaram pacientemente pela Sua resposta.
Antes de prosseguir, devemos notar que Deus finalmente removeu
a esterilidade de Sarai e Raquel. Quão melhor teria sido, para elas e seus
maridos, se tivessem esperado o tempo de Deus, como Rebeca fez.
Com certeza os casais hoje em dia podem aprender com o bom
exemplo de Isaque e Rebeca, e a aplicação vai além da área de geração
de filhos. Há muitas situações difíceis que os casais enfrentam, e fre-
quentemente tais circunstâncias podem produzir tentações para agir de
maneira contrária às Escrituras, causando consequências abrangentes e
desastrosas. Quantas vezes dificuldades demasiadas podem levar a ar-
gumentos desnecessários e amargura. Quanta dor e tristeza poderiam
ser evitadas se tais problemas fossem levados a Deus em oração, e dei-
xados com Ele, aguardando pacientemente a Sua resposta.
O conteúdo da oração de Isaque era muito confidencial e pessoal.
Era muito importante para ele, mas não teria sido considerado muito
importante aos olhos dos outros. Mas um Deus sempre amável e com-
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 43

passivo estava pronto a ouvir e a responder os seus clamores. “E Isaque


orou insistentemente ao Senhor por sua mulher, porquanto era estéril; e
o Senhor ouviu as suas orações, e Rebeca sua mulher concebeu” (25:21).
Verdadeiramente podemos ser encorajados, pois todas as nossas preo-
cupações (não importa quão pessoais e insignificantes sejam aos olhos
dos outros) são conhecidas por Deus, e Ele se preocupa profundamente.

Filho (17:18)
Voltamos para Abraão, agora no cap. 17. Ele tem um filho, Ismael,
com treze anos de idade (17:25). As circunstâncias do seu nascimento
e da sua juventude não foram felizes. Ele nasceu por causa de falta de
fé e paciência (16:1-4). Este assunto todo causou o rompimento do re-
lacionamento entre Sarai e Agar (16:4, 6) e tensão entre Abrão e Sarai
(16:5-6). Os anos futuros trariam mais problemas, a ponto de Ismael e
sua mãe terem que partir (21:9-21).
Deus diz a Abraão que Sara terá um filho, e que este é o filho em
quem as promessas de Deus a ele serão cumpridas (17:16, 19). No meio
de tudo isto, Abraão diz: “Quem dera que viva Ismael diante de teu
rosto!” (v. 18).
Como devemos interpretar este clamor em relação a Ismael? Cer-
tamente poderia ser interpretado do ponto de vista negativo, e podería-
mos dizer que Abraão está sendo devagar em aceitar o plano e propósito
de Deus. Embora ele não esteja negando os propósitos de Deus para
com Isaque (de fato, os últimos versículos de Romanos 4 mostram que
ele creu totalmente neste plano), talvez há uma sugestão de que Abraão
estava desejando que Deus tivesse cumprido os Seus propósitos através
de Ismael!
Entretanto, sem negar esta possibilidade, também é possível ver a
afirmação de Abraão de uma maneira mais positiva. Sugerimos que,
embora Abraão reconhece e aceita que as promessas serão cumpridas
em Isaque, ele também ama muito o seu filho Ismael, e deseja que ele
também seja abençoado. Abraão bem sabe que o nascimento de Ismael
não ocorreu como deveria, mas isto não reduz o seu amor pelo seu fi-
lho, e também ele não procura se afastar do seu filho e agir como se ele
não existisse. Embora o futuro não pareça promissor para Ismael, isto
não impede Abraão de orar a favor dele e desejar, sinceramente, a sua
bênção.
Faríamos bem em seguir este exemplo de Abraão. Muitos de nós
44 A glória da oração

temos filhos jovens, como era Ismael, mas, quer sejam mais novos ou
mais velhos, cada fase da sua vida tem as suas dificuldades, e ficamos
pensando, muito preocupados, o que o futuro trará para eles. Como
Abraão, nosso desejo é que sejam homens e mulheres de Deus. Superfi-
cialmente, as probabilidades muitas vezes não são muito encorajadoras,
mas nunca devemos parar de clamar a Deus em favor deles.
Será que há encorajamento para nós nisto? Sim, pois Deus diz a
Abraão: “E quanto a Ismael, também te tenho ouvido” (17:20). Não
importa quão desencorajadoras sejam as circunstâncias, temos um Deus
que ouve e responde as orações do Seu povo a favor das suas famílias.
Nunca devemos desistir de orar por eles.

Descendentes (48:15-16)
Agora mudamos de uma oração por um filho para uma oração a
favor de netos. Estamos no cap. 48, e José trouxe seus dois filhos ao
seu pai Jacó. Nos vs. 15 e 16 Jacó ora por eles, e nesta breve oração ele
mostra sua apreciação de Deus de três maneiras:
• Ele é o Deus perante quem seus pais Abraão e Isaque andaram —
um Deus pessoal.
• Ele é o Deus que o sustentou durante toda a sua longa vida até
aquele momento — um Deus provedor.
• Ele é o Anjo que o remiu de todo o mal — um Deus protetor.
Em seguida ele pede de Deus três coisas para seus netos: que Deus
os abençoe; que o seu nome, e os nomes de Abraão e de Isaque, sejam
chamado neles; e que cresçam e se transformem numa multidão.
Os paralelos entre seu reconhecimento triplo de Deus e este pedido
triplo são facilmente vistos. Em resumo, o que Deus era para Abraão,
Isaque e Israel, o avô deseja que seja para eles: a provisão e a proteção
que ele próprio conhecia, ele quer também para eles. A sua descrição do
que Deus tinha feito é igual ao que desejava que Deus fizesse por eles.
Há muito envolvido aqui em relação à aliança entre Deus e os pa-
triarcas e em relação ao futuro das tribos de Israel, com Efraim e Ma-
nasses ocupando o seu pleno lugar entre as tribos. Vamos omitir tudo
isto, e chegar à lição prática para nós hoje: como devemos desejar e orar
pelas ricas bênçãos de Deus sobre aqueles que, se o Senhor não voltar
antes, continuarão a levar o nome de Cristo depois da nossa partida
para o Céu.
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 45

Em relação a isto, o caso de Timóteo logo vem à mente. Escrevendo


para ele, Paulo, como Jacó, olha para o passado e também para o futuro.
Ele menciona aqueles que tiveram uma influência piedosa sobre este jo-
vem, tanto seus progenitores literais, Loide e Eunice (II Tm 1:5), como
também seu pai espiritual, o próprio Paulo (II Tm 1:2; 2:1). Ao con-
templar o tempo quando ele não estará mais presente, Paulo informa
Timóteo que ele deve passar as verdades que ele aprendeu a “homens
fieis” (II Tm 2:2). E a sequência não para nisto, pois Paulo diz: “… que
sejam idôneos para também ensinarem os outros”.
Como é importante que nós sempre procuremos ajudar, encorajar e
orar pelos que estão crescendo entre o povo de Deus e, se o Senhor não
voltar antes, que carregarão o testemunho nos dias futuros, quando nós
não estivermos mais aqui. Jacó e Paulo são bons exemplos disso. Jacó
orou por pessoas e circunstâncias que ele mesmo não veria; e assim nós
também devemos fazer. Não há nenhuma sugestão de cuidar somente
da sua geração, e não se interessar por aqueles que seguirão. Há muito
sobre encorajar, ensinar e orar por aqueles que continuarão a obra nos
dias futuros.
O Deus perante o qual procuramos andar; aquele que supre as nos-
sas necessidades; aquele que nos protege e preserva, até hoje, é o mesmo
Deus que poderá fazê-lo com as próximas gerações. Que a nossa oração
seja que Ele faça isso, até a volta do Senhor Jesus Cristo.

Sofredores (20:17)
Todas as orações já consideradas foram a favor da própria pessoa
que orava, ou pela sua família. Agora vamos considerar uma oração a
favor de pessoas que não são parentes.
No cap. 20 as circunstâncias são tristes. Abraão disse que Sara era
sua irmã (v. 2), procurando escapar de dificuldades para si mesmo (v.
11), e assim o rei Abimeleque levou Sara para a sua casa (v. 2). Por causa
disso, Deus tornou as mulheres do rei e dos seus servos estéreis (v. 18)
e, num sonho, Deus revela a verdade a Abimeleque, e o avisa que ele
deveria devolver Sara a Abraão, e que Abraão oraria por ele. Se ele não
fizesse isto, então todos eles morreriam (vs. 3-7). Abimeleque age de
maneira correta, obedecendo a palavra de Deus e repreendendo Abraão
e Sara pelo seu engano (vs. 8-10). Abraão ora por ele, e ele e a sua famí-
lia são curados (v. 17).
Há muitas lições que podemos aprender desta história, tais como:
46 A glória da oração

• a necessidade de confiar em Deus e não nos nossos esquemas;


• os problemas que causamos quando procuramos enganar os outros;
• se uma “meia verdade” (Sara era “meia irmã” de Abraão) é apresen-
tada como se fosse a plena verdade, é uma mentira;
• os nossos erros prejudicam não somente a nós, mas a outros;
• é triste quando os incrédulos se comportam de uma maneira mais
digna do que os cristãos, e quando eles precisam nos mostrar nossos
erros;
• devemos aprender dos erros cometidos no passado (algo semelhan-
te já tinha acontecido na vida de Abraão, 12:14-20);
• a má influência que nossos erros podem ter sobre a nossa família
(Isaque fez a mesma coisa anos mais tarde, 26:6-11).
Entretanto, este capítulo é sobre a oração, portanto não vamos de-
senvolver estes pontos.
O que é, então, que aprendemos desta passagem sobre a oração?
Em primeiro lugar, que a verdadeira oração a Deus somente pode
ser feita por aqueles que têm um relacionamento com Ele. Deus res-
ponderia a oração de Abraão, “porque profeta é” (v. 7). Parece que, em
muitos aspectos, Abimeleque é um homem digno, mas ele não conhece
a Deus, e Deus não o manda orar por si mesmo. Somente as orações de
um homem justo serão aceitáveis ao Senhor. Esta é uma lição impor-
tante para nós. Há muitas pessoas respeitáveis no mundo hoje, que até
podem estar praticando atividades religiosas, mas se elas não conhecem
a Deus, então as suas orações não têm valor perante Ele. O privilégio
da oração verdadeira e eficaz a Deus é para aqueles que O conhecem, e
somente eles.
Em segundo lugar, aqueles que desejam que Deus responda as suas
orações devem obedecê-lO. A promessa de Deus a Abimeleque (“e ro-
gará por ti, para que vivas”) é condicionada à instrução anterior: “Agora,
pois, restitui a mulher ao seu marido”. Se nós não estamos sendo sub-
missos à Palavra de Deus, então não devemos pensar que nossas orações
serão respondidas.
Em terceiro lugar, Deus é bondoso; Ele é um Deus de restauração
— o nosso fracasso não precisa ser final. Abraão não sai desta história
com muita honra, mas quando seu erro é revelado, ele o corrige, e Deus
estava disposto a usá-lo em oração para a restauração da casa de Abi-
meleque. Quão gratos somos por Ele ser paciente conosco, apesar das
nossas falhas, e por Ele ter prazer em restaurar a nossa comunhão com
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 47

Ele e condescender em usar-nos em oração, e em outros aspectos de


serviço para Ele.
Em quarto lugar, não há ninguém que esteja além dos limites das
nossas orações. Eis aqui Abraão, um peregrino e estrangeiro, sem qual-
quer possessão na terra, orando pelo próprio rei de Gerar, e pela sua fa-
mília e casa. Poucos de nós teremos contato com as elites da sociedade,
como Abraão teve, mas somos exortados a orar “pelos reis, e por todos
os que estão em eminência” (I Tm 2:2). Geralmente somos bons críticos
das autoridades (e com certeza sentimos que elas o merecem), mas seria
muito melhor se usássemos este tempo e energia em oração por eles.
Finalmente, o nosso Deus é um Deus que responde as orações do
Seu povo. A impressão dada ao lermos o v. 17 é que a oração foi respon-
dida rápida e integralmente. Deus tem grande prazer em responder as
orações que são feitas de acordo com a Sua vontade divina.

Pecadores (18:23-33)
No nosso caso final, continuamos com Abraão. Agora ele não está
orando por si mesmo, nem pela sua família ou seus conhecidos, mas
pelos pecadores de Sodoma, a maioria dos quais ele provavelmente nem
conhecia.
Como observado na introdução, esta não é uma situação típica de
oração, como poderíamos ter hoje. Aqui Abraão está face a face com
o Senhor (uma consideração cuidadosa do capítulo todo, do primei-
ro ao último versículo, indica isto), e é um diálogo, no qual ele recebe
respostas audíveis às suas perguntas. Entretanto, nesta intercessão que
Abraão faz em prol do povo de Sodoma, aprendemos princípios que são
aplicáveis a nós.
Em primeiro lugar, ficamos impressionados com a reverência com
que Abraão se aproxima de Deus. A sua linguagem é totalmente respei-
tosa e faríamos bem em notar isso, em dias quando frequentemente há
uma terrível falta de respeito na maneira como as pessoas falam sobre,
e às vezes com, Deus.
Ligado a isto, vemos a humildade de Abraão na presença de Deus.
Vai além da sua linguagem, e afeta até as frases que ele usa, tais como:
“Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza” (vs.
27, 31). Sabemos que temos acesso à presença de Deus e que podemos
chegar sem medo, mas nunca devemos esquecer que somos somente “pó
e cinza”, sem mérito próprio, e que convém que sempre nos acheguemos
48 A glória da oração

a Ele com humildade.


Outro aspecto da intercessão de Abraão, que é facilmente visto aqui,
é a sua profunda percepção do caráter justo de Deus. O v. 25 é espe-
cialmente notável: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” Abraão está
implorando a Deus para tomar certo curso de ação, e ele esta baseando
isto, não nos seus próprios desejos ou sentimentalidade, mas no caráter
justo de Deus. Precisamos lembrar disto em nossos dias. Chegando a
Deus em oração, precisamos sempre lembrar que Ele fará somente o
que é justo; Ele nunca agirá fora do Seu caráter. Muitos no mundo hoje
acusam Deus de ser injusto nos Seus juízos e ações, mas o problema
está com estas pessoas e não com Deus. Ele sempre fará o que é certo.
Outro aspecto desta oração, que deveria nos encorajar, é que Abraão,
embora chegando a Deus em completa sinceridade, não conhece ainda
a situação toda. Ele pensa que Deus irá salvar ou destruir todos na cida-
de. Parece que ele não percebeu que Deus poderia separar os justos dos
injustos e salvar os justos e destruir os ímpios. Abraão não está falando
contra o juízo justo dos ímpios, mas seu grande dilema é como pode
Deus castigar todos indiscriminadamente? Como vemos no próximo
capítulo de Gênesis, Abraão não precisaria ter se preocupado com este
assunto, pois Deus providenciou um escape para o justo Ló. Para nós,
embora nem sempre possamos ver a história toda, podemos confiar em
Deus, que tudo vê e que não está preso ao nosso limitado conhecimen-
to e entendimento. De fato, não podemos fazer melhor do que citar o
comentário de Pedro sobre este mesmo acontecimento: “Assim, sabe o
Senhor livrar da tentação os piedosos, e reservar os injustos para o dia
do juízo, para serem castigados” (II Pe 2:9). O que não conhecemos ou
entendemos plenamente podemos deixar com Ele, que sabe e entende
tudo.
Intimamente ligado a este ponto há outro que pode nos ajudar.
Nem sempre Deus responde às nossas orações da maneira que espera-
mos. A preocupação principal de Abraão era que os justos não fossem
destruídos com os ímpios. Quando ele viu a fumaça subindo de Sodo-
ma, ele pode ter pensado que Deus não tinha respondido à sua oração.
Mas Deus tinha respondido, salvando os justos, e, sem dúvida, quando
Abraão ficou sabendo da verdadeira situação, ele deu glória a Deus.
Finalmente, mas não de menos importância, um ponto óbvio, mas
extremamente importante: Deus responde orações. Isso é deixado bem
claro em 19:29: “E aconteceu que, destruindo Deus as cidades da cam-
Cap. 2 — As orações de Abraão, Isaque e Jacó 49

pina, lembrou-se Deus de Abraão, e tirou a Ló do meio da destruição”.


O Espírito Santo está deixando bem claro, aqui, que Abraão não estava
perdendo o seu tempo em fazer intercessão a Deus.

Conclusão
Ao considerar as orações dos patriarcas, Abraão, Isaque e Jacó, não
podemos deixar de ficar impressionados com as suas vidas de oração.
Princípios de oração são apresentados desde o primeiro livro da Bíblia,
e eles ainda são aplicáveis a nós hoje. Temos muito que aprender, e
o alvo deste capítulo foi procurar destacar algumas destas lições. Que
possamos, como Abraão, Isaque e Jacó, chegar perante Deus em oração,
em todas as nossas circunstâncias (Fp 4:6), em todo tempo (I Ts 5:17), e
a favor de todas as pessoas (I Tm 2:1), sabendo que nós, como eles, nos
aproximamos de um Deus que ouve e responde orações.
Cap. 3 — As orações de Moisés
Por Walter A. Boyd, Irlanda do Norte

Introdução
Creio que todos já ouvimos falar da “vida de oração” de uma pessoa,
referindo-se àquela parte da sua vida que é reservada para falar com
Deus. Ao examinarmos a vida de Moisés, no Pentateuco, logo notamos
que ele frequentemente falava com Deus. Porém, é difícil separar uma
parte distinta das suas atividades como a sua vida de oração. Isso é sim-
plesmente porque parece que Moisés viveu a sua vida em comunhão
tão íntima com o Céu, que ele estava continuamente conversando com
o seu Deus. Para Moisés, parece que a oração era a ação imediata em
toda e qualquer situação; quer seja na alegria, na tristeza, na provação ou
triunfo, ele falava com o seu Deus.
Ao examinarmos as orações de Moisés, descobriremos que ele se
ocupa em todo aspecto de oração na sua comunhão com Deus: em vá-
rias ocasiões, e em vários lugares, vemo-lo em súplicas pessoais (Êx 4:1),
ou intercessão nacional (Nm 14:13), ou exultação espiritual (Êx 15). Há
ocasiões quando a sua oração é muito detalhada (Êx 33), e em outras
ocasiões ele se lança perante Deus com uma aparente inabilidade de
expressar o grande peso que carrega (Êx 17:4). Uma das caraterísticas
mais impressionantes das suas orações é o lindo equilíbrio entre a sua
profunda reverência para com Deus e sua intimidade com Deus. Moisés
usava linguagem simples, mas muito expressiva, ao conversar com Deus,
mas nunca se tornou indevidamente familiar na sua maneira de falar
com Deus. A profunda reverência da sua alma é claramente revelada na
sua atitude e aproximação ao Senhor enquanto orava.
Outra observação inicial é que nos primeiros oitenta anos da vida
de Moisés não há menção de qualquer oração. É bem provável que hou-
ve algumas durante os seus primeiros quarenta anos de vida; com cer-
teza na sua meninice, sob os cuidados da sua mãe, ele teria conhecido
a prática de orações familiares, antes de ser levado ao palácio pela filha
de Faraó. Se houve, não sabemos. É mais provável que houve orações
no segundo período de quarenta anos, quando ele passou o seu tempo
Cap. 3 — As orações de Moisés 51

como pastor de ovelhas, isolado no deserto. Durante aqueles anos no


deserto ele teve bastante tempo para ponderar sobre o erro que come-
tera ao matar o egípcio (Êx 2:12). O terceiro período de quarenta anos
começa com Moisés na presença de Deus, diante da sarça que “ardia
no fogo” (Êx 3:2). Deus inicia a conversa falando em graça divina com
Moisés, que tinha cometido tão grande erro no serviço de Deus, qua-
renta anos antes. Semelhantemente, este terceiro período de quarenta
anos termina com Moisés na presença de Deus, e Deus inicia a conversa
falando com Moisés, mas desta vez em autoridade divina (Dt 34:4). Isso
nos mostra uma dupla lição de vida. Em primeiro lugar, depois de um
período de frieza é necessário haver uma renovação do relacionamento
e conversação com Deus antes de mais serviço; e em segundo lugar, o
fim de uma vida de serviço útil pode ter traços de tristeza como resulta-
do de desobediência passada.
Vamos examinar algumas das orações mais importantes de Moisés
cronologicamente, isto é, na ordem em que aparecem nas Sagradas Es-
crituras.

Êxodo caps. 3 e 4
Neste bem conhecido incidente da sarça ardente, Deus inicia uma
conversa com Moisés, na qual temos não somente as primeiras palavras
registradas de Moisés em quarenta anos, mas a primeira oração regis-
trada nos seus primeiros oitenta anos de vida! Para Moisés, bem pode
ter sido a primeira vez em quarenta anos que ele ouviu a voz de Deus.
Há alguns aspectos gerais neste grande acontecimento pelos quais
não devemos passar apressadamente, porque são muito importantes
para o cristão que deseja conhecer melhor a Deus. As coisas “comuns”
logo se tornam extraordinárias quando Deus se interpõe nos assuntos
da vida.
Daremos atenção a estas coisas comuns neste notável incidente, no-
tando o significado do lugar. Esta conversa, que mudaria a sua vida e
o colocaria numa vida de serviço para Deus, ocorreu num deserto. Ele
estava longe das atividades e do alvoroço do mundo. Semelhantemente,
se nós queremos ouvir a voz de Deus e entender as Suas reivindicações
para as nossas vidas, precisaremos nos afastar da correria e do barulho
dum mundo que exige a nossa atenção. Este lugar era, provavelmente,
como qualquer outra parte do deserto, um lugar plano sem nada de
interessante, cuja única atração era oferecer abrigo ou algum pasto para
52 A glória da oração

o rebanho. Para Moisés este era seu trabalho normal, no lugar normal,
num dia normal, mas para ele estava prestes a se tornar muito interes-
sante. Deus estava para mudar o cenário monótono da vida de Moisés,
fazendo algumas mudanças nas leis da natureza. Uma sarça estava para
pegar fogo, e continuaria queimando sem ser consumida. Uma sarça
queimando no deserto não seria tão fora do normal. Moisés se voltou
para ver por que uma sarça insignificante do deserto que tinha pegado
fogo não se consumia, e ao assim fazer, ele ouviu a voz de Deus. Neste
primeiro encontro com Deus Moisés aprendeu uma lição importante:
ele aprender a reparar o significado de coisas insignificantes. Ao ouvir
a voz de Deus e discernir a Sua vontade, nós precisamos ter nossos
olhos espirituais abertos para discernir o significado da ação divina nos
assuntos insignificantes da vida. Por que recebemos aquele telefonema
“estranho”? Qual o significado daquele encontro “por acaso”? Devemos
aprender a examinar as coisas no nosso dia-a-dia procurando nelas evi-
dências da ação de Deus. Antes que Moisés pudesse entender o sig-
nificado deste acontecimento, ele teve que parar, olhar e ouvir. Quão
raramente tomamos o tempo para examinar as coisas cotidianas que
ocorrem ao nosso redor, assim excluindo a voz de Deus nas circunstân-
cias.
Observe o nome. O monte era chamado “Horebe”, que significa
“seco ou desolado”. Para os homens, este lugar era seco, desolado e sem
interesse, mas se tornou no oposto para Moisés! Semelhantemente, en-
quanto aqueles que não têm o costume de ficar a sós com Deus con-
sideram a oração como uma monótona perda de tempo, nós devemos
aprender, por experiência, que o lugar no qual passamos tempo na pre-
sença de Deus certamente não é seco nem desolado.
Note a importância da tarefa. A pequena tarefa em coisas secula-
res está prestes a se tornar uma grande tarefa em coisas espirituais. O
homem que está guiando o rebanho do seu sogro (Êx 3:1) receberá a
ordem para guiar o povo de Deus (“Meu povo” Êx 3:7). Deus requer um
homem que possa fazer três coisas para promover os Seus propósitos
em relação a Israel e efetuar a sua libertação. Ele precisa de um homem
para anunciar a Sua promessa a Israel (Êx 3:13-14); a antiga aliança
feita com Abraão, Isaque e Jacó não foi esquecida por Deus. Deus pre-
cisa de um homem para declarar o Seu programa a Faraó (Êx 5:1); os
maus atos de Faraó não foram ignorados por Deus! Deus precisa de
um homem para demonstrar o Seu poder no Egito (Êx 3:10); o grande
Cap. 3 — As orações de Moisés 53

poder do Egito não impedirá a Deus! Para equipar Moisés para fazer
estas três coisas, Deus o trouxe à sarça que ardia para testemunhar o
poder divino. Enquanto ali, Deus falou a Moisés assegurando-o sobre o
propósito divino para Israel, e falando-lhe do programa divino do qual
ele iria participar.
Agora olharemos além das características gerais deste incidente e
examinaremos alguns dos detalhes desta ocasião.
Há evidências muito claras do relacionamento íntimo entre Deus
e Moisés. É provável que, até agora, Moisés não estava vivendo na ple-
nitude deste relacionamento, mas Deus quer fazê-lo lembrar disso ao
chamá-lo duas vezes: “Moisés, Moisés”. Deus não fez isto porque Moi-
sés não ouvia bem; era um costume dos países orientais para indicar um
relacionamento especial entre pessoas; neste caso, entre Deus e Moisés.
Observe as chamadas duplas da Bíblia e veja nisto a razão por Deus
chamar o nome de alguém duas vezes. Moisés estava sendo lembrado
de que tudo não estava perdido. Apesar do grande estrago na sua vida,
por causa de um ato impensado quando ele matou o egípcio, Deus não
tinha descartado Moisés. Atos 7:25 deixa bem claro que Moisés sabia,
antes de matar o egípcio, que ele seria usado como o líder do seu povo.
Isso é um grande encorajamento para aqueles que sentem que erraram o
caminho, ou cometeram tantos erros ao ponto de Deus não poder mais
usá-los. Quarenta anos no deserto deixaram a sua marca, e agora Moi-
sés não é mais agressivo e ambicioso. O isolamento no deserto suavizou
as arestas ásperas, e ele agora é capaz de ver as coisas diferentemente do
que quando era um príncipe no palácio no Egito.
A prontidão da resposta de Moisés é evidente. Ele fora atraído
a esta cena estranha para examinar por que a sarça não estava sendo
consumida e, repentinamente, Deus chamou da sarça: “Moisés, Moisés”
(3:4). Moisés não correu de medo, nem ficou assustado e emudecido; ele
logo respondeu: “Eis me aqui” (3:5). Poderíamos entender se Moisés ti-
vesse sido cauteloso ou demorado em responder, mas ele imediatamente
responde à voz. A conversa entre Deus e Moisés no cap. 3 tem duas
partes distintas: a revelação de Deus e a resposta de Moisés.
A revelação de Deus
A santidade do lugar é enfatizada para Moisés (3:5). Esta lição ini-
cial logo é entendida por Moisés e será vista na sua vida e serviço, desde
aquele momento até a sua morte. Moisés está aprendendo que onde
54 A glória da oração

Deus está, ali a terra é santa. Logo ele seria usado por Deus para super-
visionar a construção de um santuário para Deus, o Tabernáculo, que
revelaria o mesmo princípio de santidade. A palavra “santuário” trans-
mite a ideia de um lugar santo. Além disso, o formato da estrutura do
Tabernáculo, com uma parte separada do resto por uma cortina, trans-
mite o conceito de santidade. Uma rápida busca numa concordância
pela palavra “santa” no Pentateuco, mostrará que “santidade” é um dos
seus principais temas. A santidade da presença imediata de Deus e a
“terra santa” exigem que Moisés tire as suas sandálias. A lição prática é
óbvia: Moisés precisa aprender que a presença do seu santo Deus tem
um efeito sobre ele, pessoalmente. Não é o rico e luxuoso ambiente de
um “santuário” feito por homens que afeta o seu comportamento e ves-
tes; é a presença de Jeová, seu Deus, no lugar mais remoto no deserto.
Semelhantemente, em nossos dias, nunca devemos perder de vista o
fato que a minha reverência para com Deus, ou falta dela, é manifes-
tada pelas minhas vestes e comportamento na Sua presença. Em dias
quando comportamento e vestes informais na presença de Deus estão
se tornando comuns, precisamos ser lembrados da atitude de coração
que Moisés manifestou.
Deus faz Moisés se lembrar do Seu relacionamento com os seus
antepassados: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de
Jacó” (v. 6). Esta revelação de Deus como o Deus dos seus antepassados
deve ter sido muito encorajadora para Moisés. Sem dúvida ele conhe-
ceria a promessa feita por Deus a Abraão, centenas de anos antes: que
Ele traria Israel da terra da sua aflição, depois de quatrocentos anos. O
Deus que fez esta promessa a Abraão, agora está começando a agir em
cumprimento dela, e este mesmo Deus está falando pessoalmente com
Moisés! Não nos surpreende que ele temeu olhar para Deus (3:6). En-
tretanto, a vida de oração de Moisés vai se tornar cada vez mais íntima
com Deus, a ponto de anos mais tarde ele pedir que Deus lhe mostre
a Sua glória (33:18). A sua comunhão com Deus começou muito pe-
quena e fraca no cap. 3, mas no cap. 33 chega a um nível de maturidade
raramente visto.
Tendo estabelecido o princípio da Sua santidade e Seu relaciona-
mento com os antepassados de Moisés, Deus então revela a Moisés o
Seu grande plano para livrar a nação de Israel. Ao dar estes detalhes
a Moisés, Deus Se revela de uma maneira tripla: Sua onisciência, Sua
onipresença e Sua onipotência.
Cap. 3 — As orações de Moisés 55

A onisciência é revelada no fato que Deus tem “visto atentamente


a aflição” do Seu povo que estava no Egito (3:7). Ele tinha ouvido o seu
clamor por causa dos seus exatores, e Ele diz: “Conheci as suas dores”.
Que grande encorajamento para o povo de Deus hoje: Deus vê as nos-
sas aflições, Deus ouve os clamores dos corações dos santos oprimidos, e
Deus conhece as tristezas amargas que estas aflições causam no coração.
A onipresença é revelada na afirmação de Deus: “Desci para livrá-
-lo da mão dos egípcios, e para fazê-los subir daquela terra, a uma terra
boa e larga, a uma terra que mana leite e mel” (3:8). Isso deveria encora-
jar Moisés, que está sendo enviado ao Egito para guiar o povo nesta sua
saída; ele não está indo sozinho, Deus já desceu antes dele, e estará ali
para tirar o povo. Moisés será apenas um auxiliador humano no grande
plano divino.
A onipotência é revelada no propósito de Deus de “livrá-lo da mão
dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra, a uma terra boa e larga,
a uma terra que mana leite e mel” (3:8). Moisés conheceria o sistema
interno de governo e o exército dos egípcios disponível a Faraó para
executar as suas ordens. Como poderiam milhares de presos, que duran-
te toda a sua vida nada tinham conhecido a não ser a escravidão, serem
capazes de vencer o grande poder do Egito? Deus já tinha respondido
esta pergunta antes de Moisés pensar nela!
No começo da conversa, Moisés está sendo assegurado de que Deus
está em total controle, e é capaz de manter este controle durante o pro-
jeto de libertação. Se Moisés tivesse realmente compreendido a impor-
tância disto, ele teria evitado muita angústia de coração diante de coisas
que, mais tarde, pereceram ser obstáculos invencíveis à sua liderança.
Pela primeira vez Deus descreve Israel como “Meu povo” (3:10). Isso
faz Moisés lembrar que Deus está em controle da Sua possessão pre-
ciosa, Israel, apesar de quão desanimadoras, até então, pareciam ser as
circunstâncias.
A resposta de Moisés
Quando Moisés responde a Deus ele manifesta uma característica
humana frequentemente vista, até mesmo nas nossas orações. A sua
atenção é focada em si mesmo e não em Deus. Deus pediu que ele
fizesse uma grande obra, e Moisés fica aflito com a grandeza da obra
e com a sua própria pequenez. “Quem sou eu, que vá a Faraó e tire do
Egito os filhos de Israel?” (Êx 3:11). Observe que Moisés ainda chama
56 A glória da oração

a sua parentela de “os filhos de Israel”, embora Deus, momentos antes,


os chamara de “Meu povo”. Se Moisés tivesse ouvido com cuidado ele
teria entendido que, visto que Israel era o povo de Deus, Ele seria res-
ponsável pela segurança deles, e não Moisés. Isso teria tornado a aceita-
ção da tarefa mais fácil para Moisés, sabendo que Deus cuidaria do Seu
próprio povo. Quão frequentemente, nas nossas orações, deixamos de
ouvir corretamente o que Deus diz a nós. Deus comunica a Sua mente
a nós enquanto oramos, pelo Espírito Santo que traz à nossa mente
as Sagradas Escrituras. Quando isto acontece, devemos prestar muita
atenção ao que estas Escrituras dizem, pois elas estão comunicando a
mente de Deus sobre o assunto pelo qual estamos orando.
Os recursos de Deus
Deus revela a certeza da Sua presença. No v. 12, Deus imediata-
mente garante a Moisés que Ele estará com ele (“Certamente Eu serei
contigo”) e que Ele mesmo o enviara (“… isto será por sinal de que eu te
enviei”). O sinal dado a Moisés foi que “quando haveres tirado este povo
do Egito, servireis a Deus neste monte”. Repare que Deus ainda exige
que Moisés aja pela fé; o sinal está ainda no futuro, e será dado depois
dele ter trazido o povo para fora do Egito.
Nos vs. 13-14 Moisés ainda está duvidoso, e pergunta a Deus o que
ele fará quando Israel lhe perguntar qual é o nome do seu Deus, que
o enviou para guiar o povo. Deus então revela a perpetuidade da Sua
Pessoa. “Disse Deus a Moisés, EU SOU O QUE SOU. Disse mais:
Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”.
A objeção de Moisés
Mesmo embora Deus deu a Moisés uma grande garantia (Êx 3:15-
21), ele ainda não está satisfeito; ele diz a Deus: eles “não me crerão” (Êx
4:1). Quão frequentemente as nossas orações são como as de Moisés!
Deus fala claramente e nós deixamos de ouvir, ou recusamos ouvir, o
que Ele nos diz enquanto oramos.
Em resposta à objeção de Moisés, Deus lhe dá um sinal duplo,
usando a sua mão e a sua vara (Êx 4:2-9). Moisés ainda não fica con-
vencido, e volta a Deus com o que ele considera ser outro problema:
“Ah, meu Senhor! Eu não sou homem eloquente … sou pesado de boca
e pesado de língua” (Êx 4:10). Para um homem que se dizia “pesado de
boca”, ele tinha bastante a dizer.
Cap. 3 — As orações de Moisés 57

Deus responde mais uma vez a esta suposta dificuldade de Moi-


sés, dando-lhe seu irmão, Arão, para ajudá-lo (Êx 4:14). Mais tarde,
quando Arão se comportou mal e trouxe o juízo de Deus sobre a nação,
Moisés provavelmente lembrou-se desta objeção, e lamentou não ter
feito simplesmente o que Deus pedira sem apresentar tantas desculpas.
Quando oramos a Deus e Ele nos assegura da Sua presença e do Seu
poder, devemos aceitar estas promessas imediatamente, e não continuar
orando com novos e contínuos pedidos a Deus sobre o assunto que nos
preocupa.
Apesar de termos tomado bastante tempo e espaço considerando
esta primeira oração de Moisés sem esgotar as suas lições, podemos ver
que Moisés estava, pelo menos, preocupado diante de Deus com o que
Ele acabara de lhe falar. Não devemos culpar Moisés pela sua falta de
fé ou de submissão ao plano de Deus. Esta é a sua primeira experiência
relatada com Deus depois de muitos anos, e suas orações posteriores
revelam que ele amadureceu e cresceu no seu conhecimento de, e na sua
intimidade com, Deus.

Êxodo caps. 5 a 7
No começo do cap. 5, Moisés e Arão visitam Faraó para anunciar
o audacioso plano de Deus para tirar Israel da servidão. Faraó recusou
reconhecer Deus e os despediu, dando ordens aos chefes para aumentar
o trabalho e o sofrimento dos israelitas (5:1-14). Os líderes de Israel re-
clamaram a Faraó e ele lhes diz que a culpa é deles mesmos, por estarem
ociosos e desejarem sair do Egito para adorar o seu Deus (vs. 15-18).
Faraó está insinuando que o seu sofrimento é culpa de Deus.
Como resultado, os líderes de Israel se dirigem a Moisés e Arão
(5:19-21), culpando-os pelo aumento no seu sofrimento. Que golpe
para Moisés. Ao procurar fazer a vontade de Deus e agir à luz do que
Deus tinha falado, Moisés agora enfrenta mais problemas. Mas Deus
ainda não tinha terminado: a história tinha somente começado!
A oração de Moisés no final do cap. 5 foi curta e muito direta. Ele
simplesmente pediu que Deus explicasse por que Ele tinha feito isto a
Israel, e por que o tinha enviado para livrá-los (5:22-23). Moisés conti-
nua e diz a Deus que Ele não livrou Israel (veja 5:23). Aqui parece que
Moisés está quase sendo desrespeitoso com Deus, e certamente parece
que ele está perturbado com o que ele entende ser uma falha de Deus
em cumprir a Sua promessa. Talvez a inexperiência de Moisés entrou
58 A glória da oração

em ação aqui. Às vezes nós manifestamos esta mesma impaciência, que


revela a nossa imaturidade no relacionamento com Deus.
Entretanto, Deus é bondoso e paciente, e dá a Moisés mais uma re-
velação da Sua grandeza (6:1-8). Na força desta nova revelação Moisés
fala com o povo, “mas eles não ouviram a Moisés, por causa da angústia
de espírito e da dura servidão” (6:9). Pobre Moisés, ele deve ter fican-
do imaginando onde tudo isto terminaria. Ele parecia estar andando
em círculos; quanto mais ele procurava fazer a vontade de Deus, mais
dificuldades surgiam. Não desanime quando isto acontece na sua vida.
Talvez você tenha agido de acordo com o que pensava ser a direção clara
de Deus enquanto orava sobre o assunto, mas ao invés disto resolver o
problema, somente o aumentou. Deus tem um propósito duplo nisto
tudo: aumentar a sua confiança nEle, e diminuir a sua confiança em si
mesmo.
Em 6:13, Deus deu a Moisés e Arão mais uma ordem para visitar
Faraó, e isto eles fizeram (veja 7:6). Uma das lições que Moisés e Arão
estavam aprendendo era que obediência à palavra de Deus é importan-
te. Nesta ocasião, Moisés recebeu mais uma prova do poder de Deus,
quando a sua vara se transformou numa serpente, e depois voltou a ser
uma vara novamente. Moisés então foi ordenado a ir a Faraó e lançar a
sua vara perante ele, e quando ele assim fez, Faraó viu a vara se trans-
formar numa serpente. Entretanto, longe de ficar impressionado, Faraó
chamou os seus mágicos que reproduziram o mesmo ato, por meio de
trapaça ou poder satânico.

Êxodo caps. 8 a 10
Nestes capítulos temos uma série de instruções de Deus a Moisés
em relação às suas repetidas visitas a Faraó, na tentativa de conseguir
a libertação de Israel. Intercalado entre estas entrevistas que Moisés
teve com Faraó estavam as pragas do juízo que Deus derramou sobre o
Egito, quando Moisés levantava a sua mão com a vara em obediência
a Deus.
Durante estas pragas Faraó endureceu o seu coração, e sugeriu vá-
rias concessões a Moisés para amenizar o desastre causado ao Egito por
causa das pragas. Em algumas ocasiões, Moisés rogou a Deus a pedido
de Faraó (10:17-18), mas os grandes acontecimentos do cap. 12 bre-
vemente aconteceriam. Deus estava prestes a livrar Israel da servidão.
Faraó endureceu o seu próprio coração, e as súplicas de um intercessor
Cap. 3 — As orações de Moisés 59

capaz como Moisés não iriam mudar o propósito divino. Há ocasiões


como estas em nossas vidas. Nós sinceramente oramos sobre alguma
coisa, mas Deus em graça não responde as nossas orações, porque elas
não se encaixam no Seu plano.

Êxodo cap. 15
A maravilhosa libertação divina de Israel já passou; eles nunca ti-
nham provado algo semelhante na sua história. Todo israelita que saíra,
sob a liderança de Moisés, conhecera somente servidão. Agora, libertos,
Moisés os dirige num cântico de louvor. Que experiência isto deve ter
sido, estar ali com os milhares e ouvi-los cantar os seus louvores a Deus.
Seu cântico foi composto por Moisés, e começa contemplando o
que tinham acabado de presenciar: a derrota dos seus inimigos (15:1-
10). Continua olhando para o alto para a grandeza do seu Deus, Jeová
(15:11-13). O cântico termina contemplando o lugar para onde Deus
iria levá-los: “Tu os introduzirás, e os plantarás no monte da tua he-
rança, no lugar que Tu, ó Senhor, aparelhaste para a tua habitação; no
santuário, ó Senhor, que as tuas mãos estabeleceram. O Senhor reinará
eterna e perpetuamente” (15:17-18).
Depois de terminar o seu cântico, Israel parte para o deserto sob a
direção de Moisés, enquanto ele segue a nuvem que indicava a presença
de Deus com eles. Eles caminharam somente três dias e não encontram
água. Então continuam um pouco mais a um lugar chamado Mara,
onde a água era amarga. Nestas circunstâncias terríveis eles reagem
como sempre farão quando estiverem em dificuldades: eles murmuram
contra Moisés. Moisés reage, estabelecendo um padrão que, de agora
em diante, quase sempre será usado quando ele estiver em dificuldades.
Ele “clamou ao Senhor” (15:25). Não conhecemos o conteúdo desta
oração, mas o Senhor bondosamente ouviu a sua oração e lhe deu a res-
posta necessária, mostrando-lhe uma árvore. Há ocasiões quando Deus
não responde as nossas orações falando conosco, mas ao invés disso Ele
nos mostra algo que podemos usar para resolver o problema. Por isso,
precisamos permanecer atentos quando estivermos orando sobre algum
assunto. Não devemos somente ouvir o que Deus diz, mas olhar para o
que Ele está nos mostrando nas circunstâncias em que estamos.
60 A glória da oração

Êxodo cap. 17
Em Êxodo 16 temos o relato de como Deus forneceu alimento mi-
lagroso, chamado maná, quando Israel entrou no deserto de Sim. Como
antes, Israel tinha murmurado contra Moisés e Arão, e Deus interveio
em apoio à sua liderança, e supriu o pão do Céu.
Agora, no cap. 17, Israel sai do deserto de Sim, pela ordem de Deus,
e chega a Refidim. Acampados ali, eles descobrem que não há água
(17:1). Como sempre, o povo murmura contra Moisés, exigindo água
(17:2). Sua sede crescente aumenta as suas reclamações contra Moisés,
ao ponto dele clamar ao Senhor: “Que farei a este povo? Daqui a pouco
me apedrejará” (17:4). A seriedade da sua reclamação é vista com mais
clareza em 17:7, onde é descrita como um questionamento da presença
de Deus. Deus havia prometido estar com eles, e eles agora estão ques-
tionando a honra de Deus, sugerindo que Ele não tinha mantido a Sua
Palavra.
A oração de Moisés é uma pergunta direta: “Que farei?” Moisés
nos mostra, mais uma vez, que quando não sabemos como agir, deve-
mos recorrer imediatamente ao Senhor. Deus não estava sem saber o
que fazer diante da pergunta de Moisés; Ele sabia exatamente o que
fazer, e deu a Moisés instruções exatas. Hoje, Deus nunca será vencido
por qualquer situação na qual não conseguimos achar uma solução. A
lição que aprendemos desta oração de Moisés é dupla: devemos apelar
imediatamente a Deus quando surge uma crise; e podemos confiar que
Deus tem a solução para o nosso problema. Notamos também como
Deus demonstra a Sua grande graça numa situação em que poderíamos
pensar que Ele julgaria o povo incrédulo. Mas Ele supriu abundante-
mente as suas necessidades de água, efetuando outro milagre (17:6-7).
Em 17:8-15 temos a primeira ameaça grave contra Israel, vinda de
fora: o insidioso inimigo Amaleque apareceu e “pelejou contra Israel”
(17:8). Há muito ensino prático nesta passagem, mas por causa do as-
sunto deste capítulo precisamos limitar nossos comentários à oração de
Moisés.
Os atos de Moisés, como líder, são muito instrutivos. Ele baseou
seus atos no que Deus o mandou fazer em Refidim (vs. 5-6). Moisés
está usando uma experiência anterior com Deus. Assim como ele to-
mou a sua vara e se colocou diante da rocha em Horebe, assim também
ele agora toma a sua vara e se coloca sobre o cume do outeiro. Enquanto
Cap. 3 — As orações de Moisés 61

ele estava em pé sobre o monte, havia pessoas em grande necessidade


por causa do ataque de Amaleque. Moisés não podia atender a necessi-
dade de água em 17:1-4, nem a necessidade de poder militar em 17:8,
mas o seu Deus podia!
Esta figura apresentada por Moisés no cume do outeiro é linda e
instrutiva. Ele é visto como o intercessor da nação na sua necessidade.
Ao lado de Moisés estão Arão e Hur, juntos representando uma figura
de intercessão sacerdotal. O simbolismo na vara levantada de Moisés
é o de implorar a provisão de Deus e invocar o Seu poder. Era, afi-
nal, “a vara de Deus” (17:9). Aqui, Moisés está agindo como sacerdote
ao interceder pelo povo. O significado dos nomes dos dois homens ao
lado de Moisés ajudam a completar os detalhes da sua intercessão. Arão
significa “exaltado soberanamente”, e Hur significa “linho branco”. Po-
demos discernir aqui uma figura da intercessão do nosso Grande Sumo
Sacerdote, que em toda a perfeição da Sua Humanidade está “exaltado
soberanamente” (Fp 2:5-9). As associações tribais destes homens tam-
bém acrescentam ao valor da figura. Arão era da tribo de Levi, e Hur era
da tribo de Judá. Assim, ilustram uma intercessão que tem caracterís-
ticas sacerdotais (Levi) e reais ( Judá). Semelhantemente, nosso grande
Sumo Sacerdote é da ordem de Melquisedeque (real), e de acordo com
o padrão de Arão (sacerdotal). Quando o inimigo atacar podemos apro-
veitar da Sua obra intercessora no Céu à destra do Pai.
Ao considerar os tipos no Velho Testamento, o proveito máximo é
obtido comparando e contrastando o tipo com Cristo. No parágrafo an-
terior comparamos a figura de Moisés no monte com Cristo na glória.
Quanto o tipo é contrastado com o antítipo, obtemos uma linda lição.
No monte Moisés precisou da ajuda de dois homens porque, quando
ele se cansou e seus braços caíram, o pode do Céu diminuiu; quando ele
levantava as mãos ao alto, Israel era invencível na conquista do inimigo.
O contraste é claro. Nosso grande Sumo Sacerdote nunca cansa, e a dis-
ponibilidade do poder divino contra a carne, prefigurada em Amaleque,
nunca diminui.
O incidente termina com as mãos de Moisés erguidas e “firmes até
que o sol se pôs” (17:12). Este é um retrato muito encorajador das mãos
do nosso Intercessor, que nunca se cansarão antes do final da batalha.
Haverá guerra contra a carne até que o Sol se ponha sobre a nossa dis-
pensação, mas nós podemos ter a certeza de que o nosso grande Sumo
Sacerdote nunca Se cansará de interceder em nosso favor.
62 A glória da oração

Êxodo cap. 32
As graves consequências de fazer e adorar um bezerro de ouro,
como narrado nos vs. 1-10, são muito tristes. Para um povo tão privile-
giado, tendo a presença de Jeová no seu meio e a permanente provisão
de Jeová no maná, o seu pecado é quase inacreditável. Como nos ou-
tros incidentes anteriores, teremos de deixar a riqueza do ensino prático
deste incidente e concentrar nosso pensamento nas orações de Moisés
nos vs. 11-13 e depois nos vs. 31-32.
Êxodo 32:11-13
A ocasião do maior pecado de Israel, nesta fase da sua jornada do
Egito a Canaã, resulta na maior oração de Moisés até agora. Em respos-
ta ao pecado do povo, sua oração contém duas perguntas e dois pedidos
ao Senhor. Enquanto Moisés relata a história, ele deixa bem claro que
não há dúvida sobre a sua lealdade a Jeová. “Moisés, porém, suplicou
ao Senhor seu Deus” (v. 11). Que contraste com o povo que disse que o
bezerro de ouro era o seu deus: “Este é o teu deus, ó Israel, que te tirou
da terra do Egito” (v. 4)
Antes de examinarmos a oração de Moisés, observe como Deus fala
com Moisés no v. 10: “Agora, pois, deixa-me, para que o meu furor se
acenda contra ele, e o consuma; e eu farei de ti uma grande nação”. O
pedido de Deus de que Moisés o deixasse sozinho no Seu furor indica
que, mesmo antes de Moisés orar, Deus já sabia como ele iria orar. Sem
diminuir a onisciência de Deus, isto prova que Deus sabe que Moisés
reagirá como sempre reagia numa crise — ele irá orar sobre o assunto.
Que testemunho sobre Moisés como intercessor! Assim que surge um
problema, a oração será o seu primeiro recurso. A afirmação de Deus, no
v. 10, também apresenta uma grande tentação para Moisés — a possibi-
lidade de ser uma grande nação, e ele ser o cabeça. Entretanto, Moisés
não tem interesse em ganho pessoal por causa do pecado do povo. Seu
único alvo é manter a glória de Deus e promover o propósito de Deus,
de levá-los do Egito a Canaã. Esta atitude altruísta e despretensiosa é
uma das razões dele ser descrito como “homem mui manso, mais do que
todos os homens que havia sobre a terra” (Nm 12:3). Também, é uma
das razões por que a sua intercessão a favor de Israel foi eficaz. Ele não
tinha motivos ocultos.
Moisés faz duas perguntas que não são respondidas por Deus:
Cap. 3 — As orações de Moisés 63

• “Ó Senhor, por que se ascende o teu furor contra o teu povo, que
tiraste da terra do Egito com grande força e com forte mão?” (v. 11).
• “Por que hão de falar os egípcios, dizendo: Para mal os tirou, para
matá-los nos montes, e para destruí-los da face da terra?” (v. 12).
Moisés não está perguntando em espírito de rebelião, nem tentando
forçar a mão de Deus. Estas são perguntas genuínas. Elas manifestam o
problema na mente de Moisés. Se tivermos este tipo de intimidade com
Deus em oração haverá ocasiões quando, na nossa angústia, faremos
perguntas que outros, se pudessem ouvir, considerariam impertinentes.
Nunca tenha medo de expressar os sentimentos mais profundos do seu
coração a Deus, pois Ele já os conhece!
Em seguida, Moisés faz dois pedidos a Deus que são concedidos.
• “Torna-te do furor da tua ira, e arrepende-te deste mal contra o teu
povo” (v. 12). Os teólogos, há anos, debatem sobre se Deus realmen-
te muda de opinião. Sem querer diminuir a dificuldade, os vs. 12-14
deixam claro que, em algumas ocasiões, Ele muda sim. Moisés pede
que Deus se arrependa (mude de opinião) e “o Senhor arrependeu-
-se [mudou de opinião] do mal que dissera que havia de fazer ao
seu povo” (v. 14). Isso manifesta que orar é uma coisa muito prática
de se fazer numa crise, e ajuda Deus a Se lembrar das promessas
anteriores que Ele fez.
• “Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, os teus servos; aos
quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa
descendência como as estrelas dos céus, e darei à vossa descendência
toda esta terra, de que tenho falado, para que a possuam por heran-
ça eternamente” (v. 13). Aqui Moisés, com respeito, está mostrando
a Deus que destruir Israel significaria falhar com as promessas que
Ele fizera aos patriarcas centenas de anos antes. Moisés está lem-
brando Deus, também, que este povo é a Sua possessão: “… o Teu
povo” (v. 12). Será que Moisés estava simplesmente falando coisas
óbvias a Deus? Não, ele estava demonstrando na sua oração que ele
entendia as revelações divinas anteriormente dadas, e que elas ti-
nham influência sobre o seu pedido e a resposta de Deus. Devemos
aprender disto que podemos usar as Escrituras com inteligência nas
nossas orações.
64 A glória da oração

Êxodo 32:31-32
A segunda oração de Moisés no cap. 32 não produziu a mesma
resposta imediata como a primeira (vs. 11-13). Houve a eliminação da
escória na matança dos responsáveis: três mil homens foram mortos
pelos levitas (v. 28). No dia seguinte, parece que o tamanho do pecado
do povo foi percebido por Moisés, pois ele exclamou: “Vós cometes-
tes grande pecado. Agora, porém, subirei ao Senhor; porventura farei
propiciação por vosso pecado” (v. 30). Então Moisés entra na presença
de Deus, confessa a gravidade do pecado deles e ora, pedindo muito
diretamente o perdão de Deus. Entretanto, Moisés acrescenta o que
parece ser um pedido estranho: se Deus não os perdoasse, então, disse
Moisés, “risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito”. Se podemos
ou não entender plenamente este pedido, certamente podemos ver que
o pedido de Moisés não foi respondido, e que um intercessor eficaz não
minimiza o pecado. Foi porque ele viu a gravidade do pecado deles que
ele intercedeu tão intensamente a favor deles. Talvez, se nós entendês-
semos mais claramente a gravidade do pecado, seríamos mais eficientes
nas nossas orações pela restauração daqueles que têm caído.

Êxodo cap. 33
O cap. 33 é uma continuação dos acontecimentos trágicos de ido-
latria e o resultante juízo de Deus sobre o povo, relatados no cap. 32.
Deus manifesta a realidade do Seu relacionamento com Moisés, pois
Ele “falava … a Moisés face a face; como qualquer fala com o seu ami-
go” (33:11). Não há dúvida sobre a grandeza da sua intimidade. Moisés
então fala com o Senhor e faz um pedido muito específico. Em quase
todas as orações de Moisés ele pede coisas específicas.
Na oração dos vs. 12-13, Moisés pede que o Senhor lhe mostre o
Seu caminho, para que ele pudesse O conhecer. As palavras de Moisés
são muito instrutivas. Em efeito ele diz: “Mostra-me o Teu caminho
para que eu possa vir a Te conhecer”. Moisés entende que ele só pode
conhecer a Deus por conhecer o Seu plano sobre o futuro da nação.
Quando Deus revela o Seu plano sobre o futuro, Ele está, em efeito,
revelando a Si mesmo. Para nós, isto significa que, ao conhecermos o
plano de Deus para as nossas vidas, através da Sua Palavra, estamos
conhecendo mais sobre Ele. Não há outro meio para conhecer a Deus
experimentalmente a não ser pelo conhecimento dos Seus desejos e pela
Cap. 3 — As orações de Moisés 65

obediência à Sua vontade, nas nossas vidas.


A resposta de Deus a esta oração dos vs. 12-13 está no v. 14: “Irá
a minha presença contigo para te fazer descansar”. Deus está dizendo
a Moisés que ele pode ter certeza de que conhece a Deus quando ele
desfruta da presença de Deus com ele. É assim conosco hoje: podemos
ter certeza que conhecemos a Deus quando provamos e gozamos da
Sua presença, diariamente. A única indicação que Moisés precisava da
vontade de Deus era a presença divina. Talvez pensamos que seríamos
cristãos melhores se tivéssemos mais conhecimento sobre Deus, isto
é, teologia. Mas, realmente o que deveríamos procurar é mais conheci-
mento de Deus. Este conhecimento de Deus é provado na Sua presen-
ça e gozado pelo poder do Espírito Santo. Deveríamos, continuamente,
nos perguntar: será que há algo nas nossas vidas que entristece o Espí-
rito Santo? Se tiver, não estamos desfrutando da presença de Deus, e,
portanto, não estamos desenvolvendo o nosso conhecimento dEle.
Nos vs. 15-16, Moisés continua falando com o Senhor sobre a
importância da Sua presença; não somente para o bom andamento da
jornada, mas também como testemunho, para as nações ao redor, da
separação de Israel ao Senhor. Moisés entende que não adianta ele falar
sobre ser separado para Jeová, se ele não estiver desfrutando da presença
de Jeová. Também, não podemos esperar que as pessoas acreditem que
somos um povo separado, se não houver evidência da presença de Deus,
para confirmar esta afirmação. A suprema manifestação de separação é
a presença de Deus. Que desafio prático!
Nos vs. 17 e 21-23, Deus atende ao pedido de Moisés, não por
causa do seu raciocínio eficaz, mas porque Moisés demonstra ao Senhor
que ele reconhece a importância da presença contínua de Deus. Pare-
ce que, pela oração-pedido e raciocínio enquanto ele falava com Deus,
que Moisés “achou graça” aos olhos do Senhor. As orações de Moisés
não eram simplesmente rituais diários repetitivos; ele manifestava inte-
ligência espiritual que agradou a Deus. Quando Deus o informou que
ele tinha achado graça aos Seus olhos, Moisés então fez um acréscimo
ao seu pedido anterior; desta vez ele disse: “Rogo-te que me mostres a
tua glória” (v. 18). Podemos observar a harmonia íntima entre estas três
facetas de Deus que Moisés mencionou na sua oração: a presença de
Deus, o conhecimento de Deus e a glória de Deus. Devemos procurar
imitar a intimidade e inteligência de Moisés em oração, e desejar poder
provar estas três facetas do nosso Deus. A glória de Deus é somente
66 A glória da oração

vista na presença de Deus, e o conhecimento de Deus é somente com-


preendido na presença de Deus.

Êxodo cap. 34
Deus atendeu o pedido de Moisés e lhe mostrou a Sua glória (34:5-
7). Moisés imediatamente “inclinou a sua cabeça à terra e adorou” (v. 8).
Na sua oração ele pede que o Senhor esteja no meio do Seu povo, que os
perdoe e os mantenha como Sua herança. Embora Deus bondosamente
respondera a oração anterior de Moisés, ele não age com presunção.
Esta é sempre a atitude de um salvo reverente: mesmo que tenha falado
francamente e intimamente com o Senhor, ele não se atreve a presumir
da graça divina. É assim que nós também devemos agir. Por mais vezes
que Deus tenha respondido nossas orações, devemos sempre nos apro-
ximar dEle com reverência e reconhecimento da Sua graça.
Os resultados da vida de oração de Moisés se tornaram evidentes
na sua aparência. Quando ele desceu do monte, no v. 29, o seu rosto
irradiava a glória de Deus, em cuja presença ele estivera, e ele não o
sabia. O brilho era tanto que Moisés precisou cobrir o seu rosto quando
falava com o povo de Israel. Sua vida de oração se manifestava no seu
semblante. Temos aqui um desafio para nós; será que o tempo que pas-
samos na presença de Deus se manifesta no nosso semblante, sem que
mencionemos o fato?

Números cap. 11
Há algumas curtas orações no final do cap. 10 e no início do cap.
11, mas vamos deixá-las. Em 11:11-15 temos uma das orações mais
longas de Moisés, e de fato, uma das mais intensas. Israel tinha rejeita-
do o maná (vs. 4-6), e a ira de Deus “grandemente se acendeu” (v. 10).
Observe que isto “pareceu mal aos olhos de Moisés”, o líder, que estava
em harmonia com Deus (v. 10). Uma vida profunda de oração, como a
de Moisés, significa que ele está em perfeita harmonia com a atitude
de Deus contra o pecado. Um sinal de que a nossa vida de oração está
em falta é quando começamos a tolerar o pecado. O pecado não mais
lhe escandaliza? Você nem manifesta mais a sua desaprovação quan-
do linguagem obscena é usada na sua presença, ou quando o pecado é
abertamente alardeado na sua presença? Se for assim, a razão é que você
perdeu a sua intimidade com Deus; sua vida de oração está em declínio.
Cap. 3 — As orações de Moisés 67

A oração de Moisés revela a consternação da sua alma. Mas obser-


ve, nas palavras que ele usa, que ele tinha perdido a visão do que Deus
esperava dele como líder. “Por que fizeste mal a teu servo?” (v. 11). A
pressão de um povo reclamador o desgastara a ponto dele sentir que, por
causa da desobediência deles, Deus o estava afligindo! Um dos primei-
ros sinais de desânimo é quando sentimos que as pressões da vida são
uma aflição do Senhor. Deus não era responsável pelo pecado de Israel,
nem pelas aflições de Moisés.
Neste v. 11 Moisés vai mais longe ainda, e pergunta: “Por que não
achei graça aos teus olhos, visto que puseste sobre mim o cargo de todo
este povo?” Os pensamentos de Moisés estão confusos. Deus não tinha
posto o cargo do povo sobre ele, pois Ele tinha afirmado anteriormente
que iria com ele (Êx 3:12 e 33:14). Em segundo lugar, Deus dissera a
Moisés: “Achaste graça aos meus olhos, e te conheço por nome” (Êx
33:17). Entretanto, as pressões da vida e de liderança fizeram Moisés
esquecer-se destas afirmações tão claras de Deus. Nos vs. 12-13 Moisés
expressa suas mais profundas preocupações, manifestando ainda mais
que seus pensamentos estavam confusos. No v. 14 ele afirma algo que,
se tivesse compreendido antes, o teria poupado de muita aflição mental:
“Eu só não posso levar a todo este povo, porque muito pesado é para
mim”. É claro que ele não era capaz. É claro que eles eram pesados de-
mais para ele! Por que ele tinha pensado diferente? Às vezes temos uma
ideia errada do que Deus quer de nós no Seu serviço, e o resultado é um
grande desânimo. A experiência anterior que Moisés tivera da presença
de Deus e o seu conhecimento de Deus parecem ter sido perdidos, e as-
sim seu desânimo se transforma em desespero. Este desespero é mani-
festado no seu pedido de que Deus o mate logo. “Não demore, Senhor,
faça isso logo. Seria muito melhor eu não estar aqui”. Pobre Moisés! Ele
está tão desanimado que ele pede ao Senhor algo que ele deveria saber
que não era a Sua vontade.
Como Deus tratou o Seu servo petulante? Observe a maneira amá-
vel e bondosa como Deus responde a esta oração de Moisés. Mesmo
embora Moisés estivesse completamente errado na sua petição, Deus
trata o Seu servo desanimado com muita bondade. O “Deus de toda a
consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação” (II Co 1:3-4),
reconhece o problema do colapso do Seu servo, e fornece a resposta para
a sua oração nos vs. 16-17. Moisés recebeu a resposta, mas certamente
não como ele pedira ou esperava. Mesmo recebendo a resposta de Deus,
68 A glória da oração

nos vs. 16-17, Moisés continuou a argumentar com Ele nos vs. 21-22.
Mais uma vez Deus respondeu à sua oração. Desta vez Deus respondeu
simplesmente fazendo Moisés se lembrar do Seu poder e intenção de
completar o Seu propósito e livrar Israel. Pode haver ocasiões quan-
do o desânimo nos faz expressar coisas na presença de Deus das quais
nos envergonhamos mais tarde. O grande encorajamento é que Deus
é paciente e bondoso, e provê conforto para tratar a causa da nossa
impaciência. Sabiamente, Ele ignora os pedidos extremos que fazemos.
Ainda bem para nós que Deus não responde todas as nossas orações da
maneira como pedimos. Deus não é somente poderoso; Ele é também
paciente.

Números cap. 12
É interessante que, no livro de Números, a maioria das orações de
Moisés são por causa dos pecados de outros. Será que o pecado dos
outros nos leva a orar? É muito melhor falar dos erros dos outros com
Deus no lugar secreto, do que fazer deles assunto de fofoca.
Miriã e Arão, a irmã e o irmão de Moisés, tinham criticado Moisés
publicamente e desafiado o seu direito de liderança. Mesmo antes de
Moisés ter tempo de dizer ou fazer algo, Deus desceu ao acampamento
e chamou os três para fora das suas tendas até à porta do Tabernáculo
(12:1-5). Ali Deus anunciou publicamente a Sua satisfação com Moisés
e o Seu desprazer com Miriã e Arão. Moisés não precisou orar pedindo
que Deus o defendesse; Deus fez isso imediatamente, sem ser pedido.
Quando Deus os deixou, Miriã foi afligida com lepra. Arão pediu a
Moisés: “Não ponhas sobre nós este pecado” (v. 11). Em outras palavras,
Arão pediu que Moisés os livrasse das consequências do seu pecado.
Como teríamos nós reagido a este pedido? A reação natural teria
sido para Moisés responder que ele nada podia fazer, pois o caso estava
agora nas mãos de Deus. Moisés poderia ter dito que não fora ele que
iniciara o castigo; fora Deus e, portanto, ele não podia interferir. En-
tretanto, ele imediatamente clamou ao Senhor: “Ó Deus, rogo-te que
a cures” (v. 13). Note que, aqui, Moisés não chamou Deus de “Jeová”,
mas de El, “o Todo Poderoso”. Esta situação vai precisar do poder de
Deus, portanto Moisés se dirige ao seu Deus de modo apropriado. Deus
bondosamente responde à oração de Moisés, mas não antes de aplicar
uma disciplina. Moisés já tinha aprendido o suficiente sobre Deus para
não tentar negociar algo diferente com Ele, em relação à maneira como
Cap. 3 — As orações de Moisés 69

Miriã deveria ser trazida de volta ao acampamento. Um homem que


conhece a mente de Deus saberá quando é apropriado fazer mais um
pedido, e quando aceitar a resposta como sendo final.

Números cap. 14
Moisés, mais uma vez, é levado a orar a Deus por causa do pecado
de Israel. O bem conhecido incidente em Cades-Barneia, onde os dez
espias, com um relatório ruim, persuadem a nação a recusar entrar na
terra, fizeram o Senhor se irar (14:1-12).
Esta é a segunda vez que Deus ameaça destruir a nação e começar
tudo de novo, com Moisés como cabeça da nova nação. Somente al-
guém muito espiritual teria resistido à tentação de concordar com este
plano. Que exaltação isto teria trazido para Moisés. Note como ele se
expressa perante o Senhor na sua oração, nos vs. 13-19. Num discurso
prolongado, Moisés (como também fez no cap. 32 na ocasião do pecado
do bezerro de ouro) mostra que a honra do Senhor sofreria se Ele aca-
basse com a nação. Ele diz que os egípcios ouviriam do ocorrido (v. 13),
e o contariam aos cananeus (v. 14), e assim o testemunho do poder de
Jeová ficará manchado (vs. 15-16).
O pedido de Moisés nos vs. 17-19 é notável: “Agora, pois, rogo-te
que a força do meu Senhor se engrandeça; como tens falado, dizendo:
O Senhor é longânimo, e grande em misericórdia, que perdoa a iniqui-
dade e a transgressão … Perdoa, pois, a iniquidade deste povo, segundo
a grandeza da tua misericórdia; e como também perdoaste a este povo
desde a terra do Egito até aqui”. Em efeito, Moisés está dizendo ao Se-
nhor que a maior demonstração do Seu poder está na Sua misericórdia.
Seria uma clara manifestação do Seu poder os exterminar em juízo; mas
quão maior seria, para as nações ao redor, uma manifestação do Seu
perdão! Mais uma vez, Deus atende a oração de Moisés, e o informa
que o perdão é o resultado direto das suas palavras. “E disse o Senhor:
Conforme a tua palavra lhe perdoei” (v. 20).
Este é mais um exemplo do poder de oração eficaz. “A oração feita
por um justo pode muito em seus efeitos” (Tg 5:16). Nunca devemos
hesitar em orar sobre assuntos sérios — e não sejamos vagos; façamos
pedidos diretos e específicos a Deus, baseados nos Seus planos e na Sua
vontade já revelados.
70 A glória da oração

Números cap. 16
No v. 15 temos mais uma das orações curtas e específicas de Moi-
sés, mas desta vez há uma diferença notável. Neste caso Moisés não
estava somente zangado, ele “irou-se muito”. O motivo desta grande
ira não era somente porque Coré, Datã e Abirão se levantaram contra
a sua liderança, mas também porque recusaram encontrá-lo e aceitar o
seu conselho (v. 12). Na sua recusa eles manifestaram que suas mentes
estavam tão pervertidas pelo pecado, que tinham perdido todo senso de
realidade. Eles compararam o Egito, a terra da sua servidão e sofrimen-
to, com a terra prometida; “Porventura pouco é que nos fizeste subir de
uma terra que mana leite e mel, para nos matares neste deserto” (v. 13).
Isto é típico de como Satanás pode torcer os pensamentos, e como a
rebelião se torna irracional.
Fica claro pelas palavras usadas na oração de Moisés que ele ficou
profundamente ferido com as alegações contra ele, quando ele disse
ao Senhor: “Nem um só jumento tomei deles, nem a nenhum deles fiz
mal”. As palavras fortes usadas no seu pedido refletem a profundidade
da sua mágoa: “Não atentes para a sua oferta”. O tempo do verbo usado
aqui significa: “Nunca mais atentes para a sua oferta”.
Entretanto, embora possamos entender por que Moisés foi tão pro-
fundamente afetado pelas suas críticas, e sentir que realmente não era
correto ele se dirigir a Deus desta maneira, as palavras da sua oração
revelam que ele sabia como Deus se sentia em relação ao pecado deles.
O juízo de Deus contra eles, sem reservas, prova que Ele fez exatamente
o que Moisés pediu (veja os vs. 28-33). Deus viu o pecado deles exa-
tamente como Moisés o viu. Deus não precisou fazer qualquer ajuste
para concordar com o pedido de Moisés. Deus e Moisés estavam em
pleno acordo sobre o pecado do povo. Aqui temos mais uma indicação
da profunda maturidade espiritual de Moisés. Sua vida de oração revela
que ele conhecia a mente de Deus intimamente, e podia pedir de acordo
com a vontade divina. Será que temos este conhecimento da vontade de
Deus nas coisas pelas quais oramos?

Números cap. 21
O incidente das “serpentes ardentes” e da “serpente de bronze” é
bem conhecido, até pelas crianças. Neste incidente temos uma oração
de Moisés sobre a qual temos poucos detalhes. Não sabemos a sua du-
Cap. 3 — As orações de Moisés 71

ração, pois é simplesmente afirmado: “Então Moisés orou pelo povo” (v.
7). O que ele pediu? Não sabemos.
Aqui temos uma lição útil para aqueles envolvidos na propagação
do Evangelho. O incidente inclui três exigências indispensáveis para se
obter a bênção de Deus sobre aqueles que foram afetados pela praga do
pecado.
A petição apresentada pelo israelita picado. Um pecador nunca re-
ceberá livramento da praga do pecado se ele não pedir para ser salvo.
Pecadores não são salvos como robôs. O pecador precisa desejar a sal-
vação. Assim, ao apresentar o Evangelho, temos a necessidade de deixar
bem claro que os incrédulos são pecadores e estão sob a condenação de
Deus.
A petição feita por Moisés. Um povo pecador precisava de alguém
que pudesse interceder a Deus por eles. O apóstolo Paulo nos dá um
exemplo disso em Romanos 10:1: “Irmãos, a boa vontade do meu co-
ração e a minha oração [súplica] a Deus por Israel é para sua salvação”.
Nas nossas orações pelos incrédulos devemos ser persistentes e especí-
ficos, “para que sejam salvos”.
O remédio preparado pelo Senhor. Imediatamente depois de apre-
sentar a sua petição no v. 7, “disse o Senhor a Moisés: Faze-te uma
serpente ardente, e põe-na sobre uma haste …” (v. 8). Deus não salvou
todos os israelitas picados imediatamente. Ele não demorou em atender
a oração de Moisés, mas antes de tudo precisava haver a vontade da
vítima necessitada. Uma serpente de bronze seria colocada numa haste
com a informação: “picando alguma serpente a alguém, quando esse
olhava para a serpente de metal, vivia” (v. 9). Assim também hoje, Deus
não demora em revelar o caminho de salvação em Cristo ao pecador.
Quando oramos pela salvação de alguém, e Deus revela a ele, ou ela, as
reivindicações do Evangelho através da obra do Espírito Santo, a ma-
neira como o pecador reage a esta revelação do Evangelho determina se
ele será ou não salvo. Deus não salvará pecadores contra a vontade deles.

Números cap. 27
Aqui temos a última oração registrada de Moisés. Depois de uma
vida longa e ativa no serviço de Deus, como líder do Seu povo, Moisés
foi informado de que era a hora de vir para casa. Não lhe seria permitido
entrar na terra prometida, para a qual tinha viajado durante quarenta
anos. Não havia amargura no coração de Moisés, mais uma evidência de
72 A glória da oração

um homem cujo coração estava em sintonia com Deus.


Se nós fôssemos confrontados com uma comunicação direta do
Céu como esta, como oraríamos? Seria a nossa oração caracterizada
por recriminação e protesto? Tentaríamos negociar com Deus para que
mudasse o Seu plano? A preocupação principal na oração de Moisés é
com o povo de Israel. Sim, o povo que tinha lhe dado tanto trabalho
durante o seu serviço! Ele estava orando por este mesmo povo rebelde
que, às vezes, o tinha levado ao desespero! Enquanto lemos a sua oração,
podemos perceber a sua compaixão e preocupação com o povo de Deus.
“Ó Senhor, Deus dos espíritos de toda a carne, ponha um homem
sobre esta congregação, que saia diante deles, e que entre diante deles, e
que os faça sair, e que os faça entrar; para que a congregação do Senhor
não seja como ovelhas que não têm pastor” (vs. 16-17). Com discerni-
mento e experiência Moisés sabia que, deixados sozinhos, o povo de
Israel logo se desviaria como ovelhas sem pastor. A sua preocupação
era que Deus levantasse um líder para cuidar deles e dar-lhes direção
espiritual até que chegassem, seguros, na terra.
Quão fácil teria sido, nestas circunstâncias, fazer pedidos focaliza-
dos nele mesmo. Mas Moisés não fez isto; ele era manso demais para
este tipo de comportamento egoísta.

Salmo 90
Mesmo que este capítulo tenha ultrapassado o tamanho sugerido,
não podemos terminar sem mencionar este Salmo. É uma parte impor-
tante deste capítulo porque:
• É o único salmo atribuído a Moisés no seu título ;
• É o mais antigo de todos os salmos no livro de Salmos;
• Moisés é chamado: “Moisés, o homem de Deus”.
O conteúdo do Salmo reflete muitas das experiências de Moisés
durante a sua vida de serviço para Deus.
Como o autor de Gênesis, Moisés, por inspiração divina, revelou a
criação do mundo. No Salmo 90:2 ele fala das montanhas “nascendo”.
Moisés começa o relato da Criação em Gênesis falando de um Deus
que já existia: “No princípio Deus …” (Gn 1:1). No Salmo, ele também
fala do soberano Senhor em termos semelhantes: “Mesmo de eternida-
de a eternidade, Tu és Deus”.
Como o líder de Israel no deserto, Moisés tinha visto Deus agir em
Cap. 3 — As orações de Moisés 73

juízo a tal ponto que os “filhos dos homens” (v. 3) foram levados “como
uma corrente de água” (v. 5). Ele estivera com Israel quando confessa-
ram: “Somos consumidos pela Tua ira, e pelo Teu furor somos angus-
tiados” (v. 7).
Sendo o primeiro salmista, Moisés escreve no salmo mais antigo do
livro sobre o seu Deus que ultrapassa a todo o tempo: “De eternidade a
eternidade, Tu és Deus” ( v. 2).
Moisés, sendo “homem de Deus” (veja o título do salmo) conhecia a
intimidade de refugiar-se em Deus (v. 1). O Salmo todo revela um ho-
mem que estava contente em falar com Deus. Ao falar com Ele, Moisés
estava preocupado em conhecer a presença de Deus (v. 13), e em fazer a
vontade de Deus, de uma maneira que O agradasse (vs. 16, 17).
Todas estas coisas são características da vida de oração de alguém
que é descrito por Deus como um “homem de Deus”. A característica
principal de todo homem de Deus é ser um homem de oração.
Cap. 4 — As orações de Davi
Por James M. Flanigan, Irlanda do Norte

Introdução
Davi era o oitavo e mais novo filho de Jessé o belemita, e como
Alexandre Maclaren comenta:
Foi por instinto profético que Jessé deu a seu filho mais novo um
nome que, aparentemente, não tinha sido usado antes: Davi, “Ama-
do”,

pois através dos séculos o jovem pastor, que se tornou rei, de fato
tem sido amado pelo povo de Deus em todo lugar.
Pode parecer um pouco insensível tentar analisar as orações do doce
salmista de Israel, e uma consideração detalhada das suas orações pro-
vavelmente seria quase como um outro comentário sobre os seus muitos
salmos. De fato, tantos dos salmos de Davi têm o caráter de oração que
seria, no espaço limitado desta meditação, uma impossibilidade prá-
tica considerar todos eles. No entanto, já que muitas das suas orações
são também registradas em outros lugares, e preservadas para nós, deve
haver uma razão. Deve haver alguma direção espiritual e proveito para
nós na leitura e consideração das orações de Davi, portanto certamente
temos razão em considerá-las agora.
A expressão no título deste capítulo, “As orações de Davi”, é en-
contrada somente uma vez nas Escrituras, no Salmo 72:20, que é não
somente o versículo final deste lindo Salmo milenar, mas também o
versículo final do Segundo Livro dos Salmos (Sl 42-72). O Salmo 72
é o clímax, um companheiro do Salmo 24, um “crescendo”, no qual são
profetizadas as glórias do reino vindouro do Messias, o maior Filho de
Davi, e quando as condições aqui descritas são compreendidas, Davi
não tem mais nada sobre o que orar. O fim de todas as suas orações
é a entronização e o governo do Filho de Davi, na própria terra onde
Ele foi rejeitado e crucificado. Em antecipação, o salmista tem canta-
do sobre estes dias, e quando se concretizarem, então “aqui acabam as
orações de Davi, filho de Jessé” (72:20). Ele nada mais pode pedir; ele
nada mais deseja.
Cap. 4 — As orações de Davi 75

A abrangência das orações de Davi


Na sua carta a Timóteo, Paulo escreve: “Admoesto-te, pois, antes de
tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações de graças,
por todos os homens” (I Tm 2:1). A maioria dos expositores reconhe-
ce uma dificuldade em explicar a diferença entre estas quatro palavras:
deprecações, orações, intercessões e ações de graças. Talvez haja algu-
ma sobreposição, mas elas realmente indicam vários aspectos de oração.
“Deprecação” sugere uma súplica sincera tendo em vista alguma neces-
sidade específica. “Oração” parece ser uma palavra mais geral, e significa
uma comunicação com Deus sobre todo tipo de assunto. “Intercessão”,
como o prefixo “inter” indica, é fazer pedidos a favor de outros, mediar
por eles em oração. “Ação de graças” não precisa de explicação.
Algum sugeriu, de forma bem útil, que “oração” é um homem de
joelhos; “deprecação” é um homem prostrado com o rosto em terra; “in-
tercessão” é um homem de pé com as mãos erguidas ao Céu; “ação de
graças” é um homem assentado, com a cabeça curvada em sincera gra-
tidão a Deus. Alguns têm visto nas quatro palavras uma ilustração dos
quatro ingredientes do incenso santo de Êxodo 30:34, onde estoraque,
onicha, galbano e incenso eram misturados e formavam uma fragrância
suave para o prazer de Deus.
Davi conhecia todos estes aspectos da oração, e até mais. Algumas
das suas orações eram pessoais, algumas proféticas; algumas eram prá-
ticas e algumas eram devocionais; outras, infelizmente, eram confessio-
nais ou penitentes, reconhecendo falhas e pecado. Algumas eram por
ele mesmo e pela sua família, especialmente por Salomão, algumas eram
pelos seus amigos, e algumas pela nação. Também, às vezes, as orações
de Davi eram, como alguns dos seus salmos, imprecatórias, pedindo o
juízo sobre seus muitos inimigos. Parece que o homem segundo o co-
ração de Deus (At 13:22) estava sempre em comunhão com o Senhor
sobre algum assunto, ansioso por fazer a vontade de Deus, e seus salmos
estão permeados com suas orações. Suas orações não eram esporádicas,
pois ele mesmo disse: “De tarde e de manhã e ao meio dia orarei; e cla-
marei, e ele ouvirá a minha voz” (Sl 55:17). Como Davi era semelhante
àquele outro homem de oração, Daniel, sobre quem está escrito: “Três
vezes no dia se punha de joelhos, e orava, e dava graças diante do seu
Deus” (Dn 6:10). Que exemplos!
76 A glória da oração

A primeira oração registrada de Davi


Talvez não seja por acaso que as primeiras orações registradas de
Davi tratam de conflito com seus inimigos, os filisteus. “E foi anunciado
a Davi, dizendo: Eis que os filisteus pelejam contra Queila, e saqueiam
as eiras. E consultou Davi ao Senhor, dizendo: irei eu, e ferirei a estes
filisteus? E disse o Senhor a Davi: Vai, e ferirás os filisteus, e livrarás
a Queila” (I Sm 23:1-2). Dois versículos adiante lemos: “Então Davi
tornou a consultar ao Senhor”. Davi, de fato, era “homem de guerra” (I
Sm 16:18), e lamentavelmente, embora lutasse tão valentemente por
Israel, foi exatamente isto que o impediu de ter o privilégio de cons-
truir o Templo. Como ele mesmo relata: “Porém Deus me disse: Não
edificarás casa ao meu nome, porque és homem de guerra, e derramaste
muito sangue” (I Cr 28:3). Depois disto, tantas das orações de Davi têm
esta característica: pedir ajuda e direção nos conflitos. Uma oração se-
melhante é registrada em II Samuel 5:19: “E Davi consultou ao Senhor,
dizendo: Subirei contra os filisteus? Entregar-mos-ás nas minhas mãos?
E disse o Senhor a Davi: Sobe, porque certamente entregarei os filisteus
nas tuas mãos”. Vez após vez, lemos que Davi consultou ao Senhor.
Às vezes a resposta vinha imediatamente, e às vezes, como conosco, a
resposta não era como Davi esperava, ou queria. Mais tarde, quando os
filisteus novamente vieram contra ele, lemos: “E Davi consultou ao Se-
nhor, o qual disse: Não subirás; mas rodeia por detrás deles, e virás a eles
defronte das amoreiras” (II Sm 5:23). Quão bom é obedecer, mesmo
quando as instruções nos pareçam estranhas.

Inteligência e reverência
Com certeza, cada cristão zeloso deseja ser inteligente e também
reverente ao se aproximar de Deus, e tais características são muito evi-
dentes na maneira como Davi se dirige às pessoas divinas. Seu uso inte-
ligente dos títulos divinos apropriados de fato indica reverência, e nestes
dias modernos podemos, com certeza, aprender do exemplo de Davi em
relação a isto.
Elohim
Quantas vezes ele exclama “Ó Deus” ao se aproximar em oração.
“Deus”, no hebraico, é Elohim. É o primeiro título divino usado na nos-
sa Bíblia (Gn 1:1). É um nome plural indicando Um que não somente
Cap. 4 — As orações de Davi 77

é poderoso, mas todo-poderoso, absolutamente supremo no Seu poder.


Davi usa este grande nome mais de cento e quarenta vezes nos seus
salmos. Como isto deve produzir confiança em nós, saber que quan-
do oramos nós nos aproximamos do supremo e todo-poderoso Elohim.
Com certeza, sabemos que Ele é o nosso Pai, e isso O traz muito perto
de nós, mas nosso Pai é o todo poderoso Elohim, Criador do Univer-
so. Como devemos confiar nEle, como Davi fazia. Além disso, Davi
também muitas vezes exclama, “Ó meu Deus”. O pronome possessivo
“meu” tornava Elohim muito relevante para ele, e quase podemos sentir
a ternura quando ele clama, vez após vez: “Ó meu Deus [meu Elohim]”.
Jeová
Se Davi realmente e literalmente pronunciou o grande nome “Jeo-
vá” não podemos afirmar. Hoje em dia, os judeus o consideram como
um nome que não deve ser pronunciado. Também não o escrevem por
extenso, mas com certeza Davi, de alguma forma, usou ou indicou o
grande nome, e o emprega centenas de vezes nos seus salmos. Como
com Elohim, ele às vezes liga o nome ao pronome, e exclama: “Ó meu
Jeová”. Ao contemplarmos o uso inteligente e reverente que Davi faz
dos títulos divinos, numa dispensação passada, quão gratos devemos ser
ao cantarmos, com mais entendimento do que Davi:
Tão perto de Deus, sim muito perto;
Mais perto não podemos estar,
Pois na Pessoa do Seu Filho
Estamos tão perto quanto Ele. (C. Paget)*
Para os salvos desta presente dispensação Elohim não está distante!
Jeová não está remoto! Lembrando do nosso privilégio, nós nos aproxi-
mamos com intrepidez, mas lembrando da grandeza divina, nos aproxi-
mamos com a devida reverência.
Jeová El
Este título enfatiza a inteligência de Davi nas suas orações quando,
vez após vez, ele apela ao “Senhor Deus”, como por exemplo no Salmo
31:5. Aqui “Senhor” é Jeová e Deus é El (veja Strong 0410). Esta com-
binação de títulos indica a total suficiência e o poder do Deus de Davi.

* Tradução literal. O original diz: “So near to God, so very near;/Nearer we cannot be,/For in
the Person of His Son/We are as near as He.” (N. T.)
78 A glória da oração

Não podemos pensar que ele usava estes títulos indiscriminadamente,


ou a esmo, mas com inteligência reverente, e é comovente lembrar que
o versículo acima mencionado, Salmo 31:5, foi usado pelo Senhor Je-
sus no Seu último suspiro no Gólgota, quando Ele disse: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito” (Lc 23:46), e talvez estivesse na mente de
Estevão também na hora do seu apedrejamento (At 7:59). Davi não co-
nhecia a Deus como Pai, pois este relacionamento veio mais tarde, com
a ressurreição de Cristo e com a chegada do Espírito para habitar nos
salvos. O Calvário e Pentecoste fizeram grandes mudanças! Entretanto,
Davi conhecia o cuidado Paternal. Ele apreciava este cuidado, mas diri-
gia suas orações a Jeová, a Elohim, ou a El.

A oração do penitente
É difícil imaginar um contraste maior do que o que temos entre
as orações do homem de guerra e as orações e confissões de Davi, o
penitente. Que grande diferença no ambiente, na linguagem e no apelo
de coração. Davi tinha pecado gravemente. Ele tinha transgredido o
décimo, o sétimo e o sexto mandamentos, nesta ordem. O homem que
havia subjugado os filisteus, os sírios, os amalequitas, os amonitas, os
moabitas e edomitas, não podia subjugar as suas próprias paixões. A
indolência e preguiça tinham produzido a cobiça, o adultério, a hipocri-
sia e o homicídio. O homem que tinha matado um leão, um urso e um
gigante, agora fora pego pela sua própria incontrolada concupiscência.
Pobre Davi! A nação estava cantando os seus salmos, mas ele estava
lamentando o seu remorso. Aqueles que desejam julgar e criticar Davi
devem ler o Salmo 51 antes de expressarem qualquer crítica cruel. Esta
é a triste oração de um Davi sinceramente arrependido, e que exemplo
para todo salvo que tem algum pecado a confessar.
Davi reconhece, sem reservas, o seu pecado. Ele também reconhece
a grandeza deste pecado. Sem dúvida, ele tinha pecado contra Urias,
contra Bate-seba, contra sua família e contra a nação, mas tal era a enor-
midade do seu pecado que ele exclama: “Contra ti, contra ti somente
pequei” (Sl 51:4). Seu pecado foi uma transgressão deliberada da lei
conhecida de Jeová. Não era um pecado de ignorância. Foi rebeldia e,
portanto, foi primeiramente um pecado contra Deus. Se outros foram
afetados pelo seu pecado, como de fato foram, isso era sério, mas pecar
contra Deus, a quem ele conhecia, era o supremo erro. Ele usa três gran-
des expressões para descrever o seu pecado: “minha transgressão”, “meu
Cap. 4 — As orações de Davi 79

pecado”, “minha iniquidade”. A sua confissão é totalmente sem reservas.


O profeta Natã o reprova e ele aceita esta reprovação. Ele não ofe-
rece qualquer desculpa e não pede clemência. Ele deseja a libertação da
culpa de sangue, e suplica somente pela bondade amorosa e as ternas
misericórdias de Deus, enquanto ele diz: “Apaga … lava-me … purifica-
-me”. Observe a ausência relativa de títulos divinos nesta oração. So-
mente seis vezes nos dezenove versículos Davi usa o titulo Elohim, e
somente uma vez o titulo Adonai. Esse significa “Senhor”, e é o titulo
usado pelos judeus nas suas liturgias como substituto de “Jeová”. Será
que percebemos aqui uma alienação do seu Deus? Como ele tem pavor
de ser deixado na sua culpa. Se a alegria da sua salvação não for restau-
rada, isto afetará o seu testemunho aos pecadores, e afetará também a
bênção de Deus a Sião. A sua única esperança é a magnanimidade do
Deus da sua salvação. Se Ele, na grandiosa bondade do Seu coração,
ouvisse a confissão do Seu servo e perdoasse o seu pecado, então tudo
seria restaurado ao que era anteriormente.
Observe que Davi confessa: “Eis que em iniquidade fui formado, e
em pecado me concebeu a minha mãe” (Sl 51:5). Ele tinha nascido em
pecado e tinha herdado uma natureza pecaminosa, mas ele não usa isto
como desculpa pelo que fez. Ele tinha pecado deliberadamente, e seu
pecado pesava na sua consciência; estava sempre perante ele. Ele im-
plora: “Apaga … lava-me … purifica-me”, porque ele se sente como um
leproso imundo, ou como uma veste corrompida. Ele estava manchado,
quebrado, mas ele pediu algo que um salvo desta dispensação não pode
pedir: “Não retires de mim o teu Espírito Santo” (v. 11). Nós temos,
habitando em nós, o bondoso Espírito Santo que nunca nos deixará;
com esta ressalva, que exemplo para nós quando pecamos! Devemos
trazer um reconhecimento franco e sincero do erro, lançando-nos, sem
reservas, sobre aquele que não somente é fiel em julgar o pecado, mas
também é fiel em perdoar o verdadeiro penitente. Nas bênçãos da nossa
salvação nesta era do Novo Testamento, não precisamos implorar pelo
perdão, pois “se confessarmos o nosso pecado, ele é fiel e justo para nos
perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça” (I Jo 1:9), e no
Senhor Jesus temos um Advogado, um Consolador que nos ajudará a
voltar à comunhão com o Pai que temos entristecido (I Jo 2:1). Mas,
quando lembramos que o homem segundo o coração de Deus podia
pecar tão gravemente, convém que oremos como ele orou: “Guarda-me,
ó Deus, porque em ti confio” (Sl 16:1).
80 A glória da oração

O Salmo 32 é um salmo associado ao Salmo 51, e dizem que foi


escrito após a restauração de Davi depois do seu pecado com Bate-seba.
Este é um de treze Salmos “Masquil”, que significa “instrução”, e quem
melhor podia dar instrução sobre o pecado, confissão e restauração do
que alguém que tinha passado por isto. Davi relembra as coisas passa-
das. Ele se lembra da dor daqueles dias depois do seu pecado e antes do
seu perdão. Ora ele sofria em silêncio doloroso, ora gemia audivelmente,
angustiado sob a mão de Deus. Internamente sua consciência estava
sobrecarregada, e exteriormente até a sua aparência física foi afetada.
Dia e noite ele sofria em profunda convicção pelo que fizera, até que,
como diz: “Confessei-te o meu pecado e a minha maldade não encobri.
Dizia eu: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e Tu per-
doaste a maldade do meu pecado (Selá)” (Sl 32:5). Quão sincera foi a
sua confissão, pois imediatamente depois vem o “Selá”. Houve perdão,
paz e louvor, e ele exclama: “Tu és o lugar em que me escondo”. Agora
ele pode descansar na bênção do perdão, pois a sua transgressão está
perdoada e o seu pecado coberto. Isso realmente é uma grande bênção,
verdadeira felicidade. Agora há cânticos de livramento, e o Salmo ter-
mina com gritos de alegria.
Davi nos ensina, através da sua própria experiência dolorosa, o cus-
to de pecar contra o Senhor, e a tolice, se tivermos pecado, de tentar
escondê-lo, ou de ficar em silêncio e recusar, obstinadamente, reconhe-
cer francamente o nosso pecado. Ainda hoje há bênção naquela sincera
confissão que é o prelúdio ao perdão e à restauração do gozo da comu-
nhão. Quão instrutivas são as orações de Davi!

As orações do fugitivo
Davi teve dois períodos na sua vida quando ele foi exilado e fugi-
tivo. Ele foi fugitivo do invejoso Saul que temia a ascensão de Davi ao
trono. Saul caçava Davi como “uma perdiz nos montes” (I Sm 26:20).
Davi peregrinava no deserto de Zife, vários km ao sudoeste de Hebron,
onde em mais de uma ocasião, ele poupou a vida de Saul quando ele
facilmente o poderia ter matado. Com nobreza ele recusou ferir aquele
a quem ele chamou de “ungido do Senhor”(v. 11).
Mas, sem dúvida, o exílio mais doloroso de Davi foi o período
quando ele foi obrigado a fugir de Jerusalém por causa do seu próprio
filho, Absalão. Absalão era um usurpador, um rebelde, querendo tomar
o trono do seu pai. Com sua vida em perigo, Davi fugiu, e com sua cabe-
Cap. 4 — As orações de Davi 81

ça coberta e seus pés descalços, ele atravessou o ribeiro de Cedrom para


o monte das Oliveiras com alguns fiéis seguidores. Ele enviou a Arca da
Aliança de volta a Jerusalém, e começou o seu triste exílio no deserto da
Judeia. Ele era, como diz Maclaren, “um rei descoroado”, e foi durante
este período que vários dos seus salmos foram escritos, incorporando
neles algumas orações tocantes do fugitivo.
A primeira destas orações é o Salmo 3, onde o título claramente
informa que foi composto “quando Davi fugiu de diante da face de
Absalão, seu filho”. Começa com um clamor do seu coração a Jeová:
“Senhor, como se têm multiplicado os meus adversários!” Absalão, com
astúcia, tinha ajuntado tantos a ele, e tal era a situação de Davi, que
diziam: “Não há salvação para ele em Deus”. Mas na sua lamentação
também há esperança, e ele podia exclamar: “Porém Tu, Senhor, és um
escudo para mim, a minha glória e o que exalta a minha cabeça”. Ele
confiadamente cria que o Senhor, como um escudo, o protegeria, para
que pudesse erguer novamente a sua cabeça e ser restaurado à sua glória
anterior. Confiante que o Senhor o preservaria e o livraria, ele podia
deitar e dormir. Ele não podia confiar e temer ao mesmo tempo, e assim
ele diz, calmamente: “Eu me deitei e dormi; acordei porque o Senhor
me sustentou. Não temerei” (vs. 5-6). Jeová era mais poderoso do que
os seus inimigos.
Os Salmos 3 e 4 formam um par. Continuando a sua confissão
no Salmo 4, Davi agora implora: “Levanta-te Senhor, salva-me”, e seu
apelo é àquele que ele chama de “Deus meu”. Na sua aflição ele franca-
mente reconhece a sua própria injustiça e seu apelo é para o Justo, por
meio de quem a justiça pode ser restaurada. Davi fora atormentado pela
lembrança do seu pecado e pelo trauma da sua convicção e confissão, e
ele agora diz, na linda tradução do Sr. Darby do Salmo 4:1: “Na pressão
Tu me deste largueza”. Normalmente pressão comprime e abafa, mas
a pressão de tudo pelo qual ele passara desde que o profeta Natã o
desafiou, teve o efeito de alargar os pensamentos de Davi sobre Deus.
Ele somente pode pedir misericórdia e graça, e tal é a sua confiança na
misericórdia de Jeová que ele conclui a sua oração dizendo: “Puseste
alegria no meu coração”, e mais uma vez declara: “Em paz também me
deitarei e dormirei, porque só Tu, Senhor, me fazes habitar em seguran-
ça” (vs. 7-8). Jeová é a sua força e nele Davi pode descansar em confian-
ça, e dormir em segurança, sem temor daqueles que o estão caçando.
82 A glória da oração

Confissão e meditação
Embora não seja afirmado especificamente no salmo, geralmente é
aceito que o Salmo 25 também está relacionado com o pecado e confis-
são de Davi. Como no penitente Salmo 51, Davi mais uma vez suplica
ao “Deus da minha salvação”. Ele fala de perdão e de preservação, de
ternas misericórdias e de bondade amorosa, e ele pede direção e orien-
tação. Ele professa a sua confiança naquele que pode livrá-lo dos seus
inimigos. Há muitos, ele diz, que o odeiam sem causa, e ele pede a
Deus a necessária ajuda na sua aflição. Quão totalmente submisso ele é
na sua contrição enquanto suplica a Jeová: “Faze-me saber … ensina-
-me … guia-me … por ti estou esperando todo o dia”. Quão relevantes
são estas petições aos cristãos no dia de hoje. Entretanto, se as súplicas
são realmente genuínas, então o suplicante deve estar preparado para
aceitar e agir segundo as respostas divinas. O que Ele me mostrar; onde
quer que Ele me guiar; qualquer verdade que Ele me ensinar, eu preciso
confiar e estar disposto a aceitar o Seu plano para mim. Este é o cami-
nho de bênção, e como frequentemente cantamos:
É confiar e obedecer, pois não há outra maneira
De ser feliz em Jesus; a não ser por confiar e obedecer. (J. H. Sammis)*

Minha força; meu escudo; meu canto


No Salmo 28 a petição de Davi continua, e agora ele teme as terrí-
veis consequências se Jeová não lhe responder. “A Ti clamarei, ó Senhor,
Rocha minha”. No Salmo 18 Davi já usou este grande título de Deus,
“Meu Rochedo”, e associado com este título tantos outros títulos de
Jeová, tão confortantes a um fugitivo, como ele era naquela ocasião. “O
Senhor é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu
Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da
minha salvação, e o meu alto refúgio”. Que grande força é transmitida
em todas estas descrições reverentes de Deus, e que grande consolo para
um fugitivo.
Mas que tragédia se Jeová deixasse de responder! “Não emudeças
para comigo; não aconteça, calando-te Tu para comigo, que eu fique
semelhante aos que descem ao abismo”. De fato, que grande tragédia
* Tradução literal. O original diz: “Trust and obey, for there´s no other way,/To be happy in Jesus,
but to trust and obey.” H. M. Wright traduziu assim: “É confiar, sim, e obedecer/Se contentes
em Cristo nós queremos viver”. (N. T.)
Cap. 4 — As orações de Davi 83

seria para qualquer cristão se Jeová ficasse em silêncio e não lhe res-
pondesse! Davi teme que em tais circunstâncias ele se tornaria como a
multidão. Eles são os ímpios que com suas línguas falam de paz, mas
nos seus corações planejam o mal. É fingimento, é hipocrisia, e ele não
quer mais destas coisas. Ele tinha se comportado exatamente como os
ímpios “que praticam a iniquidade; que falam de paz ao seu próximo,
mas têm mal nos seus corações” (Sl 28:3). Davi tinha falado de paz com
Urias enquanto ele estava planejando mal contra ele no seu coração.
Ele tinha falado “shalom” (paz) enquanto planejava a sua morte. “Vindo,
pois, Urias a ele, perguntou Davi como passava [shalom] Joabe, e como
estava [shalom] o povo, e como ia [shalom] a guerra” (II Sm 11:7). Isto
lhe custou a alegria da sua salvação e a sua utilidade como testemunha
para Deus. Davi pecou na sua fraqueza, mas o Senhor era a sua força, e
Davi irá a Ele.
Agora, perdoado, Davi pode orar sinceramente pelo seu povo, a
quem ele chama de “O teu povo, a tua herança”. Ele ora: “Salva o teu
povo, e abençoa a tua herança; e apascenta-os e exalta-os para sempre”.
No v. 7 ele tinha dito: “O Senhor é a minha força”, e agora, no v. 8, ele
diz: “O Senhor é a força do seu povo”. Agora, restaurado a Deus, a preo-
cupação de Davi é com a nação.
O fugitivo no deserto
O Salmo 63 foi escrito durante o exílio de Davi no deserto, e suas
condições físicas e suas circunstâncias eram somente um reflexo dos
seus sentimentos interiores. Acordando cedo de manhã numa terra seca
e sedenta, ele tinha fortes desejos e necessidades. Fisicamente ele deve-
ria ter desejado água e alimento, mas seus desejos físicos eram pequenos
em comparação com seu desejo de ver o poder e glória do santuário, que
agora deve ter parecido estar tão distante dele. Mas a bondade amorosa
do poderoso Elohim era melhor do que a própria vida, e ele nunca dei-
xaria de oferecer louvores. Enquanto vivesse, ele diariamente bendiria
o Senhor. Cedo de manhã ele ofereceria seus louvores, e até sobre a sua
cama, nas vigílias da noite, ele meditaria no Senhor. Apesar das suas cir-
cunstancias desfavoráveis no deserto inóspito, ele podia dizer: “Porque
Tu tens sido o meu auxilio; então à sombra das tuas asas me regozijarei”
(v. 7). Como um passarinho ele podia se agasalhar na sombra das asas de
Jeová. Ali ele teria a garantia de segurança e abrigo, e ali ele poderia des-
cansar protegido, contente e satisfeito. Que exemplo encorajador Davi
84 A glória da oração

nos deixou. Quase todos nós vivemos em condições muito melhores do


que as deste pobre fugitivo, mas mesmo nos nossos dias de escuridão e
tristeza, ou nos tempos de solidão, fazemos bem em imitar este homem
bom, e continuar louvando.
Por um momento, ele pensa nos seus inimigos. Eles serão julgados.
Eles cairão pela espada, mas ele regozijará. Ele lembra, mesmo no seu
exilio imposto, que ele é rei, e que a mão direita do Senhor o susterá.
Vamos, como Davi, encher as nossas orações com louvores, e perseverar
regozijando.
Embora muitas das orações de Davi têm em vista o reino e a nação,
ele também ora muito por si mesmo. No Salmo 31 ele fala da sua confian-
ça, da sua angústia e dos seus tempos. Ele reconhece que seus tempos es-
tão nas mãos do Senhor, e mesmo nestes tempos, ordenados por Jeová, há
angústias, e em tais tempos ele precisa confiar. “Sê a minha firme rocha”,
ele clama mais uma vez, e novamente ele usa um lindo titulo do seu Deus
dizendo: “Tu me redimiste, Senhor Deus da verdade” (v. 5). Jeová Elohim
era de fato um Deus de verdade. Ele merecia a confiança do Seu povo.
Tudo que Ele planejava para eles, tudo que Ele fazia, tudo que Ele dizia
estava de acordo com o Seu caráter. Não havia falsidade nEle, e nem va-
cilação. Com isto Tiago concorda no Novo Testamento, chamando-O de
“o Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação” (Tg
1:17), e Ele tinha gerado o Seu povo pela Palavra da verdade. Assim como
Davi, nós podemos confiar no Senhor Deus da verdade, e descansar.

Orações do sofredor
É dito que poetas aprendem no sofrimento o que ensinam nos seus
cânticos, e isto certamente foi o caso com Davi. Tantos destes seus Sal-
mos que incorporam as suas orações foram concebidos no sofrimento,
e são agora muito abençoados no conforto que dão a outros sofredores.
Talvez Davi não percebesse, mas algumas das orações que se ori-
ginaram nas suas aflições eram previdentes e proféticas do Messias
sofredor, e talvez também de um remanescente perseguido de um dia
vindouro. Destes, os Salmos 22 e 69 são exemplos supremos.
No Salmos 22 ele se compara a uma corça da manhã, pois este é o
significado das palavras hebraicas no título, Aijelete Hashahar. A corça
da manhã era assim chamada porque, sendo animal tímido, era caçada
até mesmo quando vinha beber e se alimentar da grama às margens
da água, cedo de manhã. Ela achava um pouco de descanso somente
Cap. 4 — As orações de Davi 85

ao alvorecer, mas logo depois do nascer do Sol era cercada por inimi-
gos. Davi conhecia bem esta situação, e foi assim também com o nosso
bendito Senhor. Fortes touros e cães ferozes O rodearam; orgulhosos
líderes judaicos e gentios mercenários sem compaixão. Eles abriram
contra Ele as suas bocas e O contemplaram na Sua fraqueza. Davi não
conhecia os detalhes do sofrimento de Cristo, mas estes são retratados
no Salmo 22. Estes detalhes agora são relatados nos Evangelhos para a
admiração do Seu povo, e para que possam adorar e apreciar aquele que,
de fato, foi o Homem de dores.
Aquele remanescente fiel de um dia vindouro, sofrendo sob o reino
tirânico do homem do pecado, provavelmente usará a linguagem do
Salmo 22 enquanto mantêm o seu testemunho para o Senhor. Cercado
e caçado por inimigos, como Ele foi, eles acharão conforto na lingua-
gem deste e de outros salmos do sofredor.
O Salmo 69 também é uma oração do sofredor. Um comentarista*
o chama de “Oração do Servo Sofredor de Deus”. Um escritor judaico†
o chama de “Oração do Perseguido”. Há talvez seis referências a afron-
tas no salmo. Davi clama: “Salva-me ó Deus” (ARA) e imediatamente
começa a falar do seu profundo sofrimento. Logo ele exclamará: “Livra-
-me” (ARA), e mais do que uma vez ele clama: “Responde-me, ó Deus!”
(ARA). Ele se sente como alguém que se afunda no lamaçal, e compara
a sua tristeza com a corrente de águas que ameaça o levar.
A grande preocupação e o tema do Salmo 69 é sofrimento, e o
salmista almeja alívio. Do começo ao fim, é uma oração por interven-
ção divina na sua aflição, mas também, como no Salmo 22, às vezes
transparece aquela certeza de que Jeová ouve o clamor do necessitado e
certamente o salvará. Assim, pode haver motivo para louvor, mesmo na
tribulação. “Louvarei o nome de Deus com cântico e engrandecê-lo-ei
com ação de graças” (v. 30).
Então, como já foi mencionado no Salmo 4:1, Davi diz ao Deus
de justiça: “Na pressão, me deste largueza” ( JND). Davi aprendeu que
a pressão do sofrimento produzirá crescimento, não somente nos seus
pensamentos sobre Deus, mas na sua atitude e ministério ao seu próxi-
mo. E assim continua sendo; os santos que sofrem e que entendem que
há propósito neste sofrimento, frequentemente manifestam uma doçura
que muitos outros não possuem.
* DAVISON, W. T. The Psalms (I-LXXII). The Century Bible. Edimburgo: T. C. & E. C. Jack.
† COHEN, Dr. The Psalms. Londres: The Soncino Press, 1945.
86 A glória da oração

Amor e confiança
Como todos os homens, Davi tinha suas faltas e falhas, algumas
delas muito graves, mas não há dúvida alguma sobre o seu grande amor
por Jeová. Em oração, nos seus salmos, ele expressa este amor livremen-
te. Embora o Salmo 116 seja anônimo, as suas primeiras palavras (“Amo
ao Senhor”) bem podem ter estado frequentemente nos lábios de Davi,
e o salmo continua com uma multidão de razões para o amor do salmis-
ta, aos quais Davi poderia ter acrescentado um sincero “Amém”. Jeová
era bondoso e misericordioso; Ele inclinava o Seu ouvido ao Seu povo;
Ele ouvia e respondia as suas orações e os tratava bondosamente; Ele os
salvava e os guardava, e assim tudo isto merecia a exclamação: “Louvai
ao Senhor” (“Aleluia”, v. 19 ARA).
O amor de Davi para com o Senhor gerou uma correspondente
confiança nEle, e esta confiança é expressa em muitos dos seus salmos.
Quão lindo, em relação a isto, é o Salmo 18:1-2: “Eu te amarei, ó Se-
nhor, fortaleza minha. O Senhor é meu Rochedo, e o meu lugar forte,
e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o
meu escudo, a força da minha salvação e o meu alto refúgio”.
Às vezes é difícil separar as orações e os louvores nos salmos de
Davi. Às vezes ele faz um pedido sincero e urgente, e logo em seguida
ele irrompe em exclamações espontâneas de louvor, como se já tivesse
recebido as respostas às suas petições. Isso é amor e confiança agrupa-
dos. Amor por Jeová o encoraja a se aproximar e fazer o seu pedido, e
confiança o capacita a crer que sua oração é ouvida e que será, de fato,
respondida. É como se ele vivesse no gozo desta certeza escrita para
um povo de outra época: “E será que antes que clamem eu responderei;
estando eles ainda falando, eu os ouvirei” (Is 65:24).

Orações do peregrino
Embora Davi conheceu bastante riqueza e opulência, e todo o con-
forto possível nos seus últimos anos, ele sempre se considerou um pe-
regrino. Seus anos na juventude foram bastante simples, enquanto ele
cuidava das poucas ovelhas do seu pai no deserto (I Sm 17:28), mas ele
estava destinado a deixar as ovelhas e ocupar o trono, e isto trouxe o luxo
dos seus anos finais. Mas, com o mesmo espírito de muitos dos seus ante-
cedentes, ele sabia que tudo isto era passageiro. Eles esperavam “a cidade
que tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus” (Hb 11:10).
Cap. 4 — As orações de Davi 87

Sendo pastor, Davi entendia o valor, e a necessidade, de ser guiado


em segurança pelo caminho. Havia muitos problemas e perigos, visíveis
e invisíveis, e assim a vara e o cajado do pastor eram um conforto para
direção, proteção e correção. Quantas vezes, durante a sua peregrinação,
Davi orou pedindo esta direção. Damos aqui somente uma seleção dos
Salmos onde ele suplica a direção do Senhor, e estes são evidência da
sinceridade e constância do seu desejo de ser guiado.
• 5:8: “Senhor, guia-me … endireita diante de mim o teu caminho”;
• 25:5: “Guia-me na tua verdade, e ensina-me”;
• 27:11: “Guia-me pela vereda direita, por causa dos meus inimigos”;
• 31:3: “Guia-me e encaminha-me”;
• 61:2: “Leva-me para a rocha que é mais alta do que eu”;
• 139:24: “Guia-me pelo caminho eterno”;
• 143:10: “Guia-me por terra plana”.
Depois, em testemunho a Jeová, ele pode dizer: “Deitar-me faz em
verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a mi-
nha alma; guia-me pelas veredas da justiça” (Sl 23:2-3). Tudo isto é apli-
cável aos peregrinos de hoje, que sempre precisam de encorajamento no
seu caminho.

Orações que são proféticas


Como há dois Salmos que são principalmente Salmos de sofri-
mento, assim também há dois Salmos que sobressaem como salmos da
glória vindoura do Reino, Salmos 24 e 110. Já notamos que o Salmo
72 conclui com as palavras: “Aqui acabam as orações de Davi, filho de
Jessé”. Profeticamente, Davi antecipa o reino do maio Filho de Davi, e
quando aquilo se cumprir e toda a Terra se encher da glória do Messias,
Davi não mais o que orar. Suas orações acabam. Com isto concordam
os Salmos 24 e 110.
O Salmo 24 é cheio de louvor por causa da glória do Criador, mas
também há no Salmo um espírito de piedosa antecipação. Historica-
mente, crê-se que o Salmo foi escrito para ser cantado quando traziam
a santa Arca do Concerto de volta a Sião, depois do seu longo exílio.
Na interpretação de alguns comentaristas, incluindo o respeitado Spur-
geon, o Salmo apresenta uma figura da ascensão de Cristo aos Céus
depois da Sua ressurreição. De fato, esta pode ser uma boa aplicação do
Salmo, mas a verdadeira interpretação é da entrada do Rei da Glória
88 A glória da oração

pelas portas de Jerusalém no Milênio. O Rei da Glória é o Senhor Je-


sus, que com mãos limpas e coração puro, forte e poderoso na guerra de
Armagedom, toma Seu devido lugar no trono.
Este Salmo é um prelúdio majestoso e idôneo ao Salmo 110, que,
como já notamos, é o grande Salmo milenar antecipando o glorioso
reino do Messias, o Filho de Davi. Talvez alguém possa fazer a objeção
de que o Salmo 110 realmente não é, essencialmente, uma oração, e no
entanto, várias vezes no Salmo Davi fala ao Senhor e ao Seu Ungido, e
assim o espírito de oração e louvor permeia os sete versículos. O Salmo
é uma profecia pura e poética, única em toda a literatura, e até mesmo
no Livro dos Salmos.

Orações do adorador
Davi sabia adorar. Não seria possível nem prático, no espaço deste
pequeno capítulo, mencionar todas as ocasiões em que Davi adorou.
Adoração inteligente requer um conhecimento e intimidade com o Se-
nhor, e é evidente que mesmo quando Davi era um jovem pastor, ele
tinha um conhecimento de Deus acima de muitos dos seus contem-
porâneos. No seu desafio a Golias, ele disse: “Eu venho a ti em nome
do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel” (I Sm 17:45).
Naquela ocasião ele usou, várias vezes, o nome Jeová (03068) e também
Elohim (0430), dizendo com grande confiança: “E saberá toda esta con-
gregação que o Senhor salva, não com espada, nem com lança; porque
do Senhor é a guerra, e ele vos entregará na nossa mão” (I Sm 17:47).
Davi, tendo este conhecimento, se tornou num adorador de fato, e isto
se manifesta em muitos dos seus salmos. J. N. Darby disse:
Adoração é a honra e reverência dadas a Deus por aquilo que Ele é
em Si mesmo, e por aquilo que Ele significa para quem O adora.

Isto era verdade no caso de Davi.


Bem cedo no livro dos Salmos, no oitavo salmo, a adoração de Davi
é manifestada. Este Salmo começa e termina com uma exclamação ma-
jestosa de louvor e adoração: “Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável
é o teu nome em toda a terra, pois puseste a tua glória sobre os céus!” A
excelência na Terra e a glória acima dos Céus exige adoração! Outras
expressões de adoração estão incluídas entre o primeiro e último ver-
sículo do Salmo, que são idênticos, assim como uma joia é encaixada
em engastes de ouro. Davi reconhece a grandeza do Criador e adora.
Cap. 4 — As orações de Davi 89

Há, também, um espírito de profecia no salmo, na maneira como ele


se refere ao Messias, o Homem que um dia dominará e reinará sobre a
criação (Hb 2:6-8).
Sendo um adorador, Davi muitas vezes exorta outros a adorarem
também, dizendo: “Dai ao Senhor a glória devida ao seu nome, adorai
o Senhor na beleza da santidade” (Sl 29:2). “Ó vinde, adoremos e pros-
tremo-nos. Ajoelhemos diante do Senhor que nos criou” (Sl 95:6). E
novamente: “Exaltai ao Senhor nosso Deus, e prostrai-vos diante do es-
cabelo de seus pés, pois é santo. Exaltai ao Senhor nosso Deus e adorai-
-o no seu monte santo, pois o Senhor nosso Deus é santo” (Sl 99:5, 9).
Davi também acha outros motivos para adorar, além do poder e
glória de Jeová revelados pela Criação, e naquela que talvez seja a últi-
ma menção de louvor no livro, ele diz: “Inclinar-me-ei para o teu santo
templo, e louvarei o teu nome pela tua benignidade, e pela tua verdade;
pois engradeceste a tua palavra acima de todo o teu nome” (Sl 138:2). O
fato do poderoso Criador mostrar benignidade, misericórdia e compai-
xão com Suas criaturas era uma razão para adorar, como também era a
Sua verdade e a grandeza da Sua Palavra. Tudo isso é verdade hoje para
os adoradores atuais que, de fato, têm mais luz do que Davi tinha, e têm
também acesso à presença imediata do Senhor, algo que Davi nunca
teve. Podemos chegar com intrepidez, mas com a devida reverência, até
a Sua presença com nossas orações, e com nossas expressões de louvor
e de adoração.

O lamentador
Aconteceram muitos fatos na vida de Davi que o fizeram lamen-
tar, mas houve três ocasiões marcantes quando ele derramou lágrimas
amargas mescladas com oração e lamentação. Ele chorou por causa das
mortes de Saul e Jônatas, pela morte traiçoeira de Abner, e pela morte
de seu filho Absalão.
Em II Samuel cap. 1, a notícia de que Saul e Jônatas estavam mor-
tos chegou a Davi; eles foram mortos no Monte Gilboa numa batalha
contra os filisteus. “E prantearam, e choraram, e jejuaram até à tarde
por Saul, e por Jônatas, seu filho”. Saul tinha sido um inimigo de Davi
por causa dos seus ciúmes. Jônatas fora um companheiro e um amigo
íntimo, e que testemunho de um espírito nobre ver que Davi lamentou
pelos dois. Sua lamentação foi uma oração e uma elegia: “Ah, ornamen-
to de Israel! Nos teus altos foi ferido, como caíram os poderosos! Não o
90 A glória da oração

noticieis em Gate, não o publiqueis nas ruas de Ascalom, para que não
se alegrem as filhas dos filisteus, para que não saltem de contentamento
as filhas dos incircuncisos. Vós, montes de Gilboa, nem orvalho, nem
chuva caia sobre vós, nem haja campos de ofertas alçadas, pois aí des-
prezivelmente foi arrojado o escudo dos poderosos, o escudo de Saul,
como se não fora ungido com óleo. Do sangue dos feridos, da gordura
dos valentes, nunca se retirou para trás o arco de Jônatas, nem voltou va-
zia a espada de Saul. Saul e Jônatas, tão amados e queridos na sua vida,
também na sua morte não se separaram; eram mais ligeiros do que as
águias, mais fortes do que os leões. Vós, filhas de Israel, chorai por Saul,
que vos vestia de escarlata em delícias, que vos fazia trazer ornamentos
de ouro sobre as vossas vestes. Como caíram os poderosos, no meio da
peleja! Jônatas nos teus altos foi morto. Angustiado estou por ti, meu
irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era
o teu amor do que o amor das mulheres. Como caíram os poderosos,
e pereceram as armas de guerra!” (II Sm 1:19-27). Que lamentação e
oração foi esta, registrada para sempre no registro sagrado.
Abner era o tio de Saul, e o general do seu exército (I Sm 14:50).
Durante sete anos depois da morte de Saul ele apoiou Is-Bosete, filho
de Saul, na sua tentativa de ascensão ao trono, enquanto Davi reinava
em Hebrom. Mas, depois de uma forte contenda com Is-Bosete, ele
então resolveu reunir o reino sob Davi. Entretanto, ele foi traiçoeira-
mente morto por Joabe, para vingar a morte de Asael, irmão de Joabe, a
quem Abner tinha matado, ou talvez, mais provavelmente, por causa de
ciúmes. Davi aborreceu este ato traiçoeiro, e compôs uma elegia sobre
a sua morte.
“Disse, pois, Davi a Joabe, e a todo o povo que com ele estava:
Rasgai as vossas vestes; e cingi-vos de sacos e ide pranteando diante
de Abner; e chorou todo o povo. E o rei Davi ia seguindo o féretro.
E, sepultando a Abner em Hebrom, o rei levantou a sua voz, e chorou
junto da sepultura de Abner; e chorou todo o povo. E o rei, pranteando
Abner, disse: Havia de morrer Abner como morre o vilão? As tuas mãos
não estavam atadas, nem os teus pés carregados de grilhões, mas caíste
como os que caem diante dos filhos da maldade! Então todo o povo
chorou muito mais por ele” (II Sm 3:31-34.).
Em II Samuel cap. 15 o filho desviado de Davi, Absalão, foi coroa-
do rei em Hebrom como um usurpador. Davi sabia que a sua própria
vida, e a vida daqueles que eram fieis a ele, estaria em perigo, e assim
Cap. 4 — As orações de Davi 91

resolveu fugir de Jerusalém. Foi com corações abatidos que eles dei-
xaram a cidade e atravessaram o vale do Cedrom, indo ao monte das
Oliveiras e para o deserto. “E seguiu Davi pela encosta do monte das
Oliveiras, subindo e chorando, e com a cabeça coberta; e caminhava
com os pés descalços; e todo o povo que ia com ele cobria cada um a
sua cabeça, e subiam chorando sem cessar” (II Sm 15:30). Foi difícil
para Davi fugir do seu próprio filho, e o Salmo 3 registra suas orações
e seus sentimentos naquela ocasião. Com que grande tristeza o Salmo
começa: “Senhor, como se têm multiplicado os meus adversários! São
muitos os que se levantam contra mim. Muitos dizem da minha alma:
Não há salvação para ele em Deus”. No entanto, logo em seguida ele
podia dizer com convicção, “Eu me deitei e dormi; acordei, porque o
Senhor me sustentou”. Ele não estava com medo embora cercado por
dez milhares de inimigos.
Pouco tempo depois disto, houve outra ocasião quando Davi la-
mentou muito. Ele recebeu a notícia de que seu filho amado, mas rebel-
de, Absalão, estava morto. Isto arrancou do seu coração uma plangente e
emocionante oração: “Então o rei se perturbou, e subiu à sala que estava
por cima da porta, e chorou; e andando dizia assim: Meu filho Absalão,
meu filho, meu filho Absalão! Quem dera que eu morrera por ti, Absa-
lão, meu filho, meu filho!” (II Sm 18:33).

Últimas palavras
Quão comovente é o relato das últimas palavras de Davi em II Sa-
muel cap. 23. “E estas são as últimas palavras de Davi: Diz Davi, filho
de Jessé, e diz o homem que foi levantado em altura, o ungido do Deus
de Jacó, e o suave em salmos de Israel. O Espírito do Senhor falou
por mim, e a sua palavra está na minha boca. Disse o Deus de Israel, a
Rocha de Israel a mim me falou: Haverá um justo que domine sobre os
homens, que domine no temor de Deus. E será como a luz da manhã,
quando sai o sol, da manhã sem nuvens, quando pelo seu resplendor e
pela chuva a erva brota da terra. Ainda que a minha casa não seja tal
para com Deus, contudo estabeleceu comigo uma aliança eterna, que
em tudo será bem ordenado e guardado, pois toda a minha salvação e
todo o meu prazer está nele” (II Sm 23:1-5).
Que as orações de Davi, o pastor, o rei, o guerreiro, o adorador, o
sofredor, o peregrino, o penitente e o lamentador sejam um exemplo a
nós em todos os nossos tempos de necessidade, sejam eles de alegria
92 A glória da oração

ou de tristeza. Davi teve desapontamentos na nação, na sua família, e


em si mesmo, mas ele era, de fato, um homem segundo o coração de
Deus, e devemos valorizar muito a sua memória e seguir o seu exemplo.
Que precioso entrelaçamento santo de oração e louvor, de sofrimento
e consolo, de adoração e pranto, de remorso, restauração, e regozijo, de
lágrimas, triunfos e tragédias.
Cap. 5 — As orações de Salomão
Por James B. Currie, Japão

Os pensamentos do povo de Deus sobre oração raramente chegam


ao nível que deveriam. Quando ajuda divina é necessária, quando neces-
sidades temporais ou espirituais são urgentes, a oração se torna numa
atividade fervorosa e urgente na vida diária. Feliz o cristão que, inde-
pendentemente das situações enfrentadas, tem uma vida consistente de
oração. A essência da oração leva aquele que ora além dos assuntos mun-
danos, mesmo que estes sejam o que muitas vezes promovem um grau de
sinceridade nas nossas orações. O Senhor Jesus elevou o padrão de oração
ao seu auge quando Ele disse: “Deus é Espírito, e importa que os que o
adoram o adorem em espírito e em verdade” ( Jo 4:24). Embora adoração
não seja limitada às palavras usadas em oração (veja Rm 12:1), o ofereci-
mento de adoração em oração é a ocupação mais elevada do cristão.
Um fato importante sobre a oração, mas frequentemente esquecido,
é que ela tacitamente reconhece todos os atributos divinos. A oração
não é meramente um meio de obter a intervenção de Deus em tempos
de necessidade, embora inclui isso. O cristão é encorajado a chegar “com
confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e
achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno” (Hb 4:16).
Também, não é simplesmente uma expressão de gratidão por bênçãos
recebidas. Com certeza, ambas estas coisas são importantes na oração,
mas como suplicantes diante do trono de Deus, somos levados a uma
compreensão mais perfeita do Deus a quem oramos, através da oração.
Em nenhum lugar isso é visto mais claramente do que nas orações
do rei Salomão, duas das quais são registradas nas Escrituras, e cada uma
delas é mencionada em duas ocasiões. Embora o rei fosse bem jovem,
com pouco mais de vinte anos, e de ter recentemente sido elevado ao tro-
no quando fez a sua primeira oração (I Rs 3:6-9), e talvez tivesse menos
de trinta anos quando a segunda oração foi documentada (I Rs 8:23-53),
elas juntas tem uma característica interessante: são uma das orações mais
curtas, e uma das mais longas, da Bíblia. Também retratam uma atitude
maravilhosa de humildade, e um vocabulário muito reverente. Fazemos
bem em lembrar nas nossas orações que temos o privilégio de falar com o
Deus do Universo, o Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo.
94 A glória da oração

As orações de Salomão são únicas porque, embora sendo relatadas


duas vezes, nunca deveriam ser repetidas. A primeira ocorreu em Gi-
beom, no “alto maior” (I Rs 3:4), que Deus permitiu que fosse usado
como lugar de sacrifício antes da construção do Templo, apesar da his-
tória enganosa dos seus habitantes ( Js 9). Deus apareceu a Salomão de
noite num sonho, e lhe disse: “Pede o que queres que eu te dê” (I Rs 3:5),
com uma promessa de que lhe seria dado.
A mais curta das duas orações de Salomão, encontrada primeira-
mente em I Reis 3:6-9, tem um pano de fundo que poderíamos chamar
de triplo.
Primeiramente, temos o aspecto político. Salomão faz uma aliança
com o rei do Egito ao se casar com a sua filha. Salomão já tinha uma
esposa, “Naamá, amonita”, que era mãe de Roboão (I Rs 14:21). Embo-
ra Salomão tivesse, durante sua vida, “setecentas mulheres, princesas, e
trezentas concubinas” (I Rs 11:3), esta mulher com quem se casou com
vinte e poucos anos é a única cuja nome é conhecido. Semelhantemente,
nada sabemos sobre qualquer um dos outros filhos de Salomão, se de
fato ele teve outros. É a filha de Faraó que recebe o lugar de destaque
por desviar o coração de Salomão do Senhor (I Rs 11:1-4), especial-
mente na sua idade mais avançada. Qualquer que fosse a vantagem po-
lítica que o jovem rei esperava ganhar com esta aliança egípcia, parece
que ele não foi muito bem sucedido. Sisaque, que aparentemente era o
sogro de Salomão, deu abrigo a Jeroboão quando este fugiu da ira de
Salomão, e cinco anos depois da morte de Salomão, este mesmo Sisaque
invadiu a terra e roubou muitos dos tesouros que foram acumulados
para a construção da casa de Deus (I Rs 11:40; 14:25).
Em segundo lugar, Salomão, com grande ambição, desejou construir
uma casa magnífica para si mesmo e uma para o Deus de Israel, que cor-
respondesse com a glória de Jeová. Na realidade, levou vinte anos, riqueza
fabulosa e quase duzentos mil trabalhadores para cumprir este plano, que
Salomão acreditava ser a vontade de Deus para ele naquele tempo. Sem
dúvida, a sua aliança com o Egito, nesta ocasião, foi para lhe dar tempo
para acumular a riqueza necessária para o enorme projeto. A lição a ser
aprendida aqui é clara. Afiliação com os incrédulos pode inicialmente
oferecer alguns benefícios, mas, no fim, o resultado é ruína espiritual.
Em terceiro lugar, e acima de tudo, quando jovem, Salomão “amava
ao Senhor”, e a sua devoção para com o Senhor é expressa no fato que
ele “andava nos estatutos de Davi seu pai” (I Rs 3:3). Nos dias finais
Cap. 5 — As orações de Salomão 95

de Davi ele deu ordem ao seu filho dizendo: “Guarda a ordenança do


Senhor teu Deus, para andares nos seus caminhos, e para guardares os
seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus teste-
munhos, como está escrito na lei de Moisés” (I Rs 2:3).
O início do reinado de Salomão indica que ele pretendia obedecer ao
conselho de seu pai. Neste tempo, “o povo sacrificava sobre os altos” e a
razão disto é explicada: “porque até aqueles dias ainda não se havia edifi-
cado casa ao nome do Senhor” (I Rs 3:2). Assim, o rei não deve ser critica-
do por ter viajado a Gibeom para oferecer sacrifícios ao Senhor. Naquele
tempo, este era o local onde estava o Tabernáculo erguido por Moisés, e
onde o altar de bronze dos sacrifícios estava localizado. Foi aqui que o
tremendo ato de adoração do rei ocorreu, quando Salomão ofereceu mil
holocaustos (I Rs 3:4). Quando Davi dançou perante o Senhor, enquanto
a Arca da Aliança estava sendo removida da casa de Obede-Edom para
a tenda que Davi preparara para ela “na cidade de Davi”, Zadoque e seus
irmãos, os sacerdotes, estavam ministrando “diante do tabernáculo do Se-
nhor, no alto que está em Gibeom” (I Cr 16:39).
Neste mesmo lugar, Gibeom, na mesma noite do tremendo ato de
adoração, Deus apareceu a Salomão num sonho. Quando Deus disse:
“Pede o que queres que eu te dê” (I Rs 3:5), era tão real como se esti-
vesse ouvindo a voz de Deus, acordado, durante as horas do dia. Deus
escolheu falar com os homens, em várias ocasiões, por meio de sonhos
noturnos ( Jó 33:15). No caso de Salomão, falando num sonho pode
indicar o método divino de aproximação inicial a alguém que ainda não
ouvira a voz de Deus, especialmente naquele tempo de confusão rela-
cionada com a proliferação de lugares altos, pacientemente permitidos
por Deus. Em qualquer caso, o convite do Senhor a Salomão neste “alto
maior” foi, sem dúvida, a resposta divina ao desejo mais profundo do rei.
Como já foi observado, as orações de Salomão são registradas duas
vezes. Está é mencionada em I Reis 3:6-9 e II Crônicas 1:8-10, e o re-
lato em Reis é mais detalhado do que o relato em Crônicas.

Uma oração de súplica (I Rs 3:6-9)


Esta passagem contém quatro componentes que merecem a nossa
atenção.
Lembrando da soberania divina
Ao nos aproximarmos do trono de Deus em adoração ou petição,
96 A glória da oração

precisamos sempre lembrar da majestade divina, como vista nos Seus


procedimentos soberanos com a Sua Criação, especialmente com a hu-
manidade. Salomão menciona “a grande beneficência” (amor contínuo)
com que Deus favorecera a seu pai Davi. Além disso, Deus também
deu a ele um filho para ocupar o trono em Israel, na pessoa do próprio
Salomão. Davi correspondia a esta bondade andando perante o Senhor
em equidade e retidão de coração, mas a grande bondade manifestada a
Davi foi dada em graça incondicional.
Percebendo a incapacidade pessoal
Não há lugar para arrogância ou orgulho na atitude daqueles que
oram. O jovem rei bem conhecia a sua própria incapacidade. Tendo re-
cebido, aos vinte anos de idade, o mandato do Céu no lugar de seu pai,
ele reconhece e sente profundamente a sua própria incapacidade. Assim,
a sua aproximação a Deus é caracterizada por reverente humildade. As
palavras que ele usa de si mesmo são: “Sou apenas um menino pequeno”
(v. 7). Jeremias também se expressou de maneira semelhante quando
Deus o comissionou ( Jr 1:7). Ambos tinham aproximadamente a mes-
ma idade, e ambos reconheceram a sua total falta de experiência para
a tarefa à qual estavam sendo chamados. Salomão diz: “Não sei como
sair, nem como entrar” (v. 7). Isto revela uma compreensão clara da sua
falta de capacidade para discernir entre o bem e o mal ao governar tão
grande nação como Israel. Esta sensibilidade é comum entre os servos
de Deus. Paulo expressou isto muito bem em II Coríntios 2:16: “E para
estas coisas quem é idôneo?” Nenhuma outra atitude é conveniente para
aqueles que suplicam a Deus em oração, até mesmo nos nossos dias.
Reconhecendo a responsabilidade espiritual
A expansão de Israel sob o governo de Davi tinha sido notável.
Governar esta nação era, para Salomão, uma responsabilidade muito
pesada. Deus tinha prometido a Abraão que a sua descendência seria
tão numerosa como o pó da terra, e que ninguém os poderia contar (Gn
13:16). Aqui, Salomão reconhece o cumprimento desta promessa. O
povo de Deus era um grande povo escolhido por Ele, “que nem se pode
contar, nem numerar”, e no meio do qual Salomão fora colocado, não
somente para reinar em justiça, mas para julgá-los e guiá-los com um
coração “entendido” (ou obediente) para que ele e eles pudessem dis-
cernir “entre o bem e o mal” (I Rs 3:9). Salomão sabe que a capacidade
Cap. 5 — As orações de Salomão 97

dada por Deus era absolutamente necessária para o bem-estar espiritual


do seu povo. A sua resultante oração agradou ao Senhor, que disse: “Eis
que fiz segundo as tuas palavras” (v. 12).
Rogando habilidade prática
É uma coisa reconhecer a nossa necessidade de ajuda, mas é outra ter
a capacidade prática para usar a ajuda que o Senhor nos dá. Salomão reco-
nheceu isto quando ele pediu: “A teu servo, pois, dá um coração entendido
para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o
mal; porque quem poderia julgar a este teu tão grande povo?” (I Rs 3:9).

Uma oração de expectativa (II Cr 1:8-10)


Esta é a mesma oração de I Reis 3:6-9, e usa palavras quase idênti-
cas. É mais curta e tem uma diferença notável. Enquanto que em I Reis
3 o que Deus fez para a família de Davi é visto como já cumprido na
entronização de Salomão, em II Crônicas Salomão está esperando que
mais promessas serão cumpridas, talvez no seu próprio reinado e no dos
seus descendentes, ou, mais provavelmente, olhando para o futuro, para o
cumprimento mais pleno da promessa de Deus no “Filho maior do gran-
de Davi”. Qualquer que seja o significado, novamente o prazer de Deus
com esta primeira oração de Salomão é expressado, e Ele observa que
“houve isto no teu coração” (II Cr 1:11). Salomão, sendo-lhe oferecida
uma oportunidade singular, não pediu nada para si mesmo, mas orou por
habilidade divina para governar e guiar a nação de Israel de maneira que
agradasse a Deus. Ele pensou na prosperidade da nação. Por isso o prazer
de Deus foi evidente e a Sua resposta foi abundantemente rica.

A segunda oração de Salomão é muito mais longa do que a primei-


ra. É repetida em linguagem quase idêntica, mas há algumas distinções.
Duas características principais podem ser observadas na repetição. Na
primeira, em I Reis 8, a oração foi um ofertório dado a Deus, e em II
Crônicas 6 a oração é acompanhada por sinais confirmatórios dados
por Deus.

Uma oração de dedicação (I Rs 8:12-61)


O capítulo contendo a oração de dedicação tem três partes. Em
primeiro lugar a Arca é trazida da casa de Obede-Edom e colocada “no
98 A glória da oração

oráculo”, isto é, no lugar santíssimo preparado para ela por Salomão (I


Rs 8:6). Os anciãos e toda a congregação estão reunidos para esta oca-
sião solene. Depois da arca ser colocada debaixo dos querubins, e depois
dos sacerdotes saírem do santuário, tal foi a magnificência da glória de
Deus que encheu a casa que os “sacerdotes não podiam permanecer em
pé para ministrar” (I Rs 8:10). Levou sete anos para a casa ser construí-
da (6:38), seu custo foi fabuloso (7:47), e envolveu quase duzentos mil
trabalhadores. Agora a casa está terminada, ornamentada com vasos de
ouro e prata e pedras preciosas, e é manifestada a evidência da presença
de Deus. O v. 9 apresenta um problema, especialmente quando compa-
rada com Hebreus 9:4. É sugerido que nem o vaso de maná, nem a vara
que floresceu, foram realmente colocados dentro da arca, mas colocados
perante ela. Embora esta sugestão resolva o problema, talvez seja me-
lhor traduzir Hebreus 9:4 da seguinte maneira: “a Arca da Aliança …
à qual pertencia o vaso de ouro com o maná e a vara de Arão que tinha
florescido”. Isto sugere que as duas tábuas de pedra da arca, aparente-
mente sem valor monetário, tinham sido preservadas, mas o vaso de
ouro e a vara tinham sido roubados pelos filisteus saqueadores.
Na segunda parte do capítulo, vs. 12-21, o rei se volta para o santuá-
rio para louvar ao Deus de Israel, antes de se virar e abençoar a congre-
gação (I Rs 8:14). Ao fazer isto ele relembra parte da história de Israel,
lembrando todos os presentes das promessas da aliança que Deus tinha
cumprido tão fielmente ao levantar um filho para se assentar no trono
de Davi. Na sua elegia divina, Salomão duas vezes relembra os presentes
da libertação que Israel gozou no inicio da sua existência nacional.
A maior parte do capítulo agora sendo considerado (vs. 22-53)
constitui a oração de dedicação. No v. 28 Salomão a descreve de três
maneiras. Ele fala dela como “uma oração”, “uma súplica” e “um cla-
mor”. A diferença nestas palavras é importante, considerando o tama-
nho da oração da qual fazem parte. “Oração” é a expressão geral fre-
quentemente usada para esta atividade, e que traz a ideia de louvor ou
ações de graças. “Suplicar” é implorar quando precisando de ajuda ou
assistência. A palavra “clamor” pode ser relacionada a exclamações de
alegria ou, de acordo com as petições feitas, uma exclamação de deses-
pero ou tristeza. Nesta oração encontramos pensamentos de louvor e
também de súplicas, mas parece melhor, no contexto aqui, considerar o
clamor como sendo por causa do medo de que Israel se desviasse do seu
Deus, e das consequências trágicas que isto causaria. Assim, a palavra
Cap. 5 — As orações de Salomão 99

“clamor” se refere à aflição potencial consequente deste desvio.


O caráter do Deus a quem esta casa magnífica é dedicada é clara-
mente descrito nesta oração de Salomão. Bem no início, três coisas são
estabelecidas em relação à essência divina.
• Em primeiro lugar, Deus é único. De acordo com a confissão de
Israel, Deus, na Sua pluralidade de Pessoas, subsiste em Um: “Ouve,
Israel, o Senhor nosso Deus [plural] é o único Senhor” (Dt 6:4);
• Ele é transcendente: “Não há Deus como Tu, em cima nos céus
nem em baixo na terra” (v. 23);
• Que Deus é também o Deus fiel da verdade, é reconhecido pelo
rei nas palavras: “… que guardas a aliança e a beneficência a teus
servos”.
O Templo agora sendo dedicado não era, de forma alguma, capaz de
ser a habitação do Deus de Israel, pois aquele que é onipresente não pode
ser contido no Céu, e nem até no Céu dos Céus (v. 27), muito menos
numa casa feita por mãos humanas. Deus também é reconhecido como
onisciente: “E dá a cada um conforme a todos os seus caminhos, e segun-
do vires o seu coração, porque só Tu conheces o coração de todos os filhos
dos homens” (v. 39). Assim Salomão, ao oferecer a sua oração, vocaliza a
sua compreensão da grandeza e da majestade do Deus de Israel.
É interessante notar também que nos trinta versículos da oração,
Salomão usa a expressão: “Ouve Tu nos céus, assento da tua habitação”,
ou algo semelhante, oito vezes. Esta expressão nos ajuda a dividir a sua
oração de dedicação em oito petições.
Cada uma destas petições é feita do ponto de vista “desta casa que
eu tenho edificado”. Em outras palavras, o lugar da habitação de Deus:
“este lugar, do qual disseste: O meu nome estará ali” (v. 29). A presença
de Deus é prevista e a primeira petição é geral, por ele mesmo e pelo
seu povo, para que todos os que orassem neste lugar santo tivessem suas
transgressões perdoadas e achassem aceitação perante Deus. A constru-
ção feita por Salomão não tinha rival, era “a casa do Senhor” (vs. 10-11),
mas a verdadeira casa de Deus é algo totalmente diferente. Assim, Sa-
lomão ora: “Ouve Tu no lugar da tua habitação nos céus; ouve também
e perdoa” (v. 30). Confiança ao nos aproximar de Deus sempre precisa
estar baseada no conhecimento de verdadeiro perdão.
É perfeitamente natural que um relacionamento correto com Deus
tenha como resultado um bom relacionamento também com o próximo.
100 A glória da oração

Uma das mais lindas figuras da obra de Cristo em prol do Seu povo, no
Velho Testamento, é aquela da oferta pela culpa exigida quando alguém
descuidava em relação a alguma propriedade que fora confiada a ele. O
principal tinha que ser restaurado, e mais uma quinta parte acrescen-
tada (Lv 6:5; Nm 5:7). Por causa da obra da redenção que o Senhor
Jesus efetuou no Calvário, Ele podia dizer: “… então restitui o que não
furtei” (Sl 69:4). O que a humanidade perdeu por causa do pecado, o
Senhor restaurou a Deus, com mais glória acrescentada. Mas, na reali-
dade, quando esse tipo de transgressão ocorria, o ofensor podia negar
a ofensa. Antigamente havia uma maneira sacerdotal de resolver tais
reivindicações, o Urim e o Tumim, mas aqui, Salomão ora para que os
olhos do Senhor estejam sempre abertos sobre esta casa para que o juízo
reto permanecesse entre os homens (vs. 29-32). Mateus cap. 18 mostra
que este mesmo princípio básico continua até hoje.
A terceira palavra de súplica tem a ver com a fraqueza do povo de
Deus perante seus inimigos. A causa aqui é algum pecado específico, e
com a nação era uma derrota literal na guerra e exílio com o qual eram
ameaçados. A fraqueza nem sempre é o resultado de pecado específico,
mas não se pode negar que o pecado é, frequentemente, um fator con-
tribuinte. No mínimo, nosso desvio dos caminhos do Senhor certamen-
te trará pobreza espiritual, e o remédio é encontrado aqui no pedido de
Salomão: “Quando o teu povo Israel for ferido diante do inimigo, por
ter pecado contra ti, e se converterem a ti, e confessarem o teu nome e
orarem e suplicarem … ouve Tu … e perdoa o pecado do teu povo Israel
… e torna-o a levar à terra que tens dado a seus pais” (I Rs 8:33-34). A
aplicação espiritual destas palavras não precisa de explicação.
A próxima petição do jovem rei é sobre bênção retida por causa de
desobediência (I Rs 8:35-36). Esta situação necessita de instrução divi-
na: “ensinando-lhes o bom caminho em que andem”. Não há desculpa
para desobediência. O apóstolo João nos lembra: “Não tendes necessi-
dade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina todas
as coisas, e é verdade” (I Jo 2:27). O Espírito Santo que habita em nós
tem agido nos corações de todos os que são nascidos de Deus para que,
instintivamente, “o bom caminho em que devemos andar” seja claro
para nós. Pedro falou daqueles que são deliberadamente desobedientes
(II Pe 2:5). Lamentavelmente, nós que confessamos o nome do Senhor,
às vezes, podemos ser deliberadamente desobedientes.
Séculos antes do autor da carta aos Hebreus escreveu suas palavras
Cap. 5 — As orações de Salomão 101

sagazes, Salomão reconheceu que o Deus a quem ele orava era, por meio
da Sua Palavra, “apto para discernir os pensamentos e intenções do co-
ração. E não há criatura alguma encoberta diante dele” (Hb 4:12, 13).
Estes mesmos pensamentos são expressos pelo rei nos vs. 38 e 39. “Toda
a oração … que qualquer homem … fizer … perdoa … e dá a cada um
… porque só Tu conheces o coração de todos os filhos dos homens”.
Davi, o pai de Salomão, ao falar sobre as tentativas fúteis de esconder da
onisciência e onipresença de Deus, disse: “Não havendo ainda palavra
alguma na minha língua, eis que logo, ó Senhor, tudo conheces” (Sl
139:4). Porém o rei implora a um tão grande Deus a favor de “qualquer
homem”, e “todos os homens”, para que possam aprender a temer a
Deus todos os dias das suas vidas (I Rs 8:40).
Deus não faz acepção de pessoas. Oração também é feita pelo “es-
trangeiro” que não é “do teu povo Israel, quando vier de terras remotas,
por amor do teu nome” (I Rs 8:41-43). Aqui há sugestões das palavras
que o apóstolo Paulo escreveu na sua carta aos Romanos. Na linguagem
do Novo Testamento, o “estrangeiro” é um que “com perseverança em fa-
zer o bem”, procura “glória, honra e incorrupção”. A tais pessoas que bus-
cam é outorgada a vida eterna, “porque, para com Deus, não há acepção
de pessoas” (Rm 2:7-11). Seja nos dias de Salomão ou de Paulo, ou em
nossos dias, Deus concede mais luz àqueles que buscam a luz, e aos que
recusam a luz, a sua porção é trevas mais densas. Espera-se que o povo de
Deus seja caracterizado pelo “temor de Deus”, e assim seja testemunha
aos estrangeiros de outras nações para que eles cheguem a conhecer o
nome do Senhor, e também possam estar sob a proteção do Seu temor.
A sétima petição feita pelo rei é sobre ir à guerra quando enviados
por Deus. Em outras palavras, esta era uma missão divina que enfrenta-
vam. Em tais circunstâncias podiam buscar a direção celestial: “Quando
o teu povo sair à guerra … pelo caminho por que os enviares”, eles sai-
riam como um povo dependente: “… e orarem ao Senhor, para o lado
desta cidade, que Tu elegeste, e desta casa”, construída para o nome do
Senhor. Em tais circunstâncias a sua causa seria mantida (I Rs 8:44-45).
A última parte da oração contém uma advertência solene sobre des-
viar deliberadamente do Senhor, e seu resultado inevitável. O pecado é
contra o Senhor, e por causa disto, a Sua ira é contra eles. Todos, sem
exceção, são propensos a isto, e o resultado dos setenta anos de cativeiro
na Babilônia, seguido pelos muitos séculos da Diáspora, são um teste-
munho eloquente do que Deus pensa de desvio dEle por aqueles rela-
102 A glória da oração

cionados à cidade e à casa que Ele escolheu (I Rs 8:46-49). No começo


do reinado de Salomão um aviso solene foi dado, que, lamentavelmente,
sendo ignorado, no seu devido tempo trouxe as condições tristes aqui
previstas. No entanto, nem tudo está perdido. A graça imensurável rei-
na. Um meio de restauração é proposto: “E se converterem … dizendo;
pecamos, e perversamente procedemos, e cometemos iniquidade, e se
converterem a ti com todo o seu coração e com toda a sua alma”. Salo-
mão assim suplica: “Ouve então nos céus … a sua oração … e perdoa
ao teu povo que houver pecado”. Se o jovem rei tivesse conhecido as
palavras do bem conhecido hino, com certeza ele as teria incluído aqui:
Grande Deus de maravilhas! Todos os Teus caminhos
Demonstram Teus atributos divinos;
Mas as glórias brilhantes da Tua graça
Brilham acima das Tuas outras maravilhas:
Quem é um Deus perdoador como Tu?
Ou quem tem graça tão rica e sem preço? (S. Davies)*
Depois de terminar a sua oração de dedicação, Salomão se levanta
dos seus joelhos para abençoar a congregação. Em seguida, ele e toda a
nação ofereceram sacrifícios ao Senhor: vinte e duas mil vacas e cento e
vinte mil ovelhas. O meio do pátio externo teve de ser santificado como
lugar de sacrifício, pois “o altar de cobre que estava diante da face do Se-
nhor era muito pequeno para nele caberem os holocaustos e as ofertas”
da dedicação (I Rs 8:64).

Uma oração com confirmação (II Cr 6:12-42)


Em II Crônicas 6:14-42 a oração é repetida com certas diferenças.
Estas estão relacionadas às características dos livros onde se encontram.
Os livros de I Samuel até II Reis traçam a história do Reino dividido,
tendo em vista a responsabilidade pessoal dos reis, enquanto que os dois
livros de Crônicas, que tratam do mesmo período e acontecimentos,
retratam mais a operação da graça de Deus.
A primeira diferença específica é que a plataforma de metal sobre a

* Tradução literal. O original diz: “Great God of wonders! all Thy ways/Display Thine attributes
divine,/But the bright glories of Thy grace/Above Thine other wonders shine:/Who is a pardoning
God like Thee?/Or Who has grace so rich and free?”. T. J. Blackman traduziu assim: “Teus feitos
todos, ó meu Deus/Revelam atributos Teus;/Mas Tua graça brilha mais/Que os outros atos
divinais./Tu tens prazer em perdoar,/Pois Tua graça não tem par!” (N. T.)
Cap. 5 — As orações de Salomão 103

qual o rei se ajoelhou é mencionada. Sem dúvida, o propósito disto é mos-


trar a toda a congregação a atitude humilde do rei enquanto ele oferecia
a sua oração ao Senhor. Foi sobre esta mesma armação que ele ficou em
pé para abençoar todo o povo que está incluído, juntamente com o rei, na
oração e nos sacrifícios (II Cr 7:4). A segunda distinção é o fato que, de-
pois do fim da oração, “desceu o fogo do céu e consumiu o holocausto e os
sacrifícios”, enquanto a glória do Senhor encheu a casa (II Cr 7:1). Assim,
foi dada a confirmação do prazer de Deus com a casa, e a Sua presença na
casa. Todo o povo reconheceu isto e, encurvando-se com o rosto em terra,
adoraram e louvaram ao Senhor dizendo: “Porque ele é bom, porque a sua
benignidade dura para sempre” (II Cr 7:3).
O ato final neste maravilhoso acontecimento foi a celebração da
Festa dos Tabernáculos. Durou sete dias, com uma grande convocação
no oitavo dia. Sete dias foram ocupados na dedicação do altar, provavel-
mente antes da Festa dos Tabernáculos, e assim a nação voltou às suas
tendas no vigésimo terceiro dia do mês. Voltaram “alegres e de bom
ânimo, pelo bem que o Senhor tinha feito a Davi, e a Salomão, e a seu
povo Israel” (II Cr 7:10).
Podemos perceber nas orações de Salomão o rico privilégio que
temos na nossa liberdade de nos aproximar a Deus em oração. Elas
também revelam que o temor reverencial deve nos caracterizar nas nos-
sas orações. As palavras escritas por James Montgomery expressam bem
este sentimento:
A oração é o desejo sincero da alma,
Declarado ou não declarado,
O movimento de um fogo oculto
Que tremula dentro do peito.
A oração é a forma mais simples do falar
Que lábios infantis podem expressar;
Oração, a melodia mais sublime que alcança
A Majestade no alto. (J. Montgomery)*

* Tradução literal. O original diz: “Prayer is the soul´s sincere desire,/Uttered or unexpressed,/
The motion of a hidden fire/That trembles in the breast.//Prayer is the simplest form of speech/
That infant lips can try;/Prayer, the sublimest strains that reach/The Majesty on high.” (N. T.)
Cap. 6 — As orações de Esdras
Por Samuel James McBride, Inglaterra

Introdução
Oração, no dicionário Morrish´s Concise Bible Dictionary, é descrita como
[…] a comunicação de alguém dependente de Deus. Pode manifes-
tar-se na forma de comunhão com alguém próximo, ou pode ser,
fazer pedidos a favor de si mesmo ou de outros.

Pano de fundo histórico de Esdras


Todos os acontecimentos em Esdras ocorreram no período do Im-
pério Persa. Isso corresponde à segunda parte da imagem vista no sonho
de Nabucodonosor — a fase de prata do sistema imperial mundial. To-
dos os quatro sistemas consecutivos ocupam o tempo conhecido como
“os tempos dos gentios”.
Este período viu o fim da monarquia hebraica, o desaparecimento da
Arca da Aliança, do Urim e Tumim, da nuvem visível de glória (Shequinah) e
a transformação da nação judaica em “cauda” e não “cabeça” das nações, que é
o seu glorioso destino futuro entre as nações. Entretanto, Deus na Sua graça
permitiu que o testemunho divino na Terra continuasse durante este período.
Quando os setenta anos de cativeiro profetizados por Jeremias terminaram,
Deus cumpriu a Sua Palavra e começou a restauração da nação de Israel à sua
terra, no tempo exato. O rei Ciro uniu os Medos e Persas sob seu domínio,
conquistou a Babilônia, e dentro de um ano emitiu um decreto notável que
iniciou o retorno dos judeus à Judeia para reconstruir o Templo, seguido al-
guns anos mais tarde pela conclusão dos muros da cidade sob a liderança de
Neemias, durante o reinado de outro imperador, Artaxerxes.
Oração não é explicitamente mencionada com frequência no livro
de Esdras. Há apenas uma oração de Esdras que é explicitamente re-
gistrada no cap. 9. Outras referências podem ser deduzidas. Entretanto,
num livro cujo assunto principal é a reconstrução do Templo de Deus
para “o Deus dos céus”, e isso sendo realizado em circunstâncias tão
adversas, pensamentos e atos piedosos nunca estão longe, em qualquer
parte do livro.
Cap. 6 — As orações de Esdras 105

O remanescente que voltou estava sujeito a muita desvantagem*.


Não fazia sentido, do ponto de vista econômico, voltar a Jerusalém. O
sistema de impostos era severo. Embora, oficialmente, houvesse com-
pleta liberdade religiosa para os judeus, na prática, a autoridade central
do palácio imperial ficava distante, a quatro meses de viagem (embora
comunicações especiais podiam ser feitas, por mensageiros oficiais, em
muito menos tempo†). Assim, autoridades locais podiam fazer muito
para tornar a permissão imperial de restauração, pelos judeus, inoperan-
te. Lobistas bem colocados e formadores de opinião foram empregados
para frustrar o progresso do remanescente na reconstrução. Sem dúvida,
o gasto com estes sátrapas locais era, em si, um desvio de recursos dos
seus fins legítimos. O que podia ser feito? O remanescente deveria rea-
gir da mesma forma?
Alguns resolveram parar a obra, e assim, naturalmente falando, se
ocuparam com o trabalho mais produtivo de construir as suas próprias
casas no padrão mais elevado possível (Ag 1:2). Pelo menos, eles pode-
riam ter argumentado que estavam aperfeiçoando as suas habilidades
como construtores para a construção da casa de Deus, quando chegasse
a hora. Talvez havia também uma confusão cronológica, com uma ten-
dência de calcular os setenta anos começando do tempo da desolação
final por Nabucodonosor, e não do início do cativeiro no reinado de
Jeoaquim; pelo segundo cálculo, os setenta anos já estavam cumpridos‡.
Eles tinham, certamente, enfatizado demais a desolação final, celebran-
do cerimônias anuais que realmente eram mais de autocompaixão do
que fé ou devoção ao Senhor. (Veja Zacarias cap. 7, onde Deus deu a
Sua opinião sobre esta prática.) Os profetas Ageu e Zacarias reanima-
ram o povo com um ministério de encorajamento e admoestação. Isto
teve o efeito desejado, pois houve um imediato recomeço da construção
do Templo, que foi finalmente completado no sexto ano de Dario.

As leis dos medos e dos persas


Através das Escrituras aprendemos que o sistema legal dos Medos

* Isto fica bem claro na oração de Neemias cap. 9.


† Os servos de Assuero e o seu sistema postal foram usados para avisar as comunidades judaicas
da necessidade de se defenderem contra o plano de genocídio de Hamã.
‡ The Post-Captivity Prophets, or the Effect of the Word of God, artigo anônimo em W. Reid, ed.,
The Bible Witness and Review Vol 3. Londres: Office of Publication, 1882 (este artigo é atribuído
a C. E. Stuart).
106 A glória da oração

e Persas era caracterizado por uma inflexibilidade rara. Uma vez de-
cretadas, estas leis não podiam ser revogadas. Poderíamos supor, então,
que o decreto de Ciro não estava sujeito a anulação ou reinterpretação
pelos seus sucessores. No entanto, foi isso que aconteceu, e a obra foi
embargada (Ed 4).
O fato dos profetas Ageu e Zacarias estimularem o povo a recome-
çar a obra antes da resposta favorável de Dario, sugere que a cessação
da construção não era legalmente necessária em relação à lei imperial, e
que um decreto imperial de cessação, incompatível e editado por não se
conhecer o decreto anterior de permissão, não deveria vigorar.
Certamente há uma lição aqui para os cristãos hoje. Num país onde
a liberdade religiosa é garantida por lei, e onde muitos valores cristãos
continuam como parte integrante do país e da sua constituição, os cris-
tãos ainda podem enfrentar muitos obstáculos na burocracia do gover-
no local, ou de organizações financiadas pelo governo. Se, hoje em dia,
os cristãos procuram desculpas para parar com o testemunho divino,
muitos obstáculos burocráticos poderiam ser citados. Entretanto, é cer-
tamente melhor para uma igreja proceder discretamente com a obra
de Deus, com fé dependente, lembrando da Sua soberania e da nossa
bendita herança de liberdade religiosa neste país, não antecipando, te-
merosamente, o capricho de uma autoridade local. Podemos proceder
pacificamente e ainda estar biblicamente sujeitos às autoridades exis-
tentes, dando a César o que é de César.

O que é a casa de Deus hoje?


Ao ler Esdras, Neemias e os profetas contemporâneos, Ageu, Za-
carias e Malaquias, com certeza nos identificamos com a luta do rema-
nescente para construir a casa de Deus e manter o testemunho apesar
de todas as dificuldades que enfrentavam. Através da historia bíblica, a
casa de Deus sempre tem sido caracterizada por um fato singular em
relação ao seu modelo e governo, isto é, que sendo a casa de Deus, seu
modelo é revelado a nós, e não sintetizado pela nossa sabedoria, e o
seu governo é revelado e baseado em princípios divinos, e não no fraco
fundamento da conveniência humana. A responsabilidade humana na
construção da casa de Deus precisa sempre ser “conforme o modelo”
(Hb 8:5). Foi assim no caso do Tabernáculo e do Templo. O modelo
era o de Deus, e Ele o revelou aos homens. Será que este princípio
ainda está em vigor nesta dispensação? Será que há um padrão divino
Cap. 6 — As orações de Esdras 107

para nós, em relação à casa de Deus em nossos dias? Se há, então temos
de nos esforçar para segui-lo. Se não, então se torna uma porta aberta
para a conveniência humana, comitês de igrejas, organizações filantró-
picas, grupos que dominam e a influência de acadêmicos, intelectuais e
magnatas para entregarem uma noção culturalmente relevante da casa
de Deus, como eles a veem. O leitor deve pausar aqui e refletir: “Qual
é a minha convicção sobre a identidade da casa de Deus hoje, e qual a
minha responsabilidade para com ela?”
Para muitos que se reúnem ao nome do Senhor, a verdade da casa
de Deus é expressa na igreja local, também chamada de “a igreja do
Deus vivo” (I Tm 3:15), e o seu modelo é revelado no Novo Testamento.
Infelizmente, a maneira como o povo de Deus se comporta em relação
à verdade da casa de Deus tem sido caracterizada por períodos de falhas
e desvios. Como a Escritura relata estes incidentes, podemos estudá-los
com proveito, pois foram escritos para o nosso ensino. Esta convicção
foi ensinada de modo abrangente nos séculos XIX e XX, e aceito com
grande estima pelas igrejas locais. Um dos mais firmes ensinadores des-
ta verdade, John Ritchie, afirmou:
Entretanto, o padrão dado pelo Senhor, de acordo com o qual o Seu
povo deve ser edificado e unido, como Sua casa, Sua habitação,
Sua assembleia na terra, se mantém irrevogado, e é o único guia
para a organização da igreja, para comunhão, adoração, ministério
e ordem, que é de acordo com Deus.

Embora lamentando o fato que genuínos filhos de Deus continuam


nas denominações, ele esclareceu que
[…] seria totalmente impossível obedecer a Palavra do Senhor em
relação à organização da Sua casa em qualquer denominação. Na
maioria delas o mundo predomina, os não convertidos governam, e
sua constituição permite que seja assim. Nada pode ser alterado: os
padrões da denominação dominam, não a Palavra de Deus.*

Mais ou menos uma geração mais tarde, se tornou aceitável em


certos lugares negar isto.
Tem sido aceito, e até abertamente ensinado por alguns, que as Es-
crituras estabelecem um padrão para a adoração e ordem da igreja
da mesma maneira como Deus mostrou a Moisés um modelo para
o tabernáculo e o avisou: “Atenta, pois, que o faças conforme ao

* RITCHIE, J. The Church, The House of God, its Divine Pattern and Human Imitations. Kilmarnock:
J. Ritchie Ltd. Sem data.
108 A glória da oração

modelo, que te foi mostrado no monte”. Mas será que é assim? Será
que Deus estabeleceu um padrão para a igreja cristã?

O autor desta citação* passou a responder suas perguntas, negando


que existe um padrão divino a ser seguido pelas igrejas no Novo Tes-
tamento. Ficando empolgado com o seu tema, ele então argumentou,
“O ensino das Escrituras sobre separação tem sido mal aplicado”, e “as
objeções à associação como as igrejas organizadas tem sido demasia-
damente enfatizada”. Este discurso tem uma deficiência notável de re-
ferências bíblicas para apoiar a sua opinião, mas está cheio de retórica
sentimental, por exemplo: “Será que Lutero, Bunyan, Wesley, Spurgeon
e Moody foram deliberadamente desobedientes ou insinceros?”
Um estudo de Esdras deve ser de grande interesse para todos os
que estão interessados em revivificar o testemunho coletivo em relação
à igreja local nesta época de adversidade.
Samuel Blow†, escrevendo sobre Esdras 2, afirmou que o capítulo
[…] é ilustrativo dos cristãos que se separam do cristianismo professo
corrupto e que se reúnem ao nome do Senhor Jesus em obediência à
Palavra (Ap 18:4-5; II Tm 2:19-26; Mt 18:20).

Oração pelo imperador e pela família real


As cartas dos reis persas a Jerusalém mostram que o rei queria que
os líderes religiosos na Judeia orassem regularmente por ele e pela casa
real. A carta de Dario a Tatenai, em Esdras 6:3-12, promete subsídio
imperial para as ofertas diárias, com a estipulação de que se fizesse ora-
ção pelo rei e seus filhos. Dario até menciona um tipo específico de
oferta: “Para que ofereçam sacrifícios de cheiro suave ao Deus dos céus,
e orem pela vida do rei e de seus filhos” (Ed 6:10). É interessante como
ele fala destas ofertas com palavras que indicam um conhecimento da

* GOODMAN, Montague. An Urgent Call to Christian Unity. Londres: Paternoster Press, 1948.
Este discurso era consistente com os princípios do Sr. Goodman, mas o que ofendeu muitos
naquele tempo foi que um grupo de trinta e cinco irmãos dentre as lideranças na Grã Breta-
nha assinaram um acordo incentivando a aceitação das recomendações de Goodman, que
“mostram claramente a base que deve ser adotada por todas as igrejas locais”, e que “se esta
ação não for tomada rapidamente poderá ser tarde demais”. Para incentivar este processo
de união, as conferências de High Leigh (continuada pelas conferências de Swanwick), logo
se iniciaram com consequências dolorosas.
† BLOW, Samuel. Genesis to Revelation: Notes and outlines on all the books of the Bible. Kilmarnock:
J. Ritchie Ltd. Sem data. Samuel Blow era um verdadeiro pioneiro na obra do Evangelho no fim
do século XIX, e muito fiel na sua lealdade às verdades sobre a igreja do Novo Testamento.
Cap. 6 — As orações de Esdras 109

terminologia levítica. Como saberia ele das ofertas “de cheiro suave”?
A presença de piedosos oficiais judaicos no palácio Persa é bem docu-
mentada nas Escrituras. Daniel e Mardoqueu são dois exemplos espe-
cíficos. A influência de tais homens (e também da rainha Ester) deve
ter sido considerável, e a existência destas testemunhas fieis a Deus, em
tais circunstâncias especiais, ilustra os “caminhos misteriosos” de Deus
ao executar Seus propósitos soberanos.*
Na nossa época, temos instruções claras sobre orar pelas autorida-
des. “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, ora-
ções, intercessões e ações de graças, por todos os homens; pelos reis,
e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida
quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade” (I Tm 2:1-2). Em-
bora estejamos numa dispensação diferente daquela dos dias de Esdras,
em termos de governo global, a era chamada “os tempos dos gentios”
engloba ambos, e o povo de Deus agora, como o de então, está sujeito
aos sistemas de governo do mundo. Durante “os tempos dos gentios”,
o propósito do povo de Deus não dever ser envolver-se numa posição
política no sistema do mundo. O destino da imagem do sonho de Na-
bucodonosor é ser destruída pela Pedra feita sem mãos. Sabendo disso,
é impróprio para cristãos que estão “em Cristo” procurarem fazer parte
da imagem, quando estamos ligados à Pedra.

O homem Esdras
Esdras era um homem de família sacerdotal. Era filho de Seraías,
o último Sumo Sacerdote de Jerusalém, morto por Nabucodonosor por
ocasião da destruição do Templo. Esdras era escriba hábil na Lei de
Moisés. Ele passou sua juventude no exílio, na Babilônia, mas não des-
perdiçou aquele tempo: “Porque Esdras tinha preparado o seu coração
para buscar a lei do Senhor e para cumpri-la e para ensinar em Israel os
seus estatutos e os seus juízos” (7:10). Nisso, ele não procurava fama. A
ordem no versículo é instrutiva: buscar; cumprir; ensinar. Mesmo se a
oportunidade para ensinar nunca chegasse, Esdras estava contente em
buscar a Lei do Senhor e cumpri-la. Ele era um homem sincero e que
se preparou durante toda a sua vida. Quando surgiu a oportunidade

* Se o Assuero do livro de Ester é Dario Hystapes, esta influência fica clara. Veja a cronologia
do mui respeitado Bispo Ussher em The Annals of the World, revisado e atualizado por Larry
and Marion Pierce, Master Books 2003, e Bible Chronology: The Two Great Divides por J. A.
Moorman, The Bible for Today, 2010.
110 A glória da oração

para servir publicamente, ele estava preparado. J. G. Bellet resumiu bem


a vida de Esdras:
Serviço, se feito e oferecido de acordo com a palavra escrita, é para
a glória do Deus de Israel, e no espírito de adoração e comunhão.
É um exemplo de como pode ser o nosso serviço hoje, e poderíamos
acrescentar, como o nosso serviço deve ser. Esdras, continuamente,
não dá ouvidos à conveniência, nem cede diante de uma dificul-
dade, nem recusa diligência e trabalho árduo; ele mantém os seus
princípios, e leva a Palavra de Deus através de cada obstáculo.*

Treze anos antes de Neemias subir a Jerusalém para reconstruir o


muro da cidade, Esdras subiu com o apoio total de Artaxerxes, o rei, e
com vasos e tesouros adicionais para o Templo. Ele tinha autoridade
delegada do rei para usar a força para cumprir a sua comissão, mas como
veremos, ele não utilizou a força.

Oração por proteção


Antes de iniciar a sua viagem para Jerusalém, no cap. 8, Esdras or-
ganizou oração e jejum pela proteção do grupo contra os perigos da
longa jornada. Lembrando que ele bem sabia que tinha o direito de
uma escolta armada da cavalaria imperial, ele escolheu não pedir isto
ao rei. Ele estava bem ciente da mensagem incoerente que isto poderia
transmitir ao rei e aos oficiais imperiais, e também aos povos das nações
por onde passaria na viagem, como também a impressão que seria dada
aos judeus que já estavam em Jerusalém e nos seus arredores.
Esdras já havia falado ao rei sobre a bondade de Deus para com os
que O buscam, e o povo que voltava estava incluído neste grupo que
tinha a proteção divina. A vergonha é um motivador poderoso, e foi isto
que Esdras sentiu enquanto pensava sobre a incoerência de pedir uma
escolta militar ao rei.
Este ato de humilhação coletiva diante de Deus, no contexto de
jejum, não é algo que vemos hoje em dia. Abnegação para concentrar
em buscar a direção e liderança de Deus era prova de que Esdras não
confiava na sabedoria ou na iniciativa humana. Pode ser que o perigo
que eles sentiam tinha aumentado por causa da demora não programa-
da de Esdras, enquanto esperava a chegada de um grupo de Levitas. A
notícia sobre um grande grupo de pessoas levando ouro e outros tesou-

* BELLET, J. G. Witnesses for God in Dark and Evil Times. Pode ser encontrado em www.stempu-
blishing.com.
Cap. 6 — As orações de Esdras 111

ros logo se tornaria conhecida, e seria de grande interesse aos bandidos.


E quanto mais tempo esperavam, maior o perigo. Esta atitude piedosa
de Esdras e sua relutância em confiar no exército gentio para proteger
os objetos sagrados do Senhor é um desafio à nossa frequente atitude
indiferente em relação a coisas divinas. Esdras preferiu esperar pelos
levitas, do que pedir a ajuda das forças armadas. Isso ilustra a natureza
devota e de gratidão deste homem de fé.

Doxologia
“Bendito seja o Senhor Deus de nossos pais, que tal inspirou ao co-
ração do rei, para ornar a casa do Senhor, que está em Jerusalém. E que
estendeu para mim a sua benignidade perante o rei e os seus conselhei-
ros e todos os príncipes poderosos do rei” (7:27-28). Esta curta excla-
mação é uma doxologia, na qual não há nenhuma menção de Deus na
segunda pessoa, mas é uma expressão de bênção e gratidão a Deus pela
Sua maravilhosa intervenção ao conceder a Esdras tão rico portfólio de
direitos e privilégios para usar o poder do monarca persa no serviço do
Senhor e na restauração do testemunho divino em Jerusalém.

Oração por estudo bíblico público


Encontramos mais um exemplo de Esdras recorrendo à oração em
Neemias cap. 8. Este capítulo narra a grande reunião ao ar livre para a
leitura das Escrituras, quando a Lei de Deus foi lida publicamente e
depois explicada. “E Esdras abriu o livro perante à vista de todo o povo;
porque estava acima do povo; e, abrindo-o ele, todo o povo se pôs em pé.
E Esdras louvou ao Senhor, o grande Deus; e todo o povo respondeu:
Amém, Amém, levantando as suas mãos; e inclinaram suas cabeças, e
adoraram ao Senhor, com os rostos em terra” (vs. 5-6).
É notável que em relação ao manejo público da Palavra de Deus,
Esdras orou, e embora não sabemos as palavras usadas nesta oração,
lemos: “Esdras louvou ao Senhor, o grande Deus”. O efeito desta oração
sobre a multidão foi dramático. Provocou imediata adoração profunda
e sincera. Com certeza é relevante perguntar se a nossa experiência de
oração pública, associada com a leitura da Palavra de Deus nas nossas
reuniões, tem um efeito como este nos presentes. Quão bom se tivesse!
Esta oração de Esdras (como gostaríamos de ter as palavras exatas!)
ilustra poderosamente o tipo de homem que ele era. Uma oração com
112 A glória da oração

tanto impacto só poderia ser feita por um homem que estava totalmente
mergulhado na Palavra, e cuja missão total na vida era aplicar a Palavra
a cada faceta da experiência do remanescente, tanto no aspecto indi-
vidual como coletivo. A sua visão do mundo começou com “o grande
Deus”. A sua oração foi a Deus e sobre a grandeza de Deus, e ao aben-
çoar o Senhor, o Deus Triúno, Jeová, ele sabia que a verdadeira bênção
seria encontrada num relacionamento correto com Deus. Nos nossos
dias, podemos pensar nas nossas próprias bênçãos no Evangelho, como
descritas no “glorioso evangelho do Deus bendito”. Como J. L. Harris
disse*: “Quanto mais é conhecido, quanto mais se deleita nele”.
Além disso, o tom e o ambiente eram reverentes. Isso é aparente
na atitude de Esdras e seus companheiros, e de todos os presentes, em
relação à Palavra de Deus. Uma atitude de humildade e reverência para
com a Palavra de Deus será associada a um temor reverente, quando
estiver relacionado com falar publicamente com Deus em oração. Nos
nossos dias de ideias sentimentais e atitudes informais, o exemplo de
Esdras revela como falhamos muito em relação a isso. Está se tornando
mais comum† o uso informal de “Você” ao invés de “Tu” para se dirigir a
Deus (o que é gramaticalmente e teologicamente impróprio). Na oração
pública, o irmão que fala audivelmente com Deus ocupa uma posição
de grande responsabilidade, pois ele dirige o ajuntamento, e o “Amém”
de todos é esperado. Ao se falar com Deus pronomes pessoais plurais
nunca são usados no Velho ou no Novo Testamento. Nas versões [em
inglês] Authorised Version e New Translation de JND, há fidelidade ao
texto hebraico e grego ao traduzir o pronome singular por “Thou/Thee”
(“Tu/Ti”) — o pronome plural é “You” [no inglês]. A unidade essencial
de Deus é um aspecto fundamental da teologia do Velho Testamento,
e sua importância foi enfatizada pelo Senhor Jesus Cristo em Marcos
12:29: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Assim, é
essencial o uso de “Tu” ao falarmos com Deus. Usar “Você” revela fal-
ta de conhecimento‡ ou de reverência, algo inapropriado em qualquer
* HARRIS, J. L. Law and Grace: being Notes of Lectures on the Epistle to the Galatians (pode ser
encontrado em www.stempublishing.com).
† Veja o panfleto publicado por Bible League Trust: Archiac ou Accurate? editado por J. P.
Thackway. De importância especial são dois artigos por John Heading: Singular and Plural
— a warning against Confusion e Thou and You in Bible Translations; também Adressing God
in Prayer and Worship por T. E. Wilson. Estes podem ser achados online em http://www.
bibleleaguetrust.org/articles/archaic_or_accurate.pdf.
‡ O argumento gramatical usado no texto acima não se aplica no português, devido à diferença
Cap. 6 — As orações de Esdras 113

irmão querendo dirigir a igreja em oração pública. Nós não adoramos


uma pluralidade de deuses, como fazem os pagãos.
Além disso, aqueles que defendem esta forma informal de se dirigir
a Deus na oração pública também costumam usar um linguajar que
transmite uma impressão de familiaridade, manifestando uma falta de
entendimento quanto à necessidade de reverência ao se aproximar do
“grande Deus”, e uma falta de apreciação da posição tão digna que é
nossa, como filhos de Deus nesta dispensação. Uma apreciação sincera
de quem somos perante Deus e da posição privilegiada na qual Ele nos
colocou nesta dispensação da graça, com certeza resultaria em orações
bem diferentes de muitas orações públicas que ouvimos, superficiais,
frívolas e teologicamente duvidosas. Desejar mais dignidade e reverên-
cia nas orações públicas não deve ser interpretado como falta de encora-
jamento ou estímulo ao recém-convertido no seu crescimento em graça,
cujas primeiras orações públicas naturalmente não terão maturidade.

A resposta a uma grande crise moral


Tendo ouvido que o remanescente havia se misturado com o povo
da terra, Esdras ficou muito desapontado e humilhado perante Deus,
por causa da magnitude deste desvio do padrão divino. Sendo conhece-
dor profundo das Escrituras, ninguém melhor do que ele entendia quão
grave ameaça isto era para a sobrevivência do remanescente pós-exílio
na Judeia, e como era motivo de zombaria contra o projeto divino de
reestabelecer a casa de Deus em Jerusalém. Ele se assentou atônito. Ali
ele permaneceu em profunda tristeza de coração até ao sacrifício da
tarde.
Neste intervalo, se ajuntaram a Esdras “todos os que tremiam das
palavras do Deus de Israel por causa da transgressão dos do cativeiro …”
(9:4).* Se dissesse que “tremiam da palavra do Deus de Israel” isto teria
sido bem apropriado, mas a afirmação enfatiza as “palavras” do Deus de
Israel, isto é, a revelação escrita de Deus, e era isto que estava ocupando
entre o singular “você” e o plural “vocês” (ambos equivalentes a “you” em inglês). Mantivemos
os parágrafos, porém, pois eles chamam atenção ao fato importante que devemos nos dirigir
a Deus usando formas respeitosas de tratamento (no português, usando o pronome “Tu”, e
nunca “você”). (N. T.)
* Uma referência aos transgressores mais antigos que, quando muito mais jovens, tinham sido
levados de Jerusalém e da Judeia para o cativeiro. A propósito, isto é uma evidência em favor
de uma data anterior para o ministério de Esdras em Jerusalém. Com certeza não poderia ser
aplicado àqueles que haviam acabado de retornar com Esdras.
114 A glória da oração

os pensamentos de Esdras e que se destaca na sua oração.


A sua tristeza foi mais profunda porque as transgressões abrangiam
“os do cativeiro”. Estes eram da geração mais idosa, que havia sido leva-
da para a Babilônia quando jovens. Eles tinham provado, em primeira
mão, a severa disciplina de Deus contra este exato problema. Agora, de-
pois de tantos anos de cativeiro e exílio, estavam de volta na terra, graças
à misericórdia e graça de Deus. Era inconcebível para Esdras como eles
podiam tão rapidamente ter voltado ao antigo pecado de amalgamação
com os povos idólatras ao seu redor.
Não somente isto, mas estes transgressores idosos encorajavam seus
filhos a também se envolverem. Isso seria especialmente difícil para Es-
dras aceitar. É bastante sério quando alguém, que professa se reunir ao
nome do Senhor, e que está declaradamente comprometido com a igreja
local, desobedece as instruções claras do Senhor em relação à separação
da corrupção moral e religiosa deste mundo, mas agravar este pecado
pessoal, encorajando a próxima geração a fazer o mesmo, representa um
outro nível de culpa. É uma coisa culpar novos cristãos por vários tipos
de desvios, mas se cristãos mais idosos são a causa disto, é de fato muito
triste. Isto nos lembra da trágica história do velho profeta em I Reis 13.

A linhagem santa
A preocupação maior de Esdras, no cap. 9, é com a linhagem santa
e a ameaça contra a sua pureza e continuidade, por ter-se misturado
com os povos ao redor. Não há qualquer referência anterior de Esdras à
“linhagem santa”, e é notável que o assunto é apresentado pelos líderes
“leigos” (príncipes) da comunidade judaica, isto é, não pelo sacerdote,
levita ou profeta. Estas pessoas anônimas estavam preocupadas, e ex-
pressaram a sua preocupação em linguagem teológica muito interes-
sante.
O uso da expressão “linhagem santa” nos mostra que estes príncipes
consideravam o assunto de grande importância teológica. Além disso,
estavam preocupados com a situação presente por causa da esperança
profética que dependia da integridade e da propagação desta “linhagem
santa”. A mistura foi vista como um ataque maligno contra a “linhagem
santa”. Pior ainda, o ataque não vinha de um inimigo externo, mas de
uma epidemia de decadência moral no meio do povo de Deus. A his-
tória bíblica desta “linhagem santa” (ou “santa semente”) é um estudo
interessante. Cronologicamente, a primeira menção está em Isaías 6:13,
Cap. 6 — As orações de Esdras 115

quando o Senhor responde à pergunta de Isaías: “Até quando Senhor?”


Sua resposta faz a seguinte comparação: “Como o carvalho, e como a
azinheira, que depois de se desfolharem, ainda ficam firmes, assim a
santa semente será a firmeza dela”. É encorajador ver como os príncipes
confiavam nesta Palavra profética de Deus. O conceito de uma “santa
semente” não é somente uma reversão ao passado, aos dias de Isaías,
mas um vínculo vital com o assunto da restauração futura da nação, da
qual a volta pós-exílio, autorizada pelos monarcas persas, era somente
um cumprimento parcial. O ministério de Malaquias também é muito
relevante. Ele fala sobre “uma descendência para Deus”, apesar do mau
comportamento da comunidade judaica nos seus dias (Ml 2:15). Não há
dúvida que as expressões “santa semente” e “a descendência para Deus”
são ideias semelhantes, e que ambas trazem a esperança da plena e glo-
riosa restauração futura de Israel no reino do Messias sobre a Terra.
Os líderes evidenciaram uma compreensão, talvez fraca, mas im-
portante, de que o comportamento presente precisa ser governado pela
verdade que ligava a sua situação presente com o programa profético
da vontade revelada de Deus. O uso destas palavras na reclamação feita
a Esdras teria imediatamente despertado na sua memória muitas as-
sociações bíblicas e referências à história das vicissitudes terrestres da
semente prometida através dos séculos, e de todos os muitos ataques de
Satanás. Não é de se admirar que ele permaneceu sentado atônito. O
perigo em que Sara e Rebeca se encontraram por causa de Faraó e Abi-
meleque; a tentativa egípcia de afogar os meninos israelitas; a astúcia
maliciosa da doutrina de Balaão de misturar os moabitas e os israelitas;
a traição sanguinária de Atalia, tudo isto, e muito mais, teria surgido na
sua mente como um panorama de fraqueza, falhas e desastre, recupera-
dos somente pela interferência da graça de Deus.

A oração de Esdras
O horário desta oração coincidiu com o sacrifício da tarde. Este era
um holocausto (Lv 6:9; Êx 29:41-43), e era a base divina do encontro
de Deus com o Seu povo e a sua aceitação. O sacrifício público de Elias
no Monte Carmelo também ocorreu na hora do sacrifício da tarde (I Rs
18:36), quando ficou claro a todos que nenhuma resposta haveria para
os profetas de Baal. A oração de Daniel foi respondida rapidamente
na hora do sacrifício da tarde (Dn 9:21). Sem dúvida, Esdras entendia
bem o significado do sacrifício da tarde, e teria alguma compreensão,
116 A glória da oração

embora limitada, do bem espiritual do holocausto, pois antecipava a


explicação tipológica em Efésios 5:2: “Cristo vos amou, e se entregou a
si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave”. Paulo
valorizava esta doutrina, mas não meramente como um pensamento
precioso abstrato, isolado dos assuntos e crises da vida prática, e parece
que Esdras também apreciava algo deste significado prático. Considere
Efésios 5:3, que tem a seguinte frase imediatamente depois de “cheiro
suave”: “Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se
nomeie entre vós, como convém a santos”. Esta ligação do holocausto
e aceitação em Cristo com pureza de vida, é a base para o chamado à
separação para não ser participantes com os filhos da desobediência, e
para não ter comunhão “com as obras infrutuosas das trevas” (vs. 3-11).
O que pode ser mais prático? No entanto, esta separação não é baseada
em dizeres vulgares, ou na justiça própria dos fariseus, mas na aprecia-
ção no coração do valor perpétuo e sempre renovado do grande sacrifí-
cio do Senhor Jesus Cristo por nós, a única base para a nossa aceitação
diante de Deus. Parece que os judeus dos dias de Esdras não apreciavam
o envolvimento de santidade que os sacrifícios exigiam, senão o afasta-
mento na moralidade e separação não teriam acontecido. Isso coincide
com a ordem moral dos assuntos tratados na profecia de Malaquias.
A perda de apreciação do valor do sacrifício em adoração precedeu a
decadência na moralidade pessoal e familiar. Há uma grande lição aqui.
A separação não é apresentada sobretudo como uma verdade negativa.
Claramente, o abandono do mal e da impureza é o aspecto negativo, e
inescapável para todos os santos em toda e qualquer era, mas o aspecto
atraente da doutrina de separação, ligado à verdade do altar da nossa
adoração e à igreja local, é supremo (Hb 13:10-15).
O tom e linguagem da oração de Esdras têm paralelos com a gran-
de oração de Daniel cap. 9. De fato, algumas das expressões usadas por
Esdras são idênticas, ou muito semelhantes, por exemplo: “confusão de
rosto” para Israel, deixando “os teus mandamentos os quais mandas-
te pelo ministério de teus servos, os profetas”, e a referência a “nossos
pais” também sendo culpados. É com razão que Wordsworth, no seu
Comentário, sugere que estas semelhanças servem de evidência de que
Esdras conhecia bem e foi influenciado pela oração de Daniel, e que
assim o livro de Esdras é um testemunho da existência contemporâ-
nea do livro de Daniel. Esta oração revela grande reverência para com
Deus e para com as santas Escrituras. Aqui Esdras manifesta seu íntimo
Cap. 6 — As orações de Esdras 117

e profundo conhecimento das Escrituras, pela maneira como ajuntou


tantas citações e alusões bíblicas no seu discurso a Deus, enquanto ele
se expressava numa linguagem saturada com Escrituras. Isto merece re-
comendação, e deve ser considerado como um exemplo digno de oração
pública em dias de desvio.
Lamentavelmente, hoje em dia, há aqueles que escarneceriam deste
tipo de oração pública. Há mais de trinta anos atrás, o falecido A. M. S.
Gooding deu o alerta sobre elementos dentro das igrejas que se reúnem
ao nome do Senhor, que procuram destruir todo componente bíblico da
função e adoração da igreja local. Sobre oração e adoração, estes pensa-
dores modernos querem ver o fim da tradição e “das orações saturadas
das ofertas levíticas, ou da tipologia complexa, ou das exposições pro-
fundas das Escrituras”.* Podemos ter certeza de que eles não gostariam
da oração de Esdras.
Toda a ênfase desta oração é confissão a Deus e o reconhecimento
pleno da grande culpa da nação. A gravidade do problema era maior
pelo fato que Deus os tinha tão bondosamente restaurado à terra (em-
bora não à soberania nacional). Há duas frases chave no último versícu-
lo da sua oração que merecem nossa consideração especial: “Ah! Senhor
Deus, justo és”, e “ninguém há que possa estar na tua presença, por causa
disso!” Isso não é uma oração pedindo perdão. É uma confissão total de
culpa como um prelúdio à ação de desarraigar o pecado que causou o
desprazer de Deus. O povo não pode ser justificado perante Deus (isto
é “estar na presença”) na Sua justiça, sob estas condições.

Afirmando a sua autoridade


Como já notamos, Esdras tinha recebido grandes poderes do im-
perador para fazer o povo cumprir a Lei de Deus e respeitar os direitos
do rei. Entretanto, ele não usou estas medidas coercivas, como também
recusou a escolta militar na longa e perigosa viagem para Jerusalém. Ao
se confrontar com a crise moral do cap. 9, poderíamos ter esperado que
ele fizesse decretos e ordens para acabar com os relacionamentos com
mulheres estranhas, e que punisse os envolvidos. Mas ele não fez isto.
Pelo contrário, encontramo-lo rasgando as suas vestes, arrancando os
seus cabelos e assentado em confusão esmagadora e tristeza por causa
da situação. Depois, na hora do sacrifício da tarde, ele se levantou e fez
* GOODING, A. M. S. Editors review of the Swanwick Conference of Brethren. Em Assembly
Testimony, Julho/Agosto 1979.
118 A glória da oração

a sua famosa oração de confissão e humilhação. Depois disto, parece que


aqueles ao seu redor espontaneamente começaram a agir, e esta ação
cresceu, e o resultado foi um grande movimento de restauração.
Nesta maneira de agir, Esdras se assemelha ao apóstolo Paulo. Pau-
lo tinha autoridade apostólica especial, e ele menciona isto nas suas
epístolas, especialmente em Coríntios. Porém ele escolheu não usar des-
tes direitos. Ele sentiu que se ele chegasse em Corinto pessoalmente,
ele seria obrigado a usar a “vara”, com consequências prejudiciais aos
que tinham pecado. Por isso ele evitou visitá-los, e até esta demonstra-
ção de bondade foi mal interpretada pelos seus adversários, quando eles
deveriam ter sido gratos. O método preferido de Paulo foi exercitar as
consciências dos seus leitores ao aplicar a Palavra de Deus a eles, e em
seguida apelar a eles com base nas suas bênçãos cristãs e privilégios em
Cristo, para que se comportassem de uma maneira consistente com a
sua profissão e vocação.
Nos nossos dias, esta também é a chave para se obter resultados
positivos em assuntos que requerem um ato disciplinar da igreja local.
J. N. Darby, um homem muitas vezes acusado pelos historiadores de ter
sido impaciente e causador de divisões entre as igrejas do século XIX,
se preocupava muito em despertar a consciência de uma igreja e de
indivíduos quanto à sua lealdade a Cristo e sua responsabilidade de se
separar de todas as formas de imoralidade e doutrina falsa, motivados
por amor a Ele, ao invés de coagir os santos através de sentimentos
sectários ou da força da sua notável personalidade. É interessante ver os
paralelos íntimos com os pensamentos do apóstolo Paulo, sobre assun-
tos disciplinares, refletidos frequentemente nas cartas de J. N. Darby. A
consideração destas cartas forneceria muito alimento sadio para as nos-
sas mentes em nossos dias, quando, em relação à ordem na igreja, parece
ser cada vez mais comum o caso de “cada um fazendo o que parece reto
aos seus olhos”.*

* “Eu sempre tenho sido contra irmãos sendo chamados para resolver problemas para uma
igreja. Um irmão sábio e piedoso pode dar conselhos das Escrituras e procurar despertar a
consciência, mas nada será realmente realizado se a consciência da igreja não agir” (parte
de uma carta a William Reid). “Enquanto reconhecemos que um irmão pode aconselhar, com
muito proveito, eu tenho muitíssimo receio de irmãos chegando para resolver problemas,
porque a consciência da igreja não é exercitada. Paulo não foi, mas ativou a consciência da
igreja” (de uma carta a Christopher McAdam, Vol. 2, pág. 398). “O ato de disciplina publica
precisa ser feito pela igreja local; pois a igreja precisa se purificar a si mesma, e nenhum outro
caminho servirá. Como ele (Paulo) diz: ‘provaram a si mesmos neste assunto’. Suponhamos que
Cap. 6 — As orações de Esdras 119

Unanimidade de ação
Imediatamente depois da grande oração de Esdras surgiu um notá-
vel consenso sobre a necessidade de agir para tratar da crise causada pela
mistura. Corações e consciências evidentemente foram profundamente
tocados. A grande congregação de homens, mulheres e crianças que se
reuniu perante Esdras, enquanto ele terminava a sua oração, foi motiva-
da pelo efeito da Palavra de Deus nas suas consciências. Eles choravam
amargamente. Seus pensamentos foram vocalizados por Secanias, filho
de Jeiel. Aqui havia um homem que estava preparado a colocar princí-
pios antes de vínculos naturais. Vemos em 10:26 que seu pai fora um
daqueles que tinha tomado mulheres estranhas. Entretanto, foi ele que
incentivou Esdras a agir. Apesar da gravidade da situação, ele tinha a
fé para dizer: “No tocante a isso, ainda há esperança para Israel” (10:2).
Ele sugeriu que uma aliança fosse feita com Deus para despedir todas
as mulheres estrangeiras, algo que deveria ser feito “conforme a lei” (v.
3). Sem dúvida, reconhecendo o conhecimento que Esdras tinha da Lei,
ele disse: “Porque te pertence este negócio” (10:4). Este impacto da ora-
ção de Esdras não era simplesmente o resultado da sua eloquência ou
carisma pessoal. Decisões que, do ponto de vista natural, poderiam ser
consideradas duras e sem compaixão humana, foram rapidamente im-
plementadas no temor de Deus. Não resta dúvida que havia um grande
preço pessoal a ser pago, emocionalmente e provavelmente economi-
camente, para aqueles que se sujeitaram ao padrão das Escrituras para
o testemunho divino. No entanto, a maioria aceitou fazer esta aliança.
Hoje em dia, uma tal restauração do povo de Deus das condições de
desvio frequentemente é considerada como legalista e sem compaixão.
Estes sentimentos agradam a uma atitude baseada em emoção quanto
às coisas divinas. É pós-teológica*, pois os proponentes de tais opiniões
nunca apelam ao “assim diz o Senhor”; eles não são caracterizados por
“achar escrito na lei”, e preferem provocar empatia com o mal; isto cor-
responde a participar com aqueles que perpetram o que a Palavra de
Deus identifica como pecado.
Apesar deste grande movimento de arrependimento e restauração
somente os anciãos colocam a pessoa fora de comunhão, isto não purificaria a consciência da
igreja. Somente produziria, basicamente, tristeza por terem de fazer isto” (Notes of Readings
in First Corintians 10). Estes extratos foram acessados em www.stempublishing.com.
* “Pós-teológico” pode ser aplicado à infiltração pós-moderna nos pensamentos de muitos
evangélicos que atualmente procuram formar opiniões em outros.
120 A glória da oração

depois da oração de Esdras, parece, de 10:15, que houve alguns que


recusaram cooperar com o plano*. Esta oposição pode estar ligada a in-
teresses pessoais. Um deles, Mesulão, é mencionado em 10:29 como um
dos culpados de casamento ilícito. A discordância da minoria não afe-
tou o progresso da restauração, e a inclusão de Mesulão no v. 29 indica
que ele, mais tarde, concordou com o processo de purificação e assim foi
restaurado. Parece que o levita Sabetai também foi restaurado, pois ele
aparece em Neemias 8:7 como um dos ajudantes de Esdras na grande
reunião para a leitura das Escrituras, e ele participou na “presidência
sobre a obra de fora da casa de Deus”.† O apelo muito comum de que
não se deve agir na igreja sem unanimidade não foi considerada nesta
restauração divinamente autorizada. As instruções claras da Palavra de
Deus foram obedecidas nas consciências da maioria. “Insistir na dou-
trina da unidade para impedir o julgamento do pecado, e isto através da
consciência dos santos, e transferindo este julgamento para as mãos dos
líderes, é uma das piores formas do mal”, observou, com percepção, J. N.
Darby em 1845.‡

Restauração conseguida
Mesmo entre os filhos dos sacerdotes havia alguns que tinham to-
mado esposas estrangeiras. “Os lábios do sacerdote devem guardar o
conhecimento” (Ml 2:7), e é coisa séria quando inconstância na conduta
moral ocorre entre os que ensinam o povo de Deus. De Esdras cap. 10
aprendemos que foi necessária uma completa e rápida investigação com
arrependimento, e arrependimento em ação, não só em palavras, levan-
do à cessação do relacionamento condenado pelas Escrituras. No v. 11
há três elementos chave na instrução de Esdras ao povo:
• Confissão — “Agora, pois, fazei confissão ao Senhor Deus de vos-
sos pais”;
• Obediência — “E fazei a Sua vontade”;
• Separação — “E apartai-vos dos povos das terras …”
* A versão JND concorda com a AT em português: “Somente Jônatas o filho de Asael e Jazeías
o filho de Ticva se levantaram contra isto; e Mesulão e Sabetai o levita os ajudaram”. O texto
da AV (“se ocuparam desta questão”) deve ser entendido de forma adversativa.
† Ne 11:16. Veja os comentários úteis sobre Esdras 10 por H. L. Rossier, Meditations on the
book of Ezra (acessado em www.stempublishing.com).
‡ Letter to the saints meeting in Ebrington Street on the circumstances which have recently occurred
there. J. N. Darby; Vol. 20, Collected Writings: Ecclesiastical.
Cap. 6 — As orações de Esdras 121

Há uma clara progressão moral e lógica na ordem destas três exi-


gências. Isso não precisa ser elaborado. Se as igrejas do povo de Deus,
hoje, tomassem estes três passos seriamente, haveria resultados impres-
sionantes. Isto traz um desafio a cada um de nós, individualmente e
coletivamente.
O processo de restauração no cap. 10 era individual, pois os nomes
relatados são de indivíduos. O resultado coletivo era real, mas foi obtido
no nível individual. Como Esdras deveria ter se alegrado quando a con-
gregação respondeu com alta voz: “Assim seja, conforme às tuas palavras
nos convém fazer”. Não houve negociação, ou apelos especiais. Quão
grande honra é trazida a Deus quando esta é a atitude do povo de Deus
diante de um desafio baseado nas Escrituras. Talvez, acima de todos os
outros incidentes na sua vida, este foi o momento, nesta Terra, quando
ele sentiu um senso de recompensa pela sua longa vida de estudo con-
sagrado e de dedicação à Palavra de Deus. De maneira verdadeiramente
sacerdotal, nunca houve uma sugestão de autogratificação no ministé-
rio de Esdras. Ele se comportava, da melhor maneira possível para um
homem, como alguém “ordenado para homens nas coisas pertencentes
a Deus”. Que a vida e as orações de Esdras possam ser um exemplo e
encorajamento a cada um de nós.
Cap. 7 — As orações de Neemias
Por Jack Palmer, Irlanda do Norte

Pano de fundo
O reinado de Salomão foi caracterizado por extraordinário poder e
prosperidade. Durante o seu reinado, houve a construção do Templo e
o estabelecimento de Jerusalém como a habitação de Deus. Sua fama
foi extensa, e atraiu a visita da rainha de Sabá, desejosa de observar “a
sabedoria de Salomão, e a casa que edificara” (II Cr 9:3). Tudo isto iria
mudar rapidamente, e depois da morte de Salomão o reino foi dividido
em dez tribos ao norte, chamadas Israel, e duas tribos ao sul, chamadas
Judá. Subsequentemente, Israel foi conquistada pelos assírios e Judá foi
levada cativa pelos babilônios.
O cativeiro de Judá na Babilônia, permitido por Deus, represen-
tava a Sua resposta judicial ao fracasso que caracterizou o Seu povo.
Sua desobediência, contaminação e insubmissão aos mensageiros do
Senhor, como relatado em II Crônicas 36:14-16, resultou na profana-
ção e destruição da casa de Deus que Salomão havia construído e na
demolição dos muros de Jerusalém. Muitos foram levados cativos para
a Babilônia. Provavelmente, o pai de Neemias estava entre os cativos
naquele tempo, e assim se encontrava a centenas de quilômetros do seu
lar e em circunstâncias estranhas e desagradáveis. Com base no fato que
o povo de Judá ficaria no cativeiro durante setenta anos, seria razoavel-
mente seguro concluir que Neemias nasceu na Babilônia.
Quando Neemias aparece nas páginas da nossa Bíblia, os Medos e
Persas tinham conquistado a Babilônia e, sob o decreto destes, o primei-
ro grupo de exilados tinha recebido permissão para voltar a Jerusalém,
de acordo com o programa de Deus revelado a Jeremias. Este grupo,
dirigido por Zorobabel, ajudado por Josué, o sumo sacerdote, começou
o trabalho da reconstrução do Templo. Estes passos iniciais da restau-
ração pararam, e o ministério de Ageu, o profeta, teve uma importância
específica nas dificuldades enfrentadas naquele tempo.
Durante o reinado de Artaxerxes outro grupo de exilados voltou,
sob a liderança de Esdras, e um relato detalhado das suas atividades é
Cap. 7 — As orações de Neemias 123

dado em Esdras caps. 7-10. Neste meio tempo Neemias foi designado
copeiro do rei no palácio em Susã. Sua função incluía a responsável
posição de ser o criado pessoal do rei; ele havia, obviamente, provado a
sua integridade pessoal e fidelidade, ou não teria sido selecionado para
servir nesta posição favorecida. Nisso, ele nos dá um exemplo muito
positivo sobre como se deve viver num pais estrangeiro. Outros, como
José, Daniel e a criada da esposa de Naamã logo vem à mente.
O papel e a responsabilidade de Neemias no palácio lhe davam
acesso ao rei e à rainha. Quando ele estava ocupado neste serviço, lemos
em Neemias 2:1 que “sucedeu, pois”. O significado disto será consi-
derado mais tarde. Devemos notar as referências em Neemias 1:1 ao
mês de Quisleu e ao ano vigésimo do reinado do rei Artaxerxes, que
indicam que Deus estava cumprindo os Seus propósitos no Seu tem-
po. Embora Deus pode agir independentemente, é muito encorajador
observar que vai ser permitido a Neemias ter uma parte importante na
obra de restauração a ser feita em Jerusalém. O relato de Neemias for-
nece um exemplo muito instrutivo sobre o que pode ser feito para Deus
nas circunstâncias mais difíceis e desagradáveis. Seria proveitoso refletir
nas suas muitas qualidades recomendáveis, tais como sua percepção da
necessidade, sua competência prática, e sua capacidade de trabalhar em
parceria com outros, mas o propósito específico deste capítulo é consi-
derar as suas orações. Suas orações apresentam, de diversas maneiras,
uma compreensão nítida da vida espiritual e da motivação dele mesmo,
e são muito compatíveis com tudo que é simbolizado pelo seu nome,
que significa “o conforto do Senhor”.

Resumo
Antes de considerar o contexto e conteúdo de cada oração de Nee-
mias, algumas observações gerais são apropriadas.
O fato que ele orava com regularidade e espontaneidade demonstra
que ele vivia uma vida de comunhão com Deus e, em relação a isto, é
importante notar o respeito que tinha pelo “livro da lei de Moisés” (Ne
8:1). Isso mostra que a comunhão com Deus através de oração e da
Palavra de Deus eram importantes para a sua percepção e progresso
espiritual.
As suas orações eram geralmente semelhantes às orações de Elias,
vinculadas à necessidades ou circunstâncias específicas, dando uma pro-
va clara de que o nosso Deus tem um interesse profundo nos assuntos
124 A glória da oração

da vida diária.
Suas orações eram curtas e muito objetivas; dando um excelente
exemplo de como se deve orar e pelo que se deve orar.
Suas orações subiam do seu coração em lugares incomuns, provan-
do que ele podia trazer Deus consigo em todas as circunstâncias e ati-
vidades da sua vida, e confirmando que ele tinha o costume de orar e
assim estava sempre em contato com Deus. Ele tinha muitas caracterís-
ticas semelhantes às de Paulo, que exortou: “Orando em todo o tempo
com toda a oração e súplica no Espírito, e vigiando nisto com toda a
perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6:18).
Embora fosse um homem prático, cheio de vigor e firmeza, suas
orações revelam uma profunda dependência em Deus. Nisto, ele nova-
mente manifesta características semelhantes às de Paulo, que afirmou:
“Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece” (Fp 4:13).
Uma reflexão na vida de oração de Neemias nos dá uma confirma-
ção preciosa de que Deus não somente ouve, mas responde, as orações
no Seu tempo e da Sua maneira, sempre perfeitamente.
Neemias oferece todo o encorajamento disponível para nos ocu-
parmos regularmente em oração e para viver uma vida de constante
dependência em Deus.

Orações específicas
Há mais ou menos dez orações de Neemias registradas nas Escritu-
ras. Cada uma é especial e interessante por causa das suas circunstâncias
e do seu conteúdo, e cada uma está repleta de instruções valorosas. Va-
mos considerá-las na ordem que aparecem no livro de Neemias.
Oração particular
Como observamos na introdução a este capítulo, Neemias era o
copeiro e, portanto, tinha acesso ao rei e à rainha. Enquanto estava ocu-
pado neste serviço no palácio, “sucedeu, no mês de Quisleu, no vigésimo
ano … que veio Hanani, um dos meus irmãos, ele e alguns de Judá; e
perguntei-lhes pelos judeus que escaparam, e que restaram do cativeiro,
e acerca de Jerusalém” (Ne 1:1-2). A pergunta de Neemias revela que,
embora ele ocupasse uma posição de responsabilidade, e provavelmente
tivesse um padrão de vida confortável, ele nunca se esqueceu da sua
ligação com a terra dos seus progenitores, nem com a importância de
Jerusalém para Deus ou o Seu povo. A sua preocupação com a situação
Cap. 7 — As orações de Neemias 125

é muito recomendável, pois teria sido muito mais fácil para ele se es-
quecer dela. Ele poderia ser desculpado se tivesse optado por uma vida
mais fácil e afirmado que ele não era responsável, de forma alguma,
pela situação atual. Ao invés disso, ele tinha uma profunda preocupação
com as condições e com a necessidade de restauração. As Escrituras
oferecem muitos exemplos de Deus operando depois da preocupação
do Seu povo com as circunstâncias predominantes, e isto é especifica-
mente importante nos vários períodos de recuperação gozado durante
o tempo dos juízes. Isso vem como um desafio a cada um de nós, e deve
fazer-nos perguntar até que ponto nos inquietamos e nos preocupamos
diante de Deus com as condições espirituais presentes.
O relato que ele recebeu causou ainda mais intensidade à sua preo-
cupação e inquietação e revelou três coisas.
“Os restantes que ficaram do cativeiro, lá na província estão em
grande miséria e desprezo” (Ne 1:3). “Miséria” (07471) sugere adversi-
dade, calamidade, desprazer, angústia e maldade. “Grande miséria” en-
fatiza a severidade do sofrimento que enfrentavam. “Desprezo” (02781)
fala de desgraça, humilhação e vergonha.
“O muro de Jerusalém fendido” (Ne 1:3). E. Dennett* explica que
o muro é um símbolo da separação, e C. T. Lacey† destaca que o muro
“tinha o propósito duplo de manter o mal do mundo do lado de fora e
os habitantes legítimos da cidade seguros, do lado de dentro”. Quando
se perde a distinção, o propósito de Deus já está seriamente compro-
metido. O ensino da Lei e o voto do Nazireu, como apresentados em
Números 6, têm muito a nos ensinar sobre a importância de separação.
“As suas portas queimadas a fogo” (Ne 1:3). A porta era o lugar de
administração pública, onde assuntos de juízo e de justiça eram trata-
dos com transparência. Portanto, a destruição das portas representava a
perda de autoridade e administração.
As notícias que chegaram aos ouvidos de Neemias eram, em todo
sentido, desanimadoras e muito deprimentes. Como foi que ele reagiu?
Sua postura é muito importante — ele diz: “assentei-me” (Ne 1:4). Ele
reagiu de maneira semelhante a Esdras quando ele também ouviu da
falta de separação. Em Esdras 9:3 está registrado: “E, ouvindo eu tal
coisa, rasguei as minhas vestes e o meu manto, e arranquei os cabelos
da minha cabeça e da minha barba, e sentei-me atônito”. A sua tristeza
* DENNETT, E. An Exposition of Ezra and Nehemiah. Bible Truth publishers, reimpressão, 1977.
† LACEY, C. T. What the Bible Teaches. Kilmarnock: John Ritchie Ltd., 2009.
126 A glória da oração

é refletida no fato que Neemias diz: “Chorei, e lamentei por alguns


dias” (Ne 1:4). Seria difícil não ficar impressionado com sua tristeza de
coração e abnegação. Não havia nada de exultação no fracasso, ou de
conversa frívola sobre as condições. A situação era séria demais para
este tipo de atitude.
Neemias não falou da sua aflição e dos seus desejos íntimos ao rei,
embora tivesse a oportunidade de fazer isto; antes, lemos que ele esteve
“jejuando e orando perante o Deus dos céus … Deus grande e terrível!
Que guarda a aliança e a benignidade para com aqueles que o amam
e guardam os seus mandamentos” (Ne 1:4-5). Para ele, acesso a um
monarca terrestre não tinha valor algum quando ele tinha acesso a um
trono celestial. As palavras de Hebreus 4:16: “Cheguemos, pois, com
confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia
e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”, parecem
resumir bem a experiência de Neemias. Como é precioso lembrar que
temos acesso ao mesmo trono.
É instrutivo notar em 1:4 que Neemias, na circunstância que estava
enfrentando, usou o nome Elohim (plural), Jeová Elohim e El (singu-
lar), e nisso revelou uma compreensão inteligente da grandeza de Deus.
Mais tarde, quando estava no palácio e na presença de um rei terrestre,
ele falou do “Deus dos céus” (ou “o Deus do céu”, VB; Ne 2:4), mais
uma vez mostrando que a sua aproximação a Deus é apropriada às cir-
cunstâncias do momento.
O conteúdo do seu pedido ao Deus do Céu revela seu:
• A pelo para ser ouvido — Ele diz: “Estejam, pois, atentos os teus
ouvidos e os teus olhos abertos, para ouvires a oração do teu servo
que eu hoje faço perante ti dia e noite” (Ne 1:6). Neemias revela o
caráter e a consistência da sua oração, reconhecendo sua verdadeira
posição como um servo na presença de alguém infinitamente supe-
rior.
• Reconhecimento de pecado — Ele menciona e faz confissão “pe-
los pecados dos filhos de Israel” (Ne 1:6). Nisso ele não somente é
franco em relação ao fracasso do povo, mas dá uma clara indicação
de que a nação, embora dividida naquele tempo, tinha o seu lugar, e
continuará a ter seu lugar, como Israel, nos propósitos de Deus.
• Associação com o pecado — Ele agora vai além do pecado dos
outros e se inclui entre eles no seu fracasso ao afirmar: “… temos
cometido contra ti; também eu e a casa de meu pai temos pecado”
Cap. 7 — As orações de Neemias 127

(Ne 1:6). Desta maneira ele manifesta a sua verdadeira estatura es-
piritual e se coloca a par, por exemplo, com Moisés, que repetida-
mente, sem hesitar, se associou com o pecado e fracasso daqueles a
quem Deus o levantou para guiar.
• Confissão de fracasso — Ele menciona a contaminação deles, “de
todo nos corrompemos contra ti”, e a sua desobediência: “e não
guardamos os teus mandamentos, nem os estatutos, nem os juízos,
que ordenaste a Moisés, teu servo” (Ne 1:7).
• Apreciação pelas Escrituras — Ele reconhece as consequências de
desobedecer os mandamentos que foram dados a Moisés ao citar:
“Vós transgredireis, e eu vos espalharei entre os povos” (Ne 1:8). Por
outro lado, ele também cita: “E vós vos convertereis a mim, e guar-
dareis os meus mandamentos, e os cumprireis; então, ainda que os
vossos rejeitados estejam na extremidade do céu, de lá os ajuntarei e
os trarei ao lugar que tenho escolhido, para ali fazer habitar o meu
nome” (Ne 1:9). Assim, Neemias confirma que a oração deve ser de
acordo com, e baseada na Palavra de Deus.
• Reconhecimento do propósito e poder divinos — Antes de con-
cluir a sua oração, Neemias faz um apelo final. Este apelo reconhece
o que o povo, embora desviado e desobediente, significa para Deus,
e na Sua presença ele implora: “Eles são teus servos e o teu povo que
resgataste com a tua grande força e com a tua forte mão” (Ne 1:10).
Neemias aprecia que Deus não abandona facilmente o Seu povo
desviado. Tendo estado perante o Senhor com tristeza de coração
e em espírito de súplicas, ele agora faz um pedido específico: que
possa achar favor e “graça perante este homem” (Ne 1:11).
Uma reflexão sobre esta oração exalta a preocupação de Neemias
com as circunstâncias, seu desejo de voltar a Jerusalém para apoiar a res-
tauração, e sua total dependência em Deus para criar esta oportunidade.
O fato que a permissão que ele precisava viria de um monarca terrestre
não diminuiu a sua confiança no verdadeiro Deus.
Oração no palácio
O relato sobre a destruição em Jerusalém, recebido no mês de Quis-
leu, teve grande impacto em Neemias. Daquele momento em diante,
profundamente preocupado com a situação ali, ele esteve continuamen-
te em oração a Deus. Aproximadamente quatro meses mais tarde, de
Quisleu até Nisã, lemos a afirmação muito significativa: “Sucedeu, pois”
128 A glória da oração

(Ne 2:1). Neste dia específico, quando o início do ano persa era, prova-
velmente, a causa das celebrações no palácio, uma das responsabilidades
seculares de Neemias seria servir o vinho ao rei Artaxerxes. Estar com
aparência triste nesta ocasião não teria sido tolerado, e antes disso Nee-
mias nunca tinha demonstrado qualquer sinal de ansiedade interior ou
preocupação na presença do rei. Entretanto, nesta ocasião a sua aparên-
cia era tal que o rei perguntou a ele: “Por que está triste o seu rosto, pois
não estás doente?” (Ne 2:2). O rei teve discernimento suficiente para
saber que “não é isto senão tristeza de coração” (Ne 2:2).
A reação de Neemias foi notável, e ele diz: “Temi sobremaneira”
(Ne 2:2). Mais tarde ele iria demonstrar grande coragem e persistência
diante da oposição de todos os inimigos, mas agora um medo extremo
o dominou. Talvez isto seja compreensível, quando ele contemplou a
possibilidade de perder esta oportunidade que Deus lhe oferecia. Ape-
sar do seu temor, ele manteve sua compostura, reconheceu o respeito
devido ao rei e lhe perguntou: “Como não estaria triste o meu rosto,
estando a cidade, o lugar dos sepulcros de meus pais, assolada, e tendo
sido consumidas as suas portas a fogo?” (Ne 2:3). A resposta do rei foi:
“Que me pedes agora?” (Ne 2:4).
Diante aquela situação urgente e dramática lemos: “Então orei ao
Deus dos céus” (Ne 2:4). As circunstâncias exigiram que a oração fosse
curta, e as Escrituras não revelam o que ele orou. O fato que Neemias
orou instintivamente manifesta o seu hábito de estar constantemente
em comunhão com Deus, e que ele sentia a sua incapacidade neste mo-
mento crítico. Guiado e sustentado por Deus, Neemias disse: “Peço-te
que me envies a Judá, à cidade dos sepulcros de meus pais, para que eu
a reedifique” (Ne 2:5). Não houve rodeios sobre o assunto, e o rei não
ficou em dúvida sobre o que Neemias desejava. Sua coragem e clareza
perante o rei são muito recomendáveis.
Com a permissão obtida, e combinado o tempo da sua ausência,
Neemias faz mais um pedido ao rei; ele pediu cartas de autorização e
materiais necessários para o início da obra de reconstrução. O rei con-
cedeu todas estas coisas, e também capitães e cavaleiros, mas Neemias
reconheceu rapidamente que era “segundo a boa mão de Deus sobre
mim” (Ne 2:8). Certamente, este é um exemplo precioso de Deus pro-
videnciando além das nossas necessidades, e um lembrete claro de que
perdemos muito por não expor diante de Deus, em maior detalhe, as
várias necessidades que constantemente temos.
Cap. 7 — As orações de Neemias 129

Embora esta oração feita no palácio revela a importância de co-


munhão íntima com Deus, também realça que Neemias teve o discer-
nimento prático para levar em consideração a viagem a Jerusalém e os
materiais que precisaria quando chegasse lá. Isso nos ensina que pla-
nos práticos não são incompatíveis com os propósitos prevalecentes de
Deus. Que sejamos preservados de pedir que Deus faça aquilo que nós
bem poderíamos fazer por nós mesmos.
Oração na perseguição
As Escrituras nada revelam sobre a viagem a Jerusalém, mas os de-
talhes sobre a sua chegada e a vistoria noturna da destruição são muito
instrutivas, no contexto da tarefa gigantesca que ele enfrentaria. En-
quanto outros dormiam, ele estava lá fora, em circunstâncias difíceis
e perigosas, avaliando o que precisava ser feito para que houvesse pro-
gresso no assunto tão importante de restauração. Tudo isso aconteceu
antes do relato detalhado da restauração das portas, mas talvez seja sur-
preendente que não há menção aqui dele ou dos seus companheiros se
ocupando em oração, durante esta fase da obra. É impossível pensar que
não oraram durante esta fase importante da restauração, especialmente
porque Neemias orou “noite e dia” (Ne 1:6), quando preocupado com a
situação em Jerusalém. O fato é que não há menção da sua oração, ou
da oração de outros, durante este período específico.
A notícia de que a construção do muro havia começado provocou
muita ira e oposição. Inicialmente esta oposição veio de Sambalate, To-
bias e outros, e isto não é surpreendente, pois sempre tem sido o caso, e
sempre será, que quando uma obra para Deus começa, o inimigo tam-
bém começa sua oposição. A primeira tática dos inimigos foi zombar,
desprezar e escarnecer dos “fracos judeus” (Ne 4:2). Também fizeram
pouco caso dos materiais, e em zombaria falaram: “Vindo uma raposa,
derrubará facilmente o seu muro de pedra” (Ne 4:3). Diante deste dilú-
vio de abuso e oposição, Neemias e seus companheiros se voltaram para
o Senhor. Eles oraram: “Ouve, ó nosso Deus, que somos tão despreza-
dos, e torna o seu opróbio sobre a sua cabeça, e dá-los por presa, na terra
do cativeiro. E não cubras a sua iniquidade, e não se risque de diante de
ti o seu pecado, pois que te irritaram na presença dos edificadores” (Ne
4:4-5). Enquanto oravam, continuavam trabalhando. O relato divino é
encorajador: “Porém edificamos o muro, e todo o muro se fechou até
sua metade; porque o coração do povo se inclinava a trabalhar” (Ne 4:6).
130 A glória da oração

O tom e o pedido feito nesta oração têm provocado debates e cau-


sado surpresa. Alguns perguntam se era espiritualmente apropriado
para Neemias pedir vingança e que o pecado daqueles que resistiam à
construção do muro ficasse perante Deus. Em relação a isto o comentá-
rio de Edward Dennett ajuda. Ele escreve:
Duas coisas devem ser lembradas; em primeiro lugar, a dispensação
em que aquele povo vivia e, em segundo lugar, que os inimigos de
Israel também eram inimigos de Deus. Sambalate e Tobias delibe-
radamente se colocaram em oposição à obra do Espírito de Deus.
E todos podemos aprender desta oração, como Saulo mais tarde
teve que aprender, de um modo diferente, quão solene é perseguir o
povo de Deus, e atrapalhar a Sua obra. Assim o motivo das petições
de Neemias foi: “pois que te irritaram na presença dos edificado-
res”. A causa destes edificadores desprezados era a causa de Deus;
e foi nesta certeza que Neemias encontrou, como também todos
os que estão em comunhão com a mente de Deus no seu trabalho
podem encontrar, encorajamento para invocar a Sua ajuda contra
seus inimigos.

A descoberta de que Neemias e seus trabalhadores estavam decidi-


dos a construir, e o crescimento visível do muro, produziram uma opo-
sição mais forte, na forma de uma conspiração maliciosa que ajuntou
“Sambalate e Tobias, e os árabes, os amonitas, e os asdoditas”. Nesta
altura dos acontecimentos estes inimigos “iraram-se sobremodo” (Ne
4:7), e estavam resolvidos a “os desviarem do seu intento” (Ne 4:8).
Neemias, enfrentando tanta conspiração do mal e ameaças de in-
tensificação da oposição, diz: “Porém nós oramos ao nosso Deus” (Ne
4:9). Parece que esta oração não era apenas de Neemias e de todos os
envolvidos diretamente na construção, mas do povo judeu em geral.
Sem dúvida, eles estavam seguindo o exemplo de Neemias, mas diante
de tanta adversidade e hostilidade, ficaram mais unidos na sua depen-
dência em Deus. Sempre é útil observar como Deus permite que surjam
circunstâncias para que o Seu povo seja mais unido em oração e em
dependência nEle.
Eles não somente se uniram para orar, mas também puseram “uma
guarda contra eles, de dia e de noite” (Ne 4:9). O restante do cap. 4
descreve, com detalhes impressionantes e instrutivos, como a sua oração
foi acompanhada de vigilância, trabalho e firmeza. O espaço proíbe uma
consideração detalhada destas qualidades e atitudes admiráveis, mas
elas fornecem um notável exemplo da exortação de Paulo: “Orando em
todo o tempo com toda a oração e súplica no Espírito, e vigiando nisto
Cap. 7 — As orações de Neemias 131

com toda a perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6:18). Com
quanta frequência o inimigo ataca naquele momento desprotegido e
confiante! Que possamos ser caracterizados pela mesma tenacidade e
vigilância.
Oração pastoral
Neemias era um que guiava os outros pelo seu exemplo pessoal, e
que não pedia aos outros que fizessem alguma coisa que ele mesmo não
estava pronto a fazer. Ele tinha consciência da sua posição como gover-
nador (Ne 5:14), e nesta posição enfrentou muitos e variados problemas.
Como muitos outros líderes piedosos antes e depois dele, e desde então,
ele teve que combater murmurações internas e descontentamento. De
certo modo, oposição externa é até esperada, mas deve ter sido motivo
de mágoa profunda quando surgiram problemas internos.
Os primeiros versículos do cap. 5 mostram que estas dificuldades
eram acerca de terras, possessões, dinheiro e relacionamentos. O inimi-
go ainda emprega estes assuntos para criar contendas e divisões. Paulo
avisou sobre o “amor ao dinheiro” (I Tm 6:10), e podia se apresentar
como exemplo pessoal quando informou os anciãos em Éfeso: “De nin-
guém cobicei a prata, nem o ouro, nem o vestuário … Tenho-vos mos-
trado em tudo que, trabalhando assim, é necessário auxiliar os enfermos,
e recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse: Mais bem-aventurada
coisa é dar do que receber” (At 20:33-35).
Naturalmente, a primeira reação de Neemias foi de ira, mas ele con-
trolou isto e, ao invés de agir em espírito de vingança, ele tirou tempo
para refletir sobre a situação: “E considerei comigo mesmo no meu co-
ração” (Ne 5:7). Nestas circunstâncias, é difícil apreciar o impressionan-
te peso que ele carregava, e assim aprovar a atitude que ele adotou. Os
líderes nas igrejas locais poderiam aprender muito de Neemias, toman-
do tempo e cuidado para avaliar plenamente os problemas e agir em
espírito de oração perante Deus.
Quando Neemias agiu para tratar das dificuldades entre o povo ele
demonstrou qualidades notáveis de liderança. Indo ao próprio âmago
do problema, com coragem e convicção, e agindo “por causa do temor
de Deus” (Ne 5:15), o perigo em potencial foi evitado. É impressionante
que enquanto ele estava resolvendo estes problemas internos, ele disse:
“Também eu continuei na obra deste muro” (Ne 5:16, VB). Alguém
com menos coragem teria deixado que os problemas internos o desvias-
132 A glória da oração

sem do alvo principal, a reconstrução do muro; algo que teria trazido


grande prazer a Satanás.
Com este pano de fundo, Neemias novamente ora e suplica: “Lem-
bra-te de mim para bem, ó meu Deus, e de tudo quando fiz a este povo”
(Ne 5:19). Alguns podem pensar que ao orar assim ele estava se exaltan-
do, mas esta sugestão seria injusta a um homem cujos interesses eram
somente promover a glória de Deus, por meio da restauração de tudo
que tinha sido perdido por causa dos desvios em Jerusalém. Certamente
não está registrado, em lugar algum, que ele se vangloriou diante dos
homens sobre o que tinha feito, antes, com honestidade e humildade,
ele podia falar com Deus sobre isto. Esta oração realmente revela os
sentimentos e atos de um verdadeiro líder. Paulo, como Neemias, nunca
temeu clamar a Deus como testemunha do seu trabalho e conduta na
obra do Senhor. Paulo escreve: “Vós e Deus sois testemunhas de quão
santa, e justa, e irrepreensivelmente nos houvemos para convosco, os
que crestes” (I Ts 2:10).
Oração pedindo poder
Tendo enfrentado as dificuldades reais que surgiram entre eles mes-
mos, e tendo completado a construção dos muros, embora ainda falta-
va colocar as portas, a cena estava preparada para um novo ataque do
inimigo. Desta vez o ataque não viria de uma oposição visível, mas por
meio de astúcia e sutileza. Os inimigos são os mesmos e seu propósito
não mudou, mas eles habilmente mudam as suas táticas. Neemias e seus
companheiros serão provados através de meios diplomáticos, com a su-
gestão de uma reunião em algum lugar “nas aldeias, no vale de Ono” (Ne
6:2). Neemias logo discerniu seu intento malicioso e recusou o convite,
dizendo: “Faço uma grande obra, de modo que não poderei descer; por
que cessaria esta obra, enquanto eu a deixasse, e fosse ter convosco?” (Ne
6:3). Uma aproximação semelhante foi feita quatro vezes, mas sempre
recebeu a mesma resposta resoluta.
Depois desta tentativa sutil, o próximo ataque veio na forma de
uma carta aberta procurando difamar Neemias, questionando os seus
motivos e sugerindo que ele queria ser rei. Em outras palavras, ele esta-
va sendo acusado de procurar seus próprios interesses e de usar a obra
de Deus para este fim. O inimigo não desiste, mas novamente Nee-
mias ficou firme, rejeitando estas alegações e afirmando: “De tudo o
que dizes coisa nenhuma sucedeu; mas tu, do teu coração, o inventas”
Cap. 7 — As orações de Neemias 133

(Ne 6:8). Embora estes ataques fossem vencidos, tiveram o efeito de


provocar temor e de enfraquecer as suas mãos na obra. Foi neste ponto
que Neemias voltou-se a Deus: “Agora pois, ó Deus, fortalece as minhas
mãos” (Ne 6:9). Alguns têm pensado que, devido às palavras “ó Deus”
não estarem na versão hebraica original, que isto não foi realmente uma
oração, mas somente uma exclamação reconhecendo a necessidade de
fortalecimento. A versão Revisada (em inglês) traduz: “Eu fortalecerei
as minhas mãos”. Entretanto, lembrando da dependência habitual de
Neemias em Deus, e de como ele agiu nas outras situações de grande
pressão, é mais provável que nesta ocasião ele orou a Deus pedindo as
forças de que tanto precisava. É importante reconhecer que não pode-
mos enfrentar os nossos inimigos na nossa própria força natural. Faze-
mos bem em aprender do exemplo de Davi, que enfrentou Golias “no
nome do Senhor dos exércitos, o Deus dos exércitos de Israel” (I Sm
17:45). Pedro descobriu, a grande custo, que ele, na sua própria força,
não podia competir com “certa criada” (Lc 22:56). Que tenhamos a gra-
ça de Neemias em buscar a Deus em tais ocasiões de necessidade.
Oração perceptiva
A variedade de métodos usados contra Neemias é impressionante.
Foram engenhosos e criativos, e todos tinham a finalidade de apanhá-
-lo despercebido. Os inimigos o viam como o principal obstáculo que
atrapalhava o sucesso do seu plano malicioso. A próxima tática foi em-
pregar alguém que parecia ser um amigo, preocupado com a segurança
de Neemias. O seu nome era Semaías, e lemos: “E, entrando eu em casa
de Semaías, filho de Delaías, o filho de Meetabel” (Ne 6:10). Pouco é
escrito sobre este indivíduo, mas parece que Neemias confiava nele e
tinha a liberdade de visitar a sua casa. Na ocasião da visita, Semaías
“estava encerrado”, e fez Neemias acreditar que ambos estavam em pe-
rigo. Seu plano maldoso foi que ambos procurassem abrigo no Templo,
afirmando que seus inimigos viriam à noite com o intuito de matar.
Tudo isto foi feito em nome de amizade e preocupação com a segu-
rança de Neemias. Quão traiçoeiro o inimigo pode ser! Paulo avisou
os santos em Corinto para ficarem atentos, “porque os tais são falsos
apóstolos, obreiros fraudulentos” que se transformam “em apóstolos de
Cristo” (II Co 11:13, ARA). Na mesma carta Paulo os aconselhou a não
serem surpreendidos com tal possibilidade, “porque o próprio Satanás
se transfigura em anjo de luz” (II Co 11:14).
134 A glória da oração

Foi bom que Neemias era homem corajoso, e ainda mais importan-
te, homem de percepção: “E percebi que não era Deus quem o enviara;
mas esta profecia falou contra mim, porquanto Tobias e Sambalate o
subornaram” (Ne 6:12). Neemias também compreendeu que seu alvo
era “para me atemorizar, e para que assim fizesse e pecasse, para que
tivessem alguma coisa para me infamarem” (Ne 6:13). O dano desejado,
o prejuízo pretendido e a decepção planejada nos mostram como preci-
samos estar vigilantes para sermos preservados.
Mais uma vez esta situação leva Neemias à presença de Deus. Parece
que ele está sem saber o que pedir, e com confiança, sem reservas, ele excla-
ma: “Lembra-te, meu Deus, de Tobias e Sambalate, conforme a estas suas
obras, e também da profetisa Noadia, e dos mais profetas que procuraram
atemorizar-me” (Ne 6:14). Como seria bom se nós sempre fossemos ca-
racterizados por discernimento para provar “se os espíritos são de Deus,
porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo” (I Jo 4:1).
Oração por causa da corrupção
Deve ter enchido o coração de Neemias de profunda satisfação e gra-
tidão testemunhar a dedicação do muro, o reestabelecimento do trabalho
dos sacerdotes e levitas, de acordo com o redescoberto livro da Lei de
Moisés, e ouvir “os cânticos de louvores e de ação de graças a Deus” Ne
12:46. Com estas preciosas memórias ocupando a sua mente, ele voltou
para a Babilônia. Não foi fácil para ele voltar, mas ele tinha recebido um
tempo específico de licença, e sendo um homem de princípios, ele honrou
o seu compromisso com o rei. Mesmo estando na Babilônia, não há dúvi-
da que seus desejos e pensamentos estavam em Jerusalém, e lemos: “Após
alguns dias tornei a alcançar licença do rei, e voltando a Jerusalém …” (Ne
13:6-7). Não sabemos por quanto tempo Neemias se ausentou de Jerusa-
lém, mas foi tempo suficiente para que a grave doença espiritual de desvio
ocorresse novamente. Quando ele chegou a Jerusalém ele descobriu que
Eliasibe, “sacerdote, que presidia sobre a câmara da casa do nosso Deus,
se tinha aparentado com Tobias” (Ne 13:4). Eliasibe teria sido bem co-
nhecido de Neemias na sua capacidade sacerdotal, e descobrir que ele não
somente se tinha aparentado com Tobias, mas fizera-lhe “uma câmara
nos pátios da casa de Deus” (Ne 13:7), deve ter causado profunda tristeza
e desapontamento. A influência de um líder piedoso frequentemente é
medida pelo que acontece durante a sua ausência.
Motivado por esta tristeza, e provavelmente também por ira, Nee-
Cap. 7 — As orações de Neemias 135

mias agiu rapidamente: “Lancei todos os móveis da casa de Tobias fora


da câmara, e ordenando-o eu, purificaram as câmaras; e tornei a trazer
para ali os utensílios da casa de Deus, com as ofertas de alimentos e
o incenso” (Ne 13:8-9). Ao agir desta maneira, Neemias prefigurou o
Senhor Jesus Cristo quando Ele purificou o Templo das mercadorias
impuras, como lemos em João 2:13-17.
A corrupção da casa de Deus também produziu negligência do sus-
tento dos “levitas e os cantores” (Ne 13:10). Um passo errado conduz
a outro, e mais uma vez Neemias teve que agir com rapidez e cora-
gem para deter o desvio e iniciar a restauração. Quando tudo isso foi
realizado, Neemias voltou-se a Deus em oração: “Por isto, Deus meu,
lembra-te de mim e não risques as beneficências que eu fiz à casa de
meu Deus e às suas observâncias” (Ne 13:14). Ao pedir que Deus não
Se esquecesse das suas boas obras ele não estava se gloriando, mas estava
perante Deus com humildade, rogando que a restauração já concedida
fosse preservada. A experiência tinha ensinado Neemias como o desvio
pode acontecer rapidamente e, portanto, ele estava esperando em Deus
que a restauração que ele tinha visto não fosse desfeita.
Oração por causa de profanação
O desvio em relação à casa de Deus e a sua administração aumentou,
com um deliberado desrespeito pelo sábado. Quando Neemias voltou,
ele observou “em Judá os que pisavam lagares ao sábado e traziam feixes
que carregavam sobre os jumentos; como também vinho, uvas e figos,
e toda a espécie de cargas, que traziam a Jerusalém no dia de sábado”
(Ne 13:15). O mundo lá fora percebeu uma oportunidade, e “também
habitavam em Jerusalém tírios que traziam peixe e toda a mercadoria,
que vendiam no sábado aos filhos de Judá; e em Jerusalém” (Ne 13:16).
Neemias era consistente na sua posição contra o mal. Sua objeção
era inflexível, e ele contendeu com os nobres de Judá e lhes disse: “Que
mal é este que fazeis, profanando o dia de sábado? Porventura não fize-
ram vossos pais assim, e não trouxe o nosso Deus todo este mal sobre
nós e sobre esta cidade? E vós ainda mais acrescentais o ardor de sua
ira sobre Israel, profanando o sábado” (Ne 13:17-18). Em seguida, ele
demonstra conduta corajosa ao controlar o abrir e fechar das portas para
que a atividade comercial no sábado fosse interrompida. Ele também
mandou que os levitas “viessem guardar as portas, para santificar o sába-
do” (Ne 13:22). O fato destas práticas más terminarem demonstra a po-
136 A glória da oração

sição de Neemias, e a autoridade que ele exercia com tanta habilidade.


Mais uma vez Neemias traz tudo a Deus em oração. Ele está cons-
ciente de que Deus é o seu Deus, como é revelado pelo seu pedido: “Nisto
também, Deus meu, lembra-te de mim e perdoa-me segundo a abun-
dância da tua benignidade” (Ne 13:22). Ele está novamente buscando a
face de Deus, tendo tratado com o problema da profanação do sábado,
pedindo que não seja necessário tratar com uma situação semelhante no
futuro. É bom quando podemos agir de acordo com a mente de Deus, e
quando podemos pedir a Sua bênção sobre as nossas atividades.
Oração por separação
Parece que não há fim das dificuldades que Neemias enfrentou. Ime-
diatamente depois de tratar da aliança prejudicial com Tobias, da negli-
gência dos levitas e da profanação do sábado, surge outro grande pro-
blema. Deve ter partido o seu coração ver o seu povo tomando esposas
asdoditas, amonitas e moabitas (Ne 12:13). Tais relacionamentos eram
proibidos, e foram a causa de muita tristeza. Antes disso, Esdras sentira
uma tristeza semelhante, e agora esta prática pecaminosa estava sendo
repetida. Mais uma vez Neemias ficou firme contra tal prática, e mostrou-
-lhes o exemplo de Salomão, para que pudessem aprender através das
consequências resultantes das experiências dele. Acima de tudo, ele foi
franco, deixando bem claro que uma conduta como esta era transgredir
“contra o nosso Deus, casando com mulheres estrangeiras” (Ne 13:27).
Vendo tal desvio e mistura, Neemias mais uma vez se volta para Deus.
Ele contendeu com os culpados e pronunciou uma maldição sobre eles,
mas agora na presença de Deus a sua petição é: “Lembra-te deles, Deus
meu, pois contaminaram o sacerdócio, como também a aliança do sacer-
dócio e dos levitas” (Ne 13:29). Parece que ele está dizendo a Deus que
ele já fez tudo que era possível para impedir a maré do mal, e agora ele
está deixando-os em Suas mãos. Há um paralelo aqui com a atitude de
Paulo com os anciãos em Éfeso, quando ele podia dizer a eles: “Agora,
pois, irmãos, encomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça; a Ele que é
poderoso para vos edificar e dar herança entre os santificados” (At 20:32).
Oração pessoal
Tendo considerado as orações de Neemias, talvez é um pouco sur-
preendente descobrir que na sua oração final não há referência à cons-
trução do muro, à oposição enfrentada de várias fontes, ou às falhas de
Cap. 7 — As orações de Neemias 137

tantos dos seus contemporâneos. Por outro lado, é característico e apro-


priado que suas últimas palavras registras no livro de Neemias sejam
uma oração curta e pessoal demonstrando sua dependência em Deus
em cada etapa da sua vida e trabalho. Depois de afirmar que ele tinha
purificado o sacerdócio e tomado providências para o funcionamento
do altar e para a oferta das primícias, Neemias novamente se aproxi-
ma de Deus com a petição simples, mas preciosa: “Lembra-te de mim,
Deus meu, para bem” (Ne 13:31). Até o final ele era um homem prático,
e é muito importante notar que é somente no livro de Neemias que
lemos duas vezes sobre a “oferta de lenha” (Ne 10:34, 13:31), mostrando
que ele reconhecia a necessidade contínua de lenha para o altar.
Suas orações anteriores tinham sido a favor de outros e a favor da
obra na qual estivera ocupado, mas esta oração final é muito mais pes-
soal do que todas elas. Há algo revelador na expressão: “Lembra-te de
mim”, e quando Neemias chama Deus de “Deus meu”, ele revela com
clareza a maneira íntima como ele conhecia a Deus. Na sua primeira
oração, notamos que sua linguagem e modo de aproximação eram di-
ferentes. Naquela ocasião ele orou: “Ah! Senhor Deus dos céus, grande
e terrível! Que guarda a aliança e a benignidade para com aqueles que
o amam e guardam os seus mandamentos” (Ne 1:5). Como é precioso
saber que Neemias tinha desenvolvido um relacionamento muito mais
íntimo, e uma apreciação maior de Deus. Que possamos também ser
caracterizados por este mesmo espírito de dependência e por uma per-
cepção crescente de Deus e de tudo que é revelado sobre Ele na Sua
Palavra. Isto somente pode acontecer se seguirmos o precioso exemplo
de Neemias que, sem qualquer exagero, pode ser descrito como um ho-
mem de oração. É impossível passar tanto tempo na presença de Deus
e não se tornar mais piedoso em caráter, assim como Neemias durante
a sua vida.
Além dos nossos maiores desejos
Seu amor e poder podem abençoar:
Às almas que oram Ele sempre concede
Mais do que podem expressar. (John Newton)*

* Tradução literal. O original diz: “Beyond our utmost wants/His love and power can bless;/To
praying souls He always grants/More than they can express.” (N. T.)
Cap. 8 — As orações de Daniel
Por James R. Baker, Escócia

Introdução
As circunstâncias dramáticas nos dias iniciais do cativeiro Babilô-
nico trouxeram grandes dificuldades para os filhos de Israel. O impacto
sobre aqueles que foram levados de Canaã para Babilônia resultou nas
várias orações que são registradas no livro de Daniel. Estas petições
foram trazidas perante Deus por pessoas que se entregaram a Ele para
serem libertos de tortura e possível morte. Devemos também notar que
havia alguns entre os cativos filhos de Israel cujas vidas eram caracteri-
zadas pelo hábito de oração regular e constante. Para eles a oração era
o recurso normal quando surgiam problemas. As orações mencionadas
no livro de Daniel são subentendidas ou descritas detalhadamente. Elas
serão consideradas aqui na ordem cronológica, nos quatro capítulos es-
pecíficos que revelam a importância e o resultado de oração em tempos
de tribulação. Antes destes capítulos serem considerados, várias referên-
cias tiradas do cap. 1 serão feitas em relação às dificuldades iniciais que
os primeiros cativos enfrentaram.

Capítulo 1
Fica claro deste capítulo inicial que Daniel e seus companheiros
estavam na Babilônia como cativos e, portanto, estavam numa posi-
ção precária em relação às muitas regras e regulamentos que lhes eram
trazidos dos diferentes níveis de autoridade babilônica. Jovens judeus
foram escolhidos pelos babilônios, que não somente mudaram a sua
alimentação costumeira como também seus nomes. A intenção óbvia
era manipular jovens intelectualmente dotados para que pudessem
facilmente assimilar e adotar os costumes e a cultura da Babilônia, e
assim serem capazes de encorajar muitos outros Israelitas a aceitar pa-
cificamente a sua nova situação. Claramente, Nabucodonosor pretendia
mudar a atitude destes jovens para com a sua nação e, ainda mais im-
portante, para com Deus. A importância dos novos nomes dados a eles
é que cada um dos seus nomes judaicos originais continha parte de um
Cap. 8 — As orações de Daniel 139

título divino do Deus de Israel. Os nomes Daniel e Misael tinham o


sufixo el, que descreve Deus como o Todo poderoso, e Hananias e Aza-
rias tinham o sufixo ias, que [no hebraico] vem do título divino Jeová,
o Deus que guarda a aliança. Os poderosos da Babilônia obviamente
queriam remover Deus das suas vidas e pensamentos.
Além disso, outro fato ainda mais importante era que cada um
dos novos nomes dados tinha uma menção dos deuses idólatras que
eram bem conhecidos e adorados pelos caldeus. Daniel, que no he-
braico significa “Deus é meu juiz”, foi mudado para Beltessazar, que
significa “o tesoureiro ou príncipe de Bel”. Este novo nome continha
o nome do deus de Nabucodonosor, Bel, referindo-se a Baal. Azarias,
que significa “a ajuda do Senhor”, foi mudado para Abednego que
significa “servo de Nego”, referindo-se ao brilho do Sol ou do fogo.
Hananias, que significa “amado do Senhor”, foi mudado para Sadra-
que, que significa “iluminado pelo deus sol”, e Misael, que significa
“quem é semelhante a Deus”, foi mudado para Mesaque, que significa
“quem é como Vênus”.
Estes cativos agora estavam cercados por todo tipo de idolatria, e a
intenção era tirar deles toda lembrança de Jeová. Assim as suas mentes
seriam condicionadas e familiarizadas com as novas condições na Babi-
lônia. É importante lembrar que esta antiga estratégia de Satanás, sob
outro disfarce, ainda está sendo usada com sucesso para condicionar o
povo de Deus a todo método e influência que possa corromper a mente,
afastando-nos da simplicidade que há em Cristo. Lares e mentes cristãs
estão sendo bombardeadas pela filosofia ateísta através de várias formas
de entretenimento, e tem tido muito sucesso.
Devemos notar que não há menção de Daniel e seus companheiros
orando sobre este assunto. Na continuação do livro de Daniel há vários
contextos onde oração é mencionada ou descrita, mas não neste capí-
tulo. O mesmo deve acontece hoje, quando surgem assuntos exigindo
obediência à Palavra de Deus. Frequentemente é dito por alguns: “Vou
orar sobre este assunto”, mas quando a Palavra de Deus é clara, ela deve
ser obedecida sem demora. A única oração apropriada neste caso é pedir
coragem para fazer o que Deus tem ordenado. É bom observar que em-
bora a convicção interior de Daniel não era ambígua, a maneira como
ele a apresentou a Aspenaz foi amável e feita na forma de um pedido, no
entanto deixando bem claro o motivo da contaminação.
140 A glória da oração

Capítulo 2
Este importante capítulo contém o relato de um sonho extraor-
dinário que Nabucodonosor, rei da Babilônia, teve no segundo ano do
seu reinado. O conteúdo do sonho continha fatos grandiosos e assuntos
proféticos que são da mais profunda importância. Ocupa a primeira de
várias partes do livro de Daniel que, juntas, fornecem um esboço do
procedimento de Deus com as nações gentias.
Nabucodonosor estava sendo ensinado que ele (e seu reino babi-
lônico) era o primeiro de quatro poderes imperiais que Deus estava
informando que existiriam durante os tempos dos gentios. Mais adiante
neste capítulo ficará claro que além do governo dos homens, com toda
a sua grandeza temporária, haverá um reino que será eterno e superior
a todos os outros. Os quatro impérios mundiais acabarão, mas o quinto
reino será indestrutível, porque será divino em origem e controle.
O pedido de Nabucodonosor
Não é fácil decidir o que causou a perturbação de espírito do im-
perador nesta ocasião, embora já houvesse muitas razões para ele estar
perplexo. Sua vida era vivida com crueldade, dominando os outros, e
mesmo que ele ainda estava perto do início do seu reinado, ele já fora
responsável pelo derramamento de sangue de muitas centenas de pes-
soas. Parece, pelas palavras do v. 1 deste capítulo, que o sonho mencio-
nado não foi o seu primeiro sonho, mas um de muitos; e estes sonhos
perturbavam o seu espírito e lhe tiravam o sono. Há um contraste notá-
vel entre o sono deste homem e o de Pedro, que fora preso por Herodes,
o rei: “E quando Herodes estava para o fazer comparecer, nessa mesma
noite estava Pedro dormindo entre dois soldados, ligado com duas ca-
deias, e os guardas diante da porta guardavam a prisão” (At 12:6). Na-
bucodonosor não conseguia dormir apesar do conforto do seu palácio,
mas Pedro dormia tranquilamente, mesmo no ambiente cruel da prisão,
na noite antes de ser apresentado perante aqueles que queriam a sua
morte.
A ordem do rei foi para os magos, os astrólogos, os encantadores
e os caldeus. Estes grupos formaram um aglomerado que entrava em
contato com o mundo dos espíritos imundos e eram, geralmente, os
conselheiros do rei sobre os variados assuntos que ele tinha em mente.
Nesta ocasião eles ouviram o pedido do rei e estavam ansiosos para ou-
Cap. 8 — As orações de Daniel 141

vir dele o conteúdo do seu sonho, mas Nabucodonosor queria que eles
lhe dessem os detalhes do sonho. Isso, para eles, era uma coisa muito
difícil de se fazer, e que testava a sua verdadeira capacidade de revelar o
futuro. A única resposta que estes homens podiam dar era: “Ó rei, vive
eternamente! Dize o sonho aos teus servos, e daremos a interpretação”.
Se esta situação foi planejada ou não, ela deu ao rei a oportunidade de
testar a capacidade e a integridade dos seus conselheiros, e eles obvia-
mente perceberam isto. Do seu ponto de vista, este assunto se tornou
o dilema mais sério das suas vidas. Se pudessem dar a resposta correta,
isto abriria a porta para uma vida e posição de grandeza diante deste
potentado gentio; mas falhar significaria a morte; esta seria a sua prova
suprema. Do ponto de vista do rei, ele sabia que se eles pudessem lhe
dar uma descrição correta do seu sonho então a sua interpretação tam-
bém seria correta. Ele estava, realmente, testando a habilidade e integri-
dade dos seus conselheiros.
A resposta dos conselheiros revelou a sua incapacidade de realizar
o que o rei pediu. Deus estava ensinando este homem cruel sobre a fra-
queza da sabedoria humana, e também sobre o perigo de consultar os
poderes das trevas. O resultado da ira do rei foi uma ordem para destruir
todos os sábios da Babilônia. Ele detinha o poder supremo para fazer
o que quisesse, e sua decisão incluía a destruição de Daniel e dos seus
companheiros.
A graça e sabedoria de Daniel não impediram a intrepidez com
que agia em tempos de necessidade e extremidade. A sua vida era vivida
em comunhão com Deus, e imediatamente depois de ouvir os detalhes,
através de Arioque, ele foi ao rei e pediu um tempo. Este pedido foi
acompanhado da promessa de dar ao rei a interpretação que ele deseja-
va. Vemos aqui mais uma evidência da fé de Daniel em Deus, e da sua
intimidade com Ele. O seu temor de Deus era maior do que o seu temor
de qualquer homem.
Imediatamente depois de sair da presença do rei, Daniel foi para sua
casa e “fez saber o caso” aos seus três companheiros, para que pudessem
orar juntos (2:17). Esta foi uma reunião de oração com apenas quatro
pessoas, mas eram homens que oravam a Deus sob a sombra da morte, e
sua oração foi dirigida ao “Deus do céu” (v. 19). Este é um título divino
que é especifico do tempo em que eles viviam, e que aparece muitas
vezes neste e em outros livros do cativeiro. O uso de títulos divinos nas
orações, em tempos bíblicos diferentes, merece atenção cuidadosa.
142 A glória da oração

A sua oração continha duas áreas especificas de pedido. Em primei-


ro lugar, para que a misericórdia de Deus lhes fosse manifestada, reve-
lando o conteúdo secreto do sonho de Nabucodonosor. Eles dependiam
totalmente em Deus para obter revelação divina sobre este assunto. É
importante notar que, embora Daniel tivesse prometido dar ao rei a
resposta que ele desejava, esta confiança não impediu que orassem fer-
vorosamente a Deus para dar-lhes a revelação. Esta lição é importante
para o povo de Deus de qualquer geração. Todos devem confiar e des-
cansar no propósito de Deus, mas esta fé nunca deve eliminar o exer-
cício espiritual da oração. A incapacidade de explicar como a oração é
ouvida e respondida por Deus nunca deve desencorajar o uso constante
da oração fervorosa.
O segundo pedido foi pela sua libertação pessoal da penalidade a
que estavam sujeitos por causa da falha dos conselheiros do rei. Estes
quatro homens não estavam presentes quando ocorreu a entrevista en-
tre o rei e os conselheiros, e assim não tiveram a oportunidade de fazer
a promessa que Daniel mais tarde fez a Nabucodonosor. Não foi uma
petição vã pedir a Deus que preservasse as suas vidas de perecer com o
resto dos conselheiros da Babilônia. Fica muito claro, de várias afirma-
ções neste capítulo e em todo o livro, que Daniel tinha total confiança
de que Deus estava em controle das suas circunstâncias pessoais, e das
dos seus companheiros. Devemos observar que confiança em Deus não
o fez mais confiante em si mesmo, ou descuidado na oração. A realidade
da oração na vida do salvo é de suma importância. O salvo nunca deve
adotar o ponto de vista fatalista. Deus pede que Seu povo ore regular-
mente e individualmente, e Ele responderá no Seu bom tempo, segundo
a Sua vontade e o Seu propósito.
As ações de graças e o louvor de Daniel
O segredo foi revelado a Daniel numa visão noturna, e o servo de
Deus imediatamente expressou o seu louvor e gratidão a Deus. Ele
não esperou nem um momento para expressar a sua alegria perante o
Deus do Céu, e se regozijou que a sua confiança em Deus tinha sido
plenamente justificada, e seu coração transbordou de alegria e grati-
dão. Depois daquela noite de revelação e louvor, o seu primeiro ato foi
aproximar-se de Arioque e pedir que o juízo fosse suspenso, e que ele
fosse levado perante o rei. Aqui vemos a sabedoria de Daniel nesta nova
entrevista com Nabucodonosor, cujas primeiras palavras a Daniel fo-
Cap. 8 — As orações de Daniel 143

ram: “Podes tu fazer-me saber o sonho que tive e a sua interpretação?”


(2:26). A resposta de Daniel começou com uma dúvida indireta, mas
sem esperar por uma resposta, ele afirmou com clareza que o problema
do rei tinha sido resolvido pelo “Deus no céu” (v. 28). A dúvida sugerida
tinha a intenção clara de revelar ao rei a diferença entre a resposta dos
assim chamados “sábios” e a sua resposta. A resposta deles era para se
promover e para enganar o rei, mas o grande desejo de Daniel era apre-
sentar a Nabucodonosor o Deus do Céu.
É bom notar no v. 30 que a importância da experiência específica
descrita neste capítulo tem em vista ensinar a este rei cruel e seus asso-
ciados sobre o assunto do poder e sabedoria de Deus em controlar os
negócios dos homens.
O resultado da oração de Daniel
Não é o propósito deste capítulo falar sobre os detalhes da imagem
do sonho de Nabucodonosor; mas é encorajador notar que, como resul-
tado da sua fé em Deus, e da sua fidelidade a Deus, o rei reconheceu a
grandeza do Deus de Daniel, e o próprio Daniel foi promovido (vs. 47-
48). Não é difícil ver isto como uma ilustração de I Samuel 2:30: “Aos
que me honram honrarei”.

Capítulo 6
Daniel cap. 5 descreveu o dia final dos vinte e cinco anos do reinado
de Belsazar. O cap. 6 descreve algo do começo do reinado de Dario, o
Medo, e inclui a implementação da nova organização administrativa do
novo império. Em associação com estas novas posições de governo, o
capítulo também descreve mais um exemplo importante de aflição para
Daniel, causado pela sua fidelidade em testemunho para Deus. O inci-
dente de Daniel na cova dos leões tornou este capítulo, possivelmente,
o mais conhecido do livro de Daniel.
Os primeiros versículos deste capítulo revelam os benefícios que
Daniel logo conquistou dos seus novos captores, embora ele teria, nessa
ocasião, cerca de oitenta e três anos de idade. Muitos cristãos têm pro-
vado que as exigências espirituais e morais de uma vida obediente e san-
tificada não têm impedido seu avanço no seu emprego secular — mas
há ocasiões quando tais características piedosas provocam a natureza e
atitude carnal dos seus colegas incrédulos. Porém, através de perseve-
rança humilde, estes irmãos têm provado que “sendo os caminhos do
144 A glória da oração

homem agradáveis ao Senhor, até a seus inimigos faz que tenham paz
com ele” (Pv 16:7). Vemos, claramente, que havia aqueles que tinham
inveja de Daniel, mas como não podiam achar ocasião contra a sua vida,
decidiram agir usando a obediência que ele tinha à Lei do seu Deus (v.
5). O incidente que vamos considerar agora descreve a bem conhecida
história da cova dos leões.
Uma leitura superficial do capítulo revela a inquietação dos muitos
grupos governantes no império, que eram diretamente responsáveis ao
imperador. Estes grupos se opunham totalmente a Daniel, mas desco-
briram que era quase impossível achar motivos para acusá-lo e assim
removê-lo. O plano que finalmente maquinaram era preparar um edito
que se tornaria num decreto real assinado pelo rei. Esse plano obrigaria
toda pessoa no reino a se abster totalmente de se dirigir a qualquer deus,
por qualquer razão, a não ser através do rei da Pérsia. Esta proibição
duraria trinta dias, e qualquer pessoa que desobedecesse seria lançada
numa cova de leões.
A vida de oração de Daniel
“Daniel, pois, quando soube que o edito estava assinado, entrou em
sua casa (ora, havia no seu quarto janelas abertas do lado de Jerusalém),
e três vezes no dia se punha de joelhos, e orava, e dava graças diante
do seu Deus, como também antes costumava fazer” (v. 10). Os atos de
Daniel não foram atos de desobediência ou rebeldia, mas eram a conti-
nuação da sua vida de devoção a Jeová, o Deus de Israel.
Devemos observar, no v. 10, que regularidade e humildade caracte-
rizavam a vida de oração deste servo de Deus, que se ajoelhava três ve-
zes ao dia. Tais ocasiões de estar na presença de Deus o permitiam gozar
de comunhão constante com Deus, e devemos notar, cuidadosamente,
que as ações de graças ocupavam o lugar principal em cada ocasião de
oração. Devemos lembrar que estas características se destacavam na sua
vida de oração, antes de surgirem dificuldades.
Daniel tinha se ocupado constantemente no exercício espiritual da
oração; ele era um homem em contato com Deus, embora vivesse no
meio de um povo idólatra. No segundo capítulo do livro, na sua juven-
tude, ele é visto como homem de oração, e por meio do seu contato com
Deus tinha sido usado para revelar a Nabucodonosor o seu sonho. Aqui,
aproximadamente sessenta e dois anos mais tarde, a frase “como tam-
bém antes costumava fazer” indica que, durante os longos anos da sua
Cap. 8 — As orações de Daniel 145

vida, tinha sido o seu costume orar, com a sua janela aberta, três vezes
ao dia, na direção de Jerusalém. Regularidade em oração também era a
prática do nosso Senhor Jesus Cristo, e foi visto na vida de tantos dos
Seus servos no Novo Testamento. Esta nova situação na vida de Daniel
era somente mais um assunto para ele colocar na presença de Deus,
enquanto ele “perseverava na oração” (Rm 12:12).
“Então aqueles homens foram juntos, e acharam a Daniel orando
e suplicando diante do seu Deus” (v. 11). Embora as orações de Da-
niel continuassem como sempre, desta vez houve a inclusão de súplicas
quando, sem dúvida, ele trouxe estes assuntos específicos perante Deus.
Os homens ímpios que chegaram para testemunhar a oração de Daniel
não apreciaram que ele estava agora invocando a mão de Deus a seu
favor, contra seus maus atos. É fácil ver a intenção daqueles homens
cruéis. Eles sabiam exatamente aonde ir para achar Daniel orando. Es-
tes fatos são um grande desafio para cada cristão hoje. A prática de ora-
ção frequentemente é negligenciada por aqueles que professam o nome
de Cristo. Como Daniel tinha um lugar para orar, e horas específicas,
assim os cristãos hoje devem ter. Estes homens tinham visto Daniel
ajoelhado perante Deus na sua vida particular, e tinham testemunha-
do a santidade da sua vida pública, mas mesmo assim queriam que ele
fosse removido. Eles sabiam que tinham conseguido do rei um decreto
irrevogável, e confiando nisto foram à presença do rei e começaram a
repetir os detalhes do decreto. Eles repetiram a ele, cuidadosamente,
os termos do decreto, sobre o qual tinham recebido o seu consenti-
mento, e novamente o confirmaram. É evidente que o rei “ficou muito
penalizado, e a favor de Daniel” (v. 14), mas ele não podia negar o que
tinha escrito, e isto o forçava a executar a sentença. As palavras do rei
confirmam a sua confiança no poder do Deus de Daniel para livrar o
Seu servo. O resultado do livramento milagroso de Daniel trouxe juízo
sobre os inimigos de Daniel e suas famílias (v. 24); resultou em teste-
munho, amplamente divulgado, do grande poder e soberania de Deus
(vs. 25-27); e trouxe prosperidade a Daniel, que adorava e confiava em
Jeová, o Deus de Israel.

Capítulo 9
Este capítulo é bem conhecido, mas não é facilmente entendido.
Começa com Daniel lendo e considerando livros das Escrituras ins-
piradas, e termina com uma revelação profética muito importante da
146 A glória da oração

parte de Deus, entregue por intermédio do anjo Gabriel. Anteriormen-


te, Daniel tinha sido instruído sobre os grandes temas proféticos por
meio de revelações milagrosas de Deus. Aqui temos evidências claras
de que Daniel era um estudante meticuloso das revelações escritas que
mais tarde foram incorporadas nas Escrituras hebraicas do Velho Tes-
tamento. Isso enfatiza o fato importante que Daniel não era somente
um homem dado ao hábito regular da oração, mas ele era também um
leitor constante da Palavra de Deus. Não há dúvida que estas atividades
são dois dos exercícios espirituais mais importantes para todos os salvos.
Ler as Escrituras, porém, não é simplesmente para educar a mente, e
Daniel sabia disso. Ele tinha estado lendo no livro de Jeremias, o que
tinha, sem dúvida, estimulado a sua mente para considerar e meditar
sobre isto. Não foi difícil para Daniel calcular o número de anos que ele
tinha estado cativo, e reconhecer que o fim dos setenta anos menciona-
dos estava muito perto.
A oração e confissão de Daniel
É claro que esta meditação nas Escrituras teve um profundo im-
pacto sobre Daniel. Sua sensibilidade às Escrituras o atraiu à presença
de Deus para O buscar, com oração e súplicas, com jejum e contrição (v.
3). Embora ele fora muito jovem no início do cativeiro, e portanto não
era diretamente responsável pela falha de Israel naquele tempo, ele fez
confissão como um daqueles que tinham pecado. Daniel sabia que Deus
tinha usado Nabucodonosor, por causa do desvio da nação de Israel, e
aqui o servo de Deus confessa o pecado como iniquidade e maldade.
É muito interessante observar a ordem da oração que Daniel apre-
sentou ao Senhor, primeiramente confessado o seu pecado e fracasso
pessoal, e depois o do seu povo. No desenrolar da oração, ele reconhe-
ce os caminhos de Deus com o Seu próprio povo, seguido pelo seu
desejo de que Deus seja adorado. Embora Daniel estivera ausente de
Jerusalém por quase setenta anos, ele sabia que era a cidade de Deus
e que o Templo era a habitação de Deus, e que ambos estavam em
opróbrio porque Deus tinha retirado a Sua presença. Estes desejos de
Daniel eram corretos e agradáveis a Deus. “Agora, pois, ó Deus nosso,
ouve a oração do teu servo, e as suas súplicas, e sobre o teu santuário
assolado faze resplandecer o teu rosto, por amor do Senhor” (v. 17). É
um maravilhoso tributo ao servo de Deus que, apesar dos seus mui-
tos anos vividos em cidades gentias, seus desejos espirituais estavam
Cap. 8 — As orações de Daniel 147

centralizados em Jerusalém, na casa de Deus, na glória de Deus e no


testemunho do Seu povo. Seu grande desejo espiritual era que a glória
de Deus resplandecesse novamente do santuário. Este era o peso desta
oração poderosa e detalhada. E não era a favor de Daniel, mas sim do
Senhor. Isto era, de fato, oração.
Esta oração é descrita como uma das mais importantes nas Sagra-
das Escrituras, no entanto tem sido atacada por alguns que afirmam que
não é realmente parte das Escrituras inspiradas. A assim-chamada Alta
Crítica usa isto como seu principal argumento para tentar provar que o
livro de Daniel, como um todo, é uma falsificação do século II.
É evidente que durante os muitos anos da sua ausência de Jerusa-
lém, Daniel tinha aprendido a conhecer a Deus de uma maneira pes-
soal, e tinha conseguido manter o seu amor pelo “lugar do nome” (Is
18:7), e pelo povo de Deus. Ele também sabia que Deus conhecia todas
as desolações que ele mencionou, mas isto não diminuiu as suas súpli-
cas perante Deus pela cidade e pelo lugar que era tão precioso ao seu
coração. Suas súplicas não estavam focalizadas na sua necessidade, mas
visavam a glória de Deus. A parte final revela a santa intimidade e poder
com que Daniel suplicou ao terminar a sua oração a Deus: “Ó Senhor
ouve; ó Senhor perdoa; ó Senhor, atende-nos e age sem tardar … ó
Deus meu” (v. 19). Os nomes de Deus se destacaram na sua oração, e foi
para a glória e honra do nome de Deus que ele suplicou, e os versículos
subsequentes revelam que esta oração foi honrada e respondida.
A sinceridade e o zelo com que Daniel orou lhe trouxeram grande
bênção e honra. Isto é visto com clareza nos vs. 20-23, onde o anjo
Gabriel é visto trazendo notícias maravilhosas a Daniel. Estas incluem
a capacidade e entendimento que seriam dados ao servo de Deus, e que
a ele seria transmitido a importante informação do programa profético
das setenta semanas. Este maravilhoso capítulo de oração produziu a
grande mensagem profética de Deus. Na nossa experiência cristã pre-
sente, a única maneira de compreender e apreciar a Palavra de Deus é
mantendo comunhão com Deus. Então a Sua Palavra se tornará real a
nós, e ouviremos a Sua voz.

Capítulo 10
Este capítulo contém detalhes do começo da visão final no livro de
Daniel. Esta visão é muito importante, sendo a maior e a mais com-
preensiva de todas as revelações dadas ao profeta. Seu conteúdo ocupa
148 A glória da oração

os últimos três capítulos, até o final do livro, e sobre isso Edward Den-
nett diz o seguinte:
Trata … com diferentes eras e personagens, passa por muitas esferas
de ação, mas não prossegue consecutivamente; pois, depois de
chegar a certo ponto, com uma descrição histórica de maquinações
e conflitos entre o rei do norte e o rei do sul, a visão repentinamente
passa para o tempo do fim, e nos apresenta o obstinado rei, o an-
ticristo com seus feitos ímpios (11:36), etc. e seus conflitos com seus
adversários.*

O cap. 10 começa com mais uma revelação a Daniel, que aparente-


mente o afetou muito, e aqui ele relata alguns dos detalhes físicos pelos
quais ele passou durante um período de três semanas, quando ele se
privou das condições e facilidades normais da vida. O v. 12 mostra que
quando este período, com todas as suas dificuldades, começou, Daniel
também começou a orar, e as palavras que ele usou são mencionadas
quando ele viu o mensageiro celestial que lhe foi enviado, no final do
período. Não é o alvo deste capítulo expor os assuntos descritos pelo
servo divino, nem podemos saber todas as palavras que Daniel tinha
falado durante o período das três semanas. Entretanto, é tocante notar
que Deus ouviu todas as palavras faladas por Daniel na sua oração, e
que no tempo certo Daniel foi consolado pela mensagem que finalmen-
te chegou. Sobre isto Michael Browne comenta: “Assim que um santo
de Deus ora com um coração sobrecarregado, esta oração é ouvida no
Céu”.† “Desde o primeiro dia … são ouvidas as tuas palavras” (10:12).
Um anjo poderoso foi enviado para trazer a resposta, mas durante três
semanas os poderes do inferno resistiram o emissário celestial (v. 13).
Ainda hoje há uma guerra espiritual constante na esfera cósmica, na
qual estamos envolvidos, “porque não temos que lutar contra a carne
e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, con-
tra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da
maldade, nos lugares celestiais” (Ef 6:12). A oposição satânica nunca é
mais evidente do que em se opor as orações do salvo, mas a experiência
de Daniel nos ensina que não precisamos ser vencidos; temos toda a
habilidade espiritual necessária para sermos vencedores.

* DENNETT, E. Daniel the Prophet. Inglaterra: Central Bible Hammond Trust, 1989.
† BROWNE, M. Day by Day in Prayer. Glasgow: Precious Seed Publications, 1997.
Cap. 8 — As orações de Daniel 149

Conclusão
Daniel era um servo de Deus cuja vida e exemplo testemunharam
do poder de Deus que nos guarda no meio das circunstâncias mais te-
nebrosas da vida. Desde a sua juventude até a sua velhice ele viveu em
constante comunhão com Deus, e o exemplo da retidão da sua vida foi
usado por Ezequiel o sacerdote em pelo menos três ocasiões (Ez 14:14,
20; 28:3). Sua vida de oração foi constante e firme durante toda a sua
vida, e é um modelo que cada cristão deveria seguir.
Cap. 9 — A oração dos discípulos
Por Tom Wilson, Escócia

Em muitos lugares a oração chamada “O Pai nosso” é chamada a


“Oração do Senhor”, mas é uma oração que o Senhor nunca orou, por
razões que notaremos. É a oração que Ele ensinou aos Seus discípu-
los, para que eles pudessem compreender como se aproximar do Pai, e
como deveriam fazer suas petições. O Senhor enfatizou a necessidade
da oração em muitas ocasiões; e em pelo menos três ocasiões, o grande
Mestre definiu princípios que deveriam caracterizar as orações. Dois
dos evangelistas relatam a ocasião quando o Senhor ensinou esta oração
aos discípulos: Mateus cap. 6 e Lucas cap. 11; e até na véspera do Cal-
vário, durante o Seu ministério no cenáculo, o terceiro esboço de prin-
cípios fundamentais foi dado, o relato do qual temos em João 16:23-27.
Mateus relata como, durante o primeiro ano do Seu ministério público
na Galileia, o Senhor “subiu a um monte”, e Se assentou para ensinar
Seus discípulos. Mateus o chama de “o monte” (5:1, ARA). Para muitos
que ouviram aquele ensino, sempre seria “o monte”. Como poderiam
esquecer daquele monte? Aqueles discípulos que O seguiram àquele
monte foram amplamente recompensados, pois o Senhor iniciou o Seu
ensino com várias bem-aventuranças inesquecíveis, e concluiu com a
Sua ilustração parabólica e gráfica de casas construídas sobre a rocha ou
na areia (5:1-7; 7:24-27). Em Mateus 6, bem no centro daquele grande
sermão, encontramos a oração dos discípulos.
Lucas também fala sobre o Senhor ensinando os Seus discípulos a
orar. Durante a viagem final do Senhor a Jerusalém, que começou em
Lucas 9:1, os discípulos, provavelmente incluindo alguns que tinham
sido discípulos de João, tendo ouvido a oração do Senhor, pediram que
Ele os ensinasse a orar. Eles lembraram como João Batista tinha ensi-
nado seus discípulos a orar. (A espada de Herodes tirara a vida daquele
nobre profeta antes deste pedido ser feito em Lucas 9:9) Em Lucas
11:1-4, achamos o relato daquela ocasião, quando, pelo menos pela se-
gunda vez, foi ensinado aos discípulos como eles deveriam orar.
Vamos considerar, principalmente, o relato de Mateus desta oração
dos discípulos, que é maior do que o relato de Lucas. No Texto Recebi-
do (grego) Mateus tem setenta e três palavras contra sessenta em Lucas;
Cap. 9 — A oração dos discípulos 151

na AV*, sessenta e sete contra as cinquenta e oito em Lucas.

O contexto da oração dos discípulos


Desde as primeiras páginas do seu Evangelho, Mateus desafia seus
leitores com as reivindicações de Jesus Cristo, o filho de Davi, o filho
de Abraão (1:1). O seu propósito, claramente, é apresentar alguém a
quem pertence o trono e a terra. O reconhecimento impressionante dos
magos gentios e a reação imediata de Herodes, o rei edomita, ao nas-
cimento daquele “que é nascido rei dos judeus”, preparam o palco para
as cenas de conflito por vir. As cenas que seguem retratam João Batista
e os penitentes atraídos ao seu ministério, um ministério autenticado
inicialmente pelo Senhor, que embora sem pecado, recebeu o batismo
de João e mais tarde o recomendou (11:7-15; 17:10-13). Foi somente
depois de Herodes ter prendido João e encerrado o ministério público
deste grande homem, que o Senhor Jesus começou a pregar, usando
linguagem que o povo ouvira dos lábios de João: “Arrependei-vos, pois
o reino dos céus está próximo”. O nosso Senhor estava falando à nação
sobre as suas próprias reivindicações: eles estavam esperando o Messias
e o reino. Logo eles O ouviram falar sobre a necessidade de buscar o
reino e não as coisas materiais como alimento e vestuário, que eram as
prioridades dos gentios (6:32-33). Evidentemente, buscar o reino fazia
parte do seu vocabulário, em contraste com os gentios ao seu redor.
A primeira grande mensagem dada pelo Senhor, como relatada no
Evangelho de Mateus, foi o Sermão no Monte. Aquele longo sermão
teria ocupado aproximadamente quarenta minutos para ser entregue,
no entanto depois de muitos anos os ouvintes sinceros entre aqueles
primeiros ouvintes ainda estariam procurando compreender o ensino
radical recebido naquele dia. Pela primeira vez, muitos dos princípios
fundamentais do Seu reino, que eles nunca achariam no reino de He-
rodes, estavam sendo revelados. Os ouvintes ouviram sobre bondade na
presença do mal, de fato ouviram de perseguição “por causa da justiça”
(5:10, 44), de inimigos que deveriam ser amados (5:44), de porcos e
lobos devoradores que teriam que enfrentar (7:6, 15). Também ouvi-
ram sobre como o seu Pai ajudava “os maus e os bons … os justos e os
injustos” (5:45). Entretanto, não há menção do mistério da iniquidade,
* Em inglês. Na AT em português, são setenta e três palavras em Mateus e sessenta em Lucas.
Note que as versões ARC e ARA são bem mais curtas em Lucas, omitindo grande parte da
introdução da oração. (N. T.)
152 A glória da oração

nem da restrição e do Repressor que impede o seu desenvolvimento (II


Ts 2:6-8). Entretanto, eles foram relembrados que as reivindicações que
os judeus faziam de serem guias dos cegos, luz dos que estão em trevas,
instrutores dos néscios e mestres de crianças (Rm 2:19, 20), coloca-
vam sobre eles a responsabilidade de serem sal e luz para a sua geração,
(5:13-15). Sem dúvida, quando o iníquo, de quem Paulo escreveu em II
Tessalonicenses 2 for revelado, os santos judaicos no período da Grande
Tribulação encontrarão consolo e direção no ensino do Senhor e na
oração dos discípulos que Ele lhes ensinou, num contexto no qual eles
poderão se identificar — um contexto de conflito, corrupção e conces-
sões.
Os termos usados aqui pelo Senhor eram na maioria judaicos. Eles
ouviram da necessidade de respeitar a Lei e os profetas (5:17), do altar
e do trono de Deus (5:24, 34); do juiz, do oficial, da prisão, (5:22, 25),
e das obrigações com seu irmão e seu próximo (5:22-24, 43; 7:4); todas
estas coisas seriam interpretadas por eles no contexto nacional, como
nenhum gentio faria. Também ouviram palavras que não são encontra-
das nas epístolas do Novo Testamento: “herdar a terra” (5:5); “o reino
dos céus” (5:10) — que não deve ser confundido com “o reino celestial”
(II Tm 4:18); “Jerusalém … a cidade do grande rei” (5:34), que não é a
Jerusalém “a qual é mãe de todos nós” (Gl 4:26); e “vosso Pai celestial”
(6:14, 26, 32).
Parte daquele ensino, os próprios discípulos ouviriam dos lábios do
seu Mestre em outras ocasiões; possivelmente trinta e quatro dos cento
e sete versículos foram repetidos mais tarde pelo Senhor. O evangelista
nos informa que houve três tipos de reação ao ensino do Senhor naque-
le dia: admiração (7:28); um despertar da percepção da Sua autoridade
(7:29) e da clareza do Seu ensino (7:29). Nenhum dos escribas, os ensi-
nadores reconhecidos pela nação, ensinavam como Ele ensinava.
Mateus 6 começa com um imperativo: “Guardai-vos” (v. 1). Este
imperativo tinha como alvo especialmente aqueles que tinham sido cui-
dadosamente catequizados pelos escribas. Eles tinham sido ensinados
sobre a importância de dar esmolas, da oração e do jejum. O Senhor
reconhece o valor destas práticas ao dizer: “quando, pois, deres esmolas”
(vs. 2-3); “quando orares” (v. 5), e “quando jejuares” (v. 17). Ele não diz:
“se deres esmolas, ou se orares, ou se jejuares”! Estas eram três ativida-
des importantes na piedade judaica, e nenhuma delas é desprezada pelo
Senhor; de fato, Ele trata com cada uma delas individualmente.
Cap. 9 — A oração dos discípulos 153

Em cada caso Ele mostra como até mesmo as atividades mais no-
bres poderiam ser corrompidas; e identifica as características daqueles
que corrompiam estas manifestações de piedade judaica. Eles são hipó-
critas (vs. 2, 5, 16). Eram hipócritas porque se gloriavam na aparência,
quer seja pelo tocar da trombeta (v. 2), ou pelas suas longas e audíveis
orações em lugares públicos (v. 5), ou pelo seu semblante triste que indi-
cava um jejum prolongado (v. 6). A verdadeira piedade não faz pessoas
célebres daqueles que a praticam; o Senhor disse que a verdadeira pie-
dade é praticada “em secreto” (vs. 4, 6, 18). O Senhor declara que tanto
os hipócritas como o humilde filho de Deus recebem uma recompensa
pelos seus atos de dar esmolas, orar e jejuar. A recompensa do hipócrita
é ser notado pelos homens (vs. 2, 5, 16). O humilde filho de Deus é
recompensado pelo “Pai que vê em secreto” (vs. 4, 6, 18), o Pai que “está
em secreto” (vs. 6, 18). A natureza da recompensa é personalizada pelo
Pai onisciente, como somente Ele pode fazer. O imperativo inicial do
Senhor: “Guardai-vos” (v. 1), enfatiza o cuidado que deve ser tomado
por cada alma preocupada em relação a dar esmolas, orar e jejuar. Até
mesmo boas intenções, se não houver cuidado, poderiam degenerar. No
evangelho de Mateus, a reafirmação da verdadeira piedade no lugar se-
creto é o contexto no qual o Senhor ensina os discípulos como orar.
A ocasião descrita por Lucas, no cap. 11 do seu Evangelho, ocorre
enquanto o Senhor viaja para Jerusalém pela última vez. Naquele capí-
tulo Lucas observa características do Senhor neste tempo importantís-
simo; lemos:
• v. 1: “… estando Ele a orar”;
• v. 14: “… E estava Ele expulsando um demônio”;
• v. 27: “… dizendo Ele estas coisas”;
• v. 37: “… estando Ele ainda falando”.
Aqui Lucas observa três coisas. Sua oração, Sua destruição das
obras do diabo, e Sua disposição de apresentar a verdade de Deus aos
Seus ouvintes. O silêncio de Lucas sobre as circunstâncias nas quais o
Senhor estivera orando sugere que não foi uma oração motivada por
circunstâncias presentes ou futuras, como aquelas que mais tarde o Se-
nhor enfrentou no Getsêmani. Os discípulos teriam notado que oração
habitual era uma característica da vida daquele Homem dependente.
E quando os discípulos, mais uma vez, observaram o seu Mestre em
oração, eles sentiram seu limitado crescimento espiritual, e pediram:
154 A glória da oração

“Senhor, ensina-nos a orar” (11:1). Eles sabiam que João Batista tinha
ensinado seus discípulos a orar, e assim acrescentaram: “… como tam-
bém João ensinou aos seus discípulos”. Nisto estavam confessando que
eles eram tão necessitados quanto tinham sido os discípulos de João,
quando ele os ensinara. Eles serviam um Mestre diferente dos discípu-
los de João, mas tinham muitas necessidades semelhantes.

O conteúdo da oração dos discípulos


Aqui, quando o Senhor fala sobre o filho de Deus orando, Ele está
falando do exercício individual e pessoal, não da oração coletiva. Três
vezes por dia o Templo tinha sua hora de oração; lemos sobre “o povo
… orando à hora do incenso” (Lc 1:10), veja também Atos 3:1. Paulo
também dá instruções sobre oração coletiva na igreja local (I Tm 2:1-8).
Aqui o Senhor trata da vida de oração individual. Ele mesmo apresen-
tará os requisitos. Seriam, pelo menos, três:
• Privacidade por trás de uma porta fechada, v. 6. Em muitos lares
somente a despensa teria uma porta; ali eles deveriam orar;
• O domínio próprio que evita o muito falar, v. 7;
• Um espírito submisso em todos que orassem, com sinceridade, a
oração dos discípulos.
O Senhor não estava proibindo orações públicas. Nosso Senhor
orou tanto em particular*, como em público, onde Suas orações podiam
ser ouvidas†. O problema não era orar audivelmente. France‡ comenta:
“Assim como, antigamente, leitura particular era feita audivelmente, as-
sim também as pessoas geralmente oravam audivelmente”. O problema
não era orar em pé (a posição normal para os judeus, Mc 11:25§; Lc
18:11, 13), mas ficar em pé para ser visto; e orar em voz alta e por muito
tempo para ser visto e ouvido!
O Senhor está dando um modelo do qual os Seus discípulos apren-
deriam; mostraria como deveriam orar, não o que deveriam orar. A re-
petição das palavras usadas aqui pelo Senhor não deveria se tornar em
“vãs repetições” (v. 7). O Senhor também não mandou que recitassem

* Mc 1:35; 6:46.
† 11:25; 14:19; 26:39, 42; Lc 11:1.
‡ FRANCE, R. T. The Gospel of Matthew. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, pág. 238.
§ A AV em inglês traduz: “Quando estiverdes em pé orando”. (N. T.)
Cap. 9 — A oração dos discípulos 155

esta oração, quer individualmente, quer num ajuntamento. Em outras


ocasiões Ele falaria mais sobre a oração, especialmente enquanto ante-
cipava a Sua partida para estar com o Pai; quando isto acontecesse os
Seus discípulos pediriam em Seu nome ( Jo 16:23-27), constituindo um
aspecto notável de uma oração cristã que se iniciou no momento da as-
censão do Senhor. Pedir no nome de Cristo não era o privilégio imedia-
to daqueles discípulos a quem o Senhor ensinou a oração dos discípulos.
A oração dos discípulos tem uma estrutura elegante. Na versão AT
e ARC inclui uma doxologia final no v. 13, que aparece entre colchetes
na ARA. A RV comenta: “Muitas autoridades, algumas muito antigas,
mas com variações, acrescentam: ‘Porque teu é o reino, e o poder, e a
glória, para sempre, Amém’.” Era comum orações judaicas terminarem
com uma doxologia.

A introdução
“Pai nosso, que estás nos céus”.
As petições
“Santificado seja o teu nome”; “Venha o teu reino”; “Seja feita a tua
vontade”; “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”; “Perdoa-nos as nos-
sas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”; “Não
nos induzas a tentação”; “Livra-nos do mal”.
A doxologia
“Teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém”.

A oração dos discípulos é corretamente elogiada pela sua “simplici-


dade, inteireza e brevidade” (A. B. Bruce). A sua linguagem é um mode-
lo de simplicidade, oferecendo ajuda a qualquer discípulo com dificul-
dade para se expressar perante “nosso Pai”. A oração é completa; inclui
adoração ao Pai e as necessidades, tanto de quem ora como de outros
— de fato o seu conteúdo se estende além de quem pede e dos outros,
para incluir o clamor inexprimível da Terra para que a justiça reine. É,
também, extremamente curta — setenta e três palavras em português, e
meio minuto sendo suficiente para ser orada em voz alta. Mais tarde o
Senhor pronunciou um “Ai” sobre os escribas e fariseus que, para se jus-
tificar, faziam “prolongadas orações” (Mt 23:14). Eclesiastes cap. 5 tinha
proibido a verbosidade nas orações dos judeus: “… sejam poucas as tuas
156 A glória da oração

palavras” (v. 2), porque o homem usando uma “multidão de palavras”


facilmente poderia fazer um voto que não poderia cumprir. “Não te pre-
cipites com a tua boca … Não consintas que a tua boca faça pecar a tua
carne” (Ec 5:2, 6). Salomão, o pregador de Eclesiastes, proibiu orações
prolongadas que poderiam levar um homem ou mulher a fazer um voto
que não poderiam cumprir; o “maior que Salomão” condenou orações
longas que indicavam uma devoção que a pessoa nunca pretendia ter. A
oração dos discípulos é um modelo em brevidade e objetividade.
Quais são os princípios fundamentais que o Senhor revela nesta
oração modelo? Há pelo menos quatro:
• Absoluta reverência na aproximação ao Pai:
No seu uso do nome “Pai Nosso”;
Na primeira petição: “Santificado seja o teu nome”.
• O devido reconhecimento da primazia da Sua vontade:
Na segunda petição: “Venha o teu reino”;
Na terceira petição: “Seja feita a tua vontade”.
• As exigências imediatas do viver diário:
Na quarta petição: “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”;
Na quinta petição: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim
como perdoamos aos nossos devedores; ”
Na sexta petição, “Não nos induzas à tentação;”
Na sétima petição, “Livra-nos do mal. ”
• A resposta apropriada à luz da Sua grandeza:
Na doxologia, “Teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre.
Amém. ”
Como já foi observado, esta é uma oração que o Senhor Jesus nunca
orou. Ele nunca disse: “Pai Nosso” quando Se dirigiu ao Seu Pai, como
os Evangelhos testificam. Ele passou fome e sede, e recebeu o pão de
cada dia para estas necessidades, como um Homem dependente aqui
no mundo, mas nunca precisou pedir perdão do Pai, como cada um dos
Seus seguidores precisa fazer. Com grande cuidado nós preservamos a
verdade da Sua impecabilidade, e assim discernimos que os sentimen-
tos do v. 13 refletem somente a possibilidade dos discípulos de falhar.
Quando o príncipe deste mundo veio, ele não achou nada em Cristo
para lhe dar um ponto de apoio que ele encontrara, certa vez, em Adão
( Jo 14:30).
Cap. 9 — A oração dos discípulos 157

Como o discípulo deve se dirigir a Deus


Através da linguagem pela qual o discípulo entraria na presença de
Deus, e também pela primeira petição que ele faria, temos evidências de
que o Senhor destes discípulos estava lhes indicando a necessidade de
reverência absoluta na sua aproximação ao “nosso Pai”.
Naquele monte onde o próprio Senhor estava assentado, Ele auto-
rizou os discípulos a usarem a expressão de relacionamento “Pai”. Será
que era normal entre os judeus o uso de linguagem como esta? Outros
judeus se dirigiriam a Deus como “Pai”? Vamos lembrar que nas Es-
crituras do Velho Testamento, o povo de Deus normalmente não cha-
mava Deus de Pai. O relacionamento de filho e Pai nunca é usado nas
Escrituras do Velho Testamento por um indivíduo e Deus. Somente, e
raramente, o seu relacionamento com Deus como nação é comparado
ao de um filho cujo Pai era Deus. Por exemplo:
• Êx 4:22-23: “Israel é meu filho, meu primogênito … Deixa ir o meu
filho para que me sirva”;
• Dt 32:6: “Não é ele teu pai?”
• Is 63:16: “Mas Tu és nosso Pai”;
• Jr 31:20: “Não é Efraim para mim um filho precioso?”
• Os 11:1: “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei
a meu filho”.
Quem são estes com quem o Senhor fala naquele monte anônimo?
São aqueles que se ocupam secretamente com os exercícios piedosos de
atos de justiça, oração e jejum. O Senhor também os descreveu como
aqueles que amam os seus inimigos e abençoam aqueles que os amaldi-
çoam, para que sejam “filhos do vosso Pai que está nos céus” (5:44-45). O
Senhor instruiu estes discípulos a usarem o pronome possessivo plural e
chamar Deus de “nosso Pai”. Mas Ele nunca Se incluiu no pronome “nos-
so”, em relação ao Seu relacionamento com o Pai. Quando nós oramos,
nunca falamos “meu Pai”, porque alegremente confessamos que a graça
nos coloca no mesmo nível que todos os outros salvos; assim dizemos
“Pai nosso”. Embora a posição que a graça nos deu nos permite comparti-
lhar com Cristo, nunca estamos no lugar onde somente Ele poderia estar,
aquele que é o unigênito Filho de Deus. Que intimidade havia naquelas
palavras simples que somente Ele podia expressar: “Meu Pai” (Mt 7:21;
10:32, 33; 11:27; 12:50; 15:13; 16:27; 18:10, 19, 35; 20:23; 24:36; 25:34;
158 A glória da oração

26:39, 42, 53 etc.). Um senso de admiração cai sobre o espírito dos filhos
de Deus quando ouvimos o Senhor usar este nome tão íntimo, “meu Pai”.
Esta expressão “meu Pai” O separou naquele tempo, e ainda O separa,
por meio de um intervalo infinito, dos Seus. Revela, imediatamente, quão
evidente era a Sua filiação. Para o judeu, a maneira como Ele falava com o
Seu Pai era blasfêmia; mas para o discípulo, era a revelação da Sua iden-
tidade, e assim mais tarde Pedro pode afirmar: “Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo” (Mt 16:16). É também, a continuidade de uma comunhão
que não teve começo.
Aqui, também, as palavras “Pai nosso” são seguidas pela frase “que
estás nos céus” (veja 5:16, 44, 48; 6:1; 7:11, 21). As palavras “Pai nosso”
nos incluem no carinho compartilhado por todo filho de Deus, mas as
palavras “que estás nos céus” nos advertem contra o espírito de irreve-
rência que deixa de reconhecer que este, de quem nos aproximamos, é
aquele que é auto existente, como a palavra “estás” (o tempo presente
do verbo “estar”) declara. Ele está “nos céus” — o Transcendente — o
Criador e não a criatura, a fonte de bênção e não um daqueles que vêm
para beber daquela fonte. Ele nos atrai, pois Ele tem compaixão de nós,
como um pai se compadece dos seus filhos (Sl 103:13); entretanto é
com admiração que nós nos aproximamos daquele que é “glorificado em
santidade, admirável em louvores, realizando maravilhas” (Êx 15:11).
Podemos sussurrar no Seu ouvido o que não falaríamos ao mais próxi-
mo e mais querido, mas temos de cuidar para não pensar que podemos
falar com Ele como se Ele fosse um parente natural. Às vezes os cristãos
são criticados por usarem uma linguagem considerada antiquada. Onde
esta linguagem é usada de propósito para nos guardar de uma familia-
ridade frívola que pode produzir atitudes inapropriadas para com um
Deus santo, então que estes críticos fiquem em silêncio.
As palavras “Pai nosso” são apropriadas somente nos lábios dos re-
midos. W. W. Fereday comenta: “Um momento de reflexão deve nos
convencer que é inaceitável ensinar uma multidão mista a dizer ‘Pai
nosso’.” O discípulo se gloria no seu relacionamento com o Pai, e na pri-
vacidade do seu quarto ele se regozija em poder usar o bem conhecido
nome “Pai nosso”. As orações, nas epístolas do Novo Testamento, não
incluem as palavras “que estás nos céus”, e também não incluem “Pai
celestial”. Os santos que receberam as epístolas não eram judeus ainda
ligados, em espírito, a um Templo terrestre com seus sacrifícios carnais,
na presença de quem o Senhor expôs o Seu Sermão no Monte. Desde o
Cap. 9 — A oração dos discípulos 159

dia de Pentecostes, o filho de Deus recebe o Espírito Santo que habita


nele, “o Espírito da adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba Pai” (Rm
8:15). Diferentemente daqueles primeiros ouvintes, nós somos aqueles
que podemos orar “no Espírito Santo” ( Jd v. 20). A oração dos discípu-
los se inicia com palavras claras de intimidade notável, “Pai nosso”. Se
o próprio Senhor não tivesse autorizado o seu uso, os cristãos teriam
temido usá-las para que, com o seu uso frequente, a intimidade não se
tornasse em irreverência. Esta intimidade somente poderia permanecer
incontaminada nos lábios daqueles que são de Cristo.
Pausamos aqui para notar que o valor inestimável desta oração é
baseado num “relacionamento nunca antes revelado no seu verdadeiro
caráter, entre Deus (o Pai) e os verdadeiros discípulos deste bendito
Mestre” (F. W. Grant). É baseado na revelação e na declaração daquele
nome “Pai”. Mais tarde, aquele Mestre falará da razão por que Ele re-
velou aquele nome aos discípulos: “Para que o amor com que me tens
amado esteja neles, e eu neles esteja” ( Jo 17:26). Para o judeu, Deus
era o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, o Deus
dos seus pais. Para nós, Ele é conhecido em termos mais íntimos,
que eles jamais conheceram. Ele é o nosso Pai, o Deus e Pai do nosso
Senhor Jesus Cristo, o Pai da Glória. Não devemos usar a linguagem
da oração dos discípulos quando falamos com o Pai. Antes da vinda
do Senhor, os homens não chamavam Deus de “Pai”; isso não podia
acontecer até que o Filho viesse. Durante Seu tempo aqui na Terra
Ele revelou o Pai: “Eu lhes fiz conhecer o teu nome” ( Jo 17:26). Ele
acrescentou: “E lho farei conhecer mais”, e nas epístolas há novas re-
velações do nome sagrado.
Petição 1 — “Santificado seja o Teu nome”
Quão facilmente poderiam ser esquecidas as palavras de Davi o
profeta, palavras que, com razão, nós associamos com o Calvário: “Tu
és santo, Tu que habitas entre os louvores de Israel” (Sl 22:3). “É santo
aquele que vos chamou” (I Pe 1:15), aquele que, em graça infinita e
complacência, nos permitiu dizer: “Pai nosso”. A primeira petição reco-
nhece a necessidade de reverência. As palavras que iniciam esta oração
modelo reconhecem que o nome do Pai é santo. Não devemos limitar
o significado da palavra “nome” com o identificador “Pai” ou “Deus”; a
palavra tem o significado de tudo que Ele é, por revelação, através de
palavras e atos e o testemunho dos Seus servos. Lembramos que a Lei
160 A glória da oração

exigia que ninguém devia tomar “o nome do Senhor teu Deus em vão”
(Êx 20:7). Sem sentir qualquer vergonha, os homens usam este nome
santo como imprecação, e falam de modo inconsequente do Seu caráter
e leis. O próprio Deus reafirma a reverência devida ao Seu nome: “E
não profanareis o meu santo nome, para que eu seja santificado no meio
dos filhos de Israel. Eu sou o Senhor que vos santifico” (Lv 22:32). A
petição condena toda forma de conduta rebelde que surge por causa de
não reverenciar o Pai.
A primazia da Sua vontade
O pronome “Teu” [ou “Tua”] ocorre três vezes nos vs. 9 e 10, onde a
vontade do Pai está em vista. Quão raramente esta ênfase caracteriza as
nossas orações pessoais! Conhecendo as nossas necessidades e as neces-
sidades de outros, frequentemente damos pouca importância à vontade
explícita do Pai no começo das nossas orações. O Senhor ensinou Seus
discípulos a orarem ao Pai sobre o reino vindouro e seus efeitos. A se-
gunda e terceira petições, “venha o teu reino” e “seja feita a tua vontade”,
estão ligadas de modo inextricável na oração, e sem dúvida estavam na
percepção dos discípulos ouvintes. Entretanto, o discípulo também pre-
cisa reconhecer a vontade de Deus na sua jornada aqui.
Quando Paulo esteve em Cesareia, na sua última viagem para Jeru-
salém, Ágabo o profeta chegou da Judeia (At 21:10). Os atos de Ágabo,
naquela ocasião, foram semelhantes aos de um profeta do Velho Tes-
tamento; ele amarrou as suas próprias mãos para ilustrar o perigo que
Paulo enfrentaria (veja I Rs 11:29 em diante; Is 20:2; Ez 4:1). Ele fala
de Paulo sendo entregue nas mãos dos gentios, linguagem muito seme-
lhante àquela usada pelo Senhor Jesus sobre a Sua prisão em Marcos
10:33. Os companheiros de Paulo e os cristãos em Cesareia reconhe-
ceram a realidade do perigo anunciado por Ágabo, e tentaram desviar
o grande homem de Deus do seu propósito. Mas, quer fosse prisão ou
até mesmo a morte, ele estava preparado para enfrentá-la (At 21:13).
Entretanto, Paulo não ficou estoicamente impassível. Houve lágrimas
visíveis, e no seu interior havia ainda mais angústia não expressada; no
entanto todos puderam dizer: “Seja feita a vontade de Deus”.
Petição 2 — “Venha o teu reino”
Morris comenta:
Davies e Allison destacam que nos escritos judaicos ou no Novo
Cap. 9 — A oração dos discípulos 161

Testamento, fora dos Evangelhos, o “reino de Deus” nunca é o sujeito


do verbo “vir”.*

O que será que os discípulos entenderam através desta frase inco-


mum que ouviram dos lábios da fiel e verdadeira Testemunha? Antes
disto, o Senhor tinha ensinado que o reino do céu “é chegado” (Mt 4:17),
como João Batista fizera (Mt 3:2). Mas, na oração, o Senhor estava fa-
lando de domínio universal, a ser visto inicialmente no reino milenar de
Cristo, e uma característica eterna do novo Céu e nova Terra. Adolph
Saphir, um judeu cristão, expressou o seu temor que esta petição não
fosse entendida literalmente por muitos cristãos professos:
Na terra, [o Senhor reinará] onde Deus tem sido negado e esqueci-
do; onde a Sua honra tem sido negligenciada e Seus mandamentos
transgredidos, onde nações e reinos … não têm se submetido à Sua
autoridade.

Entretanto, F. W. Grant olha além do reino milenar:


Para este reino do Pai, temos que olhar além de todas as dispen-
sações para o sábado do descanso do próprio Deus. Confundi-lo
com o milênio seria um grande erro, e necessariamente reduziria
terrivelmente o seu caráter. O milênio, com todas as suas bênçãos, é
somente um passo na direção desta consumação gloriosa.†

Com mais simplicidade Darby comenta:


A sujeição universal a Deus no céu e na terra será cumprida, até cer-
to ponto, pela intervenção de Cristo no milênio, e de modo absoluto
quando Deus será tudo em todos.‡

A primeira expressão da vontade do Pai na oração dos discípulos


não é meramente um eco das orações dos piedosos através dos séculos.
Homens como Davi e Daniel almejavam a chegada do Messias e as
bênçãos que Ele traria, mas nunca oraram explicitamente: “Venha o
teu reino” (v. 10). Que grande luz esta oração lançou sobre o caminho
escuro de muitos dos piedosos judeus presentes quando o Senhor abriu
a Sua boca e os ensinou, lá no monte (5:2). Os cristãos, hoje, esperam a
vinda de Cristo no Arrebatamento antes que a Grande Tribulação sub-
jugue Israel; no final deste período de sofrimento sem paralelo, o reino

* MORRIS, L. The Gospel according to Matthew. Leicester, 1992, pág. 145.


† GRANT, F. W. The Numerical Bible. New York: Loizeaux Brothers, 1903, pág. 90.
‡ DARBY, J. N. Synopsis of the Books of the Bible. Volume 3. Ontario: Believers Bookshelf, 1992:
pág. 67.
162 A glória da oração

público de Cristo será estabelecido na Terra. Por esta razão eles não
oram: “Venha o teu reino”, mas: “Ora vem, Senhor Jesus” (Ap 22:20).
Eles sabem que o Senhor reinará em glória, na vindicação pública que
isto trará, mas eles olham para o alto, no reconhecimento consciente de
que:

Ali estão preparadas as mansões


Gloriosas, resplandecentes e lindas;
Mas a Noiva que o Pai Lhe deu,
Ainda está ausente ali. (Paul Gerhardt)*

Petição 3 — “Seja feita a Tua vontade”


Mateus gosta de incluir referências à vontade de Deus. Ele usa o
substantivo “vontade” seis vezes e o verbo cognato quarenta e duas ve-
zes. Aqui na oração, pode se referir à vontade do Pai em relação ao
reino, mas não precisa ser limitada somente ao reino. O Senhor que
ensinou Seus discípulos a orar: “Seja feita a Tua vontade”, é o Senhor
que, sabendo todas as coisas, conhecia o fim desde o começo. Ele sabia
que tinha vindo para fazer a vontade de Deus (Hb 10:7). Ele sabia tudo
que a vontade de Deus significaria para Ele; em especial Ele sabia que
no Getsêmani Ele iria orar palavras bem semelhantes: “Faça-se a Tua
vontade” (Mt 26:42). A vontade de Deus para os Seus discípulos seria
exigente, e talvez a grande custo, eles também seriam levados a dizer:
“seja feita a Tua vontade”.
O contraste entre a Terra, conforme a concepção daqueles ouvin-
tes do Senhor, e os Céus, como eles o imaginavam, era muito grande.
Eles sabiam que nos Céus os anjos de Deus, “magníficos em poder”,
cumprem “as suas ordens, obedecendo à voz da sua palavra” (Sl 103:20,
ARC). Também sabiam que, atemorizados pela voz que ouviram, seus
pais tinham prometido que fariam tudo que o Senhor tinha falado:
“Tudo que o Senhor tem falado faremos, e obedeceremos” (Êx 24:7).
Mas, enquanto estavam ainda começando naquele caminho de obe-
diência a Deus, cujos trovões os atemorizaram, como o segundo filho
na parábola do Senhor, seus pais tinham dito: “Eu vou, senhor; e não
foi” (Mt 21:30). Agora, fortalecidos pela graça que eles encontraram em
Cristo, os discípulos devem dizer: “Seja feita a Tua vontade”, e fazê-la.

* Tradução literal. O original diz: “There made ready are the mansions/Glorious, bright and fair/
But the Bride the Father gave Him,/Still is wanting there”. (N. T.)
Cap. 9 — A oração dos discípulos 163

Necessidades no viver diário


É neste ponto desta oração maravilhosamente completa que o pro-
nome pessoal “Teu” muda para “nossa” e “nos”. Observemos que não
muda para “me”, “meu” e “minha”. As necessidades que sentimos na vida
cotidiana geralmente também são as necessidades de outros, e assim
na nossa oração incluímos também os outros, eliminando assim o uso
de “me”, “meu” e “minha”. Mesmo ao pedir que as nossas necessidades
pessoais sejam supridas, fazemos isso em “secreto”, porque entendemos
que há outros amados irmãos que têm necessidades tão urgentes quanto
as nossas. Ao usarmos o plural, eles não são esquecidos! As petições 4 a
7 esboçam, de maneira abrangente, a variedade de necessidades que um
discípulo pode ter.
Petição 4 — “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”
O Senhor enfatiza que o discípulo deveria ter novos cuidados cada
dia. Ele deve viver um dia de cada vez, e naquele dia, orar pelo pão “de
cada dia”. A palavra* traduzida “de cada dia” precisa ser considerada
cuidadosamente. É usada raramente, e Origen e outros pensam que foi
criada pelos Evangelistas, como diz Morris.† Alguns acham que signi-
fica:
• “… para o dia seguinte” (A. T. Robertson),‡
• “alimento … para aquele dia” (I. M. Marshall),§
• “… que surge nele, isto é, que precisamos para hoje”;¶
• “… necessário para a existência” (Origen).**
O trabalhador braçal recebia um denário por dia, frequentemente
sem garantia de emprego para o dia seguinte. Sua situação precária é
reconhecida nesta petição: “Dá nos o pão para o dia seguinte, hoje!” Isto
nos faz lembrar de Provérbios 30:8 — “mantém-me do pão da minha
* No grego, epioúsios. Só ocorre aqui e em Lc 11:3.
† MORRIS, L. The Gospel according to Matthew. Leicester, 1992. Pág. 146.
‡ Citando Rienecker & Rogers, Linguistic key to the Greek New Testament. Grand Rapids: Zon-
dervan, pág.18. Atos 7:26; 16:11; 20:15; 21:18 têm epeimi traduzido “o dia seguinte”.
§ MARSHALL, I. M. The Gospel of Luke. Pág. 459. Ele dá as razões para sua interpretação do
aoristo imperativo de Mateus como “dá” (ao invés do imperativo presente em Lucas) e “de
cada dia” no contexto.
¶ Baseado em etimologia (veja Marshall).
** Baseado em etimologia (veja Marshall e Morris).
164 A glória da oração

porção de costume” — “dá-me o pão que me for necessário” (ARA); o


alimento que preciso para este dia. Nos vs. 26-31 o Senhor esclarece
esta afirmação considerando a alternativa desta petição positiva, “o pão
nosso de cada dia nos dá hoje”. Ele avisa os ouvintes: se eles não pedi-
rem pelo “pão de cada dia”, eles talvez perguntariam: “Que comeremos,
ou que beberemos, ou com que nos vestiremos?” Estas murmurações
levaram seus pais a desafiarem Moisés e Arão: “… nos tendes trazido
a este deserto para matardes de fome toda esta multidão” (Êx 16:3);
a desafiarem Moisés: “… por que nos fizeste subir do Egito, para nos
matares de sede, a nós e aos nossos filhos, e ao nosso gado?” (Êx 17:3).
Estas foram as reações dos seus pais apóstatas, que não oraram pelo pão
de cada dia, mas não são as palavras dos mui provados “filhos do vosso
Pai, que está nos céus” (Mt 5:44).
Petição — “E perdoa-nos as nossas dívidas”
No relato de Mateus o pedido é para o perdão de dívidas, em Lucas
é para o perdão de pecados. Escrevendo para o judeu, Mateus usa “dívi-
das”, pois isto seria bem entendido por um povo que tinha se colocado
conscientemente sob a obrigação de guardar a Lei. Mais tarde no seu
Evangelho, Mateus relata a parábola do Senhor sobre os dois devedores:
um “devia … dez mil talentos”, o outro “devia … cem dinheiros” (18:23-
35). Um deles tinha uma obrigação para com o rei, o outro para com
aquele devedor do rei. Ambos eram devedores. Ambos precisavam de
misericórdia e ambos deveriam mostrar misericórdia a outros.
O narrador em Little Doritt, de Charles Dickens, comenta desde-
nhosamente sobre como poderia ter sido a oração da austera, malvada,
e cruel senhora Clennam poderia ter orado:
“Perdoa-nos as nossas dívidas” seria uma oração muito pobre em
espírito para ela. “Fere os meus devedores, Senhor, esmaga-os; faça
como eu faria, e então terás a minha adoração”.

Ele acrescenta: “… esta foi a torre ímpia de pedras que ela cons-
truiu para tentar chegar ao céu”. Nenhum discípulo verdadeiro deve
construir o que alguém que é mero professo construiu.
Nós temos sido perdoados gratuitamente em Cristo, e devemos
prontamente perdoar os outros (Ef 4:32). Paulo encorajou Filemom
a perdoar Onésimo, mas mesmo onde não há esta ajuda, nós temos a
obrigação de perdoar, porque Deus nos perdoou.
Cap. 9 — A oração dos discípulos 165

Petição 6 — “E não nos induzas à tentação”


Alguns pensam que esta expressão se refere à Grande Tribulação no
fim dos tempos, que o Senhor Jesus descreve como “a hora da tentação
que há de vir sobre todo o mundo, para tentar os que habitam na ter-
ra” (Ap 3:10). Apocalipse e outras passagens das Escrituras testificam
da severidade daquela hora: “Porque haverá então grande aflição; como
nunca houve desde o principio do mundo, nem tampouco há de haver”
(Mt 24:21); veja também Daniel 12:1; Joel 2:2. Na opinião do autor, a
separação desta petição da anterior, “Venha o teu reino”, pode indicar
que a ideia principal desta petição não está relacionada com o fim dos
tempos. É mais provável que esta petição seja uma referência às forças
militantes organizadas contra Deus e Cristo e, portanto, contra os filhos
de Deus, daquela era até o tempo presente. Seu eco é claramente ouvido
no relato do Getsêmani. O Senhor censurou brandamente os discípulos
exaustos dizendo: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação” (Mt
26:41). Até que o Senhor reine supremo, discípulos precisarão desta
palavra de exortação.
A palavra traduzida “tentar” tem vários significados. É usada para
descrever a tentação do nosso Senhor no deserto. Também é usada
referindo-se a nós sendo tentados a pecar. Pode se referir “à prova da
vossa fé” (I Pe 1:7). O Senhor sabia que os discípulos precisavam ser
fortalecidos para vencer as pressões que seu compromisso com Cristo
traria. Tiago deixa bem claro que Deus “a ninguém tenta” (Tg 1:13-14).
Deus provou a fé de Abraão. O próprio tentador perturbou os tessalo-
nicenses (I Ts 3:5). O discípulo não convida a provação divina, nem a
tentação para o mal. Será que ele deve convidar o Pai a provar a sua fé
de outras maneiras? O filho de Deus reconhece que o Pai tem o direito
de dizer: “Fazei prova de Mim nisto” (Ml 3:10), mas normalmente o
filho não deve pedir que o Pai o prove! É verdade que Davi, “cansado
das injustiças dos homens”,* apelou para Jeová: “Examina-me, Senhor
e prova-me” (Sl 26:2). Na sua extrema aflição ele desejava que um vere-
dito justo, que vindicaria o seu caráter, fosse declarado.
Quem repetisse esta oração a faria com um profundo senso da
sua própria fraqueza. Ele lembraria que o primeiro homem (depois
de Adão) cuja provação é revelada detalhadamente foi Jó, um servo de
Deus sem igual no mundo daquele tempo. Foi quando Deus o provou

* FLANIGAN, J. M. What the Bible Teaches – Psalms. Kilmarnock: John Ritchie Ltd., 2001.
166 A glória da oração

que Jó aprendeu sobre sua fraqueza. Mais tarde, a fraqueza de Pedro


seria exposta quando o maligno o tentou; ele e outros foram benefi-
ciados por aquela experiência humilhante. Podemos olhar para Jó e
Pedro e perguntar: quem consegue permanecer de pé? Há Um que é
poderoso para vos guardar de tropeçar ( Jd 24). Paulo declara que Deus
não permitirá tentação acima do que podemos suportar, e que sempre
há um caminho de escape (I Co 10:13). Tais provações são dolorosas,
mas sempre proveitosas. Tiago escreveu da bênção de ser provado por
Deus: “Bem-aventurado o homem que suporta a tentação … quando
for provado” (Tg 1:12). Entretanto, as palavras do Senhor nos avisam
contra convidar a provação. Conhecendo a fraqueza da carne, os Seus
discípulos deveriam aprender a orar: “E não nos induzas à tentação”.
Petição 7 – “Livra-nos do mal”
Este versículo também pode ser traduzido: “Livra-nos daquele
que é mau”.* A maioria dos tradutores aceitam ambas as traduções.
Favorecendo a tradução “livra-nos do mal”, F. W. Grant comenta: “…
o ponto de vista mais amplo inclui o mais restrito, portanto é mais
conveniente”.† Ambas as traduções são compreensíveis. Reconhecemos
muitas caraterísticas “do presente século mau” (Gl 1:4), e que temos um
adversário mau, muito experiente e muito astuto.
Nosso adversário, o diabo, é chamado “o maligno” (Mt 13:19; I Jo
2:13-14; 3:12; 5:18). Sabemos algo do seu controle sob todas as formas
do mal, e reconhecemos que na sua aljava há mais que uma flecha. Às
vezes a ponta da flecha é untada com açúcar para que, de modo insus-
peito, sejamos seduzidos a entrar em situações que poderiam ser desas-
trosas. Às vezes a flecha nos atinge com tanta força que nos faz tremer
até o íntimo do nosso ser e, no entanto, sabemos que temos que resistir
e não nos curvar amedrontados. Às vezes o maligno ataca as nossas
mentes, às vezes as nossas afeições, mas sabemos que o seu propósito
sempre é mau.
O artigo definido qualificando “mau” requer alguma consideração,
se o Senhor não está Se referindo ao diabo pessoalmente, sobre cuja
maldade os judeus religiosos não duvidavam. Seria então uma referência
ao mal que eles bem conheciam, quer civil ou religioso. Nós reconhe-
cemos algumas formas deste mal — os graves pecados morais, o inte-
* Margem da JND, e RV.
† GRANT, F. W. The Numerical Bible. New York: Loizeaux Brothers, 1903, pág. 92.
Cap. 9 — A oração dos discípulos 167

lectualismo enganoso desta era, o comprometimento fácil com religiões


sem Cristo e com aqueles que não procuram mais manter a verdade
revelada no Novo Testamento. Sim, conhecemos algo destas formas do
mal, mas, com Paulo, podemos corajosamente afirmar: “O Senhor me
livrará de toda a má obra, e guardar-me-á para o seu reino celestial; a
quem seja a glória para todo o sempre. Amém” (II Tm 4:18).
Receptividade à luz da Sua grandeza
A doxologia final “está faltando nos manuscritos mais antigos
(em Lucas e Mateus), embora tenha consideráveis testemunhos bem
antigos”.* Almas piedosas com sinceridade podem ter exclamado: “…
teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém”. Nós, que alme-
jamos o Arrebatamento dizendo: “Ora vem Senhor Jesus” (Ap 22:20),
estamos cientes que “a ardente expectação da criatura espera a manifes-
tação dos filhos de Deus” (Rm 8:19). “Então os justos resplandecerão
como o sol, no reino de seu Pai” (Mt 13:43). Os fieis não serão mais
companheiros “na aflição, e no reino e na paciência de Jesus Cristo” (Ap
1:9), pois o reino estará ligado com “o poder e a glória” e redundará para
a glória de “nosso Pai”.

Depois da ascensão do Senhor


O relato de Atos dos Apóstolos, desde o cap. 1, identifica a oração
fervorosa como uma das características daqueles que “haviam estado
com Jesus” (At 4:13). De fato, cada acontecimento importante em Atos
é precedido de oração. No livro há mais ou menos trinta referências à
oração; mais que em qualquer outro livro do Novo Testamento. Como
já foi notado, o Senhor Jesus, em mais que uma ocasião, ensinou os Seus
discípulos a orar: “Pai nosso que estás nos céus …” Um pouco antes da
Sua crucificação, Ele também os instruiu a pedir em Seu nome: “Tudo
quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. Até agora
nada pedistes em meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo
se cumpra” ( Jo 16:23-24).
A oração relatada em Atos 4:24-31 ocorreu depois do confronto
perto da Porta Formosa do Templo em Jerusalém; e depois de Pedro e
João terem passado uma noite na prisão. Depois de serem ameaçados
e soltos, “foram para os seus”. Ali eles relataram os acontecimentos e

* MORRIS, ibid. Pág. 149, citando Davies, Unknown Sayings of Jesus.


168 A glória da oração

o grupo reunido participou coletivamente em oração, uma oração que


fez tremer o lugar onde estavam reunidos (At 4:31). Na Porta Formosa
eles tinham agido em Seu nome, como o resultado maravilhoso provou;
agora eles iriam pedir em Seu nome. A oração não foi uma oração pes-
soal no lugar secreto, mas um exemplo notável de oração coletiva.
Eles obviamente oraram ao Pai, como mostram as três referências
ao “Teu santo Filho Jesus” (At 4:26, 27, 30). Eles não O chamaram
de “Pai”, mas usaram uma palavra menos comum* traduzida “Senhor”
que tem o significado específico de “Mestre … no sentido de Soberano
Dono e ordenador de tudo”.† Naquela ocasião, todos eles não tinham,
obviamente, entendido plenamente o gozo de conhecer a Deus como
Pai. Ainda não ouvimos as lindas palavras “Aba Pai”, nem ouvimos
“nosso Pai” sendo descrito como “o Deus e Pai do nosso Senhor Jesus
Cristo”. Entretanto, quando as epístolas foram escritas, achamos Pedro,
Paulo e os outros escritores do Novo Testamento usando “Pai” em ora-
ção e em ações de graças (Rm 15:5, 6; II Co 1:3; Ef 1:3; Tg 1:17, I Pe
1:3).
Mas será que aprenderam com a oração dos discípulos? Os quatro
princípios fundamentais que o Senhor revelou na oração dos discípulos
são vistos no incidente mencionado em Atos 4:
• Máxima reverência ao se aproximar do Pai — na sua confissão: “Tu
és o Deus que fizeste o céu …” (At 4:24);
• O devido reconhecimento da primazia da Sua vontade — no seu
reconhecimento: “…. tudo que a tua mão e o teu conselho tinham
anteriormente determinado que se havia de fazer” (At 4:28);
• Os requisitos imediatos da vida diária como conhecidos pelos Seus
filhos quando “os reis da terra, e os príncipes” se opõem “ao teu
santo Filho Jesus, que Tu ungiste” (At 4:25-27); enquanto pedem:
“Concede aos teus servos que falem com toda a ousadia” (At 4:29);
enquanto buscam poder para que “se façam sinais e prodígios” (At
4:30).
• Uma resposta apropriada à luz da Sua grandeza — manifestada
pelo Pai ao fazer o lugar tremer; ao enchê-los do Espírito Santo, e
a ousadia do seu testemunho.
Aqueles primeiros discípulos tinham aprendido muito do Senhor e
* No grego, despótes. É usado em relação a Deus em Lc 2:29; I Pe 2:1; Judas 4; Ap 6:10.
† KELLY, W. The Acts of the Apostles. Londres: C. A. Hammond, 1952, pág. 44.
Cap. 9 — A oração dos discípulos 169

daqueles que estiveram com Ele “todo o tempo em que o Senhor Jesus
entrou e saiu dentre [eles] … começando desde o batismo de João até
ao dia em que de entre [eles] foi recebido em cima” (At 1:21-22). Eles
tinham aprendido a orar a oração dos discípulos.

Uma oração incomparável


William Kelly disse sobre esta oração dos discípulos: “… Não há,
e nunca houve, uma oração comparável” àquela oração que o Senhor
ensinou aos Seus discípulos. Ele acrescenta:
Também não há, na minha opinião, nenhuma petição naquela ora-
ção que não sirva como modelo para as orações dos Seus seguido-
res desde aquele tempo; tudo permanece verdadeiro e aplicável a
todos os tempos — pelo menos até que venha o Reino do nosso Pai.*

Vamos aprender aos pés do mesmo Senhor que disse: “Quando ora-
res …”, quando Ele ensinou os Seus discípulos a orar. Que liberdade
Cristo apresentou aos Seus discípulos daquele dia e, por meio dos Seus
servos, a nós, que diariamente, na rotina normal da vida, e em tempos
de grande pressão, a cada hora ou a cada minuto, podemos dizer: “Pai
nosso”.

* KELLY, W. Lectures Introductory to the Study of the Gospels. Londres: W. H. Broom, 1867, pág.
606.
Cap. 10 — As orações do Senhor
no Evangelho de Lucas
Por David E. West, Inglaterra

Introdução
Lucas, o médico amado, escrevendo seu “primeiro tratado” sob ins-
piração divina, apresenta o Senhor Jesus como o Filho do Homem; de
fato, ele O revela como o Homem perfeito. Davi exorta seus leitores:
“Observa o homem íntegro e atenta no que é reto” (Sl 37:37), e é isto
que Lucas faz no seu Evangelho. Mas, mesmo ao fazer isto, o Espírito
Santo cuidadosamente protege a Divindade do Senhor Jesus, e assim
a palavra do anjo Gabriel a Maria foi: “Por isso também o Santo, que
de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc 1:35). É relatado
que até mesmo os demônios disseram a Ele: “Tu és o Cristo, o Filho
de Deus” (Lc 4:41). Os membros do Sinédrio disseram coletivamente
a Ele: “Logo, és tu o Filho de Deus?” e o Senhor respondeu afirmativa-
mente: “Vós dizeis que eu sou” (Lc 22:70). Nós nos prostramos perante
Ele em adoração e usamos as palavras do escritor do hino,
Verdadeiramente Deus, no entanto feito verdadeiramente humano. (Henry
d’Arcy Champney)
O Homem perfeito deste Evangelho era um Homem dependente;
esta era uma característica da Sua perfeição. O Evangelho de Lucas tem
sido descrito como o Evangelho sacerdotal; começa com uma referência
a um sacerdote, Zacarias, “exercendo o sacerdócio diante de Deus” (Lc
1:8); termina com o Senhor Jesus no Seu caráter sacerdotal, quando Ele
estava para ser elevado aos Céus, e lemos que “levantando Suas mãos,
os abençoou” (Lc 24:50). Embora o Senhor Jesus não Se tornou, ofi-
cialmente, sacerdote até que ocupou o Seu lugar a destra do Pai, onde
Ele está “vivendo sempre para interceder” (Hb 7:25), no entanto havia
características sacerdotais nEle quando Ele esteve aqui na Terra.
Assim, entre os escritores dos Evangelhos, é Lucas que mais des-
taca a vida de oração deste Homem dependente. Há onze referências
a Ele orando, e nove destas referências somente são encontradas neste
Cap. 10 — As orações do Senhor no Evangelho de Lucas 171

Evangelho. Em seis destas ocasiões somos simplesmente informados


que Ele orou, ou estava orando: 3:21, 22; 5:16; 6:12; 9:18, 28, 29; 11:1,
2. Ouvimos as Suas palavras de ações de graças ao Pai enquanto se
regozijou em espírito (10:21-22). Ele informou Pedro que tinha orado
por ele (22:31-32). Ele orou no monte de Oliveiras, antes de ir para o
Calvário; nesta ocasião ouvimos o conteúdo da Sua oração (22:41-45).
Finalmente, as palavras que Ele falou da cruz são relatadas, dirigidas
novamente ao Pai; primeiramente pedindo o perdão para aqueles que
O estavam crucificando (23:34), e depois entregando o Seu espírito nas
mãos do Pai (23:46).

Orando no rio Jordão


“E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado
também Jesus, orando ele, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu
sobre ele em forma corpórea, como pomba; e ouviu-se uma voz do céu,
que dizia: Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo” (Lc 3:21-22).
Esta é a primeira menção no Evangelho de Lucas do Senhor Jesus
orando. Para o povo, era um batismo para o arrependimento — João Batista
diz a eles: “E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento”
(Mt 3:11), e o povo confessava o seu pecado: “E todos eram batizados por
ele no rio Jordão, confessando os seus pecados” (Mc 1:5). O Senhor não
tinha pecados para confessar, e Ele não tinha nada do que Se arrepender. O
Seu batismo no Jordão com o povo (observe a palavra “também”) foi uma
figura do Seu batismo de sofrimento no Calvário, pelo povo; assim mais
tarde Ele diz: “Importa, porém, que seja batizado com um certo batismo; e
como me angustio até que venha a cumprir-se!” (Lc 12:50).
“Sendo batizado também Jesus, orando ele …” — esta colocação,
profundamente interessante, é encontrada somente no Evangelho de
Lucas. Sua oração, aqui, revela um espírito de submissão e de depen-
dência em Deus, desde o início do Seu ministério público. O Céu era
testemunha de tudo que estava acontecendo. De fato, a reação do Céu
mostra que o Pai ouviu a oração do Seu Filho; Ele sempre era ouvido
quando Ele orava. Ele disse: “Pai, graças te dou, por me haveres ouvi-
do. Eu bem sei que sempre me ouves” ( Jo 11:41-42). Aqui estamos na
presença de Pessoas divinas, e tendo o próprio Senhor sido batizado,
“o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba”,
e a voz do Pai foi ouvida do Céu. Aqui, como no relato de Marcos, as
palavras são faladas pessoalmente ao Filho: “Tu és meu Filho amado,
172 A glória da oração

em ti me comprazo”. Assim temos o Filho falando em oração ao Pai, e


o Pai, com prazer, falando com Seu Filho.

Orando no deserto
“Ele, porém, retirava-se para os desertos e ali orava” (Lc 5:16).
No seu Evangelho, Lucas nem sempre apresenta seu relato na or-
dem cronológica, mas numa ordem espiritual ou moral. “Pareceu-me
também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por
sua ordem” (Lc 1:3). Assim, aqui no cap. 5 a retirada do Senhor para
orar no deserto segue o relato da cura do homem “cheio de lepra”. Em
seguida lemos: “Sua fama, porém, se propagava ainda mais, e ajuntava-
-se muita gente para o ouvir e para ser por ele curada das suas enfermi-
dades” (v. 15).
Foi então que Ele “retirava-se [sem chamar atenção] para os deser-
tos e orava”. A palavra “orava” está aqui no tempo verbal que indica uma
ação contínua ou repetida. A comunhão entre o Pai e o Filho era contí-
nua, mas é evidente que às vezes Ele, especificamente, recorria à oração
com o Pai. Assim, em tempos de popularidade, o Senhor se apartava da
multidão e procurava a solidão do lugar deserto.
Há lições aqui que devemos aprender. Precisamos de um lugar se-
creto, onde podemos estar a sós com Deus; observe o princípio de fechar
“a tua porta” e orar ao teu Pai “que está em secreto” (Mt 6:6). Quanto
mais estivermos expostos perante o olhar público, mais precisaremos ir
ao lugar secreto diante de Deus.

Orando no monte (1)


“E aconteceu que naqueles dias subiu ao monte a orar, e passou a
noite em oração a Deus” (Lc 6:12).
Devemos notar bem a frase “naqueles dias”. No contexto somos
informados que “aconteceu também noutro sábado, que entrou na si-
nagoga, e estava ensinando; e havia ali um homem que tinha a mão
direta mirrada. E os escribas e fariseus observavam-no, se o curaria no
sábado, para acharem de que o acusar” (vs. 6-7). Controvérsia pode ser
algo muito cansativo; naqueles dias estes líderes religiosos hipócritas es-
tavam constantemente espionando o Senhor, se colocando em oposição
a Ele. Por isso, Ele deixou a cena de controvérsia e “subiu ao monte a
orar”. O uso aqui do artigo definido — “o monte” — indica que o lugar
Cap. 10 — As orações do Senhor no Evangelho de Lucas 173

era bem conhecido. O monte é um lugar de onde tudo pode ser visto na
sua perspectiva correta.
Esta é a única vez que lemos que o Senhor Jesus passou a noite toda
em oração. Lucas é, também, o único evangelista que menciona esta
noite de oração. O motivo desta comunhão também estava, evidente-
mente, ligado com a escolha que Ele estava prestes a fazer, “… quando
já era dia” (Lc 6:13). Ele iria escolher de entre Seus discípulos aqueles
que seriam separados de forma especial, e a quem Ele daria o nome de
apóstolos. Será que o Senhor estava orando pedindo direção para esta
escolha? Sendo que Ele sabia todas as coisas, com certeza Ele estava
orando a favor daqueles a quem Ele escolheria.
Se Ele, sendo o Filho de Deus, Se ocupou em intercessão sincera
antes de tomar grandes decisões como a escolha dos Seus apóstolos,
quanto mais devemos nós fazer o mesmo?

Orando sozinho
“E aconteceu que, estando ele só, orando, estavam com ele os dis-
cípulos; e perguntou-lhes, dizendo: Quem diz a multidão que eu sou?”
(Lc 9:18). O Senhor tinha alimentado, milagrosamente, “quase cinco
mil homens” (v. 14), como Lucas diz, com o recurso aparentemente
escasso de “cinco pães e dois peixes” (v. 16). Agora, deixando a multi-
dão, Ele Se retira para um lugar solitário. “Estando ele só, orando”, mas
“estavam com ele os discípulos”. Evidentemente os discípulos estavam
por perto, mas Ele estava ocupado em oração particular ao Seu Pai; a
palavra “só” realmente pode ser traduzida “em particular”.
Nunca lemos do Senhor Jesus orando com os Seus discípulos. Ele
orou por eles, ele orou na presença deles e Ele os ensinou a orar, mas a
Sua vida de oração era distinta. Devemos observar que quando Ele en-
sinou os Seus discípulos a dizer: “Pai nosso …” (Mt 6:9), Ele não estava
Se incluindo no pronome possessivo “nosso”.
Também não sabemos sobre o que Ele orava, simplesmente que
Ele orava. Entretanto, agora Ele está para informar aos Seus discípu-
los que Ele seria morto. “É necessário que o Filho do Homem padeça
muitas coisas, e seja rejeitado dos anciãos e dos escribas, e seja morto,
e ressuscite ao terceiro dia” (Lc 9:22). Será que, nesta ocasião, Ele orou
por estes discípulos que iriam testificar dEle?
Entretanto, depois de passar algum tempo sozinho em oração, Ele
então pergunta aos Seus discípulos: “Quem diz a multidão que eu sou?”
174 A glória da oração

Devemos observar com cuidado que quando o Senhor faz perguntas,


nunca é porque Ele não sabe as respostas, pois Ele é onisciente. Seu
propósito ao fazer estas perguntas sempre é extrair dos Seus ouvintes
seus próprios pensamentos e sentimentos. Isso é evidente aqui, pois em
seguida o Senhor Jesus pergunta aos próprios discípulos: “E vós, quem
dizeis que eu sou?” (Lc 9:20). Pedro com confiança confessa que Ele é
“o Cristo de Deus”, o Ungido, o prometido Messias. Nós também com
confiança afirmamos: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16:16).

Orando no monte (2)


“E aconteceu que, quase oito dias depois destas palavras, tomou
consigo a Pedro, a João e a Tiago, e subiu ao monte a orar. E, estando
ele orando, transfigurou-se a aparência do seu rosto, e a sua roupa ficou
branca e mui resplandecente” (Lc 9:28-29).
O Seu propósito em subir ao monte foi para orar. Nesta ocasião,
Ele levou consigo aqueles três discípulos favorecidos, Pedro, Tiago e
João. Estes discípulos já tinham testemunhado a ressurreição da filha
de Jairo (Lc 8:51-56); mais tarde, deixando os oito, Ele levaria “Pedro e
Tiago e João” mais para o interior do jardim do Getsêmani, quando Ele
começaria “a ter pavor, e a angustiar-se” (Mc 14:33).
Novamente, não sabemos sobre o que o Senhor Jesus orava no mon-
te, mas sabemos que “estavam falando com ele dois homens, que eram
Moisés e Elias”, e que “falavam da sua morte a qual havia de cumprir-se
em Jerusalém” (Lc 9:30-31); sem dúvida, Ele estivera falando com o Seu
Pai sobre os Seus iminentes sofrimentos no Calvário.
Foi enquanto Ele estava “orando” que “transfigurou-se a aparência
do seu rosto, e a sua roupa ficou branca e mui resplandecente”. Seu rosto
é mencionado primeiro, e depois a Sua roupa. Quando Moisés desceu
do monte Sinai, depois de ter falado com o Senhor, lemos que “olhan-
do, pois, Arão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que a pele do
seu rosto resplandecia” (Êx 34:30). Entretanto, precisamos distinguir
entre a glória refletida da presença de Deus no rosto de Moisés, e a
glória pessoal radiante do próprio Senhor Jesus. Devemos lembrar que
a glória manifestada no monte da transfiguração era a manifestação não
somente do que Ele será, mas também do que Ele é intrinsecamente.
Esta glória radiante brilhou através da Sua própria roupa, que se tornou
“branca e mui resplandecente”. Pedro, relembrando este acontecimento,
escreve: “Nós mesmos vimos a sua majestade” (II Pe 1:16); e João diz:
Cap. 10 — As orações do Senhor no Evangelho de Lucas 175

“Vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” ( Jo 1:14).


Foi enquanto Cristo orava que “transfigurou-se [se tornou outro]
a aparência do seu rosto”. E nós? Paulo escreve: “Todos nós, com ros-
to descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos
transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espí-
rito do Senhor” (II Co 3:18).

Agradecendo o Pai
“Naquela mesma hora se alegrou Jesus no Espírito Santo, e disse:
Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coi-
sas aos sábios e inteligentes, e as revelaste às criancinhas; assim é, ó Pai,
porque assim te aprove. Tudo por meu Pai foi me entregue; e ninguém
conhece quem é o Filho senão o Pai, nem quem é o Pai senão o Filho, e
aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Lc 10:21-22).
Embora Lucas seja o Evangelho do “Homem de dores”, também é
um Evangelho de gozo e de louvor. Nas circunstâncias de Jesus de Naza-
ré houve dores, entretanto no Seu espírito havia exultação. Lemos aqui:
“Naquela mesma hora se alegrou Jesus no Espírito Santo”; o tempo é
um elemento importante na narrativa de Lucas dos movimentos de Cris-
to. Ele tinha pronunciado “Ais” sobre aquelas cidades que O rejeitaram.
Entretanto, o Senhor tinha designado setenta discípulos, e “mandou-os
adiante da sua face … a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir”
(Lc 10:1). Os setenta “voltaram … com alegria”; eles tinham provado o
poder do nome do Senhor, e diziam: “Senhor, pelo teu nome, até os de-
mônios se nos sujeitam” (Lc 10:17). O Senhor Se regozija com eles.
Nesta oração de ações de graças, Ele fala ao Pai de uma maneira
íntima, mas Ele também usa o título mais elevado de poder e majestade
no universo: “Senhor do céu e da terra”. Ele agradece ao Pai por aqueles
cujos olhos foram abertos para os valores das coisas que Ele ensinava.
Estas coisas ficaram escondidas dos sábios do mundo: “Escondeste es-
tas coisas aos sábios e inteligentes”. Mas, às “criancinhas”, aqueles que
em simplicidade estavam dispostos a ouvir e aprender, os Seus mistérios
foram revelados: “As revelaste às criancinhas”. A razão disto era a von-
tade soberana do Pai: “Assim é, ó Pai, porque assim te aprouve”.
O regozijo e ações de graças ao Pai continuam no versículo seguin-
te. Todos os propósitos e planos divinos foram entregues nas mãos do
Filho: “Tudo por meu Pai me foi entregue”. Somente o Pai conhece o
Filho: “Ninguém conhece quem é o Filho, senão o Pai”; há coisas sobre
176 A glória da oração

o Filho que são inescrutáveis para nós. É maravilhoso apreciar que do


conhecimento que o Filho tem do Pai, Ele está disposto a revelar isto a
quem Ele quiser: “Ninguém conhece … quem é o Pai senão … aquele a
quem o Filho o quiser revelar”.

Orando num certo lugar


“E aconteceu que, estando ele a orar num certo lugar, quando aca-
bou, lhe disse um dos seus discípulos: Senhor, ensina-nos a orar, como
também João ensinou aos seus discípulos” (Lc 11:1).
O Senhor estava orando “num certo lugar”; não sabemos onde, mas
as palavras parecem indicar que “Jesus muitas vezes se ajuntava ali” ( Jo
18:2). Nesta ocasião o conteúdo da Sua oração não é relatado. A frase
“quando acabou”, sugere que os discípulos esperaram até que Ele con-
cluísse a Sua oração. Quem interromperia tal comunhão do Filho com
o Pai?
O Senhor Jesus é o exemplo supremo de um Homem de oração,
como também de qualquer outra virtude e graça. A Sua oração encora-
java outros a orar. Os discípulos sentiram a sua necessidade de oração,
e o fato que “João ensinava aos seus discípulos” a orar estimulou este
desejo. Não temos nenhum outro relato de João Batista ensinando seus
discípulos a orar, mas a evidência dada aqui é suficiente. O próprio João
era, evidentemente, um homem de oração, e seus seguidores aprende-
ram do seu exemplo.
Um dos seus discípulos Lhe disse: “Senhor, ensina-nos a orar”. Este
pedido mostra que os discípulos reconheceram o Seu Senhorio, e nesta
ocasião sentiram a sua necessidade de oração. O pedido não foi: “Ensi-
na-nos como orar” — a ênfase não está sobre algum método, nem sobre
algum assunto de oração, nem, de fato, sobre uma fórmula a ser usada,
mas sobre o ato de orar. É possível entender o que as Escrituras ensinam
sobre a oração e saber como orar, mas ainda não ser um homem ou uma
mulher de oração.
Embora aqui, como já vimos, os discípulos disseram: “Ensina-nos a
orar”, sem dúvida este pedido incluiu o fato de orar e também o método,
pois o Senhor bondosamente concordou com o seu pedido, e lhes deu
um modelo de oração. Como James M. Flanigan escreve:
Em geral havia certas características que deveriam caracterizar
as suas orações. Deveria haver brevidade com beleza, simplicida-
de com sinceridade, intimidade com dignidade, inteligência com
Cap. 10 — As orações do Senhor no Evangelho de Lucas 177

reverência, e tudo num espírito de dependência com intenções de


obediência.*

Orando por Simão


“Disse também o Senhor: Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu
para vos cirandar [peneirar, ARA] como trigo; mas eu roguei por ti,
para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma
[fortalece, ARA] teus irmãos” (Lc 22:31-32).
É “o Senhor” que dá o aviso: “Simão, Simão, eis que [chamando a
sua atenção] Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo”. O uso
duplo do seu nome natural deve ser notado. Embora o Senhor falava
com Simão, a palavra plural “vos” sugere que nesta ocasião Satanás de-
sejava atacar todos os apóstolos. A palavra traduzida “pediu” é uma for-
ma intensificada do verbo “pedir”, e pode ser traduzida “exigiu”. Logo
depois disto haveria um ataque Satânico tão severo que o Senhor o
descreve como trigo sendo peneirado. Todos estes discípulos, apesar das
suas falhas, não eram palha ( Judas Iscariotes não estava presente); eram
o genuíno trigo de Cristo. Deve ser entendido que ser peneirado pelo
próprio Satanás é uma experiência que poucos cristãos terão enfrentado.
É um grande consolo saber que o próprio Cristo está ciente deste
ataque antes dele acontecer. Ele já tinha rogado por Simão: “Eu roguei
por ti, para que a tua fé não desfaleça” (isto é, não falhe completamente).
A oração do Senhor Jesus foi uma súplica perfeita diante do Seu Pai, e
foi respondida. Simão enfrentou Satanás; ele não escapou da provação.
Sua coragem falhou, mas a sua fé não desfaleceu.
“Pedro” (o que ele era por chamado divino), como ele é chamado no
v. 34, foi restaurado à comunhão com seu Senhor; como discípulo ele
foi “convertido”, e através do seu ministério oral e escrito, ele foi capaz
de “fortalecer” os seus irmãos.
Devemos valorizar muito o ministério sacerdotal de Cristo, aquele
que “vive sempre para interceder” por nós. Mesmo quando não perce-
bemos os perigos à nossa frente, Ele sabe da nossa necessidade e faz
provisão, antecipada, para a nossa defesa.

Orando no Monte das Oliveiras


“E apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joe-

* FLANIGAN, James M. Scripture Sevens — Volume 2. Kilmarnock: John Ritchie Ltd., 2007.
178 A glória da oração

lhos, orava, dizendo: Pai, se quiseres, passa de mim este cálice; todavia
não se faça a minha vontade, mas a tua. E apareceu-lhe um anjo do céu,
que o fortalecia. E, posto em agonia, orava mais intensamente. E o seu
suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão” (Lc
22:41-44).
Lucas nos informa que “saindo, foi, como costumava, para o Monte
das Oliveiras; e também seus discípulos o seguiram” (Lc 22:39); ele não
menciona, como Mateus e Marcos, “o lugar chamado Getsêmani”. Aqui
nos encontramos em terra santa, e assim prosseguimos reverentemente,
tirando as sandálias dos nossos pés. Ele “apartou-se deles” (dos Seus
discípulos), ou mais literalmente: “Ele foi afastado deles”, e isto por
causa da intensidade da Sua tristeza. Somente Lucas nos informa que a
distância da Sua separação era “cerca de um tiro de pedra”. Então lemos
que Ele, “pondo-se de joelhos, orava”. Mateus relata, “Ele … prostrou-
-se sobre o seu rosto, orando” (Mt 26:39), e Marcos escreve: “Prostrou-
-se em terra, e orou” (Mc 14:35).
O Espírito Santo, por meio de Lucas, não nos dá os detalhes das
três orações do Senhor Jesus, como temos no relato de Mateus, antes
ele nos dá um resumo de todas elas. “Pai, se quiseres, passa de mim este
cálice” — estas palavras revelam a sensibilidade do Seu coração perfeito
recuando de tudo que estava adiante dEle. No entanto, ao enfrentar a
cruz e tudo que isto traria, Ele não manifestaria vontade própria: “To-
davia não se faça a minha vontade, mas a tua”. O escritor aos Hebreus
descreve esta experiência com as seguintes palavras: “O qual, nos dias
da Sua carne, oferecendo, com grande clamor e lágrimas, orações e sú-
plicas ao que o podia livrar da morte, foi ouvido quanto ao que temia”
(Hb 5:7).
Lucas fala do ministério angelical: “E apareceu-lhe um anjo do céu,
que o fortalecia”, que deve se referir a um fortalecimento físico. O mes-
mo escritor relata que ele Se agonizou em oração: “Posto em agonia”, o
que indica emoção intensa, pressão severa e angústia. Perspirando en-
quanto orava, o Seu suor, pesado como grandes gotas de sangue, escorria
do Seu rosto ao chão. Seria difícil comentar sobre as palavras “orava
mais intensamente”, pois Suas orações eram sempre intensas e since-
ras; nunca houve qualquer relaxo no Seu esforço, nem afrouxamento
no compromisso. Que fervor havia na vida de oração do Senhor Jesus!
Nunca poderemos entender as extremas agonias pelas quais o pró-
prio Senhor passou. Entretanto, Paulo diz aos santos em Colossos:
Cap. 10 — As orações do Senhor no Evangelho de Lucas 179

“Porque quero que saibais quão grande combate [no grego, agon] tenho
por vós, e pelos que estão em Laodiceia, e por quantos não viram o meu
rosto em carne” (Cl 2:10). Depois ele apela “a todos os que estais em
Roma, amados de Deus, chamados santos” (Rm 1:7): “Rogo-vos, irmãos
… que combatais [no grego, sunagonizomai] comigo nas vossas orações
por mim a Deus” (Rm 15:30).

Orando na cruz (1)


“E dizia Jesus: Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” )
Lc 23:34).
Esta, a primeira de sete coisas que o Senhor Jesus disse da cruz,
começa com a mesma palavra que Ele usou na oração anterior: “Pai” (Lc
23:46). Este Homem bendito podia falar com Deus como Seu Pai. O
uso correto de nomes e títulos divinos é importante; aqui o título “Pai” é
um de comunhão. As palavras “Deus meu, Deus meu” foram usadas por
Ele quando Ele estava sofrendo o juízo relacionado ao pecado.
“E dizia Jesus”, na ocasião quando o pecado do homem ao rejeitá-
-lO e crucificá-lO chegou ao seu auge; o verbo “dizia” está no tem-
po imperfeito, que indica que Ele falava continuamente estas palavras
enquanto os soldados estavam pregando-O na cruz. A palavra grega
traduzida “perdoa” tem o significado de “deixar como está”, ou “refrear”;
Ele estava pedindo que o Pai refreasse o juízo que Seus atormentadores
mereciam. Maldição, retaliação e o desejo de vingança são reações natu-
rais aos sofrimentos infligidos injustamente por outros. Entretanto, sem
qualquer amargura nem a mínima recriminação, o Senhor orou pelos
seus executores; consistente com o Seu próprio ensino — “amai a vossos
inimigos, bendizei os que vos maldizem” (Mt 5:44) — o Senhor pediu o
perdão para aqueles que O estavam crucificando. Neste versículo, as pa-
lavras “lhes” e “eles” (oculto) parecem se referir aos soldados; Ele apre-
senta a ignorância humana como uma razão para perdoar: “Porque não
sabem o que fazem”. Assim Cristo cumpriu a palavra profética escrita
por Isaías séculos antes: “E intercedeu pelos transgressores” (Is 53:12).

Orando na cruz (2)


“E, clamando Jesus com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entre-
go o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou” (Lc 23:46).
Lucas relata que o Senhor Jesus clamou em alta voz antes de entre-
180 A glória da oração

gar o Seu espírito ao Pai. Ele finalizou as Suas palavras na cruz como
Ele começou — falando com Seu Pai. Estas últimas palavras do Senhor,
antes da Sua morte, são uma citação do Salmo 31:5: “Nas tuas mãos
encomendo o meu espírito; Tu me redimiste, Senhor Deus da verdade”,
com as quais Davi expressou a sua inabalável confiança em Deus. Mas
aqui, o Salvador iniciou a citação com a palavra “Pai”, uma expressão
que nenhum salmista teria ousado usar ao falar com Deus.
As palavras do Senhor foram muito apropriadas. Aquela citação
fazia parte das orações judaicas da tarde, e parece que foi no horário
da oração da tarde que o Salvador falou estas mesmas palavras (veja At
3:1). Ele calmamente concluiu a vida na Terra com as mesmas palavras
que os homens concluíam o seu dia. A morte para Ele foi inteiramente
voluntária: “Dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira
de mim, mas eu de mim mesmo a dou” ( Jo 10:17-18). Aquele que tinha
sido “entregue nas mãos de homens pecadores” (Lc 24:7), agora Se en-
tregou nas mãos do Pai.
Esta palavra de confiança tranquila tem trazido muita consolação,
a muitos, na hora da morte. Uma forma modificada destas palavras foi
usada por Estevão, quando ele estava sendo apedrejado: “Senhor Jesus,
recebe o meu espírito” (At 7:59).

Conclusão
Temos observado que Lucas, no seu Evangelho, apresenta o Senhor
Jesus como o Filho do Homem; aliás, ele O revela como o Homem
perfeito. Mas o Homem perfeito deste Evangelho era um Homem de-
pendente, e Lucas destaca a Sua vida de oração — temos notado que há
mais referências ao Senhor orando neste Evangelho do que em qual-
quer outro.
Se o Senhor Jesus precisava orar, com certeza nós precisamos
orar também, e as epístolas do Novo Testamento constantemente nos
exortam a fazer isso. Assim lemos: “Perseverai na oração” (Rm 12:12);
“Orando em todo o tempo com toda a oração e súplica no Espírito” (Ef
6:18); “… as vossas petições sejam, em tudo, conhecidas diante de Deus
pela oração e súplica, com ações de graças” (Fp 4:6); “Perseverai em
oração” (Cl 4:2); “Orai sem cessar” (I Ts 5:17). Que sejamos obedientes
a estas exortações!
Cap. 11 — A oração do Filho
de Deus em João 17
Por William M. Banks, Escócia

Introdução
Davi teve a honra sagrada de ouvir comunicações entre Pessoas di-
vinas nas Escrituras do Velho Testamento: “Disse o Senhor ao meu
Senhor …” (Sl 110:1). Temos esta mesma honra hoje. João 17 é um dos
capítulos mais sagrados da Bíblia toda. O Filho está Se comunicando
com o Pai, e nós temos permissão para ouvir. Ele fora ouvido antes (veja
Lc 11:1), e quando Ele parou de orar um dos discípulos, muito impres-
sionado, disse: “Senhor, ensina-nos a orar”. O conteúdo daquela oração
não é dado, mas o Senhor usou a ocasião para ensinar alguns princípios
básicos sobre a oração. Realmente, são muito poucas as ocasiões quando
podemos ouvir o Senhor orando. Conhecemos o conteúdo das Suas
orações no Getsêmani, mas é quase só isso. Algumas das Suas orações
foram antecipadas no Velho Testamento, como, por exemplo, o Salmo
22. Aqui em João 17, podemos ouvir por nós mesmos e ficar admirados
com a intimidade e o estilo incomparáveis desta comunicação.
O contexto da oração também tem uma importância profunda. Ele
acabara de apresentar o Seu “Ministério no Cenáculo”, nos caps. 13 a
16, e agora Ele se dedica a um tempo de oração profundamente de-
vocional. Talvez uma das razões por que o nosso ministério não é tão
eficaz como deveria ser, é por causa da falta de oração depois da entrega
do ensino.
Seria impossível, no espaço disponível, falar sobre a oração numa ex-
posição detalhada. Livros inteiros têm sido dedicados a isto, por exem-
plo, o livro escrito por John Brown*. O nosso propósito será examinar
alguns dos tópicos principais contidos na oração, e aprender algumas
verdades doutrinárias e práticas. Examinaremos os seguintes assuntos:
• A maneira como o Filho Se dirige ao Pai;
* BROWN, J.. An Exposition of Our Lord’s Intercessory Prayer. Klock and Klock, 1978, Reim-
pressão.
182 A glória da oração

• A localização do Filho identificada ;


• O assunto de glória no capítulo;
• Os vários grupos de sete;
• A unidade tríplice enfatizada;
• As associações em glória.

A maneira como o Filho Se dirige ao Pai


Há três partes principais na oração, e em cada uma o Senhor Je-
sus Se dirige ao Pai de uma maneira diferente, apropriada ao assunto.
Poucos títulos divinos são usados, algo que faríamos bem em imitar.
Somente seis vezes na oração isso ocorre, como segue:
• O Filho e o Pai (vs. 1-5). O titulo usado é “Pai” (veja o v. 5, e tam-
bém o v. 1).;
• O Filho e os discípulos (vs. 6-19). O titulo usado é “Pai Santo” (v.
11);
• O Filho e aqueles que creriam depois de Pentecostes (vs. 20-26). O
título usado é “Pai Justo” (v. 25, mas veja também vs. 21, 24).
Em cada caso vemos claramente que o adjetivo é importante. Na
primeira parte temos um apelo ardente, “Ó Pai”, para que haja a reto-
mada da glória “que tinha contigo antes que o mundo existisse”.
Na segunda parte o assunto focaliza (entre outras coisas) na san-
tificação dos discípulos (veja vs. 17, 19). O titulo “santo” usado para o
Pai nesta parte, que indica santidade, separação e pureza, como também
majestade e veneração, é muito apropriado neste contexto.
Na terceira parte o assunto é uma demonstração de glória num
mundo injusto que “não conheceu” o Pai (v. 25). O uso do nome “Pai
Justo” (v. 25) é muito apropriado, como visto no v. 26: “E eu lhes fiz
conhecer [os que creram, para que eles o declarassem a outros] o teu
nome…”. Eles deveriam refletir o Seu caráter justo neste mundo in-
justo.
Vários outros detalhes surgem desta consideração. Em primeiro
lugar, títulos divinos são usados sem muita frequência, reverentemente
e apropriadamente. Nunca há vãs repetições. Cada referência tem um
significado cuidadoso e profundo.
Em segundo lugar, o titulo usado é “Pai”, não “Jeová”. O título
“Pai” separa o cristão do incrédulo, enquanto o nome “Jeová” separa o
judeu do gentio. Além disso, o nome Jeová é especificamente ligado ao
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 183

Velho Testamento, enquanto que a palavra Pai é um título específico do


Novo Testamento, com conotações profundas, simples e calorosas.
Em terceiro lugar, e de grande importância, a maneira de nos di-
rigir a Deus deve sempre ser na segunda pessoa* do singular: Tu, Teu,
Tua. Devemos observar que esta é a linguagem bíblica, não somente
a linguagem de 1611 quando a AV foi traduzida. Isto pode ser con-
firmado ao consultar o prefácio da AV, onde apenas no primeiro pa-
rágrafo, quatro vezes é usado o pronome “Your” para se referir ao rei
Tiago, e não “Thy”. Não seria assim se a forma comum fosse usando
a segunda pessoa do singular. Assim, para ser bíblico, devemos usar a
segunda pessoa do singular em nossas orações. Modificar isto, baseado
em argumentos falsos e sem fundamento bíblico, é somente mais uma
indicação da atitude descuidada que está infiltrando muitos aspectos da
vida das igrejas, e que está prejudicando o seu testemunho. Na minha
experiência, a culpa pelo enfraquecimento nas igrejas locais é daqueles
que se distanciam da verdade e introduzem práticas não bíblicas. Fre-
quentemente isto acontece por causa de ligações com as denominações,
que causam a recusa de aceitar a singularidade e distinção do testemu-
nho das igrejas locais.
Em quarto lugar, a ocorrência geral da palavra “nome” na oração
deve ser notada (vs. 6, 11, 12, 26). Como veremos, a importância disso
está no fato que a palavra indica a revelação da Pessoa no contexto es-
pecífico sendo considerado. Como já notamos, no v. 26 nosso Senhor
diz: “E eu lhes fiz conhecer o teu nome”. O nome neste contexto é “Pai
Justo” (v. 25). Num mundo que não conheceu esta qualidade de justiça
e para o qual os discípulos seriam enviados, isto era realmente uma re-
velação necessária.

A localização do Filho identificada


Nesta oração, o Senhor Jesus usa linguagem que é realmente sur-
preendente. Devemos observar a Sua mudança de localização.
• Ele está “no mundo” fisicamente (v. 13). O Seu propósito em falar
aqui é claro: é para que Seus discípulos “… tenham a minha alegria

* Como dito na nota à página 112, a gramática do português é bem diferente. Sendo assim,
o argumento gramatical apresentado aqui não se aplica no português, mas mantivemos os
parágrafos para enfatizar o fato importante que devemos nos dirigir a Deus usando formas
respeitosas de tratamento (no português, usando o pronome “tu”, e nunca “você”). (N. T.)
184 A glória da oração

completa em si mesmos”. É um fato maravilhoso que Ele está lem-


brando do desejo que Seus discípulos tenham alegria como resulta-
do da Sua oração, mesmo em circunstâncias onde Ele mesmo está
prestes a entrar na mais profunda tristeza.
• Ele diz: “não estou mais no mundo” (v. 11). É difícil para nós en-
tendermos uma afirmação como esta. Parte da linguagem usada em
outras partes da oração nos ajuda. Observe o progresso indicado:
• Ele, “levantando Seus olhos ao [eis, “para dentro do”] céu” (v. 1);
• Vida já vivida; obra já “consumada” (v. 4);
• “Agora vou para ti” (v. 13) — veja também v. 11: “eu vou para ti”.
• Ele está com o Pai — “onde eu estiver” (v. 24). O falecido Sr. Al-
bert Leckie explicou: “No final, o Seu espírito foi para onde, antes,
somente Seus olhos tinham chegado”. A hora da Sua glorificação (v.
1) tinha chegado. Um Homem na Terra, mas já no Céu e com um
ardente desejo de ter os Seus com Ele: “Quero que, onde eu estiver,
também eles estejam comigo”. E a perspectiva é realmente maravi-
lhosa — “para que vejam a minha glória”. Esta é uma glória que é
incomunicável, mas que pode ser a causa de admiração e, portanto,
de adoração!

O assunto de glória no capítulo


A ideia de glória aparece pelo menos oito vezes no capítulo: vs. 1
(duas vezes), 4, 5 (duas vezes), 10, 22 e 24. Aspectos diferentes de glória
são enfatizados. Nos vs. 1, 22 e 24 é glória pessoal em seus vários aspec-
tos. Nos vs. 4 e 10 é glória manifestada, e no v. 5 é a Sua glória antes da
Criação. Brown define glória como “a excelência manifestada”, e isto é
uma boa descrição do que está incluído nas passagens que seguem. A
“glória” inclui, obviamente, todas as variedades de excelência que po-
dem ser antecipadas: beleza, impecabilidade, pureza, graça — de fato,
todas as virtudes associadas com o “fruto do Espírito”, mencionadas em
Gálatas 5.
Glória pessoal
Esta glória pessoal tem vários aspectos.
Glória pessoal futura
No v. 1 a ideia é a da inauguração da hora da Sua glorificação pelo
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 185

Pai. Esta “hora” já foi mencionada sete vezes no Evangelho de João


(veja 2:4; 7:30; 8:20; 12:23; 12:27, duas vezes; 13:1). Parece que sem-
pre se refere à mesma hora. Inclui a Sua morte, Sua ressurreição, Sua
ascensão e Sua situação atual. Cada uma é evidência da Sua “excelência
manifestada”. Ninguém, por exemplo, podia morrer a morte que Ele
morreu sem ter as qualificações notáveis de impecabilidade e santidade
absoluta essenciais para que o trono eterno de um Deus Justo pudesse
ser plenamente satisfeito, e para que fosse estabelecida a base para que a
redenção eterna estivesse disponível a pecadores escravizados.
Gloria pessoal comunicada
No v. 22 a glória pessoal em vista é aquela que será comunicada
pelo Filho por meio do Seu povo. Como veremos, isso acontecerá no
contexto do Milênio, para que “o mundo conheça que Tu me enviaste
a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim” (v. 23).
Glória pessoal incomunicável
No v. 24 a glória considerada é tal que não pode mais ser comu-
nicada — só pode ser admirada! Que dia maravilhoso aguarda o povo
de Deus, quando eles terão a honra de simplesmente gozar a revelação
contínua da glória divina, por toda a eternidade. Se a maravilha de um
lírio não pode ser plenamente apreciada, pois “nem mesmo Salomão,
em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (Mt 6:29), e o nosso
Senhor Jesus é o seu Criador, que maravilhas incontáveis aguardam o
povo de Deus nas eras infinitas da eternidade!
Glória manifestada
Nos vs. 4 e 10 o aspecto da glória que está sendo considerado é
aquele que foi manifestado pelo Senhor Jesus aos Seus. Quando o Se-
nhor disse: “Eu glorifiquei-te na terra”, Ele está Se referindo à atividade
já realizada que manifestou aquela glória. É uma glória já conhecida
pelos discípulos. Pelo menos duas vezes neste Evangelho temos refe-
rências a esta glória. Em 2:11 lemos: “Jesus principiou assim seus sinais
em Caná da Galileia, e manifestou a Sua glória”. O resultado foi que
“os Seus discípulos creram nele”. Neste caso houve uma manifestação
da Sua glória no milagre realizado. Sem dúvida, foi uma pequena ante-
cipação da fonte inesgotável de gozo que será conhecida nas condições
milenares, quando não haverá possibilidade de falta no seu suprimento;
186 A glória da oração

a sua fonte é inesgotável: “Tirai agora” (2:8). Ainda está disponível! A


segunda referência está em 11:4, 40. “Esta enfermidade não é para mor-
te, mas para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado
por ela”. Novamente o contexto é milenar, quando a morte será uma
exceção; a vida longa será o normal, e os santos ressuscitados e os vivos
gozarão da companhia uns dos outros, e as “excelências manifestadas”
do Filho serão manifestadas de modo preeminente.
Glória antes da Criação
No v. 5 a glória mencionada é aquela que o Senhor tinha antes da
Sua vinda ao mundo: “… com aquela glória que tinha contigo [para, ao
lado de, perto de] antes que o mundo existisse”. Esta é a glória que Isaías
viu: “Isaías disse isto quando viu a sua glória e falou dele” ( Jo 12:41).
Segundo Isaías, esta glória evidentemente era a santidade manifestada,
pois três vezes os serafins proclamam a santidade daquele que estava
assentado no trono (Is 6:3). O assunto de glória é uma consideração das
mais importantes na oração, e realmente ainda encontraremos “águas
profundas” quando considerarmos o assunto mais adiante.

Os vários grupos de sete


Em todo o capítulo o número sete aparece vez após vez. Talvez isso
não deveria nos surpreender, pois o selo de perfeição absoluta precisa
ser visto em tudo relacionado com o Filho. Há pelo menos três grupos
que devemos considerar.
Os sete dons dados pelo Pai ao Filho
O primeiro dom mencionado é “poder” (exousia, v. 2). A palavra
contém a ideia de “direito de agir; quando é usada de Deus é poder
absoluto e sem limite … quando usada de homens, fala de autoridade
delegada”.* O poder é sobre “toda a carne”, sobre toda criatura viva,
que neste contexto significa sobre todos os homens. Ele é supremo em
administração e supremo em soberania. Isso Lhe dá a autoridade para
“dar a vida eterna”. A conclusão clara é que a vida eterna é dada pelo Fi-
lho, não para todos, mas “a todos quantos lhe deste”. Assim, a iniciativa
é tomada em primeiro lugar por Deus, e a vida eterna é dada depois pelo

* VINE, W. E. Expository Dictionary of New Testament Words. Iowa: World Bible Publishers,
1991.
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 187

Filho. Essa talvez seja a explicação pela ordem apresentada no v. 3: “A


vida eterna é esta, que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e
a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Devemos notar o contraste entre “toda
a carne” e “todos quantos”. No primeiro caso não há restrição, mas no
segundo caso a vida eterna é somente para “todos quantos”. Que honra
estar entre os “todos quantos”!
O segundo dom é aquele que crê: “… a todos quantos lhe deste” (v.
2). Não fica claro quando esta dádiva de amor foi dada. Há sete referên-
cias a esta dádiva de amor, nos vs. 2, 6 (duas vezes), 9, 11, 12 e 24. Os
detalhes serão considerados quando o segundo grupo for examinado.
O terceiro dom é “a obra que me deste a fazer” (v. 4). Também esta
obra sétupla consumada será considerada com mais detalhes abaixo.
O quarto dom é “… tudo quanto me deste” (v. 7). No Seu mi-
nistério o Senhor tinha indicado claramente aos Seus discípulos que
a fonte da Sua supremacia e soberania era o Pai. Neste Evangelho há
mais duas referências ao fato que o Pai Lhe dera “todas as coisas”. Em
3:35 o contexto é o Espírito sem medida: “Não lhe dá Deus o Espírito
por medida” (v. 34), que O permitiu comunicar “as palavras de Deus”
(3:34), e ser a fonte da vida eterna baseada no crer (3:36). Em 13:3 o
contexto da frase “todas as coisas” é a abrangência da Sua missão. Ele
sabia “que havia saído de Deus e ia para Deus”. Foi com esta consciência
que Ele implementou os sete passos (começando com levantar-Se da
ceia e despir as vestes) que antecipavam a Sua obra como intercessor.
No contexto, foi para tratar a poluição involuntária que ocorre em pés
que, necessariamente, precisam andar por este mundo.
O quinto dom é “as palavras” (v. 8). Esta é a comunicação diária
que o Filho recebeu do Pai e que Ele então comunicou aos Seus. Mais
detalhes são dados no terceiro grupo de “sete”.
O sexto dom é “a glória” (v. 22). Este é um dom de glória: as qua-
lidades manifestadas do Senhor que podem ser compartilhadas com
os Seus; “E eu dei-lhes a glória”. O propósito é para que possa haver
evidência de uma associação entre “eles” e o Pai e o Filho. Esta demons-
tração de união perfeita e amorosa ainda será manifestada em toda a sua
plenitude. O reino vindouro dará a oportunidade para esta manifesta-
ção, e como resultado o mundo conhecerá a singularidade e plenitude
do amor divino (v. 23).
O sétimo e último dom novamente é “glória” (v. 24), entretanto
neste caso é a “gloria” que é unicamente dEle. É a “Minha glória”. Ci-
188 A glória da oração

tando o senhor Leckie novamente:


Há um Homem no céu compartilhando com o Pai toda a glória da
Divindade e ocupando uma posição que pertence exclusivamente à
Divindade, mas ainda levando no Seu corpo as marcas do Calvário,
que eternamente declararão que eu sou dEle e que Ele é meu.

É uma evidência do amor que existiu “antes da fundação do mundo”


(v. 24).
As sete referências a cristãos sendo a dádiva de amor do Pai
ao Filho
É um pensamento maravilhoso que nós, crentes no Senhor Jesus,
temos sido dados a Ele como uma dádiva de amor. Visto que “nos ele-
geu nele antes da fundação do mundo” (Ef 1:4), a dádiva provavelmente
foi dada naquele tempo. Neste contexto é dito, com razão, que
Vemos Deus operando para Sua própria glória, e para a satisfação
eterna de Seu próprio coração … Eleição, conforme o v. 4 ensina,
relaciona-se com um Deus soberano, refere-se ao passado, e diz res-
peito a pessoas; predestinação, porém, conforme o v. 5 ensina, tem
a ver com o beneplácito do Pai, refere-se ao futuro, e diz respeito à
uma posição designada para pessoas … No caso de Israel houve
também eleição e adoção de filhos, mas com esta diferença: a sua
eleição foi como nação, eram uma raça eleita; sua adoção também
foi como nação: “Israel é Meu filho” (Êx 4:22). A eleição desta era
presente é individual, como também o é a adoção de filhos. *

Assim, o pensamento é que “antes da fundação do mundo” nós éra-


mos, individualmente, intimamente conhecidos pelo coração de Deus,
e sem qualquer mérito próprio fomos dados por Ele ao Seu Filho como
dádiva de amor, para participar nas bênçãos de um relacionamento eter-
no e para ter a oportunidade de estar associados com a manifestação da
Sua glória. Em cada ocasião onde esta dádiva de amor é mencionada, há
uma associação diferente.
A primeira referência está no v. 2. Devemos observar que há três
dons neste versículo. A associação para o salvo, aqui, é a vida eterna. É
aqui que a vida realmente começa para os Seus. Se a dádiva de amor
está relacionada a Pessoas divinas, então é essencial haver vida divina.
Devemos notar que a vida eterna é vista como um dom a ser recebido
e desfrutado.

* LECKIE, A. Comentário Ritchie do NT, vol. 9. Pirassununga: Ed. Sã Doutrina, 1996, pág. 149.
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 189

A segunda referência está associada com a manifestação do nome


do Pai, no v. 6. A ideia na palavra “manifestar” (phaneroo) é tornar vi-
sível o que foi escondido, por meio de ensino ou atos. O Senhor Jesus
fez isto no Seu ministério e nos Seus milagres. Ele podia dizer: “Quem
me vê a mim vê o Pai” ( Jo 14:9). Assim, Ele manifestou o significado
do “nome”. O amor, o gozo, a paz, a mansidão do Pai, mas também a
incompatibilidade com o pecado em todas as suas formas, foram mani-
festados na linda vida e no andar do Senhor Jesus.
A terceira referência também está no v. 6. Neste caso é afirmado
que os que foram dados a Ele “guardaram a tua palavra”. É precioso
pensar na consideração do Senhor Jesus em relação aos Seus. Certa-
mente Ele poderia ter mencionado ocasiões quando problemas haviam
surgido e quando houve desvios. Entretanto, Ele considera o seu com-
portamento como um todo, e na Sua bondade diz que “guardaram a Tua
palavra”. Os discípulos ouvindo isto devem ter apreciado esta avaliação,
e ficado mais preparados para enfrentar os problemas que brevemente
iriam surgir na sua experiência.
A quarta referência indica que eles eram o assunto da oração do
Filho: “Eu rogo por eles” (v. 9). A razão dada indica uma intimidade
real: “… porque são teus. E todas as minhas coisas são tuas, e as tuas
coisas são minhas; e nisso sou glorificado”. Com certeza esta era a única
base para a permanência deles — e a nossa também! Foi a razão porque
Ele podia dizer, no v. 6, que guardaram a Palavra. O fato que Ele não
ora pelo mundo não indica uma falta de interesse, pois Ele veio para ser
o Salvador do mundo, mas indica o foco específico da Sua oração nesta
ocasião. Com certeza é uma lição para nós. As nossas orações, especial-
mente em público, devem ser específicas, e não orações que procuram
abranger tudo de uma vez!
O propósito da quinta referência é enfatizar união apostólica;
“para que sejam um, assim como nós” (v. 11). Isso somente é possível
se forem guardados: “… Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me
deste”. A preposição “em” indica a única esfera onde a união poderia
existir. Por apreciar o significado daquilo que o nome indica, eles seriam
guardados unidos, e as características do Pai então seriam vistas neles.
Obediência total à revelação do Pai na Sua Palavra é a única base de
verdadeira união hoje em dia.
A sexta referência indica que quando o Senhor Jesus esteve no
mundo Ele os tinha guardado. “Estando eu com eles no mundo, guar-
190 A glória da oração

dava-os em teu nome” (v. 12). Mas Ele estava voltando para o Pai. Ele
não estaria mais com eles, e estava os encomendando aos cuidados do
Seu “Pai Santo”. Aqueles que são assim guardados “em teu nome”, co-
nhecerão o que é ser guardado “do mal [maligno]” (v. 15). O salvo não
está isento da influência do mal. Há um grande perigo de ser inundado
pelas prioridades do mundo. Sempre é necessário ter cuidado para man-
ter as prioridades das Escrituras.
A última referência ao cristão como a dádiva de amor ao Filho é
em relação à glória (v. 24). Ele deseja que estejamos com Ele para que
vejamos a Sua glória. Assim, para o salvo, começa com graça (v. 2) e ter-
mina com glória (v. 24)! Que perspectiva maravilhosa, que consumação,
algo que nunca teríamos imaginado, mas tudo possível por causa de
uma dádiva de amor!
As sete atividades completadas pelo Filho
A afirmação no v. 4 é clara: “… tendo consumado a obra que me
deste a fazer”. Talvez seja uma referência ao Calvário, mas no contexto
desta oração, não há dúvida alguma de que a obra está consumada. A
natureza daquela obra consumada é indicada nas sete referências às coi-
sas que o Senhor Jesus tinha feito.
A primeira é: “Manifestei o teu nome” (v. 6). Desta maneira o Se-
nhor revelou o significado da Pessoa por trás do nome. Ele revelou os
detalhes que expressaram os Seus atributos, incluindo a Sua autoridade,
Sua majestade, Sua excelência e poder. Em efeito, foi uma revelação do
coração do Pai. O resultado foi que “guardaram a tua palavra”. A pala-
vra “guardar”, aqui, significa “observar, obedecer, segurar firmemente”.
Assim, a revelação do verdadeiro significado do “nome” produziu uma
devoção à Palavra. Com certeza esta é uma lição importante para nós.
A segunda é: “Lhes dei as palavras que tu me deste” (v. 8). As “pa-
lavras” incluem as declarações, as afirmações, e as comunicações diá-
rias do Pai. Talvez podemos ficar pensando onde e quando as “palavras”
foram dadas! As Escrituras nos dão a resposta: “O Senhor Deus me
deu uma língua erudita [instruída, JND], para que eu saiba dizer a seu
tempo uma boa palavra ao que está cansado. Ele desperta-me todas as
manhãs, desperta-me o ouvido para que ouça, como aqueles que apren-
dem [são instruídos, JND]. O Senhor Deus me abriu os ouvidos, e não
fui rebelde; não me retirei para trás” (Is 50:4-5). Novamente Ele disse:
“Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 191

de Deus” (Mt 4:4). Assim, não há duvida quanto à origem das pala-
vras. A comunhão diária com o Pai resultava em comunicações diárias
que foram então “dadas” aos Seus. Precisamos aprender esta lição, como
dizem as palavras dum hino: “Senhor, fala comigo para que eu possa
falar”. O resultado, no caso dos discípulos, foi dramático: “Eles as rece-
beram, e têm verdadeiramente conhecido que saí de ti, e creram que
me enviaste” (v. 8). Assim, eles receberam, conheceram e creram para
que fossem úteis no serviço do Mestre. Como seria bom se o ministério
da Palavra tivesse este efeito dramático nos ouvintes hoje! Há um preço
a pagar!
Os assuntos que eram conhecidos e cridos são interessantes. Eles
conheceram que “saí de ti”, eles creram que “me enviaste”. Resumido
nestas duas pequenas afirmações temos declarações da divindade de
Cristo e da Sua humanidade. Uma personalidade santa, verdadeira-
mente Deus, mas também verdadeiramente Homem. Ele foi enviado.
Este assunto sobre enviar ocupa grande espaço na oração: vs. 3, 8, 18
(duas vezes), 21, 23, 25 — sete vezes ao todo (mais um grupo de “sete”
para estudar!). Em seis destas ocasiões se refere ao Senhor Jesus sendo
enviado. Isso é importante, e é um tema comum no Evangelho de João.
O verdadeiro significado é visto em Romanos 10:15, onde o apóstolo
Paulo claramente afirma: “E como pregarão, se não foram enviados?”
Este é um dos princípios básicos para que a pregação seja eficaz. Bem
poderíamos nos perguntar: “Será que nossos pregadores e as suas men-
sagens cumprem este padrão divino?”
A terceira é: “Tenho guardado aqueles que tu me deste” (v. 12). É
evidente que somos incapazes de nos guardar a nós mesmos. Enquanto
nosso Senhor esteve aqui Ele guardou os Seus, mas agora com a Sua
partida Ele pede que o Pai os guarde (vs. 11, 15). No v. 11 é o “Pai san-
to”, pois a santificação (de onde vem a palavra “santo”) é a modo essen-
cial pelo qual serão guardados em circunstâncias onde o mundo procura
influenciar. O resultado da proteção do Senhor foi que “nenhum deles
se perdeu”. Na multiplicação dos pães, em João 6:12, nenhum pedaço
deveria ser perdido, e também em João 18:9 temos mais uma afirmação
sobre a segurança dos discípulos: “dos que me deste nenhum deles per-
di”. Entretanto, a Escritura foi cumprida no caso do “filho da perdição”,
o único dos discípulos que conheceu a perdição.
A quarta é: “Dei-lhes a tua palavra” (v. 14). O fato de “palavra”
estar no singular, e não no plural como no v. 8, é muito importante.
192 A glória da oração

A ideia por trás da palavra, aqui, é o conjunto de verdades divinas. O


Senhor os tinha apresentado ao conjunto completo de doutrina divina,
e muito desta doutrina fora dada no ministério do cenáculo, que Ele ti-
nha concluído há pouco. O resultado foi que “o mundo os odiou” porque
não eram do mundo, tinham sido santificados (v. 17). O resultado de ter
recebido a Verdade os tinha separado de um mundo que odiava a Cristo,
e agora também os odiava. Portanto, há uma ligação importante entre
“a Palavra” e “as palavras”. Não é somente necessário ter conhecimento
da verdade divina na “Palavra”, mas estar disposto a ter nossos ouvidos
sempre abertos para ouvir as “palavras”.
A quinta é: “eu os enviei ao mundo” (v. 18). Neste ponto há um
princípio muito importante bem na superfície desta oração. Refere-se
ao desenvolvimento dos discípulos em relação ao mundo:
• “do mundo me deste” (v. 6), quanto à provisão eletiva;
• “eles estão no mundo” (v. 11), quanto à posição física;
• “não são do mundo” (vs. 14, 16), quanto à condição espiritual;
• “os enviei ao mundo” (v. 18), quanto à missão evangélica.
A ordem acima é muito importante. Aqueles que estão envolvidos
em atividade evangélica precisam ser visivelmente diferentes do mundo.
Não nos tornamos como eles para ganhá-los. Pelo contrário, a nossa
força está na nossa diferença. Uma atitude relaxada não corresponde à
mensagem que proclamamos. Os métodos do mundo não são os nos-
sos! Não podemos nos acomodar a um sistema de valores baseado em
pensamentos mundanos. Não devemos consolar por meio da nossa vida,
mas condenar por meio do nosso desapego das coisas mundanas.
A sexta é: “Eu dei-lhes … glória” (v. 22). Esta é uma glória que ain-
da não foi manifestada. Ela antecipa um dia futuro quando pela partici-
pação no reino de Cristo haverá uma clara demonstração de igualdade
em glória. Será o antítipo de José e Azenate; ela nunca conheceu a cova
ou a prisão, mas compartilhou na glória pública do palácio. Isso será
ampliado na próxima parte.
A sétima é: “Eu lhes fiz conhecer o teu nome” (v. 26). Neste caso o
nome que o Senhor lhes fez conhecer é “Pai Justo”. Esta revelação tem
um propósito duplo. Em primeiro lugar, para que possamos comparti-
lhar das afeições divinas: “… para que o amor com que Me tens amado
esteja neles”. Em segundo lugar, para que possamos ter a experiência da
presença divina: “… e Eu neles esteja”. Para que estes propósitos pos-
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 193

sam ser conhecidos, as condições certas são necessárias, e isto pode ser
implementado por uma apreciação de um “Pai Justo”.

A unidade tríplice enfatizada


A palavra “um” aparece seis vezes no capítulo; nos vs. 11, 21 (duas
vezes), v. 22 (duas vezes) e v. 23 (VB). Estas ocorrências estão ligadas
a uma união ou singularidade tríplice. É inconcebível que a oração do
Filho não fosse respondida integralmente. De fato, a palavra usada para
“oração” no capítulo é singular. É encontrada, por exemplo, no v. 9: “Eu
rogo (eratao) por eles”. Esta palavra “sugere que quem faz o pedido está
em pé de igualdade ou familiaridade com a pessoa a quem faz a petição”
(Vine). Isso está em contraste com a palavra normalmente usada para
oração (aiteo), que é usada quando alguém inferior faz um pedido a
um superior (para mais detalhes veja Trench*). De fato, o Senhor diz
nesta oração: “Pai … quero” (v. 24), indicando Sua igualdade com o
Pai; portanto, a afirmação de que esta oração do Senhor foi respondida
integralmente é correta. Assim, quando o Senhor ora “para que sejam …
um” (VB) podemos ter certeza que eles eram, ou serão, um, e o contexto
precisa ser entendido assim. A sugestão de alguns de que, por causa da
evidência presente de desunião, a oração não foi respondida integral-
mente, não é aceitável. Prosseguimos nesta base.
Singularidade apostólica (v. 11)
“Eles” neste versículo sem dúvida se refere ao grupo apostólico. A
singularidade pedida é uma singularidade de alvo: “para que sejam um,
assim como nós”. Eles deveriam ter um objetivo ou desejo em comum.
Isso foi cumprido na experiência dos apóstolos nos primeiros capítulos
de Atos (veja, por exemplo, 1:14; 2:1, 14). Também é visto na unidade
de propósito e doutrina nos escritos do Novo Testamento.
Singularidade Pentecostal (v. 21)
A singularidade aqui é uma singularidade em afeição: “Para que
todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em Mim, e Eu em Ti”. Surge a
pergunta aqui: quem são estes “todos”? Não há dúvida. O versículo an-
terior deixa bem claro que são “… aqueles que pela sua [dos apóstolos]
palavra hão de crer em mim” (v. 20). Assim os cristãos em vista são os

* TRENCH, R. C. Synonyms of the New Testament. Michigan: Baker Book House, 1989.
194 A glória da oração

cristãos do começo de Atos, logo depois de Pentecostes, que ouviram e


receberam a pregação dos apóstolos. Que eram um em afeição é muito
claro na referência em Atos 2:44. O objetivo em pedir esta singularida-
de pentecostal foi “para que o mundo creia”. Em Atos 4:4, por exemplo,
vemos a prova que milhares creram como resultado da demonstração
desta singularidade.
Singularidade Milenar (vs. 22-23)
A singularidade aqui é uma singularidade em associação: “para
que sejam um, como nós somos um”. Quem são estas pessoas? A Igre-
ja toda agora está em vista. Aqui, deixamos os apóstolos e as bênçãos
pentecostais, e chegamos a um dia ainda futuro, quando a glória poderá
ser manifestada e poderá haver singularidade na glória. Isso não é para
o presente, mas acontecerá no futuro. Naquele dia a Igreja será “perfeita
em unidade”, ou “perfeita em singularidade” ( JND). Esta glória será
compartilhada e manifestada. “Quando Cristo, que é a nossa vida, se
manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória” (Cl
3:4; veja também II Ts 1:10). O propósito agora é “para que o mundo
conheça” v. 23 (não como no v. 21: “para que o mundo creia”). Naquela
ocasião será tarde demais para crer — esta oportunidade já passou! Há
duas coisas que o mundo conhecerá: em primeiro lugar, que o Pai en-
viou o Filho; em segundo lugar, que o Pai nos amou como Ele amou o
Filho.

Associações na glória
Ao concluir o estudo é muito consolador pensar nas associações que
teremos na glória. Seremos:
Como Ele (v. 22)
Note o elo entre “Mim” e “eles”: “Eu dei-lhes a glória que a Mim
me deste”. Isso é ampliado maravilhosamente em I João 3:2: “seremos
semelhantes a ele”. No contexto de I João, Ele é justo (2:29); Ele é puro
(3:3); nEle não há pecado (3:5), e seremos semelhantes a Ele!
Com Ele (v. 24)
“Quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo”. Foi dito
que o Céu só é Céu se estivermos com Ele: “comigo” (Lc 23:43), “com
Cristo” (Fp 1:23); “com o Senhor” (II Co 5:8).
Cap. 11 — A oração do Filho de Deus em João 17 195

Ver a Ele (v. 24)


“Para que vejam a minha glória”. Este versículo tem a última refe-
rência ao salvo como a dádiva de amor a Cristo. Com certeza é apro-
priado ligá-lo com a oportunidade e honra de contemplar a Sua glória.
Não há possibilidade de compartilhar esta glória, podemos somente
contemplá-la.
Observe os três contrastes. No v. 22, é uma glória que Ele reparte,
que o mundo verá e conhecerá, e que está relacionada ao reino e à ma-
nifestação. Mas no v. 24 a glória é incomunicável, nunca será vista pelo
mundo, e está ligada com a casa do Pai — é a glória dEle somente.

Conclusão
Ao examinamos esta oração intercessora do Filho de Deus, nota-
mos que abrange uma variedade de assuntos. Ele ora por glorificação
para Si mesmo; preservação, santificação (tanto na prática, por meio
da “Palavra”, v. 17, e poderosamente “em verdade”, v. 19), associação e
glorificação para os Seus. Temos certeza absoluta de que cada detalhe
foi, e será, plenamente respondido, e portanto antecipamos a feliz pers-
pectiva de compartilhar na revelação plena da Sua glória a um mundo
maravilhado.
Cap. 12 — As orações
em Atos dos Apóstolos
Por James Paterson Jnr., Escócia

A oração na igreja primitiva


Uma das características notáveis da Igreja primitiva é a importância
que davam à oração. A primeira referência à oração em Atos é 1:14:
“Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas, com as
mulheres, e Maria, mãe de Jesus, e com Seus irmãos”. Parece que as vi-
das destes primeiros cristãos eram motivadas e governadas pela oração,
tanto coletivamente quanto individualmente. Embora as primeiras ora-
ções mencionadas em Atos indicam que os irmãos seguiam os horários
judaicos de oração, não podemos deixar de admirar a sua perseverança
nesta atividade de importância tão fundamental para a continuidade
cristã.
Antes de considerarmos o assunto de oração em Atos, devemos
notar alguns pontos introdutórios. Eles “perseveraram [proskartereo] …
nas orações” (2:42). Esta palavra significa “ser zeloso em; comparecer
assiduamente, ser persistente em”. E isto os descreve bem! As palavras
oração, orações, oraram, orando, e orar são encontradas vinte e nove
vezes em Atos 1:14, 24; 2:42; 3:1; 4:31; 6:4, 6; 8:15, 22, 24; 9:40; 10:2,
4, 9, 30, 31, 48; 11:5; 12:5, 12; 13:3; 14:23; 16:13, 16, 25; 20:36; 21:5;
22:17; 28:8. Entre as muitas bênçãos que Deus tem dado aos homens,
a oração é uma bênção essencial e singular, tanto na natureza da sua
função, e mais especificamente na busca do homem a Deus. A oração
é um dom de Deus aos Seus santos, uma linha de comunicação direta
entre o Todo Poderoso e Seus filhos. A oração não é um meio pelo
qual alguém tenta pressionar Deus, por meio de palavras persuasivas,
a responder a toda petição. A oração estabelece uma relação. Embora
Deus seja o Doador, pois “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem
do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem
sombra de variação” (Tg.1:17), e o homem é o receptor destas bênçãos,
diferentemente de qualquer outro dom, é necessário que o homem faça
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 197

uma petição. Ao considerar a Sua palavra, em espirito de oração, o salvo


descobre a vontade e o propósito de Deus. Para o homem, a oração é
um acesso sempre presente à fonte da sua paz e ao alicerce do seu ser.
Clamar a Deus sempre resulta em uma resposta de Deus, embora a
resposta nem sempre seja o que queremos ouvir, e embora nem sempre,
por causa de incredulidade, ouvimos a resposta. A linha de comunicação
com Deus está sempre disponível. A oração é a petição direta ao coração
de Deus. Uma consideração dos Atos dos Apóstolos revelará que os
cristãos primitivos oravam muito. Desde o começo do seu livro Lucas,
o autor, desvenda as atividades daqueles cristãos em Atos. No centro
da vida da igreja primitiva estavam as suas súplicas em oração. A ora-
ção não era somente uma ocupação espiritual que praticavam quando
surgiam problemas ou quando alguém estava doente. Não era desfrutar
um ritual formal. Antes, a oração era parte deles, a base da sua fé em
expressão e devoção. Eles oravam consistentemente. Este tipo de pai-
xão dedicada pela oração é retratada com clareza na vida formativa da
Igreja, no livro de Atos, e deve ser igualmente encontrada na vida dos
cristãos em todas as épocas.
Lucas, através de inspiração divina, comunica aos seus leitores de
maneira enfática e inequívoca que a oração é um ingrediente essencial
na vida cristã. Para que os discípulos pudessem cumprir o chamado
divino, eles precisariam da direção de Deus. Isto é um reflexo da ênfase
dada à oração no Evangelho de Lucas, onde ele parece enfatizar a im-
portância de oração na vida do Senhor Jesus. Este assunto é considera-
do detalhadamente no cap. 10 deste livro. A continuação dos escritos de
Lucas no livro de Atos é um reflexo desta atividade de oração, e é uma
evidência da instrução dada pelo Senhor Jesus sobre “o dever de orar
sempre, e nunca desfalecer” (Lc 18:1). No seu Evangelho Lucas escreve
sobre o Homem de oração, o Senhor Jesus, mas em Atos ele mostra
como o exemplo de Cristo teve um grande impacto nos salvos, pois eles
O seguiram com fidelidade e compromisso como um povo que orava,
como homens e mulheres de oração.
As orações da igreja primitiva eram dirigidas a Deus. Por exemplo,
Atos 12:5 diz: “Mas a igreja fazia contínua oração por ele [Pedro] a
Deus”. Em nossos dias, parece que muitas das orações públicas não são
dirigidas a Deus. Frequentemente há pouco sobre Deus na oração. Pen-
samos mais nas pessoas presentes, pensamos nas nossas necessidades,
mas muitas vezes não há um profundo reconhecimento de que estamos
198 A glória da oração

na presença do Santíssimo, Todo Poderoso Deus, e que estamos rogan-


do a Sua ajuda. Esta é uma das mais frequentes razões pelo fracasso
em oração. Realmente não oramos a Deus. Ao considerarmos a oração
neste livro sobre o início da História da Igreja e das igrejas, veremos que
enquanto os salvos oravam, eles pareciam conseguiam excluir das suas
mentes, tanto quanto possível, pensamentos das suas circunstâncias, e
permitir que o Espírito Santo preenchesse as suas mentes com a reali-
dade da presença de Deus.
Em Atos, como também em todas as Escrituras, e, de fato, nas nos-
sas vidas diárias, a atitude de oração mostra dependência. Dependência
não é somente o reconhecimento da nossa fraqueza e incapacidade de
prosseguir sem ajuda, mas também é a disposição de guardar os manda-
mentos de Deus e agir em obediência à Sua Palavra. Aqui encontramos
um dos mais importantes segredos de oração eficaz. Se nós ouvirmos
com obediência aos mandamentos de Deus, Deus ouvirá a nossa oração.
“E qualquer coisa que lhe pedirmos, dele a receberemos, porque guar-
damos os seus mandamentos, e fazemos o que é agradável à sua vista”
(I Jo 3:22). Isso nos ensina que se nós fizermos o que Lhe agrada, Ele
fará o que nos agrada, visto que os nossos pedidos serão controlados
pela Sua palavra, e assim serão de acordo com a Sua vontade. A pessoa
que deixa de ouvir a voz de Deus não pode orar de maneira que Deus o
ouça. Guardar os Seus mandamentos significa mais do que obedecê-los;
significa segurá-los e guardá-los como uma possessão preciosa. (Isso
não anula a soberania de Deus e a Sua benevolente bondade.)
Aprendemos em Atos como aqueles primeiros cristãos tinham um
fervor vibrante na sua vida de oração. Parece que suas orações eram ca-
racterizados, não somente por direção, devoção e dependência (sabiam
de Quem estavam pedindo), mas também por distinção, deliberação
e definição (sabiam o que estavam pedido). Eles oravam, não simples-
mente faziam orações. Vemos que as suas orações eram centradas em
Deus — eles oravam para que o propósito de Deus fosse cumprido, que
o povo de Deus fosse estabelecido e que o poder de Deus fosse manifes-
tado. Como disse Ambrósio de Milão (339 ‑ 397): “Oração é a asa pela
qual a alma voa ao céu, e meditação é o olho pelo qual vemos a Deus”.
A oração foi planejada para transmitir
As bênçãos que Deus designa dar;
Enquanto vivem os cristãos devem orar,
Pois somente enquanto oram é que vivem.
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 199

E ainda permanecerás em silêncio


Enquanto Deus aguarda a tua oração?
Minha alma, tens um Amigo nas alturas
Levanta-te, e expõe teus interesses ali.
É a oração que apoia a alma enfraquecida,
Mesmo que pensamentos e linguagem falhem;
Ore, se puderes ou se não puderes falar,
E ore, com fé, no nome de Jesus.
Confie nEle, não podes falhar;
Faça todas tuas necessidades e desejos conhecidos:
Não temas; os Seus méritos prevalecerão:
Peça, mas com fé, e será feito. (Joseph Hart)*

A oração coletiva
Como a igreja local é um lugar de oração devido à ênfase dada à ora-
ção, assim também a Bíblia pode ser chamada de livro de oração de Deus,
pela mesma razão. A igreja local sempre tem reivindicado ser um povo
do Livro. Afirmamos que fazemos as coisas da Bíblia na maneira que a
Bíblia ensina. Argumentamos que todos devem voltar à Bíblia para esta-
rem certos, sem omitir ou acrescentar nada. Entretanto, para realizarmos
estas reivindicações, temos de praticar a oração, e não somente falar dela.
O Novo Testamento usa as palavras orar, orou, orações e orando cento e
sessenta e três vezes (sem contar os sinônimos como pedir, buscar, bater e
petição). Em contraste, as palavras batizar, batizado e batismo são usadas
setenta vezes. Isso não significa que a oração seja mais importante que
o batismo, mas sugere a ênfase que a oração deve receber na igreja local.
As igrejas locais em Atos oravam com persistência, intensidade e unida-
de. Quanto ao seu número, oravam coletivamente; quanto à sua prática,
oravam constantemente; quanto ao seu conteúdo, oravam consistente-
mente, e oravam baseados no caráter de Deus.

* Tradução literal. O original diz: “Prayer was appointed to convey/The blessings God designs
to give;/Long as they live, should Christians pray,/For only while they pray they live.//And wilt
thou still in silence lie;/When God stands waiting for thy prayer?/My soul, thou hast a friend
on high,/ Arise, and try thine interest there.//‘Tis prayer supports the soul that´s weak,/Though
thought be broken, language lame/ Pray, if thou canst, or canst not speak,/And pray with faith
in Jesus’ name.//Depend on Him, thou canst not fail;/Make all thy wants and wishes known/
Fear not; His merits must prevail:/Ask, but in faith, it shall be done." (N. T.)
200 A glória da oração

Antes de Pentecostes — no Cenáculo


No livro de Atos, há ocasiões quando os salvos se reuniam e se
ocupavam no exercício coletivo de oração. Às vezes o assunto da sua
oração é relatado, outras vezes não. Em Atos 1:14, antes da formação da
igreja em Jerusalém, o grupo de aproximadamente cento e vinte irmãos
que se reuniu no cenáculo revela um lindo exemplo de salvos unidos em
oração. Embora o assunto da oração não seja inicialmente menciona-
do, a atitude daqueles que oravam é claramente descrita, e serve como
exemplo para nós hoje. Em dez dias eles iriam ter a experiência que
mudaria a sua vida — a bênção de Pentecostes — mas antes disso eles
perseveravam em oração. Não devemos tentar adivinhar o conteúdo das
suas orações, pois nada é registrado sobre isto. Entretanto, é útil notar
a sua atitude. “Todos estes perseveravam”, fazendo exatamente o que
tinham sido ordenados a fazer: esperar “a promessa do Pai” (1:4). Eles
perseveravam com determinação: “todos estes perseveravam unanime-
mente” (1:14). Eram um, sem discórdia, sem murmuração, mas unidos
em harmonia de propósito. “Com as mulheres, e Maria mãe de Jesus, e
com Seus irmãos”, enfatiza a união completa daquela ocasião. Embora
não haja qualquer sugestão de que as mulheres orassem publicamente,
elas continuavam em oração com os outros presentes. Ainda é necessá-
rio, para a continuidade da vida cristã, para o funcionamento da igreja
local e o testemunho evangélico, que as mulheres estejam presentes para
orar! Muitas igrejas e servos do Senhor têm sido mantidos e sustenta-
dos por mulheres de oração, portanto, que necessidade há para reuniões
de oração só para homens ou só para mulheres?
Observe a posição de Maria. Esta é a última vez que lemos dela. Ela
está humildemente orando com os outros. Ela não está liderando, e os
outros não oram a ela. As afirmações dos católicos romanos sobre Maria
não tem base nas Escrituras.
Durante este período de oração, um assunto específico é mencio-
nado perto do final: eles pediram direção para nomear outro ao grupo
para ser “testemunha da Sua ressurreição” (1:22). Este era o assunto que
ocupava a mente deles naquela hora, e portanto eles oraram sobre este
assunto! Eles conheciam os homens que eram capacitados para ocupar
esta posição, mas colocaram a sua preocupação perante o Senhor. Será
que erraram em lançar sortes? Não tinham já pedido que o Senhor os
guiasse pela sorte, no espírito de Provérbios 16:33: “A sorte se lança no
regaço, mas do Senhor procede toda a determinação”? É importante
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 201

notar que quando a resposta foi dada, eles aceitaram a decisão do Se-
nhor sem argumentação.
Os santos, orando, parecem um
Em palavra, atitude e mente,
Enquanto com o Pai e o Filho
Desfrutam de doce comunhão. (James Montgomery)*

Depois de Pentecostes

Perseverando em oração
“E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no
partir do pão, e nas orações” (2:42). Uma das atividades que ocupava a
vida dos primeiros salvos, cheios do Espírito Santo, era a oração. Estes
novos convertidos — guiados, sem dúvida, pelas atividades e ensino dos
apóstolos e outros, e dirigidos pelo Espírito Santo — planejaram as suas
vidas de maneira a poderem perseverar nas suas atividades, incluindo a
oração. Com certeza esta referência às suas orações se refere aos tempos
que eles mesmos marcavam para a oração coletiva, embora sabemos que
os apóstolos também frequentavam o Templo nos horários de oração
dos judeus: “Pedro e João subiam juntos ao templo à hora da oração,
a nona” (3:1). As orações da Igreja primitiva possivelmente seguiam o
modelo judaico, mas o conteúdo seria enriquecido pela sua experiência
espiritual. Sem dúvida o nome do Senhor Jesus Cristo oferecia opor-
tunidades nunca antes conhecidas em oração, pois agora havia acesso
imediato ao trono de graça, e eles podiam, portanto, chegar “com con-
fiança ao trono de graça, para … alcançar misericórdia e achar graça, a
fim de [serem] ajudados em tempo oportuno” (Hb 4:16).
Cada aspecto da sua vida individual e coletiva podia, naquela oca-
sião, e pode agora, ser levado ao trono por meio do Grande Sumo Sa-
cerdote que está à destra de Deus.
Lugares de oração
É interessante considerar, em Atos, os lugares onde os cristãos ora-
vam. Já notamos que começaram no cenáculo, mas podemos ver tam-
bém (concordando com as instruções de Paulo a Timóteo: “quero, pois
* Tradução literal. O original diz: “The saints in prayer appear as one/ In word and deed and
mind,/While with the Father and the Son/Sweet fellowship they find". (N. T.)
202 A glória da oração

que os homens orem em todo lugar”, I Tm 2:8) que os salvos oravam


numa variedade de localidades. Por exemplo, Saulo orava numa casa em
Damasco (9:11); a igreja, na casa de Maria (12:12); Pedro, no terraço de
uma casa (10:9); Paulo e outros, à beira do rio, perto de Filipos (16:13);
Paulo e Silas, na prisão (16:25); na praia perto de Tiro (21:5) e num
navio agitado pela tempestade (27:35). Estes exemplos mostram que a
localidade física não é importante, mas o que importa é que almas se
aproximem, sem impedimento, à presença do seu Deus e Pai.
Perseguição estimula oração
Que linda manifestação de comunhão ocorreu quando, soltos pelo Si-
nédrio, Pedro e João “foram para os seus” (4:23). Isso não significa que aque-
le grupo pertencia aos apóstolos, como propriedade, mas que os apóstolos
pertenciam àquele grupo, no sentido de comunhão! A notícia da persegui-
ção produziu oração unânime da igreja. Em primeiro lugar, eles levantaram
as suas vozes em louvor. Louvores pela onipotência de Deus (4:24), e pela
Sua onisciência (4:25-28). Depois eles falam em oração. O que pediriam?
As ameaças do Sinédrio eram reais. O Senhor Jesus tinha advertido: “No
mundo tereis aflições” ( Jo 16:3); um mundo que tinha crucificado o Senhor
não os pouparia. Será que eles pediriam, como parece ser comum hoje em
dia, que o Senhor removesse a ameaça, ou que removesse os homens que
os ameaçavam, ou que o governo mudasse as suas leis? Não! Eles pediram
ao Senhor: “Concede aos teus servos que falem com toda a ousadia a tua
palavra” (4:29). O perigo não estava com o Sinédrio, mas com eles mesmos:
o assunto da sua oração não foi a força do inimigo, mas o medo que preci-
savam vencer. Eles não esperavam que o poder ou a perseguição dos judeus
terminasse, nem pediram por alguma intervenção milagrosa para lidar com
a agressão do inimigo. Também não oraram pela conversão dos homens ce-
gos e culpados. Eles simplesmente pediram que Deus lhes desse a coragem
para continuar com a obra de pregar as boas novas do Evangelho.
É importante aprendermos do exemplo da Palavra de Deus. Estes
primeiros cristãos reconheceram a soberania de Deus, Sua onipotência
e a Sua onisciência; eles O conheciam, e, portanto, sabiam como pedir
e o que pedir. Eles sabiam que aquele que os salvou e os capacitou e os
comissionou também os fortaleceria para o serviço que deveriam fazer.
Não é de se admirar, portanto, que a resposta à sua oração foi instan-
tânea! O poder do Espírito Santo foi evidenciado na resposta à oração
deles, e eles “anunciavam com ousadia a palavra de Deus” (4:31).
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 203

Oração antes de serviço


Em Atos cap. 6 houve uma disputa entre os judeus gregos e os ju-
deus hebraicos. Os apóstolos consideraram o assunto, e sob a direção do
Espírito Santo resolveram nomear sete homens para cuidar deste pro-
blema na igreja. Assim os apóstolos afirmaram: “Nós perseveraremos
na oração e no ministério da palavra” (6:4). É notável ver a prioridade
dos apóstolos. Para que pudessem completar a missão do Senhor, eles
precisavam de singularidade de propósito. Assim, o ministério da Pala-
vra estava associado com oração. Quando os homens escolhidos foram
apresentados, e antes que os apóstolos se identificassem com eles pela
imposição das suas mãos, mais uma vez eles oraram (6:6). Portanto, orar
está intimamente ligado com serviço, seja no “ministério da Palavra”
(6:4), ou no serviço diário aos santos (6:6), e isto nos ensina que todo
tipo de serviço é igualmente importante. Isso é visto também no cap.
13, por ocasião da recomendação de Barnabé e Saulo para “a obra a que
os tenho chamado” (13:2). Mais uma vez, antes da igreja se identificar
com os servos e os despedir, eles oraram. “Então, jejuando e orando e
pondo sobre eles as mãos, os despediram” (13:3). Este é o modelo para
toda atividade e obra missionária da igreja. O Espírito Santo dirige uma
igreja que ora e que é sujeita à liderança divina, e esta condição produz
resultados positivos nas atividades dos servos recomendados. A mesma
atividade de oração é vista novamente no cap. 14, quando anciãos fo-
ram eleitos em “cada igreja” (14:23). Nestas igrejas, antes que os anciãos
fossem recomendados, eles oraram juntos. Estas orações foram eficazes,
pois os anciãos nas igrejas primitivas eram homens de oração.
Quando Paulo convocou uma reunião dos anciãos em Mileto, ele
avisou os anciãos da igreja em Éfeso que falsos mestres se levantariam
“que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si” (20:30).
Antes de se despedirem, estes homens se ajoelharam em oração (20:36).
Não sabemos pelo que oraram, mas o contexto indica que oraram por
Paulo, pela tribulação que ele enfrentava, e pela igreja local em Éfeso
que também enfrentava dificuldades. Você é um ancião? Se for, será que
você é um homem de oração? Você ora para que a igreja seja poupada da
destruição de falso ensino? Você ora pelas ovelhas desviadas pelas quais
você cuida? Os anciãos precisam dizer com mais frequência: “Vamos ter
um tempo de oração”. Assim é evidente através destas passagens que os
salvos da igreja primitiva compreendiam a necessidade de orar antes de
realizar qualquer atividade na igreja.
204 A glória da oração

Oração pelo prisioneiro


Tiago tinha sido martirizado por Herodes, e agora o rei colocara
Pedro na prisão. Enquanto Pedro dorme no chão da masmorra, acor-
rentado a dois soldados e com “quatro quaternos de soldados” ao seu
redor, a igreja local está orando. Lucas diz que a igreja fazia “contínua”
oração por ele a Deus (12:5). A palavra “contínua” é ektenes, que signi-
fica “intensa”, indicando não somente a quantidade de oração, mas seu
fervor sincero. “A oração feita por um justo pode muito em seus efeitos”
(Tg 5:16).
Novamente não temos um relato do pedido feito aqui pela igreja
local. Será que oraram pela liberdade de Pedro, ou, pensando na morte
recente de Tiago, oravam que Pedro pudesse receber a graça de Deus
para encarar o futuro assombroso, e que a vontade de Deus fosse feita
nas circunstâncias? Esta é uma área que tem preocupado muito o povo
do Senhor — pedir a coisa certa, e não pedir por aquilo que, embora seja
o desejo do nosso coração, possa ser contrário à Sua vontade. Devemos
notar que “a igreja fazia contínua oração por ele” (12:5). Muitas vezes
nas nossas reuniões de oração parece que não sabemos orar especifi-
camente, e falamos em termos muito gerais, como “todos aqueles que
pregam o evangelho”; “todos os doentes”; “o povo da comunidade”, e
embora possa parecer que estamos orando por muitas pessoas, na rea-
lidade não estamos orando por ninguém! A oração das Escrituras é
específica, e embora Paulo, por exemplo, fala sobre orar por “todos” (Fp
1:4, ARA, e I Ts 1:2), a palavra usada, “todos”, significa “cada um indi-
vidualmente”. Oração específica manifesta um coração sobrecarregado.
Entretanto, o assunto aqui é a atitude e intensidade da igreja local
em oração contínua durante a noite, e há uma bênção associada à sua
diligência. “Eis aqui, bendizei ao Senhor, todos vós servos do Senhor,
que assistis na casa do Senhor todas as noites. Levantai as vossas mãos
no santuário, e bendizei ao Senhor. O Senhor que fez o céu e a terra te
abençoe desde Sião” (Sl 134:1-3).
Enquanto faziam oração contínua, Pedro aparece à porta, e inde-
pendentemente do que eles estiveram pedindo, eles entenderam a ver-
dade da afirmação: “a tua oração foi ouvida” (Lc 1:13).
De cada vento tempestuoso que sopra,
De cada maré crescente de males,
Há um refúgio, um porto seguro —
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 205

Se encontra junto ao trono de graça.


Ah! Para onde poderíamos fugir por ajuda
Quando tentados, desolados, desanimados,
Ou como poderíamos vencer as hostes infernais,
Se santos sofredores não tivessem um trono de graça?
Ali em asas de águia voaremos;
Quando tempo e sensações não mais existirem;
Ali as alegrias celestes saúdam nosso espírito,
Pois a glória coroa o trono de graça. (Hugh Stowell)*

O poder da reunião de oração


Além dos resultados poderosos da oração coletiva, como acima
mencionados, é interessante observar que havia uma reunião de oração
em Filipos antes de haver uma igreja local. Paulo e seus companheiros
procuraram por esta reunião, no sábado. Este era o lugar e horário de
uma reunião costumeira de oração: “onde se costumava fazer oração”
(16:1). Esta reunião de oração se transformou numa pregação do Evan-
gelho, e Lídia recebeu a bênção da salvação: “O Senhor lhe abriu o
coração”, e ela foi batizada e desfrutou de comunhão com o grupo de
Paulo. É interessante que a primeira pregação do Evangelho de Paulo
na Europa foi nesta reunião de oração.
Poucos dias depois Paulo e Silas, indo para a reunião de oração, fo-
ram abordados por uma mulher possessa por um demônio, que resultou
na libertação da mulher, mas no aprisionamento deles. Na prisão houve
o que talvez foi a menor reunião de oração possível, quando Paulo e
Silas “oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escutavam”
(16:25). A atitude destes dois servos é notável. Eles estavam no cárcere
interior; escuro e sombrio. Tinham sido severamente açoitados, seus
pés estavam presos no tronco, mas apesar destas circunstâncias desfa-
voráveis e agonizantes, nós os encontramos ocupados na sua atividade
costumeira. Eles oravam e cantavam louvores a Deus. Novamente não
sabemos o conteúdo da sua oração, mas a mão de Deus foi vista. Apa-
rentemente eles não oravam em voz baixa por causa da presença dos

* Tradução literal. O original diz: “From every stormy wind that blows,/From every swelling tide
of woes,/There is a calm, a safe retreat – /‘Tis found beneath the mercy-seat.//Ah! Whither
could we flee for aid/When tempted, desolate, dismayed,/Or how the hosts of hell defeat,/ Had
suffering saints no mercy-seat?//There we on eagles’ wings would soar; /When time and sense
are all no more /There heavenly joys our spirits greet/For glory crowns the mercy-seat.” (N. T.)
206 A glória da oração

outros, pois os outros presos os ouviam! Assim, temos o exemplo e tes-


temunho de cristãos em oração.
Que bênçãos foram desfrutadas por estas simples reuniões de ora-
ção em Filipos. O poder de Deus foi manifestado no esclarecimen-
to de Lídia, no livramento da mulher possessa, e na transformação do
carcereiro. Assim a atividade evangelística se espalhou pela Europa e
para outros lugares do mundo até então desconhecidos — tudo partiu
daquele humilde começo: uma reunião à beira do rio em Filipos. Um
pequeno grupo de almas em oração é o suficiente para promover uma
grande obra para Deus.
Frequentemente subestimamos o poder da oração. Foi relatado que
a rainha Maria da Escócia, ao falar do grande reformador escocês, John
Knox, disse: “Eu temo mais as suas orações do que os exércitos da Eu-
ropa juntos”.*
Não podemos enfatizar demais as bênçãos associadas com a reunião
de oração. Como podemos ver dos exemplos de oração coletiva acima
mencionados, há algo muito precioso em se reunir com o povo do Se-
nhor na Sua presença, com singeleza de coração e propósito, para orar.
Por outro lado, pode ser que, como aqueles da igreja de Laodiceia, e
pela nossa atitude e ausência, que realmente dizemos: “Rico sou, e estou
enriquecido, e de nada tenho falta” (Ap 3:17).
Que possamos provar o poder da oração
Para fortalecer a fé e banir as preocupações;
Para ensinar nossos fracos desejos a se elevarem
E desvendar todo o Céu aos nossos olhos. (William Cowper)†

Oração pessoal
Temos visto com clareza, em Atos, a necessidade de oração coletiva
na vida da igreja local, inclusive a necessidade dos anciãos de orarem.
Agora veremos a necessidade dos servos de orarem. Assim como uma
igreja não pode funcionar sem a oração coletiva, e um líder não pode
guiar sem oração, assim também um servo não deve estar servindo se a
sua vida não for uma vida de oração. Lucas registra para nós, em Atos, o
exemplo de homens piedosos que oravam. Enquanto lemos das orações

* MURRAY, David P. Lessons from John Knox. Edimburgo: Reformation Scotland, 2006.
† Tradução literal. O original diz: “Now may we prove the power of prayer/To strengthen faith and
banish care;/To teach our faint desires to rise,/And bring all heaven before our eyes.” (N. T.)
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 207

destes cristãos, entendemos algo da intensidade de uma vida de oração


ativa — não como aqueles mencionados pelo Senhor que somente fa-
ziam orações: “E quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se
comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para
serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o
seu galardão. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando
a tua porta, ora ao teu Pai que está em segredo; e teu Pai, que vê em
segredo, te recompensará publicamente” (Mt 6:5-6). Como A. W. Tozer
escreveu:
Quando nós nos tornamos muito loquazes em oração, com certeza
estamos falando conosco mesmos. Quando uma lista calma de pedi-
dos substitui a oração preocupada, que encontra dificuldades em se
expressar, deveríamos estar preocupados com o próximo passo, pois
a direção certamente é em declive, quer percebamos ou não.*

Estevão
Embora lemos mais sobre a pregação de Estevão do que sobre suas
orações, o que está escrito sobre a oração no final da sua vida é, em
muitos aspectos, importante e encorajador. A descrição de Estevão dada
pelo Espírito Santo em Atos, embora curta, é de grande peso: “Estevão,
homem cheio de fé e do Espírito Santo” (6:5); “Estevão, cheio de fé e
de poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo” (6:8). Este é o
caráter do homem que, na hora da sua morte, orou e deixou tão grande
impressão em Saulo que ele nunca pode esquecer, e mais tarde ele diria:
“E quando o sangue de Estevão, tua testemunha, se derramava, também
eu estava presente, e consentia na sua morte, e guardava as capas dos que
o matavam” (22:20).
Alguns dizem que as palavras de Estevão em Atos 7:59-60 dificil-
mente podem ser classificadas como uma oração. Entretanto, uma con-
sideração da linguagem usada indica o contrário! Outros comentaristas
nos ajudam com relação ao verbo “invocação” (7:59). Wm. Mounce†
diz que significa “oração”; A. Campbell‡ traduz “suplicar”; J. H. Thayer§

* TOZER, A. W. Born After Midnight. Pensilvânia: Wing Spread Publications, 2006.


† MOUNCE, William. Expository Dictionary of New Testament Words. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, 2006.
‡ CAMPBELL, Alexander. Acts of the Apostles. Austin, Texas: Firm Foundation Publishing House,
1858.
§ THAYER, J. H. A Greek English Lexicon of the New Testament. Edimburgo, T&T Clark, 1958.
208 A glória da oração

enfatiza a intensidade da necessidade pessoal ao traduzir “chamar para


si próprio”.
Não é de se admirar que Saulo ficou impressionado, e sem dúvida as
palavras de Estevão foram usadas pelo Espírito Santo para convencê-lo.
Nas suas últimas palavras, Estevão proclamou a divindade do Senhor
Jesus. Quando o Senhor Jesus morreu Ele disse: “Pai, nas Tuas mãos
entrego o meu espírito” (Lc 23:46); quando Estevão morreu ele disse:
“Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (7:59), e assim confessou que o
Senhor Jesus é igual ao Pai. O efeito desta oração de Estevão foi que
Paulo mais tarde escreveu que a morte para um salvo significa “deixar
o corpo, para habitar com o Senhor” (II Co 5:8). A oração de Estevão
não foi apenas uma característica de fé cristã e uma declaração da di-
vindade de Cristo, mas foi também uma demonstração, no v. 60, da sua
obediência à instrução dada pelo Senhor Jesus no sermão no Monte:
“Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos, bendizei os que vos mal-
dizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e
vos perseguem” (Mt 5:44).
E assim Estevão, orando de joelhos, depois de se entregar ao Se-
nhor, adormeceu. Sem dúvida, este exemplo tem sido a experiência de
muitos do povo do Senhor na hora da morte — transportados da pre-
sença espiritual do Senhor para a Sua presença física literal.
A oração é a respiração vital do cristão,
O ar natural do cristão;
Seu lema nos portões da morte;
Ele entra nos Céus com oração. (James Montgomery)*

Pedro
Já observamos em Atos caps. 3 e 4 que Pedro “subiu para orar”, mas
agora vamos considerar outras referências à suas orações, registradas em
Atos.
A ocasião em Atos 8:15, quando Pedro e João oraram para que os
novos convertidos em Samaria recebessem o Espírito Santo, é singular
na história da Igreja, e não se aplica aos nossos dias. Foi um ato apostó-
lico especifico, e a seriedade do assunto é vista na atitude de Pedro em
relação a Simão e ao seu pedido injusto e mercenário. É interessante

* Tradução literal. O original diz: “Prayer is the Christian´s vital breath,/The Christian´s native
air;/His watchword at the gates of death;/He enters heaven with prayer." (N. T.)
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 209

notar que não há menção de Pedro atender ao pedido de Simão de que


orassem por ele.
Logo depois disto, achamos Pedro novamente ocupado em outra
atividade apostólica especial quando, em Jope, ele entra na casa onde
Dorcas falecera recentemente (9:36-41). Pedro parece seguir o exemplo
daquilo que o Senhor Jesus fez quando Ele ressuscitou a filha de Jairo,
(Mc 5:35-43), mas com uma diferença importante — Pedro orou. O
Senhor da vida tinha a capacidade e autoridade absoluta para restau-
rar o que Ele tinha criado, mas Pedro não tinha. Ele reconhece a sua
dependência e, ajoelhando sozinho no quarto onde estava o corpo, ele
ora. Mais uma vez, não sabemos o que ele disse em oração, mas não há
dúvida de que a sua atitude expressa a sua incapacidade e dependência
total em Deus. É interessante a semelhança com as palavras do Senhor
Jesus, que tinha dito: “Talita cumi” (“Levanta-te”, Mc 5:41); Pedro, apa-
rentemente ainda ajoelhado, vira para o corpo de Dorcas e diz: “Tabita,
levanta-te” (9:40), e Dorcas foi restaurada à vida.
Jope foi um marco importante na vida de Pedro. Não somente por
causa da ressurreição de Dorcas, mas porque foi ali que ele aprendeu
a verdade fundamental: Deus iria abençoar o judeu e o gentio com a
salvação. No final dos acontecimentos ligados com a conversão de Cor-
nélio, Pedro relata os acontecimentos à igreja em Jerusalém, e resume
o seu relato dizendo: “Quem era então eu, para que pudesse resistir a
Deus?” (11:17).
Logo pensaremos em Cornélio, mas é bom observar que onde ha-
via um pecador orando, havia um servo sendo preparado através da sua
participação em oração. Este ainda é o padrão para a obra de Deus na
salvação de uma alma. Pedro, na solidão do terraço da casa, está orando,
quando o Senhor fala a ele direta e dramaticamente. Meio dia não era
o horário normal de oração judaica, mas possivelmente judeus piedosos
oravam também neste horário, como Daniel, que orava três vezes ao dia,
(Dn 6:10), e o salmista, que disse: “De tarde e de manhã e ao meio dia
orarei; e clamarei, e ele ouvirá a minha voz” (Sl 55:17). Pedro aprenderá,
durante esta comunicação divina e a subsequente conversão de Corné-
lio, que é impossível para o servo usar as palavras “de modo nenhum” e
“Senhor” na mesma frase (10:14)! Pedro se levantará e irá até Cornélio
depois desta revelação de Deus ser esclarecida pelo Espírito. Pedro está
com dúvidas sobre o significado da comunicação de Deus: “E estando
Pedro duvidando entre si acerca do que seria aquela visão que tinha
210 A glória da oração

visto …” (10:17), mas o Espírito continua a revelação e instrui o servo:


“E pensando Pedro naquela visão, disse-lhe o Espírito: Eis que três ho-
mens te buscam. Levanta-te, pois, desce e vai com eles, não duvidando;
porque eu os enviei” (10:19-20). Assim hoje, enquanto nos comunica-
mos em oração, Deus revela a Sua mente a nós através da Sua Palavra,
o Espírito Santo revela a mente de Deus a nós e revela os detalhes de
como devemos agir para cumprir a instrução recebida.
Cornélio
Será que Deus ouve as orações do pecador? A história deste homem
devoto e piedoso dá a resposta. Notamos as quatro qualidades mencio-
nadas pelo Espírito para descrever Cornélio em 10:2. Ele era “piedoso”,
que significa “devotado”; “temente a Deus”, que indica um temor da ira
de Deus; “o qual fazia muitas esmolas ao povo”, enfatizando sua gene-
rosidade; “e de contínuo orava a Deus”, indicando petições constantes.
Os três verbos “temia”, “fazia” e “orava” são particípios presentes,
mostrando que ele se ocupava com estas atividades continuamente ou
repetidamente, e assim este versículo descreve o seu modo de vida. Este
é o tipo de pecador que Deus ouve — alguém que tem um genuíno
interesse nEle e no Seu Filho. Deus não ouve a pessoa religiosa que
pensa que sua alma está segura por causa da sua vã repetição de orações,
feitas para satisfazer a sua consciência, mas não com fé penitente. Foi
enquanto ele estava orando à hora nona, que era um dos horários ju-
daicos de oração, que ele recebeu a revelação sobre Pedro. Embora não
conheçamos as petições de Cornélio, a resposta às suas orações foi a
chegada de Pedro, que apresentou a ele a verdade sobre a pessoa de Je-
sus Cristo. Sendo preparados pelo Espírito Santo, os ouvintes de Pedro
prestaram boa atenção: “Agora, pois, estamos todos presentes diante de
Deus, para ouvir tudo quanto por Deus te é mandado” (10:33). E assim
Pedro começa a pregar o Evangelho (10:34-43) a estes ouvintes, e a
resultante bênção de salvação e batismo são a resposta à pergunta que
fizemos no início, e comprovam o que o anjo disse no v. 3: “Cornélio …
as tuas orações … têm subido … diante de Deus”. Deus ouve a oração
do pecador, desde que feita com fé.
Paulo
O próximo capítulo deste livro examinará detalhadamente as ora-
ções de Paulo, mas aqui olharemos brevemente para suas orações em
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 211

Atos. O grande valor que Paulo dava à oração é provado pelo fato que
ele era um homem de oração. A sua oração na hora da sua conversão nos
mostra sua prontidão em servir, quando ele faz a pergunta: “Senhor, que
queres que eu faça” (9:6). Ali no pó da estrada de Damasco, ele começa
um diálogo vitalício com o Céu. Parece que a sua postura perante Deus
nunca mudou, durante toda a sua vida. Desde aquela primeira conversa
com o Céu, de joelhos, ele parece permanecer naquela mesma atitude
através de todo o relato de Atos, até que em Tiro, “postos de joelhos
na praia, oramos” (21:5). Ajoelhado em oração era uma posição muito
usada por Paulo; é a postura conveniente para um suplicante sincero,
humilde. Esta posição revela intensidade e humildade perante o Deus
Todo-Poderoso. É a atitude correta de um homem perante o seu Deus,
de um pecador perante o seu Salvador e de um suplicante perante o seu
Benfeitor. Entretanto, embora devamos sempre orar “de joelhos” em re-
lação à nossa atitude perante Deus, um cristão que ora somente quando
está de joelhos não ora o suficiente! Mas convém destacar que, em Atos,
a oração é frequentemente feita por pessoas ajoelhadas, por exemplo:
7:60; 9:40; 20:36; 21:5.
Uma coisa que notamos ao lermos sobre a vida de oração de Paulo,
através do Novo Testamento, é que embora Paulo tinha o costume de
orar, ele não orava por força de hábito! O homem é uma criatura de há-
bitos, e sempre há o perigo de fazer as coisas simplesmente por rotina,
de maneira mecânica. Temos de vigiar contra isto; o hábito de Paulo era
costumeiro e de coração.
Ele iniciou a sua vida cristã com oração: “Eis que ele está orando”
(9:11). Ele tinha sido conduzido até Damasco, pois ficara cego por cau-
sa do brilho da revelação de Jesus Cristo, e embora não tivesse comido
nada por três dias, ele estava orando. Quando Ananias expressou o seu
temor de Saulo, este foi o encorajamento dado a ele: que um homem
que tinha, sem dúvida, passado a sua vida apenas fazendo orações, agora
estava realmente orando. Este fato é usado pelo Senhor, para Ananias,
como uma indicação de conversão e um sinal de vida divina. Isto nunca
mudou; aqueles que conhecem a Deus falam com Ele. A oração é o pri-
meiro exercício espiritual depois da conversão, e é de se esperar que cada
salvo verdadeiro se ocupe em oração. Como vamos saber a vontade de
Deus para a nossa vida futura se não perguntamos? Há muita confusão
hoje em dia sobre este assunto da vontade de Deus para o cristão indi-
vidualmente. Ao invés de termos uma percepção do que sentimos ser
212 A glória da oração

a vontade de Deus para nós (e esta ideia é estranha à Palavra de Deus),


Deus revelará a Sua vontade a nós através da Sua Palavra, se pedirmos.
“E, tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis” (Mt 21:22).
Em Atos 22:17, Paulo, ao dar a sua defesa aos judeus em Jerusalém,
os faz lembrar da sua vida de oração: “E aconteceu que, tornando eu
para Jerusalém, quando orava no templo, fui arrebatado para fora de
mim”. Foi enquanto estava nesta condição que ele recebeu a sua comis-
são do Senhor que o levaria a tantos lugares com o Evangelho: “Vai,
porque hei de enviar-te aos gentios de longe” (2:21). Ele dá as suas
credenciais para pregar às nações dos gentios. Isso aconteceu bem cedo
na sua vida cristã, embora ele somente fala disso aqui perto do final, mas
novamente ele mostra que como um novo convertido ele tinha confian-
ça na presença do Senhor.
Temos considerado a atividade de Paulo em oração com outros,
mas o relato das suas orações continua até o final de Atos.
De Mileto ele chama os anciãos da igreja em Éfeso para encon-
trá-lo pela última vez. Ele sabe que eles, em breve, terão de enfrentar
grandes dificuldades de dentro da igreja, que mais tarde resultarão em
serem censurados por Cristo: “Deixaste o teu primeiro amor” (Ap 2:4).
A profunda afeição de Paulo pela igreja em Éfeso é vista nas suas duas
orações por eles, registradas em Efésios 1:15-23 e 3:14-21, onde ele
ora, primeiramente, que possam realmente conhecer a luz divina, e na
segunda oração, que possam provar o amor divino. Aqui em Atos 20,
antes de se despedir destes amados santos, “pôs-se de joelhos, e orou
com todos eles” (20:36). Não sabemos o que ele orou, mas à luz do seu
ministério e das advertências dadas a eles, com certeza o seu coração
estava cheio de preocupação sobre as dificuldades prestes a chegar, e
assim, com lágrimas e afeição (mesmo depois do ministério solene re-
cebido) os anciãos de Éfeso acompanham Paulo ao navio, sem dúvida
com as palavras da sua oração por eles ainda ressoando em suas mentes.
Que recordação preciosa teriam do apóstolo, a quem nunca mais veriam
nesta vida — não somente o ministério que lhes deu, mas também a sua
oração final por eles.
Há uma situação semelhante em Tiro, quando o apóstolo fica sete
dias com os discípulos ali. É interessante que as palavras: “achando dis-
cípulos” (21:4), sugere que ele estivera procurando. Isso mostra o desejo
de Paulo em estar com o povo de Deus, mesmo quando de viagem. No
final deste tempo com os irmãos ali, há uma linda expressão de comu-
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 213

nhão: “Acompanhando-nos todos, com suas mulheres e filhos até fora


da cidade” (21:5). Isto é uma demonstração da afeição que os cristãos
sentiram pelo apóstolo. É bem possível que aqueles irmãos de Tiro nun-
ca tinham se encontrado com Paulo e seus companheiros antes disto,
no entanto, os vínculos da comunhão cristã são evidentes. Novamente,
como com os anciãos de Éfeso, houve um tempo de oração com os
cristãos na praia: “Postos de joelhos na praia, oramos” (21:5). Que lindo
testemunho num porto marítimo movimentado, ter uma reunião públi-
ca de oração!
O testemunho público do apostolo é evidenciado novamente no
navio, na viagem para a Itália, quando ele tomou pão e “deu graças a
Deus na presença de todos” (27:35). Ele tinha acabado de assegurá-los
da sua segurança na tempestade, e agora mostra a sua gratidão a Deus
pela provisão de alimento. Aqui ele dá um exemplo de falta de temor,
pela sua confiança em Deus de protegê-los na tempestade e subsequen-
te naufrágio.
A referência final à vida de oração de Paulo em Atos se encontra na
ilha de Malta, quando o pai de Públio, o homem principal da ilha, ficou
doente. Lembrando que Lucas o médico estava presente, parece que o
problema era grave demais para ser tratado pelas práticas normais da-
quela época. Paulo orou, colocou as mãos sobre ele, e a cura aconteceu.
A cura foi instantânea e completa; não pelo poder de Paulo, mas pelo
poder de Deus, por meio da oração. Este é mais um exemplo singular
do poder apostólico que existia naquele tempo e não existe mais hoje.
Embora Paulo muitas vezes ficasse atado e preso, os inimigos do Evan-
gelho nunca puderam atar as suas orações, e assim desde a casa de Judas, na
rua chamada Direita em Damasco, até as suas últimas palavras registradas,
a sua confiança em Deus é evidente. No começo, a sua confiança é vista
na sua atitude como um novo convertido, falando em oração a um Deus
que, até o momento da sua conversão, ele nunca tinha conhecido; e no fim,
como um servo fiel prestes a ser morto, quando ele podia dizer: “Desde
agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me
dará naquele dia” (II Tm 4:8). A sua confiança no seu Deus nasceu de um
relacionamento que se desenvolveu através de anos, com Paulo continua-
mente acessando a presença santa de Deus e se comunicando com Ele.
Na nossa consideração das orações de Paulo em Atos, devemos
observar que todas foram respondidas, embora, às vezes, de maneiras
talvez inesperadas.
214 A glória da oração

Ananias
Pode ser argumentado que a palavra “oração” não é usada na con-
versa entre Ananias e o Senhor em relação a Saulo. Entretanto, notamos
que Ananias falava com o Senhor sem embaraço, indicando que este
tipo de comunicação não era uma raridade para ele.
Deus tem os Seus servos em todo lugar. Aqui em Damasco estava
um servo desconhecido, de quem nunca teríamos ouvido se não fosse
pelo fato que ele costumava estar na presença do Senhor. Ele aparece
aqui, executa a instrução divina, e nunca mais ouvimos falar dele. Ele
estava pronto para servir: “Eis me aqui, Senhor” (9:10), embora um tan-
to hesitante quando soube para quem ele deveria ir. Porém, ele confia
no seu Senhor e faz como instruído: “E Ananias foi” (9:17), e assim a
bênção começa a fluir. É interessante ver nesta ocasião a mão soberana
de Deus na Sua obra, como foi também no caso de Pedro e Cornélio.
Deus está falando com Ananias no mesmo tempo em que Saulo está
orando, e tanto a atitude como as circunstâncias de ambos são tais que
eles se encontram, como determinado por Deus.
Uma lição a ser aprendida deste relato é a obediência do servo. Isso
prova que Ananias era um homem em contato com Deus. Embora te-
meroso, por causa da reputação de Saulo de Tarso, e da possibilidade
de ser ele próprio um alvo da visita de Saulo a Damasco, ele obedece
a instrução do Senhor. Ele foi, mesmo embora a sua viagem foi curta,
no máximo somente até o outro lado da cidade! Nada espetacular para
ele; outro iria “levar meu nome diante dos gentios” (9:15), mas Ananias
prontamente obedece ao Senhor.
enhor de cada pensamento e ação,
S
Senhor para enviar e Senhor para reter;
Senhor ao falar, escrever, dar,
Senhor para em tudo obedecer. (Autor desconhecido)*

Conclusão
Temos visto que a Igreja do Deus vivo se iniciou com oração, e
continuou nesta dependência em Cristo durante o período descrito em
Atos. A única oração registrada em Atos que não foi respondida foi o
pedido de Simão, o mágico, para que Pedro orasse por ele. Portanto,
* Tradução literal. O original diz: “Lord of every thought and action/Lord to send and Lord to
stay;/Lord in speaking, writing, giving,/Lord in all things to obey.” (N. T.)
Cap. 12 — As orações em Atos dos Apóstolos 215

aprendemos sobre a importância da oração na vida dos cristãos pri-


mitivos, que formavam a igreja local nas suas localidades. Hoje, nós
não podemos depreciar esta grande necessidade de continuar orando. A
única diferença espiritual hoje é que nós temos as Sagradas Escrituras
completas, coisa que eles não tinham.
Isso somente nos torna mais responsáveis a obedecermos a Palavra
de Deus. Enquanto estudamos as Escrituras, sabemos que Deus nos
manda orar; não temos escolha neste assunto. Não é verdade que se
Deus é o nosso Pai, devemos estar conversando regularmente com Ele?
A oração é milagrosa. Homens finitos, mortais, falando com o Deus
Todo Poderoso, e sendo ouvidos por Ele, enquanto, ao mesmo tem-
po, há milhares de outros irmãos também fazendo suas petições a Ele!
Como aqueles em Atos, precisamos aprender que a oração é uma parte
integrante da nossa vida. Embora oremos em situações de emergência, e
às vezes apresentemos petições longas, uma vida ativa de oração é mais
que isso. A oração sempre tem sustentado os cristãos. Eles sempre têm
reconhecido que a oração é tão importante quanto o ar que respiram.
Sem a oração, a vida espiritual murcha e morre, e nenhum relaciona-
mento com Deus pode existir sem uma comunhão ativa e constante de
oração. Martinho Lutero escreveu:
Embora eu seja pecador e indigno, eu ainda tenho o mandamento
de Deus que me manda orar, e tenho a Sua promessa de que Ele em
graça me ouve, não por causa do meu mérito, mas por causa do
Senhor Jesus Cristo.

Sempre há perguntas, dificuldades e provações para desafiar os


santos enquanto tentam orar. Às vezes achamos difícil compreender a
grandeza de Deus, mas a oração é real e maravilhosa enquanto temos
comunhão com o Deus Todo Poderoso que está disponível para ouvir
os nossos clamores. Nunca devemos nos esquecer disto e tentar limitar
Deus ao nosso próprio sistema de pensamentos, como se Ele fosse um
homem.
Precisamos do espírito de oração em nossos dias. A vitalidade es-
piritual somente vem através da oração persistente, como foi nos dias
de Atos. Devemos orar com confiança e segurança, fazendo nossas pe-
tições por outros e por nós mesmos, porque conhecemos Aquele de
Quem pedimos. Chegando com fé a Deus por meio do nosso Senhor
Jesus Cristo seremos ouvidos. Entretanto, será que hoje deveríamos es-
tar pedindo, como os discípulos: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11:1)?
216 A glória da oração

Que variados obstáculos encontramos


Ao nos aproximar do trono da graça!
Mas quem, conhecendo o valor da oração,
Não deseja estar frequentemente ali?
A oração afasta a nuvem negra,
A oração escala a escada que Jacó viu,
Exercita a fé e o amor,
Traz todas as bênçãos do alto.
Limitando a oração, deixamos de lutar;
A oração torna a armadura do cristão brilhante,
E Satanás treme quando vê
O santo mais fraco de joelhos.
Enquanto Moisés mantinha os braços erguidos,
Israel obtinha sucesso;
Mas quando cansado ele os baixava,
Naquele momento Amaleque prevalecia.
Você não tem palavras? Ó, pense novamente,
Elas são fluentes quando você reclama,
E enchem os ouvidos dos seus semelhantes
Com a triste história de todas as suas preocupações.
Se a metade do fôlego assim gasto em vão
Fosse utilizada em súplicas aos Céus,
O seu cântico alegre, mais frequentemente, seria:
Ouça o que o Senhor tem feito por mim. (William Cooper)*

* Tradução literal. O original diz: “What various hindrances we meet/In coming to the mercy
seat! /Yet who that knows the worth of prayer, /But wishes to be often there?//Prayer makes
the darken´d cloud withdraw,/Prayer climbs the ladder Jacob saw, /Gives exercise to faith and
love,/Brings every blessing from above.//Restraining prayer, we cease to fight;/Prayer makes
the Christian´s armour bright;/And Satan trembles when he sees/The weakest saint upon his
knees.//While Moses stood with arms spread wide,/Success was found on Israel´s side;/But
when through weariness they fail´d,/ That moment Amalek prevailed.//Have you no words? Ah,
think again,/Words flow apace when you complain/ And fill your fellow creature´s ear/ With
the sad tale of all your care.//Were half the breath thus vainly spent/To heaven in supplication
sent/Your cheerful song would oftener be, /Hear what the Lord has done for me.” (N. T.)
Cap. 13 — As orações de Paulo
Por John M. Riddle, Inglaterra

Introdução
Tendo sido guiado “pela mão” até Damasco, o novo convertido,
Saulo de Tarso, evidentemente se entregou imediatamente à oração, a
tal ponto que ao instruir Ananias o Senhor lhe disse: “Levanta-te, e vai
à rua chamada Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de
Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando” (At 9:11). Este foi
o começo de uma vida inteira de oração a favor tanto de igrejas como
de indivíduos. Por exemplo, ele orava “noite e dia” a favor da igreja em
Tessalônica (I Ts 3:10), e “noite e dia” por Timóteo (II Tm 1:3).
Visto que Paulo orava numa grande variedade de circunstâncias, e
numa grande variedade de maneiras, este capítulo não poderá incluir
todo o assunto. Tendo em mente os limites do espaço disponível, da-
remos atenção somente às duas orações de Paulo pela igreja em Éfeso
(Ef 1:15-23 e 3:14-21), juntamente com suas orações pelos cristãos em
Filipos (Fp 1:9-11) e em Colossos (Cl 1:9-14).

A primeira oração pelos efésios (Ef 1:15-23)


Podemos dizer que na sua primeira oração pelos cristãos em Éfeso,
Paulo ora pela iluminação do seu entendimento: “Tendo iluminados
os olhos do vosso entendimento” (1:18), e que na segunda ele ora pelo
enriquecimento da sua apreciação de amor divino: “E conhecer o amor
de Cristo, que excede todo o entendimento” (3:19). Considerando agora
a sua primeira oração, devemos notar:
• O contexto da sua oração — v. 15;
• A constância das suas orações — v. 16;
• O conteúdo da sua oração — vs. 17-23.
O contexto da sua oração (v. 15)
“Por isso, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus,
e o vosso amor para com todos os santos …” Destaque especial é dado
218 A glória da oração

ao fato que as qualidades excelentes dos cristãos em Éfeso estimulavam


oração por mais progresso. A situação em Corinto era muito diferente,
e necessitava de ensino corretivo. O progresso espiritual somente pode
ser alcançado quando existem as condições certas. A mesma lição pode
ser discernida nas orações de Paulo pelas igrejas em Filipos e Colossos:
“Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós … E
peço isto: que o vosso amor cresça mais e mais em ciência e em todo o
conhecimento” (Fp 1:3, 9); “Graças damos a Deus, Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, orando sempre por vós, porquanto ouvimos da vossa fé
em Cristo Jesus, e do amor que tendes para com todos os santos … não
cessamos de orar por vós, e de pedir que sejais cheios do conhecimento
da sua vontade” (Cl 1:3-4, 9). Paulo não somente ensinou os salvos em
Éfeso (1:1-14), mas também orou para que o seu ensino fosse entendi-
do e que tivesse efeito nas suas vidas (1:15-23). Seu exemplo deve ser
imitado hoje. Muito mais é exigido de um ensinador da Bíblia do que
somente entregar uma mensagem.
A constância das suas orações (v. 16)
“Não cesso de dar graças a Deus por vós, lembrando-me de vós nas
minhas orações”. As palavras “lembrando-me” não significam uma bre-
ve menção, mas transmitem a ideia de uma lembrança constante, como
muito bem explicado em outros lugares do Novo Testamento: “Sempre
damos graças a Deus por vós todos, fazendo menção de vós em nossas
orações, lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho do
amor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo” (I Ts
1:2-3). Informação deve produzir intercessão. A regularidade das ora-
ções de Paulo (“não cesso”) é ainda mais notável quando lembramos que
ele estava na prisão. Ele bem poderia ter concentrado suas orações nas
suas circunstâncias pessoais!
A oração de Paulo aqui inclui louvor (“Sempre damos graças a
Deus por vós todos”) e petição (“fazendo menção de vós em nossas
orações”). Evidentemente ele praticava o que ensinava: “Perseverai na
oração, velando nela com ação de graças” (Cl 4:2). Devemos observar
que Paulo começa com ações de graças, enquanto nós, frequentemente,
começamos com petições! Paulo incentivou os santos em Filipos a não
estarem “inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em
tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplica, com ação de gra-
ças” (Fp 4:6). Quão necessário é que o povo do Senhor seja constante
Cap. 13 — As orações de Paulo 219

e firme nas suas ações de graças e orações, mesmo em circunstâncias


adversas!
O conteúdo da sua oração (vs. 17-23)
Paulo ora pelo progresso espiritual deles em geral (v. 17) e também
pelo progresso deles em assuntos específicos (vs. 18-23), lembrando-
-nos das palavras do hino:
Você tem crido no Senhor?
Ainda há mais por vir:
Você tem recebido da Sua graça?
Ainda há mais por vir. (Philip P. Bliss)*

Seu progresso espiritual em geral (v. 17)


“Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos
dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação”. Foi
dito, de maneira linda que, como Deus Ele Se responsabiliza, e como
Pai Ele entende. No Velho Testamento, a oração frequentemente era
feita ao “Deus de Abraão”, ao “Deus de Jacó” e ao “Deus de Israel”,
mas Paulo agora O chama de “o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo”,
porque “por Ele ambos [judeus e gentios] temos acesso ao Pai em um
mesmo Espírito” (Ef 2:18). Ele é chamado “o Pai da glória” não somente
porque Ele é a fonte de toda a glória, mas porque a Sua glória é o alvo
das Suas intenções para o Seu povo redimido (Ef 1:6, 12, 14, 18).
Paulo ora para que Deus lhes desse “em seu conhecimento o es-
pírito de sabedoria e de revelação”, ou “um espírito de sabedoria e de
revelação no pleno conhecimento dele” (VB). Embora isto não seja, evi-
dentemente, uma referência direta ao Espírito Santo, pois os efésios já
O tinham recebido (1:13), é verdade que “sabedoria e revelação” não po-
dem ser possuídas sem o Espírito de Deus (I Co 2:10-13). “Sabedoria” é
capacidade divinamente dada. É intensamente prática: “a sabedoria que
do alto vem é, primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável,
cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocri-
sia” (Tg 3:17). “Revelação” é verdade divinamente dada. Segundo W. E.
Vine†, é a “comunicação do conhecimento de Deus à alma”. Portanto,
* Tradução literal. O original diz: “Have you on the Lord believed?/Still there´s more to follow:/
Of His grace have you received?/Still there´s more to follow.” (N. T.)
† VINE, W. E. Expository Dictionary of New Testament Words. Iowa: World Bible Publishers,
1992.
220 A glória da oração

Paulo ora, não somente que os santos sejam recebedores de informação


divina, mas que eles possam ter a habilidade para usá-la. Estas como-
didades espirituais são comunicadas “em Seu conhecimento”. Com o
uso da palavra “conhecimento” (epignosis), que significa “conhecimento
experimental” de Deus, aprendemos que possuir estas coisas inclui co-
participação e comunhão com Ele. Isto conduz ao:
Seu progresso espiritual especificamente (vs. 18-23)
Paulo continua: “Tendo iluminados os olhos do vosso entendimen-
to”, ou “iluminados os olhos do vosso coração” (ARA). Isso está em
contraste direto com os incrédulos, que são “entenebrecidos no enten-
dimento” (4:18). Paulo se refere aqui à visão interna. O coração é usa-
do nas Escrituras, figurativamente, para ilustrar a vida interior de uma
pessoa (Pv 4:23; 23:7), e seu uso aqui sugere apreciação espiritual, e não
mera aceitação intelectual. Iluminação divina dará ao povo do Senhor
capacidade: “para que saibais [oida, “saber plenamente”] qual seja a es-
perança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos
santos, e qual a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos” (vs. 18-19).

“Qual seja a esperança da sua vocação” (v. 18). Paulo ora aqui pelo seu
encorajamento.
Em certo sentido a esperança e a vocação são inseparáveis. A
vocação, no sentido geral, seria a totalidade dos nossos privilégios e
bênçãos futuras nEle, e aparentemente inclui todas as bênçãos desde
a conversão até a glorificação. A esperança incluiria a antecipação
e expectativa de tudo que cremos. Mas, em outro sentido, a esperan-
ça é distinta da vocação: é a inspiração que vem pela contemplação
da vocação.*

A vocação é definida neste mesmo capítulo: “Como também nos


elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fossemos santos e
irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para filhos de
adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua
vontade, para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis
a si no Amado” (vs. 4-6). A “esperança da sua vocação” é descrita de
maneira linda pelo apóstolo na epístola aos Romanos: “Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à ima-

* MUIR, A. G. Prayers from Prison em Believers Magazine. Kilmarnock: John Ritchie Ltd., 1972.
Cap. 13 — As orações de Paulo 221

gem de seu Filho … E aos que predestinou a estes também chamou; e


aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes
também glorificou” (Rm 8:29-30).
É mesmo assim? Seremos como o Seu Filho!
É esta a graça que Ele para nós conquistou?
Pai da glória — meditação inigualável —
Na glória, transformados em Sua semelhança bendita. (J. N. Darby)*

“E quais as riquezas da glória da sua herança nos santos” (v. 18). Aqui,
Paulo ora pelo seu enriquecimento. Este capítulo trata do assunto de
herança de uma maneira dupla. Em primeiro lugar, como cristãos, nós
temos uma herança: “o Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor
da nossa herança” (vs. 13-14). No Velho Testamento, os levitas tinham
uma herança singular: “Os sacerdotes levitas, toda tribo de Levi, não
terão parte nem herança com Israel … o Senhor é a sua herança, como
lhes tem dito” (Dt 18:1-2). Em segundo lugar, e é isto que é enfatizado
na oração de Paulo, Deus tem uma herança em nós. Paulo se refere
agora, não à “nossa herança”, mas a “Sua herança”. Ele já mencionou
isto neste capítulo (v. 11): “Nele, digo, em quem também fomos feitos
herança”. O Senhor também viu o Seu povo como a Sua herança no
Velho Testamento: “Mas o Senhor vos tomou … para que lhe sejas por
povo hereditário, como neste dia se vê” (Dt 4:20; veja também Dt 32:9;
Sl 33:12). As palavras “as riquezas da glória da sua herança nos santos”
possivelmente se referem a Êxodo 19:5: “Então sereis a minha proprie-
dade peculiar dentre todos os povos”, e revelam o valor e a preciosidade
da Igreja para Deus. Um aspecto das “riquezas da glória da sua herança
nos santos” é enfatizado mais tarde na epístola, onde a Igreja é vis-
ta como uma demonstração, ao Universo, da multiforme sabedoria de
Deus, especialmente na dissolução da parede de separação entre o judeu
e o gentio (Ef 3:10). Agora, enquanto Deus olha para a Sua herança
celestial, Ele deve ver um povo que age de uma maneira digna deste
privilégio. Este fato assombroso deve aprofundar a adoração cristã, in-
centivar o serviço cristão, e dar dignidade ao viver cristão.

“E qual a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que


* Tradução literal. O original diz: “And is it so? We shall be like thy Son!/Is this the grace which
He for us has won?/Father of glory, thought beyond all thought,/In glory, to His own blest likeness
brought.” (N. T.)
222 A glória da oração

cremos” (v. 19). Aqui Paulo ora pelo seu esclarecimento com respeito
ao grande poder de Deus. Foi comentado que Paulo usa todos os recur-
sos do seu vocabulário para descrever o poder disponível ao cristão, e
que ele faz isto por causa da suprema demonstração daquele poder na
ressurreição do Senhor Jesus (vs. 19-20). Também foi afirmado*, niti-
damente, que a oração de Paulo pela sua iluminação espiritual “desafia
seus leitores a agir. A oração não é um sedativo, mas é um estimulante”.
F. F. Bruce† merece uma citação extensa aqui:
Quando Paulo pensa no poder de Deus, ele reúne todos os termos
do seu vocabulário que expressam poder, para transmitir algo do
seu caráter inexplicável. Paulo é o único escritor no Novo Testamento
que usa a palavra aqui traduzida “sobre-excelente” (hyperballon), e
ele a usa cinco vezes … Mas, ainda não satisfeito com esta palavra
superlativa, ele continua acrescentando sinônimo a sinônimo ao
descrever como o poder (dynamis) de Deus opera segundo a opera-
ção (energeia) da força (kratos) do seu poder (ischys). Por que esta
tentativa de esgotar todos os recursos gramaticais para demonstrar
algo da grandeza do poder de Deus? É porque ele está pensando
numa ocasião suprema quando aquele poder foi manifestado … Se
a morte de Cristo é a demonstração principal do amor de Deus, a
demonstração principal do Seu poder é a ressurreição de Cristo.

Paulo persistentemente descreve o poder espiritual do cristão com


referência, não à Criação, mas à ressurreição do Senhor Jesus. Os se-
guintes exemplos devem ser notados: “De sorte que fomos sepultados
com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em
novidade de vida” (Rm 6:4); “Já estou crucificado com Cristo; e vivo,
não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20); “Para conhecê-lo,
e a virtude da Sua ressurreição” (Fp 3:10). Além disso, o poder que
foi revelado na Sua ressurreição continuou a ser manifestado na Sua
exaltação (Ef 1:20-21). Paulo orava para que os cristãos em Éfeso sou-
bessem “qual a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos … que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos,
e pondo-o à sua direita nos céus”.
Tendo subido, o Senhor Jesus está acima de todas as forças angeli-
cais e espirituais. Ele está “acima de todo o principado, e poder, e potes-
tade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século,
* MORRISON, W. K. Prayer in the New Testament em Believers Magazine. Kilmarnock: John
Ritchie Ltd., Agosto 1962.
† BRUCE, F. F. The Epistle to the Ephesians. Pickering and Inglis, 1970.
Cap. 13 — As orações de Paulo 223

mas também no vindouro” (Ef 1:21), e, portanto, acima dos poderes es-
pirituais colocados contra os filhos de Deus (Ef 6:12). Ele não somente
está acima deles (v. 21), mas tem domínio sobre eles: “e sujeitou todas as
coisas a Seus pés” (v. 22). Todas as coisas foram colocadas debaixo dos
pés de Adão na Terra (Sl 8:6), e todas as coisas estão debaixo dos pés de
Cristo nos Céus e na Terra. Os principados e potestades são vistos em
relação aos pés do Senhor Jesus Cristo: a Igreja é vista em relação a Ele
como sua Cabeça glorificada. A Igreja desfruta de um relacionamento
singular com Ele; na Sua ressurreição e ascensão, Deus “o constituiu
como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cum-
pre tudo em todos” (Ef 1:22-23). A palavra “plenitude” significa “o com-
plemento”. Eva era o complemento de Adão. As palavras “que cumpre
tudo em todos” se referem ao fato que Cristo preenche o Universo todo,
e enfatizam a dignidade da posição conferida à Igreja, que é o comple-
mento de Cristo. Isso é muito comovente quando lembramos que o
Senhor Jesus tem domínio sobre todas as coisas (vs. 21-22), e que Ele é
cabeça sobre todas as coisas para a Igreja (v. 22), e que Ele preenche o
Universo todo (v. 23).

A segunda oração pelos efésios (Ef 3:14-21)


Como já foi observado, a segunda das duas orações registradas de
Paulo pelos cristãos em Éfeso tem em vista o enriquecimento da sua
apreciação do amor divino: “conhecer o amor de Cristo, que excede
todo o entendimento”. O aprofundamento da sua apreciação pelo amor
de Cristo flui da sua apreciação mais profunda das imensas bênçãos às
quais Ele os trouxe (vs. 18-19). Devemos notar:
• O contexto da sua oração — v. 14a;
• A competência do Pai — vs. 14b-16a;
• O conteúdo da sua oração — vs. 16b-19;
• A doxologia — vs. 20-21.
O contexto da sua oração (v. 14a)
O contexto da sua oração é, obviamente, os vs. 1-12, onde ele fala
sobre “o mistério … o qual noutros séculos não foi manifestado aos
filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus
santos apóstolos e profetas … o mistério, que desde os séculos esteve
oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo”. Aquele “mis-
224 A glória da oração

tério” divino é a Igreja na qual judeu e gentio, representando a mais pro-


funda divisão humana, são feitos “um novo homem”. Os gentios foram
feitos “coerdeiros, e de um mesmo corpo, e participantes da promessa
em Cristo pelo evangelho” (3:6).
Isso leva Paulo a fazer dois pedidos. O primeiro é feito aos efésios:
“Portanto, vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós,
que são a vossa glória” (v. 13). O segundo é feito a Deus: “Por causa
disso me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo
… para que … vos conceda …” (vs. 14-21).
Portanto, o contexto da oração pode ser resumido da seguinte ma-
neira:
• O mistério revelado a Paulo (vs. 2-6): “Como me foi este mistério
manifestado” (v. 3);
• O mistério revelado por Paulo (vs. 7-13): “E demonstrar a todos
qual seja a dispensação do mistério” (v. 9);
• Isso leva ao “mistério” sendo entendido pelos efésios: “Poderdes
perfeitamente compreender, com todos os santos” (v. 18);
• Também leva à sua oração a favor deles: “Por causa disto me ponho
de joelhos perante o Pai do nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 14). De-
vemos observar a postura reverente de Paulo.
Como já foi notado, Paulo ensina e também ora para que seus leito-
res possam compreender o ensino da sua epístola. Devemos acrescentar
que Paulo não somente ora que possam compreender seu ensino, mas
que possam apreciar o amor divino revelado neste ensino. “A fim de …
poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja
a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o
amor de Cristo, que excede todo o entendimento” (vs. 18-19). Precisa-
mos lembrar que o propósito da doutrina Bíblica não é somente infor-
mar a mente, mas também comover o coração.
A competência do Pai (vs. 14b-16a)
Paulo dirige a sua oração ao “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e a
opinião da maioria das autoridades de que as palavras “do nosso Senhor
Jesus Cristo” devem ser omitidas ( JND discorda) não altera a ênfase
dada ao Seu amor como Pai de “toda a família nos céus e na terra” (v.
15). É fácil pensar que isso se refere à afirmação no Velho Testamento:
“De todas as famílias da terra só a vós vos tenho conhecido” (Am 3:2),
Cap. 13 — As orações de Paulo 225

e que as palavras “toda a família”, tendo em vista o ensino anterior,


indicam que os gentios agora são, juntamente com os judeus, “coerdei-
ros, e de um mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo
evangelho” (v. 6). Com isto em mente, W. Hendriksen* afirma que a
tradução “do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome” está
correta em relação ao contexto, e que toda a ênfase da passagem está na
unidade da Igreja, e não numa série de famílias. Mas é necessário dizer
que esta não é a interpretação normal, e que na opinião da maioria dos
comentaristas a passagem se refere, não a uma só família, alguns dos
quais estão nos Céus e alguns na Terra, mas a famílias diferentes.
Este não é o lugar para uma discussão técnica, mas para observar-
mos a oração de Paulo para que o Pai, pelos Seus recursos infinitos,
fortaleça a vida interior dos cristãos em Éfeso, para que eles possam
compreender o que ele os ensinou, juntamente com o amor que tornou
isto possível (vs. 18-19). Estes recursos são descritos como “as riquezas
da Sua glória”. A riqueza divina é liberalmente distribuída em Efésios
caps. 1-3: “as riquezas da sua graça” (1:7); “riquíssimo em misericórdia”
(2:4); “as riquezas da sua glória” (3:16).
Entre outras coisas, a glória de Deus é a combinação perfeita de
todo atributo divino. O pedido de Moisés: “Rogo-te que me mostres a
Tua glória” (Êx 33:18), foi respondido quando, “passando … o Senhor
perante ele, clamou: O Senhor, o Senhor Deus, misericordioso e piedo-
so, tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade; que guarda a
beneficência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a transgressão e o
pecado; que ao culpado não tem por inocente” (Êx 34:6-7). Em relação
a isto, é significativo que ao testificar do Senhor Jesus, João escreve:
“Vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai”, e continua
dizendo: “cheio de graça e de verdade” ( Jo 1:14). Não há insuficiência
com Deus. Ele tem prazer em abençoar o Seu povo por meio dos Seus
recursos infinitos: “O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas
as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus” (Fp 4:19); “corrobo-
rados em toda a fortaleza, segundo a força da sua glória” (Cl 1:11).
O conteúdo da sua oração (vs. 16b-19)
Destacamos a maneira como uma parte da oração se funde perfei-
tamente com a próxima até atingir o seu clímax nas palavras: “para que
sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (v. 19). Com isto em mente,
* HENDRIKSEN, W. Ephesians. Londres: The Banner of Truth Trust, 1972.
226 A glória da oração

devemos notar as palavras “para que”. W. Hendriksen* compara as par-


tes da oração aos degraus de uma escada, conduzindo progressivamente
para o alto.
O fortalecimento do Espírito (v. 16b)
Entre os recursos infinitos de Deus está a capacidade de fortalecer
o Seu povo. Assim, Paulo ora que “segundo as riquezas da sua glória”,
os salvos em Éfeso fossem “corroborados com poder pelo seu Espírito
no homem interior”. Isso não se refere ao poder espiritual para o ser-
viço (como, por exemplo, em Atos 1:8), mas ao fortalecimento do seu
entendimento. No contexto da sua oração, Paulo tem em mente, aqui,
a capacidade espiritual para compreender o “mistério” sobre o qual ele
escreveu nos vs. 1-11. O assunto do uso dos dons no serviço da igreja
não é tratado aqui, será tratado mais tarde na epístola. Tal compreensão
vem, não por meio de educação secular, raciocínio lógico, ou capacidade
natural, mas “pelo seu Espírito no homem interior”.
A presença e poder do Espírito Santo na vida do salvo, embora seja
maravilhoso, não é o alvo em si. Nos leva a apreciar:
A habitação de Cristo (v. 17a)
“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações”. O Senhor Je-
sus disse: “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para
que fique convosco para sempre … mas vós o conheceis, porque habita
convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós”
( Jo 14:16-18). O Espírito Santo não veio para substituir Cristo, mas
para tornar maravilhosamente possível para os salvos desfrutarem da
Sua presença nos seus corações e nas suas vidas. Como diz A. Leckie:
“É verdade que Cristo está em todo cristão ( Jo 14:20; II Co 13:5), mas
aqui temos algo mais”.† O verbo traduzido habitar (katoikeo) “realmente
significa acomodar-se numa morada, morando permanentemente num
lugar … é usado para descrever a habitação de Cristo nos corações dos
salvos (‘possa fazer morada nos vossos corações’)” (W. E. Vine‡). F. F.
Bruce§ destaca que o tempo do verbo “habitar” é o aoristo, e, portanto,

* HENDRIKSEN, W. Ibid.
† LECKIE, A. Comentário Ritchie do NT — vol 9. Pirassununga: Ed. Sã Doutrina, 1996.
‡ VINE, W. E. Ibid.
§ BRUCE, F. F. Ibid.
Cap. 13 — As orações de Paulo 227

o v. 17 poderia ser traduzido: “Para que Cristo faça a Sua morada em


vossos corações”. Isso deve ser comparado com João 14:23. Quem faz
uma morada em nossos corações não pode ser um desconhecido. Esta
situação feliz não é alcançada pelo esforço do cristão, mas pela aceitação
alegre deste fato, pela fé. Isso produz:
O progresso dos santos (v. 17b)
“A fim de, estando arraigados e fundados em amor”. O conhecimen-
to experimental de Cristo em nossos corações produz mais progresso
espiritual. Paulo usa as figuras de uma planta saudavelmente enraizada e
de um edifício solidamente alicerçado. A presença do “Filho do amor de
Deus” nos corações do Seu povo somente pode promover amor por Ele,
e amor de uns para com os outros. Não existe terra melhor para cresci-
mento espiritual, ou um alicerce melhor para a estabilidade espiritual.
Estar “arraigados … em amor” significa “suportando-vos uns aos outros
em amor” e “seguindo a verdade em amor” (Ef 4:2, 15), e assim demons-
trando o amor prático que deve fluir do Seu amor por nós: “como Eu
vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis” ( Jo 13:34).
Estar “fundado em amor” indica estabilidade, e o cristão que edifica
sobre este alicerce não será facilmente abalado pelos ataques de Satanás.
Isso nos leva à próxima parte da oração de Paulo. Tendo orado para que
eles sejam fortalecidos pelo Espírito no homem interior (v. 16), e que
possam conhecer a realidade de Cristo habitando nos seus corações pela
fé, produzindo o progresso espiritual (v. 17), o apóstolo agora explica
que isto os fará apreciar a grandeza da sua posição como participantes
no “mistério … o qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos
dos homens” (Ef 3:4-5).
A compreensão dos santos (v. 18)
“A fim de … poderdes perfeitamente compreender, com todos os
santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade
…” A palavra traduzida “compreender” (katalambano) realmente signi-
fica “apreender”, ou seja, “segurar como possessão pessoal, apropriar-se
de” (W. E. Vine*). A. Leckie† observa:
Deixando assim a frase incompleta, o apóstolo não menciona o ob-

* VINE, W. E. Ibid.
† LECKIE, A. Ibid.
228 A glória da oração

jeto. O objeto não é “o amor de Cristo” (v. 19), pela simples razão
de que o v. 19 é outra frase.

Ele continua:
Parece que o apóstolo está pensando no mistério que, na sua largura
e comprimento, inclui elementos tão opostos, como o judeu e o
gentio, e que na sua profundidade supre a necessidade de ambos,
enquanto que na sua altura glorifica a Deus.

O progresso nas coisas divinas inclui comunhão: isso somente pode


acontecer “com todos os santos”. O cristão que tem pouco apetite para
comunhão dificilmente desejará progredir nas coisas de Deus, e não po-
demos esperar que consiga compreender “qual seja a largura, e o com-
primento, e a altura, e a profundidade” do “mistério [que] agora tem
sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas” (v. 5).
Estas “dimensões” refletem ensino já dado, e destacam o seguinte:
“A largura”. Este é o assunto de ensino anterior no qual a grande
verdade da união do judeu e do gentio em Cristo é desenvolvida. Que
grande amplitude de propósito é expressa nas palavras: “Derrubando a
parede da separação que estava no meio” (2:14). Além disso a “largura”
do mistério pode ser entendida neste mesmo capítulo: “A saber, que os
gentios são coerdeiros, e de um mesmo corpo, e participantes da pro-
messa em Cristo pelo evangelho” (v. 6). Que Deus, no final, iria aben-
çoar as nações gentias em geral havia sido entendido, há muito, pelos
profetas hebreus, mas não havia qualquer sugestão de que perderiam a
sua identidade sob o reino beneficente do Messias de Israel, enquanto
que no tempo presente o judeu e o gentio compartilham de um corpo,
a Igreja. Cristo tem feito “em si mesmo dos dois um novo homem, fa-
zendo a paz, e pela cruz [reconciliou] ambos com Deus em um corpo”
(Ef 2:15-16). Paulo tinha grande prazer não só na verdade sublime da
Igreja, mas também no fato que a ele foi dado o privilégio de anunciar
“entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis
de Cristo; e demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério…”
(3:8-9).
“O comprimento”. Isso também relembra ensino dado anterior-
mente na epístola. A Igreja, incorporando o judeu e o gentio em um
corpo, era um “mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus”
(3:9). Além disso, a Igreja revela “a multiforme sabedoria de Deus”, e
faz isto “segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso
Senhor” (3:10-11). Portanto, qualquer cálculo sobre o comprimento do
Cap. 13 — As orações de Paulo 229

mistério precisa começar na eternidade! Mas isso não é tudo, precisa


também continuar na eternamente! “Para mostrar nos séculos vindou-
ros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade para co-
nosco em Cristo Jesus” (2:7). Tal é o seu comprimento.
“A profundidade”.Todos os que participam das ricas bênçãos da
dispensação presente, sejam judeus ou gentios, antes estavam “mortos
em ofensas e pecados” e eram “filhos da desobediência. Entre os quais
todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazen-
do a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos
da ira, como os outros também”. Mas, no Seu amor e na Sua misericór-
dia, Deus nos alcançou, e “estando nós ainda mortos em nossas ofensas,
nos vivificou juntamente com Cristo” (2:1-5). A base sobre a qual Ele
fez isto é explicada claramente: “Em quem temos a redenção pelo seu
sangue” (1:7); “Pelo sangue de Cristo chegastes perto ” (2:13).
Desde o resplendor do Seu trono eterno
Veio o Senhor da glória, propiciar a nossa culpa;
Filho do eterno Deus, Ele foi o fiador do pecador,
Pagou o resgate dos pecadores com Seu precioso sangue. (Anônimo)*
“A altura”. Se Deus em misericórdia e amor divino nos alcançou
em Cristo, Ele também “nos ressuscitou juntamente com Ele e nos fez
assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos sécu-
los vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade
para conosco em Cristo Jesus” (2:6-7). Os cristãos hoje podem concor-
dar plenamente com Ana, que disse: “Levanta o pobre do pó, e desde o
monturo exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes,
para o fazer herdar o trono de glória” (I Sm 2:8).
Mas tudo isto não é simplesmente informação. Ao compreender as
dimensões do mistério podemos apreciar mais e mais “o amor de Cristo,
que excede todo o entendimento”. Isto nos leva a:
O amor de Cristo (v. 19)
Paulo orou ainda mais para que a compreensão deles do “misté-
rio, o qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens”
(3:5) se aprofundasse, assim enriquecendo a sua apreciação do “amor de

* Tradução literal. O original diz: “Down from the splendour of His everlasting throne/Came the
Lord of glory, for our guilt to atone;/ Son of eternal God, He the sinner´s surety stood,/Paid the
sinner´s ransom in His precious blood.” (N. T.)
230 A glória da oração

Cristo, que excede todo o entendimento”. A palavra que Paulo usa para
“conhecimento” (ginosko) “frequentemente sugere começo ou progresso
em conhecimento” (W. E. Vine*). Este é um conhecimento diferente e
inclui, não somente a aceitação de fatos, mas uma apreciação que trans-
cende os processos normais de compreensão intelectual.
A. Leckie† sugere que “o amor de Cristo” nesta epístola
[…] significa Seu amor para com a Igreja (5:25-27). Se a largura, o
comprimento, a profundidade, e a altura, do v. 18, podem ser com-
preendidos, o amor de Cristo excede (hyperballousan, “ultrapassar”)
todo o entendimento; porém ele não é desconhecível.

É uma lição solene relembrar que, anos mais tarde, o próprio Se-
nhor Jesus Cristo precisou dizer a esta mesma igreja: “Deixaste o teu
primeiro amor” (Ap 2:4).
Mas até mesmo conhecer “o amor de Cristo, que excede todo o en-
tendimento” não é, em si mesmo, um fim. Entendido corretamente, terá
um efeito transformador nas vidas do Seu povo. Isso nos leva a:
A plenitude de Deus (v. 19)
“Para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus”, ou “que sejais
cheios até de toda a plenitude de Deus” ( JND). Com isso o apóstolo
chega ao clímax do seu pedido.
A. Leckie afirma que
[…] “a plenitude de Deus” não é o mesmo que a “plenitude da
divindade” (Cl 2:9), pois esta é incomunicável. Qualquer que seja
esta plenitude, ninguém jamais poderia contê-la. A plenitude de
Deus deve ser aquilo que de Deus é comunicável aos santos, a
saber: “cheios do conhecimento da sua vontade” (Cl 1:9); ‘o Deus de
esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença” (Rm 15:13);
“participantes da natureza divina” (II Pe 1:4); e “todos nós recebe-
mos também da sua plenitude, e graça por graça” (Jo 1:16).‡

A doxologia (vs. 20-21)


“Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundan-
temente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que
em nós opera, a esse glória na igreja, por Jesus Cristo, em todas as gera-

* VINE, W. E. Ibid.
† LECKIE, A. Ibid.
‡ LECKIE, A. Ibid.
Cap. 13 — As orações de Paulo 231

ções, para todo o sempre. Amém.” Devemos notar as expressões “àquele


que é poderoso” (v. 20); e “a esse glória” (v. 21).
Àquele que é poderoso (v. 20) — Paulo não diz “além daquilo que
podemos pedir ou pensar”, mas “além daquilo que pedimos ou pensa-
mos”. Ele está pensando nos pedidos feitos na sua oração! Deus é po-
deroso para fazer muito mais do que ele pediu (“muito mais abundan-
temente” significa “com superabundância, além de toda medida”). No
contexto imediato da doxologia, Ele é mais do que capaz de capacitar
o Seu povo a compreender o caráter sublime destas verdades “agora …
reveladas pelo Espírito” (3:5), mas certamente também é correto acres-
centar que Deus é poderoso para “fazer tudo muito mais abundante-
mente além daquilo que pedimos ou pensamos”! O poder para conhecer
e desfrutar deste recurso reside em cada cristão: é “o poder que em nós
opera”.
A esse glória (v. 21) — As palavras “em todas as gerações, para todo
o sempre”, ou “a todas as gerações da era das eras” ( JND) evidentemen-
te se referem ao reino milenar do Senhor Jesus. A. Leckie* comenta:
Se o século dos séculos é o futuro milênio, e creio que é, então a
Igreja, na sua relação singular com Cristo, será vista pelas gerações
futuras para glória do Pai. Hoje, a Igreja, na Terra, exibe aos seres
angelicais nos lugares celestiais a multiforme sabedoria de Deus (v.
10). No século dos séculos ela manifestará, do seu lugar celestial
com Cristo Jesus, glória ao Pai às gerações dos homens na Terra.

Excede todo o entendimento, este Teu querido amor,


Meu Jesus, Salvador; no entanto esta minha alma
Deseja do Teu amor, em toda a sua largura e comprimento,
Sua altura e profundidade, sua força eterna,
Mais e mais conhecer.
E quando meu Jesus, face a face eu ver,
Quando diante do Seu trono elevado meu joelho eu dobrar,
Então do Seu amor, em toda a sua largura e comprimento,
Sua altura e profundidade, sua força eterna,
Minha alma cantará. (M. Shekleton)†
* LECKIE, A. Ibid.
† Tradução literal. O original diz: “It passeth knowledge, that dear love of Thine, /My Jesus,
Saviour; yet this soul of mine/ Would of thy love, in all its breadth and length,/ Its height and
depth, its everlasting strength,/ Know more and more.//And when my Jesus face to face I see,/
When at His lofty throne I bow the knee,/ Then of His love, in all its breadth and length,/Its height
and depth, its everlasting strength,/My soul shall sing.” (N. T.)
232 A glória da oração

A oração pelos filipenses (Fp 1:9-11)


O ambiente em que ele orava a favor deles é descrito nos versículos
anteriores do capítulo: “Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me
lembro de vós, fazendo sempre com alegria oração por vós em todas as
minhas súplicas … Porque Deus me é testemunha das saudades que de
todos vós tenho, em entranhável afeição de Jesus Cristo” (vs. 3, 4, 8). A
oração de Paulo a favor dos filipenses flui do seu profundo amor por
eles. Devemos notar que, embora ele estivesse na prisão, a sua primeira
preocupação era o crescimento espiritual dos seus amados irmãos em
Filipos. A sua situação pessoal fica em segundo plano! Seus interesses
pessoais estão subordinados aos interesses de outras pessoas, e isto ocor-
re vez após vez na epístola. Paulo era um exemplo do seu próprio minis-
tério, quando disse: “Não atente cada um para o que é propriamente seu,
mas cada qual também para o que é dos outros” (2:4). Mas, e isto é ainda
mais importante, ele demonstrou o caráter do próprio Senhor Jesus,
que certamente não olhava para o que era propriamente seu, mas para o
que era dos outros, como os versículos 2:5-8 tão claramente ilustram. A
“mente de Cristo” jaz no coração do ensino de Paulo nesta epístola. R.
McPike* diz o seguinte:
Quando vivemos perto de Deus nós ficamos cônscios do Seu interes-
se nos outros … isto inevitavelmente leva a alma a interceder diante
dEle a favor daqueles que são o alvo da afeição divina … Este
espírito de altruísmo raramente se manifesta entre nós hoje. Quanto
perdemos por causa da nossa completa falta de preocupação com
aqueles que estão ligados a nós com laços eternos!

Resumindo, a oração de Paulo pelos cristãos em Filipos foi com


gratidão (“dou graças ao meu Deus”, v. 3); constante (“fazendo sempre
… em todas as minhas súplicas”, v. 4); inclusivo (“por todos vós”, v. 4,
ARA); jubiloso (“com alegria”, v. 4); confiante (“tendo por certo isto
mesmo”, v. 6); e com propósito (“e peço isto”, v. 9). A progressão na
oração deve ser notada: “E peço isto: que … para que … para que …”.
A. G. Muir† comenta:
O propósito final de Paulo está para ser afirmado. Como mestre
construtor ele tem construído a sua petição, frase sobre frase: suas ora-

* McPIKE, R. Prayer in the New Testament em Believers Magazine. Kilmarnock: John Ritchie Ltd.,
1962.
† MUIR, A. G. Prayers from Prison em Believers Magazine. Kilmarnock, John Ritchie Ltd., 1971.
Cap. 13 — As orações de Paulo 233

ções fazem sentido; ele entende processos espirituais; sua mente orga-
nizada e a ordem e racionalidade dos seus pedidos seriam comoventes
diante do “trono da graça”. Ele conhecia a vontade de Deus, e ajustava
a sua oração para coincidir com isto.
A oração de Paulo contém três pedidos que podem ser resumidos
da seguinte maneira:
• Amor crescente — v. 9;
• Escolha inteligente — v. 10a;
• Integridade de caráter — vs. 10b-11.
Amor crescente (v. 9)
“E peço isto: que o vosso amor cresça mais e mais em ciência e em
todo o conhecimento”. Ele ora pedindo um crescente aprofundamento
do seu amor, e um crescente discernimento no seu amor.

Crescente aprofundamento. “E peço isto [proseuchomai: os estudiosos


chamam isto de ‘presente duradouro’, que significa, ‘eu continuo pedin-
do’], que o vosso amor cresça mais e mais”. É maravilhoso notar que
Paulo usa a palavra ágape, que descreve o amor divino, lembrando-nos
de que “o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Es-
pírito Santo que nos foi dado” (Rm 5:5). A existência deste amor nos
corações do povo de Deus é desde a sua conversão: “Nós sabemos que
passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (I Jo 3:14).
Mas a existência deste amor nos corações dos filipenses não era
suficiente para Paulo. Ele ora para que “cresça mais e mais”! Isso deve
ser comparado com a sua exortação aos salvos em Tessalônica: “Quan-
to, porém, ao amor fraternal [philadelphia], não necessitais de que vos
escreva, visto que vós mesmos estais instruídos por Deus que vos ameis
uns aos outros. Porque também já assim o fazeis para com todos os
irmãos que estão por toda a Macedônia. Exortamo-vos, porém, a que
ainda nisto aumentais cada vez mais” (I Ts 4:9-10). Paulo não esperava
que o povo de Deus ficasse parado neste assunto do amor cristão! De
fato, ele esperava que estivessem sempre progredindo em todo sentido
(I Ts 4:1)!
Mas, por quem deve o seu amor “crescer mais e mais”? Não é afir-
mado, e não precisamos saber. Amor para com Deus e o amor para com
o Seu povo não podem ser separados: “Todo aquele que ama ao que o
234 A glória da oração

gerou também ama ao que dele é nascido. Nisto conhecemos que ama-
mos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos os seus
mandamentos” (I Jo 5:1-2).
Crescente discernimento. Mas o amor deve crescer mais e mais
“em ciência e em todo o conhecimento” (“em pleno conhecimento e
percepção”, ARA). A necessidade destas qualidades é enfatizada em
Provérbios 1:4; 2:11. O amor cristão não é somente emoção, e não é
sem percepção: é um amor inteligente. O nosso amor para com Deus
será caracterizado por um desejo crescente de agradá-lo, por entender
e praticar a Sua vontade. O Senhor Jesus disse: “Se me amais, guardai
os meus mandamentos” ( Jo 14:15). A. G. Muir* observa que este amor
crescente será sujeito “aos valores dominantes, harmoniosos e intensifi-
cados de conhecimento e discernimento”. Um exemplo deste discerni-
mento ocorre nesta mesma epístola: “Guardai-vos dos cães, guardai-vos
dos maus obreiros, guardai-vos da circuncisão” (3:2). Também sabemos
que “o amor não folga com a injustiça, mas folga com a verdade” (I Co
13:6).
A palavra “ciência” (“pleno conhecimento”, ARA) é a tradução de
epignosis, e não podemos melhor o que disse W. E. Vine†:
Epignosis, como a forma mais simples, gnosis, sempre se refere ao
conhecimento adquirido ou experimental. Gnosis é conhecimen-
to, verdadeiro ou falso (I Tm 6:20 — ARA, “ciência”). Epignosis
sempre é conhecimento verdadeiro; pode ser conhecimento completo
ou crescente, mas sempre é conhecimento na esfera espiritual. O
conhecimento de Deus, mencionado somente duas vezes no Novo
Testamento (Rm 11:33; Cl 2:3), é gnosis, não epignosis, porque não
tem graduação: é absoluto. Compare com o Salmo 139:6.

A palavra “conhecimento” significa “discernimento” ou “percepção”,


e aqui W. E. Vine‡ nos ajuda novamente:
Não significa capacidade intelectual, mas a sensibilidade moral.
Isso é confirmado pelo uso do verbo em Lucas 9:45, “para que não
o compreendesse”, e o uso de um substantivo cognato em Hebreus
5:14: “têm os sentidos exercitados”.

J. B. Lightfoot§ sugere que “enquanto ‘conhecimento’ se refere a

* MUIR, A. G. Ibid.
† VINE, W. E. Ibid.
‡ VINE, W. E. Ibid.
§ LIGHTFOOT, J. B. St Paul's Epistles to the Philippians. Hendrickson Publishers, 1995.
Cap. 13 — As orações de Paulo 235

princípios gerais, ‘discernimento’ se refere a aplicações práticas”.


Escolha inteligente (v. 10a)
Este amor inteligente, que deseja conhecer e praticar a vontade de
Deus, nos coloca numa posição para “aprovar as coisas excelentes”. W.
E. Vine* explica isso com clareza:
[…] amor (a rejeição de interesse próprio) e conhecimento (o pleno
entendimento do que Deus tem revelado da Sua vontade e dos Seus
caminhos ao executar a Sua vontade) e discernimento (a sensibili-
dade aos valores morais) precisam, cada um deles, estar presentes
para o cristão poder perceber a diferença entre o que agrada a
Deus e o que não O agrada, e para que ele possa ser “cheio dos
frutos de justiça”.

A palavra “aprovar” (dokimazo) “sempre inclui a ideia de provar se


algo é digno de ser recebido” (R. C. Trench†). Ocorre em Romanos
12:2, referindo-se à vontade de Deus. Isto é, aprovar depois de testar. A
palavra é usada, por exemplo, de experimentar as cinco juntas de bois
(Lc 14:19), e também de examinarmos a nós mesmos, em relação à Ceia
do Senhor (I Co 11:28). A palavra “excelente” (diaphero) literalmente é
“diferenciar”, ou “ser diferente de”, e é usada das estrelas (I Co 15:41), e
de uma criança menor em comparação com um servo (Gl 4:1). O povo
do Senhor, diante de tantas opções, alternativas, opiniões, e sugestões,
só pode distinguir entre elas recorrendo à Palavra de Deus. É somente
nela que podemos descobrir a Sua vontade.
As palavras “para que aproveis as coisas excelentes” também são en-
contradas em Romanos 2:18: “E aprovas as coisas excelentes”. Compare
também I Tessalonicenses 5:21, “Examinai [dokimazo] tudo. Retende o
bem”. J. A. Bengel‡ sugere que Romanos 2:18 se refere à capacidade de
discernir coisas supremas: “provar e escolher não apenas as coisas boas
em preferência às más, mas as coisas melhores entre aquelas que são
boas”. Algumas das coisas mais excelentes são listadas em Filipenses
4:8-9: “tudo o que é verdadeiro … honesto … justo … puro … amável
… de boa fama”. Paulo também lista coisas que não são “excelentes” (Fp
3:5-8). A capacidade de “aprovar as coisas excelentes” produzirá:

* VINE, W. E. Philippians em The Collected Writings of W. E. Vine. Nelson, 1996.


† TRENCH, R. C. Synonyms of the New Testament. Michigan: Baker Book House, 1989.
‡ BENGEL, J. A. New Testament Word Studies. Kregel Publications, 1978.
236 A glória da oração

Integridade de caráter (vs. 10a-11)


“Para que sejais sinceros, e sem escândalo algum até ao dia de Cris-
to; cheios dos frutos da justiça, que são por Jesus Cristo, para glória e
louvor de Deus”. Devemos notar o seguinte:

Suas características. Em primeiro lugar, no sentido positivo: “sinceros”


(eilikrines), que significa “puro” ou “sem mistura”: literalmente, “testado
pela luz do Sol”. Dizem que os vendedores nos mercados tinham o cos-
tume de esconder os defeitos nas suas vasilhas, colocando cera branca
nas rachaduras, e que a única maneira de descobrir estes defeitos escon-
didos era colocando-os contra a luz do Sol. O Sol revelaria a presença
ou não da cera! A palavra “sincera” vem do Latim, sin serum, que signi-
fica “sem cera”. Refere-se à “disposição interior, à ausência de motivos
impuros” (S. Maxwell*). O cristão sincero não terá tempo para negócios
desonestos ou para manobras espirituais. Em segundo lugar, no sentido
negativo, “sem escândalo algum”, que significa “sem ocasião de tropeço”,
possivelmente num sentido passivo, isto é, “não sendo tropeçado”. Mas
veja I Coríntios 10:32: “Portai-vos do modo que não deis escândalo
nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus”. “Não dando
nós escândalo [ocasião para tropeçar] em coisa alguma, para que o nos-
so ministério não seja censurado” (II Co 6:3). Quanto a nós mesmos,
temos de ser “sinceros”; quanto aos outros, temos de ser “sem escândalo
algum”.

Sua continuidade. Paulo ora para que eles sejam “sinceros e sem escân-
dalo algum até ao dia de Cristo”. Isto é, até a volta de Cristo, quando
“todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo para que cada um
receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal”
(II Co 5:10). Em outras palavras, espera-se que vivamos desta maneira
consistentemente até que o Salvador venha nos levar ao Céu.

Seu clímax. “Cheios dos frutos [singular, ‘fruto’] de justiça, que são por
Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus”, ou: “Sendo completos em
relação ao fruto da justiça” ( JND). S. Maxwell† menciona o contraste
nos vs. 10-11. “No v. 10 eles devem ser puros e sem escândalo. No v. 11,

* MAXWELL, S. Comentário Ritchie do NT — vol 9. Pirassununga: Ed. Sã Doutrina, 1996.


† MAXWELL, S. Ibid.
Cap. 13 — As orações de Paulo 237

eles devem ser cheios do fruto da justiça”. Como A. G. Muir* diz:


Todo o ensino espiritual é testado pelo caráter e pela conduta. A
exposição é sem valor se não for acompanhada pelo exemplo: a
Cristandade não pode ser teórica e separada da prática.

Estas são palavras pesadas. O Senhor Jesus censurou os líderes re-


ligiosos, que “na cadeira de Moisés estão assentados … porque dizem e
não fazem” (Mt 23:2-3).
Devemos notar o fruto: “justiça”. O caráter do fruto é a justiça prá-
tica. Paulo cita a sua fonte: é “por Jesus Cristo”. É Ele quem produz
o fruto. Veja João 15:4-5. Paulo também menciona o propósito deste
fruto: “para glória e louvor de Deus”. Nas palavras de H. C. G. Moule†:
“Este é o verdadeiro alvo e propósito da obra completa da graça. ‘Para
Ele, são todas as coisas; glória, pois, a Ele eternamente. Amém’ (Rm
11:36)”. O grande alvo da oração de Paulo é a glória de Deus. Este é o
seu grande clímax.

A oração pelos colossenses (Cl 1:9-14)


Paulo estava especificamente preocupado com o bem-estar espiri-
tual dos crentes em Colossos por causa do perigo criado pelos judai-
zantes, de um lado, e pelos gnósticos, de outro. Por isso ele os advertiu:
“Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa
dos dias de festa … ou dos sábados … Ninguém vos domine a seu bel-
-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em
coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão”
(2:16-18). Antes disto Paulo já tinha alertado: “Tende cuidado, para
que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas,
segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e
não segundo Cristo” (2:8). Portanto, não é de se admirar que ao orar por
eles, Paulo tinha, especificamente, em mente o seu progresso em Cristo.
Devemos notar que não havia indiferença ou meio termo na oração
de Paulo por destes cristãos. Certamente não havia indiferença nas suas
palavras: “orando sempre por vós” (v. 3), e “por esta razão, nós também,
desde o dia que ouvimos, não cessamos de orar por vós [não cessa-
mos de orar e pedir por vós, JND]” (v. 9). A tradução JND enfatiza
os pedidos específicos de Paulo. Ele era persistente. Compare I Tes-

* MUIR, A. G. Ibid.
† MOULE, C. G. Philippian Studies. Londres: Hodder and Stoughton.
238 A glória da oração

salonicenses 3:10: “Orando abundantemente dia e noite”. Certamente


não havia meio termo nas suas orações. Paulo orava: para “que sejais
cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e inteli-
gência espiritual; para que possais andar dignamente diante do Senhor,
agradando-lhe em tudo, frutificando em toda a boa obra, e crescendo
no conhecimento de Deus; corroborados em toda a fortaleza, em toda
a paciência, e longanimidade com gozo”. Epafras também orava de ma-
neira semelhante (4:12).
Há três partes nesta oração de Paulo nos vs. 9-11, e isto é seguido
por ações de graças, nos vs. 12-14. Ele deseja:
• Que possam gozar da provisão de Deus — v. 9;
• Que possam alcançar o propósito de Deus — v. 10;
• Que possam conhecer o poder de Deus — v. 11.
A provisão de Deus (v. 9)
“Que sejais cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a sa-
bedoria e inteligência espiritual”. Sendo que cada palavra das Escrituras
é inspirada, o estudo detalhado sempre será proveitoso, e certamente
este é o caso aqui.
“Que sejais cheios do conhecimento da Sua vontade”. Este era o
desejo de Davi: “Ensina-me a fazer a tua vontade; pois és o meu Deus;
o teu Espírito é bom; guie-me por terra plana” (Sl 143:10). É uma coi-
sa reconhecer a vontade de Deus teoricamente, mas algo inteiramente
diferente ter a vontade de Deus como o desejo supremo das nossas vi-
das. Aqui Paulo fala sobre o “conhecimento” da vontade de Deus. Em
Efésios 5:17 ele fala sobre “entender” a Sua vontade, e em Efésios 6:6,
“fazer” a Sua vontade.
“Que sejais cheios do conhecimento da sua vontade”. Aqui Paulo
emprega a palavra epignosis que “significa um conhecimento completo,
discernimento, reconhecimento. É uma forma mais forte de gnosis, ex-
pressando um conhecimento mais completo, uma participação maior
no que é conhecido, assim produzindo uma influência mais poderosa”.*
Os gnósticos se orgulhavam no seu gnosis, mas os cristãos desfrutam de
epignosis! Paulo desejava o melhor para seus irmãos em Colossos!
“Que sejais cheios do conhecimento da Sua vontade”. Nada pode
ser mais importante. Os filósofos em Colossos procuravam desviar os

* VINE, W. E. Expository Dictionary of New Testament Words. Iowa: World Bible Publishers, 1991.
Cap. 13 — As orações de Paulo 239

crentes do “conhecimento da Sua vontade” (veja 2:8, 18). Os judaizantes


procuravam fazer o mesmo (veja 2:20-23). Entendido corretamente, “o
conhecimento da Sua vontade” nos preservará de todo tipo de erro. En-
tretanto, isto inclui mais do que uma mera familiaridade com os fatos
da vontade de Deus. Assim segue:
“Que sejais cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a
sabedoria e inteligência espiritual”. Isso descreve uma compreensão
inteligente da vontade de Deus. Foi sugerido que “sabedoria” nos salva-
rá de conduta inconveniente, e “inteligência espiritual” nos salvará dos
ensinos falsos. A “sabedoria” é a aplicação da vontade de Deus, e a “in-
teligência espiritual” é a apreciação da vontade de Deus.
“Sabedoria” é habilidade espiritual. É a habilidade adquirida de ma-
turidade cristã. É a capacidade de implantar a vontade de Deus tanto
entre os cristãos (veja 3:16), como entre os descrentes (veja 4:5). Inclui
resistir “palavras persuasivas” com “os tesouros da sabedoria e da ciência”
encontrados em Cristo (2:3-4). Também inclui resistir “a aparência de
sabedoria em devoção voluntária” usando a sã doutrina (2:20-23). A
maneira como Paulo trata os problemas em Colossos manifesta “sa-
bedoria e inteligência espiritual”. Ao invés de atacar, de imediato, os
falsos mestres, ele primeiramente revela as glórias singulares de Cristo
e as imensas bênçãos de todos os que pertencem a Ele. “Inteligência
espiritual” descreve a maneira como discernimos a vontade de Deus. I
Coríntios 2:12-16 deve ser lido cuidadosamente em relação a isto. “In-
teligência espiritual” não é adquirida ouvindo “as palavras da sabedoria
humana, mas aquelas que o Espírito Santo ensina”.
O propósito de Deus (v. 10)
“Para que possais andar dignamente diante do Senhor, agradando-
-lhe em tudo, frutificando em toda a boa obra, e crescendo no conhe-
cimento de Deus”. Compare I Tessalonicenses 2:12. Isso enfatiza os
resultados práticos que resultam do v. 9. Embora “sabedoria e inteli-
gência espiritual” não sejam coisas tangíveis, elas certamente produzem
resultados tangíveis! Novamente, cada palavra é importante.
“Para que possais andar dignamente diante do Senhor, agra-
dando-lhe em tudo”. Isso é, como Enoque, o homem que “andou com
Deus” (Gn 5:22), que “antes da sua trasladação alcançou testemunho de
que agradara a Deus” (Hb 11:5). I Tessalonicenses 4, que alguém des-
creveu como “o capítulo de Enoque”, começa com o pedido urgente de
240 A glória da oração

Paulo: “Assim como recebestes de nós, de que maneira convém andar e


agradar a Deus, assim andai, para que possais progredir cada vez mais”
(v. 1). A prioridade da vida do cristão não é agradar-se a si mesmo, nem
agradar aos outros, mas agradar ao Senhor. Esta deve ser a ambição es-
piritual de cada filho de Deus. Veja II Coríntios 5:9. O nosso alvo deve
ser agradar a Ele no andar (Cl 1:10); na adoração (Hb 13:15-16); na
guerra (II Tm 2:4); e no testemunho (I Ts 2:4).
“Frutificando em toda a boa obra”. Este é o resultado do Evan-
gelho (Cl 1:6), a evidência da salvação (At 9:36), onde Dorcas estava
“cheia de boas obras”, e o propósito de Deus (Ef 2:10; Tt 2:14). Este
fruto só pode ser produzido na vida do povo do Senhor, quando eles
permanecem nEle ( Jo 15:4-5).
“E crescendo no conhecimento [epignosis] de Deus”. O crescimen-
to, no capítulo, deve ser notado: no v. 6, Paulo se refere ao conhecimento
da graça de Deus; no v. 9 ele se refere ao conhecimento da vontade de
Deus; e agora no v. 10, ele se refere ao conhecimento do próprio Deus.
Crescimento espiritual somente pode ser cultivado e mantido através de
comunhão pessoal com Deus.
O poder de Deus (v. 11)
“Corroborados em toda a fortaleza, segundo a força da sua gló-
ria, em toda a paciência, e longanimidade com gozo”. Paulo ora que
eles sejam corroborados, não conforme a sua necessidade, mas “segundo
a força da sua glória”! Portanto Paulo conclui sua oração pelos colos-
senses pedindo que sejam continuamente fortalecidos com todo poder
“conforme o poder da Sua glória” ( JND). Esta expressão provavelmente
se refere à ressurreição do Senhor Jesus. Veja Romanos 6:4: “Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai”. Compare com Efé-
sios 1:19. Assim, Paulo ora para que eles possam ser fortalecidos pelo
mesmo poder que ressuscitou a Cristo dos mortos. Isso não está em
conflito com a oração de Paulo para que os cristãos em Efésios fossem
“corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior” (Ef
3:16). Pedro, referindo-se à ressurreição do Senhor, lembra seus leitores
que Cristo foi “mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo
Espírito” (I Pe 3:18).
O propósito deste poder não é a operação de milagres espetacu-
lares ou eloquência impressionante, mas “toda a paciência, e longani-
midade com gozo”. “Paciência” (hupomone) é “a qualidade que não se
Cap. 13 — As orações de Paulo 241

rende às circunstâncias, e não sucumbe na provação”. “Longanimidade”


(makrothumia) é autocontrole diante de provocação. A paciência é usada
em relação às circunstâncias; a longanimidade é usada em relação às
pessoas. Mas nenhuma delas deve ser usada com estoicismo e melan-
colia. Assim Paulo acrescenta “com gozo”. Ele tinha o direito moral
de dizer isto: veja Atos 16:25. Alguém resumiu da seguinte maneira:
não desistir (paciência); não retribuir (longanimidade); não sucumbir
(gozo).
Paulo aconselhou os cristãos em Filipos: “Não estejais inquietos por
coisa alguma; antes as vossas petições sejam, em tudo, conhecidas diante
de Deus pela oração e súplica, com ação de graças” (Fp 4:6). Seguindo
seu próprio conselho, a oração de Paulo a favor dos colossenses agora
inclui ações de graças (vs. 12-14). Suas ações de graças são baseadas em
três mudanças que ocorrem quando homens e mulheres se tornam cris-
tãos. Em Cristo eles gozam de uma nova qualidade (v. 12); uma nova
autoridade (v. 13), e uma nova liberdade (v. 14).
Uma nova qualidade — v. 12. “Dando graças ao Pai que nos fez
idôneos para participar da herança dos santos na luz”. Antigamente,
os cristãos estavam nas “trevas” (v. 13), e totalmente indignos da bên-
ção divina. O que nunca poderíamos alcançar por mérito pessoal, Deus
efetuou por nós. Ele nos fez idôneos para a Sua presença, agora e na
eternidade. As palavras “na luz”, se referem à localização da nossa he-
rança. Ela está na presença de Deus, e “Deus é luz”. Ela está “guardada
nos céus” (I Pe 1:4).
Uma nova autoridade — v. 13. “O qual nos tirou da potestade
[exousia, que significa ‘poder’] das trevas, e nos transportou para o reino
do Filho do seu amor”. A palavra “tirou” (rhuomai) significa “libertar”,
e a palavra “transportou” indica “transferir para outro lugar”. (A palavra
“trasladar” usada em Hebreus 11:5 em relação a Enoque é semelhante).
Houve uma mudança de autoridade nas nossas vidas. Anteriormente,
éramos sujeitos à “autoridade das trevas” (compare Efésios 2:2), mas
agora somos súditos do “reino do Filho do seu amor”. A palavra “reino”
indica autoridade. Com certeza, as pessoas devem poder ver esta mu-
dança de autoridade nas nossas vidas.
Uma nova liberdade — v. 14. “Em quem temos a redenção pelo
seu sangue, a saber a remissão dos pecados”. A palavra “redenção”
(apolutrosis) significa “libertar pelo pagamento de um resgate”. Antes
estávamos na escravidão do pecado, mas agora somos livres. O preço foi
242 A glória da oração

pago. O sangue de Cristo providenciou a remoção de todos os nossos


pecados. A palavra “remissão” (aphesis) significa “exoneração” ou “liber-
tação” (Vine*).
As nossas reuniões de oração seriam transformadas se o povo de
Deus orasse uns pelos outros como nestas quatro orações, como também
seriam as nossas orações pessoais diárias e particulares. Certamente, não
há razão por não orarmos desta maneira. Em vista de tais possibilidades
em oração, quão bom seria se pudesse ser dito de nós, cada vez mais,
como foi dito do próprio Paulo: “Eis que ele está orando” (At 9:11).

* VINE, W. E. Ibid.

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