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ISSN 1413-7097
REVISTA DIALÉTICA
DE DIREITO TRIBUTÁRIO
(RDDT)
- do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (sob nº 7 - Despacho do Exmo. Sr. Juiz Diretor
da Revista do TRF da 5ª Região, publicado no DJU II de 9 de setembro de 1997, página 72372).
171
DEZEMBRO - 2009
REVISTA DIALÉTICA
DE DIREITO TRIBUTÁRIO
(RDDT)
ISSN 1413-7097
171
(DEZEMBRO - 2009) Nelson Screnci
é o autor da obra reproduzida em
destaque na capa desta edição.
Diretor da Revista
Valdir de Oliveira Rocha
Impressão
Yangraf
Sacha Calmon Navarro Coêlho e Misabel Abreu Machado Derzi - Dos regimes
fiscais de reconhecimento das variações monetárias cambiais nas bases de cálcu-
lo do IRPJ e da CSLL. O momento de exercício do direito
1. A natureza jurídica das estimativas de IRPJ e CSLL. Da imputação das receitas e das
despesas no período. 2. Escrituração contábil e obrigatoriedade de adoção do regime de
competência. Para a apuração do imposto, não porém para apurar as variações cambiais.
3. Tratamento contábil e tributário das receitas com variação cambial. 110
Pareceres
Humberto Ávila - IPI. Furto e roubo de mercadoria. Exame da existência de com-
petência e de exercício de competência. Intributabilidade das meras saídas físi-
cas a título de IPI
1. A consulta. 2. O parecer. 3. Conclusões. 156
Ives Gandra da Silva Martins - Processo administrativo: decisão que anula outra
anterior, com base na lei complementar - irretroatividade da lei ordinária
Consulta. Resposta. 165
Jurisprudência
1
Código Tributário Nacional, art. 3º.
2
Código Tributário Nacional, art. 113, parágrafo 2º.
3
Constituição Federal, art. 150, incisos I e IV.
4
Código Penal, art. 316.
5
Código Tributário Nacional, art. 164, inciso I.
regulamentação de determinado tributo ou obrigação acessória, mas o servidor da
fiscalização aplica de forma excessiva, desproporcional, a norma geral e abstrata ao
caso concreto.
Analisemos com maior profundidade essas questões.
2. Abusividade na Tributação
Dentro da Teoria Geral do Direito é classificado como ato ilícito o exercício
desmesurado de um direito. A Lei nº 10.406/2002 inovou o Código Civil em seu
art. 187 ao classificar como ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”.
Esta norma não está regulando condutas realizadas contra legem, mas sim con-
dutas efetivadas de acordo com normas instituidoras de direitos, as quais são apli-
cadas de forma imoderada, de maneira que o resultado final seja diferente daquele
pretendido pela legislação. Está se afirmando que todos os direitos têm limites, não
basta a alegação de existência de direito positivado para que qualquer ato dele de-
corrente seja válido.
Esclareça-se que esta definição de abuso de direito está inserida no Código Ci-
vil, que é conjunto de normas destinado basicamente a regular relações de Direito
privado. A despeito disso, deve ser utilizada no âmbito tributário para definir o con-
teúdo legal deste instituto, por força do art. 109 do Código Tributário Nacional: “Os
princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do con-
teúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição
dos respectivos efeitos tributários.”
“É detectado um abuso”, define Marco Aurélio Greco, “quando o agente ultra-
passa (...) o destino social do direito e a proporção que deve existir entre a conduta
realizada em cotejo com o interesse do titular e o perfil do direito exercido. Há abuso
quando ocorre um desvio no perfil daquele direito. Quando o agente utiliza um di-
reito fora de sua função objetiva; ou seja, fora daquilo para o qual existe e serve.”6
Na lição de Moreira Alves, “o abuso de direito se caracteriza pelo exercício
egoístico, anormal do direito, sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou
voluntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem, contrário ao critério econômi-
co e social do direito em geral”7. Completando sua análise com a observação de que
por tais atos serem caracterizados como ilícitos pelo Código Civil em vigor, é im-
posta responsabilidade ao autor pelas conseqüências produzidas pelo ato abusivo.
Marcelo Hermes Huck identifica a ocorrência de abuso de direito quando o exer-
cício de um direito fere bem ao qual é conferido maior valor jurídico. Em suas pa-
lavras: “o exercício abusivo de um direito caracterizar-se-ia quando houvesse coli-
são com outro direito que, sob a perspectiva do interesse social, merecesse uma
maior proteção”8.
6
Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, São Paulo, Dialética, 1998, p. 79.
7
“As Figuras Correlatas da Elisão Fiscal”, Revista Fórum de Direito Tributário nº 1, v. 1, jan/fev-2003, pp. 11-20.
8
Evasão e Elisão Fiscal, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 146.
O direito de propriedade ilustra bem esta questão. A propriedade é direito fun-
damental citado no caput do art. 5º da Constituição Federal, não pode ser abolido
nem mesmo por emenda constitucional. Tal garantia tem por finalidade conferir
segurança jurídica à aquisição de bens que fornecem sustento, abrigo, amparo e
mesmo conforto aos seus proprietários, familiares, empregados etc.
Caso, porém, a propriedade seja utilizada de forma que retire segurança, susten-
to, abrigo, amparo a outros cidadãos, o direito a ela pode ser reduzido, chegando
mesmo à desapropriação. No âmbito tributário é prevista tributação mais onerosa
para as propriedades que não são usadas conforme sua função social9.
O abuso do exercício de direito pelo Estado, na utilização abusiva de seu poder,
é previsto já há algumas décadas no âmbito tributário. O Código Tributário Nacio-
nal, Lei nº 5.172/1966, no parágrafo único do art. 78 determina: “Considera-se re-
gular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competen-
te nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de
atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”
Ao comentar tal dispositivo legal, Aliomar Baleeiro conclui que “o exercício do
poder de polícia cabe só à autoridade competente, restrito aos limites da lei, obser-
vado o processo, isto é, a forma legal. Isso nos casos de forma vinculada por lei.
Silente esta, de modo que se possa deduzir a competência discricionária, isto é, a
faculdade livre de a autoridade agir ou não agir, quando e como agir, ficará ela ads-
trita àquele exercício só para o fim público e do interesse social, sem desgarrar para
o abuso ou desvio de poder.”10
Na Ementa do Acórdão proferido no julgamento do Recurso Ordinário em Man-
dado de Segurança nº 19.820/SP, relatado pelo Ministro Luiz Fux e julgado pela
Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, consta a seguinte citação:
“O objeto do poder de polícia deve ser não somente lícito, mas idôneo e proporcional
à ameaça da ordem jurídica. Importando, via de regra, o poder de polícia em não res-
trições a direitos individuais, a sua utilização não deve ser excessiva ou desnecessá-
ria, de modo a não configurar um abuso de poder. Não basta a lei possibilitar a ação
coercitiva da autoridade para justificação do ato de polícia. É necessário, ainda, que
se objetivem as condições materiais que solicitem ou recomendem a sua invocação.”
(DJU I de 08/11/2007, p. 163)
A figura do abuso de poder é típico caso de abuso de direito. Isto porque o po-
der de agir, de determinado modo, é conferido ao órgão público pela lei, é legítima
a ação; no entanto, a atuação desproporcional ou em desacordo com a norma que
instituiu tal poder tem por conseqüência a invalidade do ato.
9
Constituição Federal, art. 182, parágrafo 4º, inciso II.
10
Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 362.
I. Direito Positivo II. Doutrina e Jurisprudência
Adequação ao seu fim econômico Exercido dentro dos limites legais
Adequação ao seu fim social Exercido por autoridade competente
Adequação à boa-fé Exercido de acordo com a forma legal
Adequação aos bons costumes Respeito à função objetiva da norma
Respeito à finalidade pública da norma
Exercido conforme o interesse social
Exercido com idoneidade
Exercido com proporcionalidade
Estes elementos necessariamente devem ser observados pelo servidor ou admi-
nistrador público quando estipular deveres ao cidadão por meio de ato administra-
tivo proferido sem abuso de direito. Em outras palavras, para restringir a liberdade
total do cidadão - liberdade esta que é direito incluído como sobreprincípio no
preâmbulo da Constituição Federal11 -, é necessário que inúmeros requisitos sejam
cumpridos.
Analisemos, brevemente, as definições dos elementos em questão.
11
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos (...).”
12
CF, art. 148: “A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender des-
pesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência.”
CF, art. 146-A: “Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir
desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objeti-
vo.”
3.2. Adequação do ato administrativo a seu fim e interesse social
A função social da tributação - o interesse social que a fundamenta - está vin-
culada aos princípios constitucionais da solidariedade e da capacidade contributi-
va. Ou seja, todos são responsáveis pela realização dos princípios fundamentais da
República do Brasil (segurança, erradicação da pobreza, educação, saúde etc.) de-
vendo contribuir com recursos para que o Estado possa coordenar e instituir ações
neste sentido. No entanto, a tributação não pode afetar de tal forma o patrimônio do
cidadão que o impeça de desenvolver com liberdade sua vida privada, profissional
e empresarial.
Quando se trata de capacidade contributiva, são elementos chaves a análise da
proporcionalidade entre os recursos auferidos pelo contribuinte e as despesas que
ele necessita assumir não apenas para se manter, mas que se destinem ao desenvol-
vimento de seu crescimento pessoal bem como das pessoas que dele dependem.
Neste aspecto, difere-se do confisco, pois pode haver tributação que não se adeque
ao conceito de confisco13, mas que atinja a capacidade contributiva do cidadão, im-
pedindo seu desenvolvimento e mesmo colocando em risco sua existência.
O ato administrativo cujo resultado não favoreça a função social da tributação
e que afete desmesuradamente a capacidade contributiva do contribuinte será abu-
sivo. Exemplares são os casos de lançamento de inúmeras multas pelo descumpri-
mento de uma mesma obrigação acessória, a despeito de o tributo vinculado à obri-
gação principal ter sido corretamente recolhido.
13
“Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das
múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira ir-
razoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte.” (ADC-MC nº 8/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno,
DJU I de 04/04/2003)
14
“A boa-fé se presume em favor da contribuinte e a má-fé deste se prova.” (Acórdão nº 102-49093, Primeiro Conse-
lho de Contribuintes)
3.4. Adequação do ato administrativo aos bons costumes
A questão dos chamados “bons costumes” trata da forma como o servidor pú-
blico se dirige ao contribuinte. A Lei nº 9.784/1999 define como direito do cidadão
“ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores” (art. 3º, inciso I), e esti-
pula como dever dos integrantes da Administração Pública “atuação segundo pa-
drões éticos de probidade, decoro e boa-fé” (art. 2º, parágrafo único, inciso IV).
Diz respeito a atos truculentos durante a fiscalização ou ao atendimento ríspido
ao contribuinte. Tais atitudes, ainda que visem apurar irregularidades, são abusivas,
mas não são atos administrativos propriamente ditos, a menos que sejam formali-
zadas por escrito ou provada sua ocorrência pelo cidadão lesado.
15
Constituição Federal: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Es-
tados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade (...).”
16
Neste sentido, vide os julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais nos 892.543/SC
e 1.056.719/DF.
3.7. Exercido de acordo com a forma legal
Todos os atos administrativos que têm o objetivo de exigir determinada atitude
do cidadão devem ser realizados nos formatos estipulados em lei. Normalmente
adota-se a forma escrita como meio para formalizar e comunicar a instituição de
obrigação individual e concreta.
A maioria dos atos administrativos, especialmente na esfera tributária, devem
preencher requisitos estabelecidos normativamente. As comunicações, por sua vez,
como intimações ou notificações, podem ser efetivadas por entrega de documento
escrito diretamente ao contribuinte ou a seu representante, por entrega através de
meio eletrônico, ou por publicação na imprensa oficial.
O Código Tributário Nacional, por exemplo, institui algumas formalidades que
devem ser seguidas pela autoridade administrativa relativas à fiscalização (art. 196),
à solicitação de informações (art. 197), e à inscrição em dívida ativa (art. 202). Já o
Decreto nº 70.235/1972, que regula o processo administrativo fiscal federal, estipula
em seu art. 2º as seguintes regras:
“Art. 2º Os atos e termos processuais, quando a lei não prescrever forma determinada,
conterão somente o indispensável à sua finalidade, sem espaço em branco, e sem en-
trelinhas, rasuras ou emendas não ressalvadas. Parágrafo único. Os atos e termos pro-
cessuais a que se refere o caput deste artigo poderão ser encaminhados de forma ele-
trônica ou apresentados em meio magnético ou equivalente, conforme disciplinado em
ato da administração tributária.”
Assim, é inválido um ato proferido em formato que não respeita a forma legal,
ou comunicado de modo não previsto pela lei. Neste sentido, o Código Tributário
Nacional, em seu art. 203, determina ser nula a inscrição em dívida ativa que não
respeite a forma e os requisitos determinados em lei.
Isso permite a conclusão de que, mesmo que seja devido tributo por contribuin-
te inadimplente, os atos de fiscalização e cobrança só podem ser realizados dentro
dos estritos limites e formas previstas na legislação. Por isso, exemplificativamen-
te, são abusivos os pedidos meramente verbais de apresentação de documentos ou
de prestação de esclarecimentos; bem como a quantificação de tributo e expedição
de guia de pagamento sem processo administrativo regular de apuração e lançamen-
to.
17
“Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória”, Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tri-
butário, São Paulo, Dialética/Instituto Cearense de Estudos Tributários - Icet, 1999, pp. 355 e seg., sob coordenação
de Hugo de Brito Machado.
Durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.551, o Ple-
no do Supremo Tribunal Federal julgou questão de ordem na medida cautelar iden-
tificando em seu acórdão o fundamento constitucional do princípio da proporcio-
nalidade no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, e decidido que:
“Tributação e Ofensa ao Princípio da Proporcionalidade. (...) O princípio da proporcio-
nalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do
Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferi-
ção da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A prerrogativa institucio-
nal de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o
poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucional-
mente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta
Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos
cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em
diplomas normativos editados pelo Estado.”
(ADI nº 2.551 MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJU I de 20/04/2006)
A identificação da positivação do princípio da proporcionalidade no inciso LIV
do art. 5º da Constituição Federal decorre do devido processo legal material. Ao
analisar esta garantia constitucional, Nelson Nery Junior lembra que “já se identifi-
cou a garantia dos cidadãos contra os abusos do poder governamental, notadamen-
te pelo exercício do poder de polícia, como sendo manifestação do devido processo
legal”18.
Assim, quando o ato administrativo requer o cumprimento de determinado re-
quisito que é factualmente impossível ou que impede ao cidadão o exercício de seus
direitos fundamentais, ele é desproporcional. São casos concretos, já julgados pe-
las Cortes Superiores como atos desproporcionais, a exigência de depósito prévio
ou arrolamento de bens como condição de admissibilidade de recursos administra-
tivos de contribuintes19, e o lançamento de contribuição previdenciária sobre remu-
neração de função comissionada20.
Pode-se incluir também exemplos de casos envolvendo atos administrativos,
como aplicação de pena de exclusão de cadastro de contribuinte pelo inadimplemen-
to de tributos - com a conseqüente impossibilidade de exercer atividades econômi-
cas -; bem como a exigência de apresentação de duas cópias de toda a documenta-
ção contábil e de comprovantes de despesas e de recolhimento de tributos, dos últi-
mos cinco anos, no prazo de duas horas.
Saliente-se que todos os requisitos acima analisados devem estar contidos no ato
administrativo individual e concreto. A ausência de apenas um deles confere ao ato
a natureza de abusivo.
18
Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5ª ed., São Paulo, RT, 1999, p. 36.
19
ADI nº 1.976/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno do STF, DJe de 17/05/2007.
20
RMS nº 21.842/GO, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJe de 03/11/2008.
se à breve análise dos recursos legais que o cidadão dispõe para se defender do exer-
cício abusivo pelos integrantes da Administração Pública do direito estatal de tri-
butar.
Atos administrativos abusivos são nulos e passíveis de questionamento por meio
de reclamações e recursos na própria esfera administrativa. Caso o ato esteja con-
substanciado em lançamento tributário, a apresentação de defesa, via de regra, sus-
pende a exigibilidade do crédito até o julgamento da questão, por força do art. 151,
inciso III, do Código Tributário Nacional.
Ocorre que nem sempre as defesas do contribuinte são regularmente processa-
das, não sendo incomuns casos de prosseguimento dos atos de cobrança a despeito
de estar pendente de julgamento manifestação do cidadão autuado. Ademais, os atos
abusivos relativos ao cumprimento de obrigações diferentes do pagamento de im-
portâncias ao Estado não estão amparados pelo Código Tributário Nacional. Nes-
tas hipóteses, para se combater a abusividade com rapidez, antes mesmo de qual-
quer lançamento tributário ou da ocorrência de maiores prejuízos, é preciso recor-
rer ao amparo do Poder Judiciário.
No âmbito judicial, o instrumento processual específico para combater atos abu-
sivos, e justamente por isso o mais utilizado, é o mandado de segurança. A nature-
za desta ação constitucional é proteger o cidadão do “abuso de poder” praticado por
“autoridade pública”, de acordo com o art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Fede-
ral e com o art. 1º da Lei nº 1.533/1951. Esta ferramenta, porém, é limitada ao can-
celamento da força impositiva do ato abusivo, não admitindo que por meio dela tam-
bém seja requerido o ressarcimento dos prejuízos sofridos e a penalização da auto-
ridade coatora.
Deste modo, além da obtenção de ordem judicial determinando a suspensão dos
efeitos do ato abusivo, tem o cidadão direito reconhecido pelo art. 927 do Código
Civil de obter indenização pelos danos materiais - e mesmo por danos morais - que
tenha sofrido em decorrência do ato administrativo abusivo. Os danos devem ser
passíveis de comprovação documental, sendo possível inclusive que as despesas com
honorários advocatícios integrem o pedido de indenização por dano material.
Já para a responsabilização pessoal do agente público que agiu abusivamente ou
expediu atos normativos individuais e concretos abusivos, existe a possibilidade de
cominação de pena de multa e reclusão. Nesse sentido, o Decreto-lei nº 2.848/1940
- Código Penal -, tipifica como crime a utilização de “meio vexatório ou gravoso,
que a lei não autoriza” para a cobrança de tributos (art. 316, parágrafo 1º), forne-
cendo fundamento legal para o oferecimento de representação ao Ministério Públi-
co ou de apresentação de queixa.
5. Conclusão
O ato administrativo tributário, individual e concreto, não apenas está sujeito ao
princípio da estrita legalidade como também deve respeitar requisitos legais, dou-
trinários e jurisprudenciais para não ser abusivo. Assim, os atos relativos a procedi-
mentos de fiscalização, de lançamento, de cobrança, de exigência de cumprimento
de obrigações acessórias, de prestação de informações sobre o contribuinte, dentre
outros, deve estar adequado aos seguintes parâmetros:
- adequação ao seu fim econômico;
- adequação ao seu fim e interesse social;
- adequação à boa-fé e idoneidade;
- adequação aos bons costumes;
- exercido dentro dos limites legais;
- exercido por autoridade competente;
- exercido de acordo com a forma legal;
- exercido com proporcionalidade.
Caso o ato administrativo concreto, direcionado a determinado contribuinte não
se adeque simultaneamente a todos os requisitos ora analisados, ele se mostra abu-
sivo. Nesta hipótese, o contribuinte lesado tem os seguintes instrumentos para se
defender:
- recurso administrativo para obter a anulação do ato abusivo;
- mandado de segurança para impedir os efeitos do ato abusivo;
- ação indenizatória para obter ressarcimento pelos prejuízos sofridos;
- ação penal para obter a penalização pessoal do agente público.
A utilização de todos estes recursos pelo contribuinte lesado por ato abusivo não
apenas é seu direito - constitucionalmente garantido - como também é um dever. Isto
porque, para se obter a plena eficácia e vigor das garantias constitucionais, é preci-
so que o cidadão participe ativamente da defesa do Estado de Direito. A concreti-
zação na realidade dos direitos conquistados em 1988, com a Constituição Cidadã,
depende de cada um fazer sua parte, buscando a responsabilização daqueles que
abusam do poder estatal que lhes foi confiado, desviando-se das funções dos nobres
cargos nos quais foram investidos.
Da Duração Razoável do Processo
Administrativo Fiscal e seus Reflexos
na Prescrição Intercorrente e na
Fluência dos Juros de Mora
Célio Armando Janczeski
1. Introdução
Com a edição da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de
dezembro de 2004, erigiu-se à garantia constitucional a ra-
zoável duração do processo judicial ou administrativo, pre-
conizando o inciso LXXVIII do art. 5º, que “a todos, no
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade
de sua tramitação”.1 Assegurou-se ao cidadão a razoável du-
ração do processo administrativo, bem como a celeridade de
sua tramitação, de forma que qualquer violação ao seu pre-
ceito implica em conduta inconstitucional.
Para Sérgio André Rocha, o dispositivo constitucional
“estabelece tanto um direito fundamental a um processo ra-
zoável, que pode ser exercido em situações concretas em que
a desídia do julgador causar danos à parte, isso sem interme-
diação de qualquer ato legislativo ou administrativo, até
mesmo suscitando a responsabilização do Estado no caso de
seu descumprimento, como é também um princípio, a ser
concretizado pelo Legislativo e pelo Executivo”.2
É o que o autor denomina de natureza multidimensional
da norma constitucional.
Apesar da indeterminação e incerteza que decorre da
expressão razoável duração do processo, sua aplicação ao
processo administrativo fiscal diz respeito à inércia do jul-
gador administrativo em dar uma solução ao problema tra-
Célio Armando zido para deslinde. Como regra aplicável ao caso concreto,
Janczeski
é Advogado em
Santa Catarina,
Mestre em Direito e 1
Neste mesmo diapasão se colhe a orientação presente no item 1º do art. 8º da Con-
Professor de Direito venção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que
Tributário da consigna que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e
Faculdade Mater Dei, imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação
da Escola Superior da penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de
OAB e da Escola caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
2
Superior da ROCHA, Sérgio André. “Duração Razoável do Processo Administrativo Fiscal”.
Revista Dialética de Direito Tributário n. 142. São Paulo: Dialética, julho/2007,
Magistratura
p. 76. Explicita o autor sobre o inciso LXXVIII do art. 5º: “de um lado, trata-se de
do Estado de uma regra, passível de ser aplicada em dado caso concreto; de outro, é um princí-
Santa Catarina. pio, indicando um estado de coisas a ser alcançado”.
a interpretação e concretização do inciso LXXVIII do art. 5º da CF fica sob a alça-
da do Poder Judiciário, quando provocado para reparação de danos causados pela
inércia e, como princípio, indicando um estado de coisas a ser alcançado, fica su-
bordinado ao regramento a ser levado a efeito pelo Poder Legislativo.
2. Princípio da Efetividade
Mesmo sem a existência de um ato legislativo, o inciso LXXVIII do art. 5º não
estaria impedido de ser utilizado para a solução de controvérsias, aonde após a ava-
liação das condições do caso concreto pelo julgador, se emprestasse efetividade para
a norma maior. Não se pode olvidar, como lembra Canotilho, que o direito funda-
mental tem irradiação sobre o procedimento, devendo este ser conformado de for-
ma a assegurar a efetividade ótima do direito protegido.3
Ao intérprete, ao dar sentido à norma constitucional, na visão da jurisdição cons-
titucional contemporânea, volvida mais para a compreensão do que para a razão
lógica, de sentido formal, na aplicação da lei, não fica impedido de manusear os
princípios de forma a dar solução justa para o caso concreto.
O Princípio da Efetividade, também denominado Princípio da Eficiência ou da
Interpretação Efetiva, deve ser entendido como aquele em que entre as interpreta-
ções possíveis, deve se preferir aquela em que se reconheça maior efetividade à
norma constitucional, especialmente quando em discussão direitos fundamentais.
Toda norma constitucional, como norma jurídica superior, desempenha uma
função útil no ordenamento, razão pela qual sua interpretação não pode relevar à
mesma o destino de uma inutilidade ou diminuição de sua razão de ser. “A uma
norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada
norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo
de capacidade de regulamentação.”4
O Princípio da Efetividade, segundo alguns, confunde-se com o Princípio da
Força Normativa da Constituição que, ao prestigiar sua máxima eficiência, deter-
mina influência à realidade fática do Estado que governa. Há que se ter em mente
também, que toda atividade de interpretação contempla algum grau de criação, ad-
mitindo-se alguma margem de criatividade ao intérprete, suprindo as lacunas da
norma como meio de garantir a plenitude do ordenamento.
3
CANOTILHO, J. J. Gomes. Tópicos sobre um Curso de Mestrado sobre Efeitos Fundamentais: Procedimentos, Pro-
cesso e Organização. Coimbra: Almedina, 1990, tópico 2.2.
4
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Coimbra: Editora Coimbra Ltda., 1983, p. 229.
Em sua redação original, o art. 24 tinha dois parágrafos que foram vetados, mas em
nenhum deles havia previsão de uma conseqüência jurídica expressa para a ultra-
passagem do prazo sem a decisão.5
Alguns entendem que, por não ter estipulado sanção expressa para o descum-
primento do prazo, o dispositivo seria inócuo e a sua inobservância não poderia gerar
conseqüências jurídicas. Ou seja, a regra não seria “bastante para a garantia de um
processo administrativo fiscal com uma duração razoável, sendo necessário que se
regulamente as conseqüências do descumprimento do prazo de 360 dias lá previsto
para que seja proferida a decisão administrativa”.6 Seria uma norma de mínima efi-
cácia, dependente de regulamentação para surtir efeitos.
Outros emprestam ao art. 24 da Lei n. 11.457/07 máxima eficácia, entendendo
que “a injustificada inobservância, nesta espécie de processo, da garantia da dura-
ção razoável, não pode deixar de gerar conseqüências para o Estado, a quem cabe
assegurar o seu andamento. Tal conseqüência há de traduzir-se na perda do direito
de arrecadar o crédito.”7
Há também aqueles que, inadmitindo a prescrição intercorrente no processo
administrativo fiscal, defendem com inspiração no parágrafo 2º do art. 161 do CTN
(que prevê a suspensão da fluência de juros de mora na pendência de consulta for-
mulada pelo devedor) que, ultrapassado o prazo do art. 24 da Lei n. 11.457/07, a
incidência de juros de mora seria suspensa desde o dia seguinte ao fim do prazo de
360 dias até o dia em que proferida a decisão cabível. Adiante o assunto é detalha-
do.
A visão que se propõe do inciso LXXVIII do art. 5º da CF em sintonia com o
art. 24 da Lei n. 11.257/07 vai além da mera reconstrução da vontade objetiva da
norma, para dar lugar a uma máxima eficiência dos dispositivos, inclusive integran-
do-se carências e lacunas, considerando-se os resultados a que se destina.
5
Previa o parágrafo 2º do art. 24, que restou vetado pelo Presidente da República, que haveria interrupção do prazo,
pelo período máximo de 120 dias, quando necessárias diligências administrativas e que não realizadas as diligências
neste prazo, o resultado delas presumiria-se favoráveis ao contribuinte.
6
ROCHA, Sérgio André. “Duração Razoável do Processo Administrativo Fiscal”. Op. cit., p. 80.
7
BOTTALLO, Eduardo Domingos. “Notas sobre a Aplicação do Princípio da Duração Razoável ao Processo Admi-
nistrativo Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário - 12º
volume. São Paulo: Dialética, 2008, p. 59. Defende o autor que o desrespeito à garantia da duração razoável permite
a ocorrência da prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.
nômenos anormais que surgem no curso do procedimento e que lhe alteram a habitual
tramitação. E como o direito não tolera a incerteza no âmago das relações jurídicas,
com a perenização de conflitos insolúveis (o que atenta à própria razão de ser do di-
reito), a prática judiciária demandou a criação de mecanismos paliativos e de acomo-
dação para tais situações indesejadas.”8
É a punição da inércia dentro do processo.
A decretação da prescrição intercorrente no seio da execução fiscal, além de estar
harmônica com o sistema jurídico que não admite que a ação para a cobrança do
crédito tributário tenha prazo perpétuo, prestigia os princípios da segurança jurídi-
ca, da paz social e da prescritibilidade dos direitos patrimoniais. Igual raciocínio não
tem sido aplicado quando se trate de paralisação do processo administrativo fiscal,
mesmo que paralisado por mais de cinco anos, ainda que, para tanto, não tenha con-
corrido o sujeito passivo.
O fulcro para o não-reconhecimento da prescrição intercorrente no processo
administrativo fiscal decorre de antiga orientação do Supremo Tribunal Federal, que
decidiu que no intervalo entre a lavratura do auto de infração e a decisão definitiva
de recurso administrativo de que tenha se valido o contribuinte, não corre ainda o
prazo de prescrição.9 Não se enfrentou no precedente da Corte Maior, ao menos não
expressamente, se haveria ou não conseqüência a paralisação do processo adminis-
trativo por mais de cinco anos, nem havia na época da decisão dispositivo expresso
em determinar prazo para a decisão ser implementada. De qualquer maneira, os tri-
bunais fazendários têm repudiado a alegação de prescrição intercorrente no proces-
so administrativo.10
A matéria, como já se anunciou, tem gerado controvérsia na doutrina e tem re-
cebido tratamento divergente na jurisprudência, apesar de ainda se apresentar ma-
8
“Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas Tributárias, Nova Série - 13.
São Paulo: RT, 2007, p. 467. No que diz respeito à prescrição intercorrente na esfera administrativa, o autor entende
que “em face da suspensão da exigibilidade do crédito tributário pela impugnação administrativa, não podendo o Fisco
demandar judicialmente o contribuinte por aquele crédito, eventual demora na análise da insurgência poderá ter qual-
quer repercussão, menos a decretação da prescrição intercorrente administrativa”.
9
STF, AgRAg n. 96.616/RJ, Rel. Min. Francisco Rezek, 2ª T., DJ 25.5.1984, p. 8.228, RTJ 110-02, p. 707. Na mesma
trilha segue o Superior tribunal de Justiça: “O recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário,
enquanto perdurar o contencioso administrativo, nos termos do art. 151, II, do CTN, desde o lançamento (efetuado
concomitantemente com o auto de infração), momento em que não se cogita do prazo decadencial, até seu julgamen-
to ou a revisão ex officio, sendo certo que somente a partir da notificação do resultado do recurso ou da sua revisão,
tem inicio a contagem do prazo prescricional, afastando-se a incidência da prescrição intercorrente em sede de pro-
cesso administrativo fiscal, pela ausência de previsão normativa específica.” (REsp n. 840.111/RJ, Rel. Min. Luiz
Fux, 1ª T., DJe 1º.7.2009)
10
Determinam a Súmula n. 004/2003 do TIT/SP e a Súmula n. 11 do antigo Conselho de Contribuintes que “não é admis-
sível a prescrição intercorrente no Processo Administrativo Fiscal”. Neste sentido: “Processo Administrativo Fiscal -
Preliminar - Prescrição Intercorrente - No processo administrativo fiscal, não se configura a prescrição intercorrente.
Se o crédito está suspenso nos termos do inciso III do art. 151 do Código Tributário Nacional, não há de se falar em
prescrição. O prazo prescricional conta-se da constituição definitiva do crédito tributário, e esta só ocorre quando não
cabe recurso ou pelo transcurso do prazo.” (1º CC - Proc. n. 10882.000463/95-91 - Rec. 131.336 - (Ac. 104-19.410)
- 4ª C. - Relª Vera Cecília Mattos Vieira de Moraes - DOU 27.11.2003, p. 39)
“Normas Gerais de Direito Tributário - Extinção do Crédito Tributário - Prescrição Intercorrente - No processo ad-
ministrativo fiscal a prescrição intercorrente é matéria estranha. Enquanto pendente de recurso, nele não se fala em
prescrição. A contagem do prazo prescricional tem início com a ciência do contribuinte do encerramento do processo
administrativo. Precedentes do STJ e do STF.” (3º CC - Proc. n. 10825.001318/96-38 - Rec. n. 121.336 - (Ac. 303-32564)
- 3ª C. - Rel. Zenaldo Loibman - DOU 12.1.2006, p. 24)
joritárias as decisões negando o reconhecimento da prescrição intercorrente no pro-
cesso administrativo fiscal, que adota a orientação de precedentes conservadores,
negando qualquer conseqüência jurídica ao disposto no art. 24 da Lei n. 11.257/07.
Uma parte da doutrina apenas repete a antiga orientação do Supremo Tribunal
Federal, dando conta de que não há previsão expressa da possibilidade de decreta-
ção da prescrição intercorrente no processo administrativo, bem como que entre o
lançamento e a decisão definitiva administrativa não corre o prazo prescricional.11
Outra parte, em sentido oposto, entende que, independentemente de lei que conce-
da prazo para a decisão do processo administrativo, a aplicação do art. 5º, inciso
LXXXVIII, da CF e art. 155, parágrafo único, do CTN, autorizaria o reconhecimento
da prescrição intercorrente no processo administrativo, em vista da garantia de se-
gurança jurídica e como meio de assegurar a observância do princípio da oficiali-
dade.12
Também de se salientar a doutrina que considera inadequado se falar de um pra-
zo fixo e predeterminado para a conclusão de um processo administrativo, mas que
entende aplicável a prescrição intercorrente, sempre que entre um ato e outro, o pro-
cesso ficar paralisado por mais de cincos anos, afinal “se o fisco abandona o pro-
cesso por mais de cincos anos, já não se pode dizer que é o simples oferecimento
de uma impugnação que o está impedindo de propor a execução fiscal: é o abando-
no do processo - que implica a indevida não-apreciação da impugnação - que ense-
ja a demora na propositura da execução”.13
Curioso que, além daqueles que defendem a prescrição intercorrente no processo
administrativo fiscal e daqueles que clamam pela não-aplicação, há também aque-
les que reconhecem a dúvida, dando conta que a matéria deve ser repensada. Hum-
berto Martins, por exemplo, expressamente assevera que “por enquanto, nem somos
contra sua existência; nem a seu favor”.14 Vittorio Cassone não reconhece situações
em que seria possível a prescrição intercorrente no processo administrativo, mas
11
TORRES, Ricardo Lobo. “Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas Tri-
butárias, Nova Série - 13. São Paulo: RT, 2007, p. 60. O artigo pode ter sido escrito antes da edição do art. 24 da Lei
n. 11.257/07, eis que o dispositivo não é citado. Neste contexto, o autor consigna que “inexistem no direito brasilei-
ro instrumentos para limitar em, no máximo, cinco anos o prazo para encerrar o processo administrativo tributário”.
12
SOUZA, Fátima Fernandes Rodrigues de. “Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.).
Pesquisas Tributárias, Nova Série - 13. São Paulo: RT, 2007, p. 141. É também o que defende Marilene Talarico
Martins Rodrigues: “Quanto à prescrição intercorrente no processo administrativo, pensamos que o art. 174 do CTN
permite a fluência do prazo prescricional no processo administrativo, que deverá ser solucionado no prazo de cinco
anos para constituição definitiva do crédito tributário, independetemente de estar suspensa a exigibilidade do crédi-
to tributário (art. 151, III, do CTN).” (Op. cit., p. 180)
13
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. “Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.).
Pesquisas Tributárias, Nova Série - 13. São Paulo: RT, 2007, p. 330. Neste sentido também a manifestação de Jorge
de Oliveira Vargas: “se o processo administrativo tributário ficar paralisado por mais de cinco anos, exclusivamente
por omissão injustificada do órgão julgador, ocorrerá a prescrição intercorrente, porém isto não significa dizer que
exista um prazo máximo de cinco anos para que o processo administrativo venha a ser encerrado” (Op. cit., p. 443).
14
MARTINS, Humberto. “Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas Tribu-
tárias, Nova Série - 13. São Paulo: RT, 2007, p. 47. O autor, ministro do Superior Tribunal de Justiça, aduz: “Na
nossa atividade judicante, especialmente no STJ, ainda não deparamos com tal matéria; daí por que acreditamos que,
depois de acentuada meditação, poderemos formar um convencimento sólido que aponte uma solução satisfatória da
questão. Por enquanto, nada obstante as observações acima, ainda não temos opinião formada.” (Op. cit., p. 46)
consigna, por outro lado, que “não seria absurdo uma decisão que, em determinado
caso concreto, decretasse a prescrição intercorrente”. Registra na seqüência, ainda,
que não pode ser esquecido o princípio da legalidade, a impedir que o intérprete
substitua o legislador.15
Na jurisprudência, majoritariamente, as decisões negam o reconhecimento da
prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal, adotando a antiga orien-
tação de precedentes conservadores. Walmir Luiz Becker, em pesquisa realizada
antes da aparição no cenário nacional de norma que prevê prazo máximo para a
decisão administrativa, listava vários precedentes que, diante do princípio da mo-
ralidade administrativa consagrado no art. 37 da Constituição, aplicavam a prescri-
ção intercorrente no processo administrativo, ao enfoque de que mesmo se reconhe-
cendo que “durante a reclamação ou recurso administrativo, está suspensa a exigi-
bilidade do crédito administrativo, não correndo prescrição, quando se está diante
de incomum inércia, com a paralisação incompreensível do procedimento durante
sete anos, sob pena de aceitar a própria imprescritibilidade, não há como deixar de
reconhecer a prescrição”. 16 Após a introdução no cenário nacional do inciso
LXXVIII do art. 5º da CF e do art. 24 da Lei n. 11.257/07, não se conhecem prece-
dentes que tenham apreciado a matéria e expressamente inserido referidos disposi-
tivos em suas fundamentações.17
15
CASSONE, Vittorio. “Decadência e Prescrição”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas Tributá-
rias, Nova Série - 13. São Paulo: RT, 2007, p. 219. No artigo, referido autor anuncia a edição do art. 24, da Lei
n. 11.457/07, mas não retira dele nenhuma conseqüência jurídica prática.
16
TJRS, Apelação Cível n. 597200054, Rel. Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa. In: BECKER, Walmir Luiz. “A
Prescrição Intercorrente no Processo Administrativo Fiscal”. Revista de Estudos Tributários n. 18. Porto Alegre:
Síntese, ano III, março-abril de 2001, p. 22. Antigos precedentes já reconheciam a prescrição intercorrente no pro-
cesso administrativo: AC n. 89.0115715/MG, Rel. Eliana Calmon, TRF da 1ª Região, 4ª T., DJ 5.3.1990; AC
n. 950104474/MG, Rel. Eustáquio da Silveira, TRF da 1ª Região, 4ª T., DJ 9.10.1997; AC n. 940132383-6, Rel. Luiz
Airton de Carvalho, TRF da 1ª Região, 3ª T., j. 16.10.1998.
17
A jurisprudência atual segue apenas reprisando a idéia de que entre a lavratura do auto de infração e a decisão defini-
tiva de recurso administrativo de que tenha se valido o contribuinte, não corre ainda o prazo de prescrição, sem ex-
trair conseqüências práticas do disposto no inciso LXXVIII do art. 5º da CF e do art. 24 da Lei n. 11.257/07, os quais
sequer são lembrados. Neste sentido: “Prazo Prescricional. Pendência de recurso administrativo. Início do prazo ape-
nas com a notificação do contribuinte do resultado do recurso. Prescrição intercorrente. Inaplicabilidade em proces-
so administrativo fiscal. Recurso Especial a que se dá provimento.” (STJ, REsp n. 1.006.027/RS, Rel. Teori Albino
Zavascki, DJe 4.2.2009). No mesmo sentido: REsp n. 239.106/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi; REsp n. 32.843/SP,
Rel. Min. Adhemar Maciel; REsp n. 173.284/SP, Rel. Min. Franciulli Netto; REsp n. 784.353/RS, Rel. Min. Denise
Arruda, entre outros.
inércia do titular da ação, e seu fato perante o tempo.18 A prescrição é um castigo à
negligência do titular do direito que, devendo agir, permanece inerte.
Não há dúvida de que o direito sujeito a uma condição suspensiva (art. 151, in-
ciso III, do CTN) não tem existência atual e não é exigível, não podendo, portanto,
servir de fundamento de uma ação, razão pela qual não seria passível de prescrição,
uma vez que esta supõe, como condição elementar, uma ação exercitável: actioni
nondum natae non praescribitur. É sabido, no entanto, que não é toda causa de im-
possibilidade de agir que impede a prescrição, mas somente aquelas causas que se
fundam em um motivo de ordem jurídica, porque o Direito não pode contrapor-se
ao Direito, dando e tirando ao mesmo tempo.19
Se a condição suspensiva somente pudesse ser removida por ato de terceiro, não
se poderia exigir que o titular agisse antes da remoção da causa suspensiva mas,
naquelas hipóteses em que a condição suspensiva se mantém por ato do próprio ti-
tular do direito, o mesmo raciocínio não é aplicável.
Havendo como há, prazo definido para que o julgador profira decisão adminis-
trativa, enquanto o mesmo não estiver exaurido, não haverá mora da Administração
Fazendária, nem haverá inércia apta a dar início a contagem do prazo da prescrição
intercorrente. Ultrapassado aquele prazo, o julgador estará deixando de cumprir com
sua obrigação legal de proferir decisão, incorrendo em mora e inércia, já que a exis-
tência de uma ação exercitável e a remoção da causa que a impedia, dependem ex-
clusivamente da própria Fazenda, que não está nem acima, nem à margem da lei.
A eventual inércia da Administração Pública decorre da negligência desta, que
deve estar preparada para proferir decisão no processo administrativo no prazo da
lei, independente da complexidade da matéria abordada ou qualquer outro fato que
possa justificar a mora do julgador. Nem eventual culpa do sujeito passivo pode elas-
tecer o prazo de 360 dias estipulado no art. 24 da Lei n. 11.257/07, eis que, como
cabe à Administração a condução do processo, também a ela caberá regulamentar
os procedimentos e diligências necessários ao deslinde da causa, sem ultrapassar o
prazo legal.
Ultrapassado o prazo de 360 dias previsto para a prolação da decisão (art. 24 da
Lei n. 11.257/07), contados do “protocolo de petições, defesas ou recursos admi-
nistrativos do contribuinte”, inicia-se a contagem do prazo de cinco anos para a pres-
crição intercorrente no Processo Administrativo Fiscal. A razoabilidade preconiza-
da pelo disposto no inciso LXXVIII do art. 5º da CF, no entanto, deve orientar a
interpretação na contagem deste prazo de 360 dias, a fim de se alcançar novos 360
dias para o julgamento do processo, tanto em caso de recurso manejado pelo con-
tribuinte, como em caso de recurso de ofício ao Conselho Administrativo de Recur-
sos Fiscais. O mesmo raciocínio, de se estender mais 360 dias, deve ser implemen-
18
LEAL, Antonio Luis da Câmara. Da Prescrição e da Decadência. 4ª ed. atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de
Janeiro: Forense, p. 8. Como esclarece o autor, “todo direito tem duas fontes: a lei, que o reconhece em tese; e o fato
que lhe dá nascimento. Uma vez adquirido pela verificação do fato, a que a lei atribui o efeito de gerá-lo, ele entra
para o poder de seu titular como faculdade de agir ( facultas agendi), podendo este exercê-lo segundo as normas e
dentro dos limites, traçados pela lei.” (Op. cit., pp. 20/21)
19
LEAL, Antonio Luis da Câmara. Da Prescrição e da Decadência. Op. cit., pp. 153/155.
tado caso a decisão do Conselho seja levada para apreciação da Câmara Superior
de Recursos Fiscais.20 Cada esfera deve obediência ao prazo de 360 dias trazidos pela
Lei, de modo que entre suspensões,21 com a paralisação do curso da prescrição e
prosseguimento quando cessada a causa que a determinou e retomada do curso an-
terior, haverá a contagem do prazo da prescrição intercorrente.
20
Eventual resolução do Conselho ou da Câmara Superior, determinando a baixa do processo para diligência não tem
o condão de fazer iniciar o prazo de 360 dias, eis que o prazo legal deve ser utilizado pelo julgador administrativo de
modo que a decisão seja proferida, independente dos incidentes processuais, previsíveis ou imprevisíveis, sob pena
de incorrer em mora.
21
“A suspensão paralisa, apenas, o curso da prescrição, de modo que, cessada a causa que a determinou, o seu curso
anterior prossegue; ao passo que a interrupção faz cessar o curso já iniciado e em andamento, não o paralisando,
apenas, de maneira que, cessada a causa interruptiva, o seu curso anterior não prossegue, mas se inicia um novo cur-
so, começando a correr novamente a prescrição.” (LEAL, Antonio Luis da Câmara. Da Prescrição e da Decadência.
Op. cit., p. 173)
22
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo 24. Campinas: Bookseller, atualizado por Vilson Rodri-
gues Alves, 2003, p. 55.
23
TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “O artigo 24 da Lei n. 11.457/07 como Causa Suspensiva da Fluência de Juros
Moratórios”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 161, São Paulo: Dialética, fevereiro/2009, p. 23.
efeitos da mora do sujeito passivo, ou seja, suspenderá a sua fluência até que seja pro-
ferida a decisão cabível.”24
Apesar do caráter compensatório dos juros de mora e que eles ordinariamente
são exigíveis e devidos no período que o crédito tributário estiver com sua exigibi-
lidade suspensa pela impugnação administrativa e mesmo sendo sabido que a co-
brança dos juros moratórios objetiva indenizar a Fazenda Pública (credora) pela
indisponibilidade do dinheiro na data prevista pela lei para o pagamento do tributo,
não se pode olvidar que a sua incidência por longa data pode acarretar, além da ins-
tabilidade dos negócios jurídicos do sujeito passivo,25 máculas aos princípios da
segurança jurídica e da paz social.
Extrapolando-se a mera reconstrução da vontade objetiva do inciso LXXVIII do
art. 5º da CF e do art. 24 da Lei n. 11.257/07 para dar lugar a uma máxima eficiên-
cia dos dispositivos, inclusive integrando-se carências e lacunas, considerando-se os
resultados a que se destina, não há dúvidas que com o afastamento da mora do su-
jeito passivo pela mora do julgador administrativo (na medida que as moras opos-
tas, decorrentes de um mesmo fato tributável, anulam-se mutuamente), não haverá
espaço para a fluência dos juros moratórios ultrapassados 360 dias sem que se pro-
fira decisão no Processo Administrativo Fiscal.
O mesmo raciocínio que se adota na contagem da prescrição intercorrente no
processo administrativo, também é aplicável na suspensão da fluência dos juros de
mora, ou seja, decorrido o prazo de 360 dias previsto para a prolação da decisão (art. 24
da Lei n. 11.257/07), contados do “protocolo de petições, defesas ou recursos ad-
ministrativos do contribuinte”, cessa a incidência dos juros de mora. Outros 360 dias
serão computados para o julgamento do processo, tanto em caso de recurso inter-
posto pelo contribuinte, como em caso de recurso de ofício ao Conselho Adminis-
trativo de Recursos Fiscais. Igualmente, de se estender mais 360 dias, caso a deci-
são do Conselho seja levada para apreciação da Câmara Superior de Recursos Fis-
cais. Cada esfera deve obediência ao prazo de 360 dias trazidos pela lei, suspenden-
do-se sua fluência a cada mora do julgador administrativo.26
24
TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “O artigo 24 da Lei n. 11.457/07 como Causa Suspensiva da Fluência de Juros
Moratórios”. Op. cit., p. 24. Para o autor tal conseqüência de um lado preserva “o crédito tributário em sua integrida-
de; por outro, impede-se que a mora do julgador administrativo inflija ao sujeito passivo um ônus por fato do qual
não tem culpa, livrando o contribuinte da injusta situação de ver acumular contra si, anos a fio, altíssimos juros mo-
ratórios gerados pela demora no julgamento administrativo”.
25
Eventuais diligências requeridas pelo contribuinte ou complexidade na impugnação ao débito tributário não justifi-
cam prorrogação do prazo legal, nem podem ser consideradas como atitudes para protelar o feito, caso autorizadas
pela legislação processual, eis que como cabe a Administração a condução do processo, também a ela caberá regula-
mentar os procedimentos e diligências necessárias ao deslinde da causa, sem ultrapassar o prazo legal.
26
Sobre os efeitos da suspensão da fluência dos juros de mora, Gabriel Lacerda Troianelli apresenta situação prática
exemplificando: “depois da impugnação, a Delegacia de Julgamento decide em dezoito meses. Mantido o lançamento,
o sujeito passivo apresenta recurso voluntário, que é julgado quinze meses depois pelo Conselho de Contribuintes.
Nesse caso, os juros moratórios serão suspensos nos seis meses imediatamente anteriores ao julgamento de primeira
instância e nos três meses imediatamente anteriores ao julgamento de segunda instância, fluindo normalmente nos
outros períodos.” (“O artigo 24 da Lei n. 11.457/07 como Causa Suspensiva da Fluência de Juros Moratórios”. Op.
cit., p. 25)
6. Considerações Finais
Pelas razões despendidas acima, diante do disposto no inciso LXXVIII do art. 5º
da CF e do art. 24 da Lei n. 11.257/07, escudado pelo Princípio da Efetividade, que
orienta pela máxima eficiência dos dispositivos, inclusive autorizando a integração
de carências e lacunas, é possível se concluir que a prescrição intercorrente pode e
deve ser reconhecida no Processo Administrativo Fiscal, iniciando contagem após
ultrapassado o prazo de 360 dias, quando o julgador administrativo estará em mora
ao deixar de cumprir com sua obrigação legal de proferir decisão. A mesma mora
do julgador administrativo em proferir decisão no prazo legalmente determinado
também afasta a mora do sujeito passivo, que é anulada pela primeira, impedindo a
fluência dos juros moratórios e prestigiando-se, desta forma, o Princípio da Segu-
rança Jurídica e a paz social.
Serviços Gráficos para Livros, Jornais e
Periódicos: Imunidade Tributária?
Douglas Yamashita
I. Delimitação do Tema
Questão de enorme relevância à liberdade de expressão
é se os serviços gráficos de produção dos jornais, dos livros
e dos periódicos estão abrangidos pela respectiva imunida-
de descrita na Constituição Federal de 1988.
A liberdade de expressão é algo muito caro às socieda-
des democráticas. Para se constituir uma verdadeira demo-
cracia é necessário que a população possa se manifestar da
maneira que lhe aprouver sobre os fatos que impressionam,
comovem ou mobilizam.
Na história recente brasileira, viu-se o estrago que a cen-
sura fez. Sem informação, as pessoas não são capazes de
formar opinião. Um povo sem opinião e sem informação não
exerce seus direitos de forma íntegra e acaba deixando os
governos agirem como bem entenderem. Com os olhos ven-
dados, a população aplaudiu os feitos da ditadura militar,
apesar de toda tortura contra aqueles que, entre outras coi-
sas, queriam exercer o direito de se expressarem.
Diante deste histórico, o Constituinte de 1988, no intui-
to de proteger o direito à liberdade de expressão, deu aos li-
vros, aos jornais, aos periódicos e ao papel destinado à sua
impressão a imunidade tributária. Porém, tal norma pode ser
interpretada de várias maneiras, já que para a constituição de
um jornal, por exemplo, são necessários diversos insumos
além do papel destinado a sua impressão.
É bom dizer que o tema não pode ser dirimido com o
espírito instável do poeta Fernando Pessoa, que dizia: “tudo
é incerto e derradeiro/tudo é disperso, nada é inteiro/... hoje
és nevoeiro”.
Portanto, a solução jurídica não será respondida se a
Douglas Yamashita análise se pautar pelo nevoeiro do poeta português, mas sim
é Doutor em Direito
Econômico-Financeiro
invocar a concretude e clareza da escritora amada por nós
pela Universidade de brasileiros Cecília Meirelles, que aqui é pertinente trazer à
São Paulo, Master of baila a sua narração:
Laws (LL.M.) pela “Ou isto ou aquilo/ou se tem chuva ou não se tem sol/ou se
Universidade de tem sol ou não se tem chuva/ou se calça a luva e não se põe
Colônia, Alemanha, e o anel/ou se põe o anel e não se calça a luva!/quem sobe nos
Advogado. ares não fica no chão e quem fica no chão não sobe nos ares.”
II. A Imunidade Tributária de Livros, de Jornais e de Periódicos (artigo 150,
inciso VI, letra “d”, da Constituição Federal de 1988)
II.1. Previsão constitucional
Em apertada síntese, teceremos algumas considerações sobre o instituto da imu-
nidade tributária e que corroboram para um melhor entendimento acerca da aplica-
ção ou não à hipótese da imunidade tributária contida no inciso VI, letra “d”, do
artigo 150 da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
VI - instituir impostos sobre:
(...)
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.”
A imunidade tributária é uma limitação constitucional ao poder de tributar e da
sua aplicação decorre que os bens descritos pela norma constitucional acima disposta
não podem sofrer tributação por qualquer daqueles entes (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios).
Neste sentido, como assevera a doutrina1, apesar de o tributo ser elemento es-
sencial para a movimentação da máquina estatal, nosso ordenamento jurídico pre-
vê o instituto da imunidade consagrado em fundamentos extrajurídicos, atendendo
a orientação do poder constituinte em função das idéias políticas vigentes, preser-
vando, dessa forma, os valores políticos, religiosos, educacionais, sociais, culturais
e econômicos, todos eles fundamentais à sociedade brasileira. Logo, não se deve
considerar a imunidade tributária como um benefício ou como um favor fiscal, uma
renúncia à competência tributária ou um privilégio, mas, sim, uma forma de resguar-
dar e garantir os valores da comunidade e do indivíduo.
Desse modo, preceitua-se que, apesar da necessidade que o Estado tem de co-
brar impostos, o legislador entendeu que os objetos protegidos pelo instituto da
imunidade devem merecer um tratamento diferenciado em relação àqueles suscetí-
veis à tributação, pelos valores que aqueles disseminam numa sociedade política e
democraticamente organizada.
A imunidade tributária dos livros, dos jornais, dos periódicos e do papel desti-
nado a sua impressão foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através do
artigo 31, letra “c”, da Magna Carta de 1946.
Na Constituição Federal de 1967, tanto em sua redação original, como na de-
corrente da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, foram considerados imunes os
livros e os periódicos, assim como o papel destinado a sua impressão, em seu arti-
go 19, inciso III, letra “d”.
Por fim, a Constituição Federal de 1988 manteve, nos mesmos moldes anterio-
res, a imunidade tributária dos livros, dos jornais, dos periódicos e do papel desti-
nado a sua impressão no inciso VI, letra “d”, do artigo 150 supra transcrito.
1
TORRES, Ricardo Lobo. “Imunidades Tributárias”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Imunidades Tri-
butárias. Pesquisas Tributárias: Nova Série 4. São Paulo: RT, 1998, p. 209.
II.2. Tributos abrangidos pela imunidade
Nos estritos termos da redação do artigo 150, inciso VI, letra “d”, da CF/88 já
se pode reparar que sua vedação prevalece apenas em relação aos impostos, dela se
excluindo, portanto, as taxas e contribuições.
Desse modo, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), por
serem impostos objetivos, têm a sua incidência barrada pela imunidade aplicável aos
jornais, aos livros, aos periódicos e ao papel ora examinada.
Em contrapartida, inexiste imunidade para os tributos subjetivamente inciden-
tes, como o Imposto de Renda, que recai sobre as disponibilidades financeiras de
autores, de editores, de empresas jornalísticas e de outras pessoas envolvidas com
o mundo das publicações.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou contra a extensão às con-
tribuições sociais da imunidade em questão tanto na Primeira quanto na Segunda
Turma:
“Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. Tributário. Imunidade. Letra ‘d’ do
inciso VI do artigo 150 da Carta Magna. Pretendida Extensão à Cofins. Dispositivo
constitucional que, nos termos da jurisprudência desta excelsa Corte, diz respeito, uni-
camente, a impostos. Agravo desprovido.” (RE-AgR nº 325.302/RS de 20/06/2006, da
Primeira Turma - grifo nosso)
2
Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2007,
p. 149.
pensável à produção dos objetos imunes, abrangendo todo o material necessário a
sua confecção, sejam estes bens de uso ou consumo, bens do ativo fixo ou serviços
intrínsecos a sua confecção.
Intermediando as linhas de pensamento citadas, entendemos que as imunidades
tributárias previstas no artigo 150, inciso VI, letra “d” da Constituição Federal, de-
vem ser interpretadas extensivamente, mas balizadas pelo princípio da razoabilida-
de, analisando a substância e os interesses protegidos pela Constituição Federal.
Nosso entendimento também é no sentido de que se interpretará equivocadamen-
te o artigo 150, inciso VI, letra “d”, da CF/88 se ao invés de valorizar os direitos e
garantias constitucionais que a imunidade protege, se der ênfase à literalidade des-
se preceito, restringindo radicalmente a imunidade ao livro, ao jornal e aos periódi-
cos impressos em papel. A imunidade, para ser efetiva, abrange todo o material ne-
cessário à confecção do livro, do jornal ou do periódico. Não apenas o material con-
siderado, mas o conjunto e, devido a isso, nenhum imposto pode incidir sobre ser-
viços gráficos de produção desses objetos, que, latentemente, são insumos essen-
ciais a esses objetos da imunidade.
Neste contexto, a norma imunizadora deve ser interpretada amplamente, prin-
cipalmente se considerarmos que, do ponto de vista histórico, captado pela doutri-
na mencionada, a imunidade cada vez mais se afasta do suporte do livro, em papel,
para se fundamentar em sua função, qual seja, a de veículo de mídia escrita e a de
difusão do pensamento humano, como instrumento indispensável à realização do
Estado Democrático de Direito.
“Imunidade conferida pelo art. 150, VI, d da Constituição. Impossibilidade de ser es-
tendida a outros insumos não compreendidos no significado da expressão ‘papel des-
tinado à sua impressão’. Precedentes do Tribunal.” (RE nº 324.600-AgR, Rel. Min.
Ellen Gracie, julgamento em 03/09/2002, DJ de 25/10/2002)
III. Conclusão
Por tudo quanto até aqui exposto e demonstrado, conclui-se que:
i) a imunidade artigo 150, inciso VI, letra “d”, da CF/88, refere-se apenas a im-
postos, ou seja, não se aplica taxas ou contribuições sociais como a CSLL, o
PIS e a Cofins. Os impostos abrangidos são o IPI, o ISS e o ICMS por serem
impostos objetivos, inexistindo imunidade para os tributos subjetivos, tal como
o Imposto de Renda;
ii) apesar de a corrente majoritária no Supremo Tribunal Federal ser contrária
à imunidade dos serviços gráficos para revistas com base no artigo 150, inci-
so VI, letra “d”, da CF/88, decisões divergentes desse entendimento ainda per-
mitem concluir que a questão não tem interpretação unânime nessa Suprema
Corte, havendo margem para sua reversão no futuro.
A Prescrição da Ação Judicial Voltada
à Restituição de Indébito tem Fluência
desde o Pagamento Indevido, mesmo
quando o Sujeito Passivo apresenta
Pedido Administrativo de Restituição?
Análise do Tema à Luz de Decisões do
Superior Tribunal de Justiça
Fabiana Carsoni A. Fernandes da Silva
1. Considerações Iniciais
O sujeito passivo que efetua o recolhimento de tributo
indevido, ou a maior que o devido, faz jus à sua restituição,
podendo exercer tal direito por um dos seguintes meios: ou
ingressar com medida judicial tendente a resguardar a resti-
tuição tributária e, sendo possível, ainda assegurar o direito
à compensação do indébito, ou requerer administrativamen-
te, perante a autoridade competente, a restituição dos valo-
res recolhidos a maior ou indevidamente, seja em espécie,
seja mediante compensação, neste caso, quando a legislação
tributária o permitir.
No que atine à segunda opção apontada acima, há uma
série de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Jus-
tiça no sentido de que “o pedido administrativo não inter-
rompe o prazo prescricional”.
E é por conta da existência destas decisões que será ana-
lisado, por meio do presente estudo, se o pedido administra-
tivo de restituição é meio apto ao exercício do direito de rea-
ver indébitos tributários, ou se tal assertiva teria sofrido tem-
peros quando submetida à apreciação daquele Tribunal.
Mais do que isto, o escopo do presente trabalho é tam-
bém examinar se o indeferimento do direito creditório, ocor-
rido administrativamente após decorrido o prazo para a re-
petição do indébito, obsta a propositura de ação judicial com
tal mister, em virtude da ocorrência de prescrição. Esta, vale
dizer, é a conclusão que, a uma primeira vista, resulta da
análise de ementas de acórdãos do Superior Tribunal de Jus-
tiça, das quais consta que “o pedido administrativo não in-
terrompe o prazo prescricional”, como dito acima, embora, Fabiana Carsoni A.
para se ter a exata dimensão do entendimento deste Tribu- Fernandes da Silva
nal sobre a questão, faz-se necessário perscrutar o inteiro é Advogada em
teor de cada uma delas, o que será realizado adiante. São Paulo.
Iniciarei este estudo a partir de apontamentos necessários à condução do tema,
relativos à repetição de indébitos tributários, após o que serão analisadas as deci-
sões do Superior Tribunal de Justiça, acima mencionadas. Vejamos.
1
A questão afeta à inconstitucionalidade do artigo 4º, segunda parte, da Lei Complementar n. 118 foi submetida à
apreciação do Supremo Tribunal Federal, perante o qual ainda aguarda julgamento.
2
A partir da manifestação da Corte Especial, foi também estabelecida uma regra de transição para a aplicação da nova
norma de contagem do prazo de restituição dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, nos seguintes ter-
mos: “com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: re-
lativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de
repetição de indébito é de cinco anos a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a
prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar
da vigência da lei nova”, conforme extraído do voto do Relator Ministro Teori Albino Zavascki (AI nos EREsp
n. 644.736/PE - destaquei).
3
Não há consenso na doutrina acerca da natureza, se prescricional, ou decadencial, do referido prazo. José Eduardo
Soares de Melo, por exemplo, entende que tal prazo é prescricional (“Repetição do Indébito e Compensação”, Repe-
tição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. Coordenador: Hugo de Brito Machado, co-edição de Dialé-
tica e ICET, São Paulo e Fortaleza, 1999, p. 238).
Existem várias decisões dos Tribunais Regionais Federais do País dizendo que o prazo do artigo 168 do Código Tri-
butário Nacional é decadencial. O Superior Tribunal de Justiça, na atualidade, tem se inclinado a dizer que tal prazo
é prescricional (AgRg no REsp n. 1.089.646-RS, julgado em 5.3.2009; e REsp n. 963.352-PR, julgado em 21.10.2008),
embora haja várias decisões deste Tribunal, de anos anteriores, aludindo à decadência (REsp n. 174.743-MG, julga-
do em 18.8.1998 e REsp n. 44265-6-RS, julgado em 8.6.1994, por exemplo).
Já na seara administrativa, há uma série de decisões do antigo Conselho de Contribuintes, atual Conselho Adminis-
trativo de Recursos Fiscais, dizendo que o prazo para se pleitear a restituição do indébito é de natureza decadencial,
valendo citar, a título exemplificativo, os Acórdãos ns. 104-21922, de 21.9.2006, da 4ª Câmara do 1º Conselho;
203-12592, de 21.11.2007, da 3ª Câmara do 2º Conselho; 303-35575, de 13.8.2008, da 3ª Câmara do 3º Conselho; e
106-14316, de 11.11.2004, da 6ª Câmara do 1º Conselho.
ciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e que, de outro, assegura ao
sujeito passivo tributário, também no artigo 5º, agora em seu inciso LV, o conten-
cioso administrativo, cujo esgotamento não é condição para a propositura de ação
judicial.
Paulo Cesar Conrado disse haver três possibilidades de o contribuinte postular
a restituição de tributo pago indevidamente: a via judicial, a via administrativa e uma
via que ele chamou de “extra-estatal”, que nada mais é do que o registro contábil
do pagamento indevido, com a subseqüente compensação do crédito daí oriundo
com débito do contribuinte. A propósito das duas primeiras vias, que interessam ao
presente trabalho, disse o magistrado federal:
“No primeiro caso (da via judicial), a constituição do fato do pagamento indevido e
da respectiva relação de débito do fisco depende da formulação, pelo contribuinte, de
pretensão perante o Judiciário, aplicando-se, aqui, o conceito de petição inicial (ins-
trumento que esgota a atividade enunciativa inaugural a que antes aludimos).
No segundo caso (da via administrativa), a constituição daquele mesmo fato e da cor-
relata relação depende da formulação, também pelo contribuinte, de pretensão peran-
te a Administração, funcionando o respectivo requerimento como instrumento que
esgota a mesma atividade enunciativa inaugural já referida.”4
Ricardo Mariz de Oliveira, em estudo a respeito da repetição do indébito tribu-
tário, ao falar da natureza decadencial do prazo para reaver tributo pago indevida-
mente, originada do artigo 168 do Código Tributário Nacional, tratou da possibili-
dade de o sujeito passivo optar pela via administrativa, ou judicial, com vistas à res-
tituição do indébito, não tendo esta ou aquela opção o condão de transmudar a na-
tureza daquele prazo, consoante se infere da leitura do seguinte trecho daquele es-
tudo:
“(...) verifica-se que o CTN está estabelecendo um prazo de decadência para o exercí-
cio do próprio direito à restituição, inclusive ao tratá-lo como ‘direito de pleitear a res-
tituição’, e não como prescrição do direito de ação para torná-lo efetivo. Sendo assim,
o prazo decadencial operar-se-ia quer para o pleito administrativo, quer para o ingres-
so direto em juízo, e neste último caso, decaído o direito, não haveria mais que falar
em prescrição para obter a satisfação de um direito já inexistente, e, portanto, inexigí-
vel. E o art. 169 trataria de prazo de prescrição de ação em tendo havido prévio pedi-
do administrativo, este exercido antes de se extinguir o direito pela decadência.”5
A propósito do artigo 169 do Código Tributário Nacional, citado no excerto
acima transcrito, e cujo “caput” diz prescrever “em dois anos a ação anulatória da
decisão administrativa que denegar a restituição”, há duas considerações importan-
tes a serem feitas.
A primeira delas é que o Código Tributário Nacional, ao prever prazo prescri-
cional para a ação anulatória da decisão que indeferir a restituição administrativa-
mente, não estabeleceu como condição de acesso ao Poder Judiciário o prévio es-
4
“Repetição do Indébito Tributário: Definição, Condições e Efeitos”, Repetição do Indébito Tributário. Coordena-
dor: Guilherme Cezaroti, Quartier Latin, São Paulo, 2005, p. 15.
5
“Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória”, Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tri-
butário. Coordenador: Hugo de Brito Machado, co-edição de Dialética e ICET, São Paulo e Fortaleza, 1999, p. 364.
gotamento da via administrativa. E seria no mínimo estranho se o tivesse feito. É
que o sujeito passivo não está vinculado à apresentação de pedido administrativo de
restituição, sendo, isto sim, uma faculdade sua o ingresso na esfera administrativa,
como, de resto, há muito se firmou a jurisprudência de nossos Tribunais sobre o
tema.
Daí que, e é daqui que advém a segunda consideração a ser feita, somente quan-
do o sujeito passivo tiver, espontaneamente, apresentado pedido administrativo de
restituição, e negada esta, também na esfera administrativa, é que se poderá cogitar
da aplicação do artigo 169 do Código Tributário Nacional. Não só: o artigo 169
apenas tem lugar na hipótese de o sujeito passivo intentar ação anulatória em face
da decisão que denegar o direito creditório, de tal sorte que qualquer outra modali-
dade de ação judicial, ou eventual ação judicial com diferente mister, não terá sua
prescrição regida pelo mencionado dispositivo legal, porque ele trata de uma situa-
ção específica, própria dos casos em que há negativa, por parte das autoridades fis-
cais, do pedido administrativo de restituição, por meio de decisão cuja anulação
constitui o objeto da ação judicial referida no artigo 169.
Exemplificando para melhor compreensão do que foi dito, suponha-se que cer-
to contribuinte, observado o prazo decadencial do artigo 168 do Código Tributário
Nacional - e, quando for o caso, o prazo deste dispositivo somado àquele do artigo
150, parágrafo 4º, do mesmo diploma legal - tenha apresentado pedido administra-
tivo de restituição e, após decisão administrativa final, o direito creditório não lhe
tenha sido assegurado.
Se, em até dois anos da intimação desta decisão denegatória6 e, ainda, nos ter-
mos do prazo prescricional estatuído no artigo 169 do Código Tributário Nacional,
o contribuinte propuser ação anulatória desta mesma decisão, resguardado estará o
seu direito de ação (artigo 169), precisamente o seu direito de intentar ação anula-
tória com vistas à anulação da decisão administrativa denegatória da restituição,
assim como resguardado estará seu direito creditório contra a decadência, porque
apresentado pedido administrativo dentro do prazo legal para a tomada de tal me-
dida (artigo 168 e, eventualmente, artigo 150, parágrafo 4º).
Mas, se antes ou depois da prolação de decisão administrativa denegando a res-
tituição pleiteada mediante requerimento dirigido à Administração Fazendária, esse
mesmo contribuinte vier a intentar ação judicial visando à repetição do indébito, ele
o deverá fazer com observância do artigo 168 do Código Tributário Nacional - e, a
depender da circunstância, observando também o artigo 150, parágrafo 4º. Isto por-
que, nesta situação, o requerimento administrativo de restituição não terá o condão
de resguardar o direito creditório contra a decadência, pois, ao ingressar com ação
de repetição de indébito, o contribuinte pratica um ato incompatível com o proce-
dimento anterior, de apresentação de pedido administrativo de restituição, isto é, um
ato do qual redunda o abandono de tal procedimento, já que esta medida judicial
6
O esgotamento da via administrativa não é condição para o ajuizamento da ação. É possível a propositura desta em
face de decisão contra a qual ainda caiba recurso administrativamente. Mas, uma vez intentada a ação, a discussão
administrativa fica superada, havendo renúncia a esta esfera.
visará ao reconhecimento da existência, inclusive pela não caducidade, do direito
creditório, não se prestando, dita medida, a reconhecer a validade do procedimento
adotado na seara administrativa, muito menos à anulação de eventual decisão ad-
ministrativa denegatória do crédito cuja restituição se pretende.
De igual modo, na hipótese de o contribuinte, também abandonando o procedi-
mento consubstanciado na apresentação de pedidos administrativos de restituição,
impetrar mandado de segurança com um pedido fixo7, consistente na restituição do
indébito, independentemente das medidas tomadas administrativamente ou das de-
cisões proferidas nesta esfera, o mandado de segurança igualmente não obstará o
acometimento do crédito pela decadência8.
Diversa será a situação se o contribuinte impetrar ação mandamental cujo pedi-
do mediato consista na restituição do crédito decorrente de pagamento indevido, mas
cujo pedido imediato corresponda à anulação da decisão proferida administrativa-
mente denegando a restituição buscada pelo contribuinte. Neste caso, apresentado
requerimento administrativo em obediência ao artigo 168 do Código Tributário
Nacional - e ao artigo 150, parágrafo 4º, quando assim permitir a situação concreta
- tal requerimento de restituição terá o condão de obstar a fluência do prazo deca-
dencial, pelo exercício do direito à restituição, mas é fundamental que o mandado
de segurança seja intentado no prazo de 120 dias a que alude o artigo 18 da Lei
n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951 (“Art. 18. O direito de requerer mandado de
segurança extinguir-se-á decorridos cento e vinte dias contados da ciência, pelo in-
teressado, do ato impugnado”), a fim de que não haja perda do direito de lançar mão
da via mandamental9.
Do que se vê, é possível concluir que a coerência do procedimento assumido
pelo contribuinte (de optar pela via administrativa, e nela prosseguir, partindo para
a via judicial apenas na hipótese da denegação, na primeira esfera, da restituição
pretendida e, ainda, desde que na segunda esfera seja pleiteada a anulação da deci-
são administrativa denegatória do crédito) é importantíssima para que o requerimen-
to administrativo de restituição constitua instrumento assecuratório do direito do
contribuinte de reaver indébitos tributários e, mais do que isto, represente meio apto
a obstar a fluência do prazo decadencial pelo exercício do direito de restituição.
A seguir, será visto que, a não ser por duas decisões, que considero isoladas e
atécnicas, o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça não destoa das con-
siderações feitas até aqui.
7
Consoante leciona Humberto Theodoro Júnior, “o pedido é fixo quando visa a um só resultado imediato e mediato,
como a condenação a pagar certa indenização ou restituir determinado bem” (Curso de Direito Processual Civil, vol. I,
Forense, Rio de Janeiro, p. 328). O pedido imediato representa a modalidade de tutela perseguida na ação judicial
(condenação, anulação, declaração etc.), ao passo que o pedido mediato se traduz no “próprio bem jurídico que o
autor procura proteger com a sentença (o valor do crédito cobrado, a entrega da coisa reivindicada, o fato a ser pres-
tado etc.)” (ob. cit., p. 325).
8
O mandado de segurança, neste caso, teria natureza preventiva, na medida em que não objetivaria afastar nenhuma
coação já perpetrada, mas, sim, uma coação a ser praticada pela autoridade coatora, a exemplo da não homologação
de futura compensação, pautada na suposta inexistência do direito creditório.
9
O mandado de segurança, nesta hipótese, diferente da situação anterior, é de natureza repressiva, porquanto tem por
mister afastar ato ilegal ou abusivo já praticado pelas autoridades fiscais, consistente no indeferimento do direito
creditório.
3. As Decisões do Superior Tribunal de Justiça
Há uma série de decisões do Superior Tribunal de Justiça, de suas 1ª e 2ª Tur-
mas e de sua 1ª Seção, de cuja ementa se lê: “o pedido administrativo não interrompe
o prazo prescricional”.
À primeira vista, o excerto dessas ementas confere ao seu leitor a idéia de que
o pedido administrativo de restituição, em nenhuma hipótese, constitui instrumen-
to apto a assegurar contra a decadência o direito do contribuinte de reaver tributos
pagos indevidamente.
Todavia, isto seria um contra-senso e, mais, deflagraria uma inconstitucionali-
dade, na medida em que, consoante dito acima, tal direito emana do próprio texto
constitucional, assegurador do contencioso administrativo. Daí que admitir que o
pedido administrativo, em nenhuma circunstância, é capaz de frear o curso do pra-
zo para restituição tributária, pelo exercício deste direito, é o mesmo que ceifar a
garantia constitucional do contencioso administrativo.
Mas não só: tal idéia também é atentatória às noções basilares de prescrição e
decadência. Não obstante possuírem traços distintivos, ambos institutos foram cria-
dos levando em conta, fundamentalmente, dois fatores: o tempo e a inércia. É que,
por uma questão de segurança jurídica, o direito não pode dar guarida àqueles que
ficaram inertes durante certo lapso temporal, deixando de reivindicar aquilo que
julgavam ser-lhes de direito10. Daí o brocardo “dormientibus non sucurrit jus” (o
direito não socorre aos que dormem), que traduz a idéia de que o credor inerte tem
seu direito fulminado pela prescrição ou pela decadência uma vez decorrido deter-
minado prazo.
Ora, se o contribuinte, sabedor de sua prerrogativa de se valer do pedido admi-
nistrativo de restituição, e dentro do prazo legal para o exercício de tal prerrogati-
va, apresentar requerimento com vistas a reaver o que pagou a maior ou indevida-
mente, é certo que não haverá inércia ou omissão de sua parte, a reclamar a aplica-
ção das normas regentes daqueles institutos.
Portanto, também sob esse enfoque, é condenável qualquer entendimento de que
o pedido administrativo nunca obsta a fluência do prazo para a restituição do indé-
bito tributário.
Pois bem. Embora o detalhamento do objeto de cada ação judicial que deu ori-
gem às decisões do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “o pedido ad-
ministrativo não interrompe o prazo prescricional”, dependa da análise das respec-
tivas petições iniciais, após examinar tais acórdãos e as decisões de Tribunais locais
que lhes deram origem, constata-se que, exceto por duas decisões, todas elas foram
proferidas, não em ações anulatórias propostas nos termos do artigo 169 do Código
Tributário Nacional, mas, sim, em mandados de segurança, aparentemente de natu-
reza preventiva, já que, ao que tudo indica, foram impetrados tão-somente com o
fito de obter provimento jurisdicional assegurando a restituição, mediante compen-
10
A despeito de tratar da prescrição e da decadência no Direito Civil, Sílvio de Salvo Venosa bem pontuou que: “O
decurso de tempo, em lapso maior ou menor, deve colocar uma pedra sobre a relação jurídica cujo direito não foi
exercido. É com fundamento na paz social, na tranqüilidade da ordem jurídica que devemos buscar o fenômeno da
prescrição e da decadência.” (Direito Civil, Parte Geral, Atlas, São Paulo, p. 535)
sação, independentemente da anulação de decisão proferida na esfera administrati-
va. Confira-se:
- EREsp n. 669.139-SE, julgado em 23.5.2007, pela 1ª Seção: trata-se de man-
dado de segurança impetrado em 11.7.2001 para pleitear a restituição de cré-
ditos do período de outubro de 1989 a maio de 1991, referentes a tributo su-
jeito a lançamento por homologação, tendo havido, em 16.7.1996, a apresen-
tação de pedido administrativo de restituição; entendeu o Superior Tribunal de
Justiça que “o pedido administrativo não interrompe o prazo prescricional”;
- EDcl no REsp n. 811.282-MG, julgado em 3.10.2006, pela 2ª Turma: trata-
se de Mandado de Segurança impetrado em 29.8.2000, para assegurar a resti-
tuição de créditos de abril de 1990 a março de 1992, referentes a tributo sujei-
to a lançamento por homologação, sendo que o pedido administrativo foi apre-
sentado em 24.4.2000; o Superior Tribunal de Justiça declarou prescritos to-
dos os valores recolhidos antes de agosto de 1990, afirmando que “o simples
pedido administrativo de compensação tributária não é motivo apto para inter-
romper o prazo prescricional”;
- REsp n. 749.593-RJ, julgado em 18.9.2007, pela 1ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança impetrado em 1º.10.2002, com vistas a assegurar a restitui-
ção de créditos do período de janeiro de 1991 a abril de 1992, referentes a tri-
buto sujeito a lançamento por homologação; o Superior Tribunal de Justiça
afirmou que “o pedido administrativo de compensação não interrompe o pra-
zo prescricional”, tendo constado do voto do Relator, Ministro Teori Albino
Zavascki, a propósito do objeto da ação mandamental, ser “ausente, portanto,
qualquer pedido de anulação do ato da autoridade impetrada, fundado em in-
devido reconhecimento do prazo prescricional”, já que “o pedido da impetrante
busca seja declarada a possibilidade de compensação das parcelas indevida-
mente recolhidas”;
- REsp n. 840.666-PA, julgado em 15.8.2006, pela 1ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança impetrado em outubro de 2001, visando à restituição de
créditos do período de 1988 a 1995, referentes a tributo sujeito a lançamento
por homologação, e, mais do que isto, visando assegurar o direito da impetrante
de compensar estes valores. Foi apresentado pedido administrativo de restitui-
ção em 26.7.1999, o qual, segundo informações extraídas das decisões profe-
ridas no processo, não foi apreciação na esfera administrativa. Entendeu o
Superior Tribunal de Justiça que “o pedido administrativo não interrompe o
curso da prescrição”;
- EDcl no REsp n. 635.856-SC, julgado em 12.6.2007, pela 2ª Turma: trata-se
de mandado de segurança impetrado em 29.5.2001; o Superior Tribunal de
Justiça entendeu que “o pedido administrativo não interrompe o curso da pres-
crição”;
- REsp n. 653.655-PR, julgado em 15.9.2005, pela 1ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança impetrado em 9.8.2000; o Superior Tribunal de Justiça afir-
mou que “o pedido administrativo de compensação não interrompe o prazo
prescricional”;
- REsp n. 815.738-SP, julgado em 28.3.2008, pela 1ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança ajuizado em 12.5.2000, com o objetivo de reconhecer cré-
dito atinente ao período de setembro de 1989 a outubro de 1991; o Superior
Tribunal de Justiça entendeu que “o pedido administrativo de compensação não
interrompe o prazo prescricional”;
- REsp n. 584.372-MG, julgado em 17.3.2005, pela 2ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança, visando à restituição de crédito do período de agosto de
1990 a novembro de 1991; o Superior Tribunal de Justiça entendeu que “o sim-
ples pedido administrativo de compensação tributária não é motivo apto para
interromper o prazo prescricional”;
- REsp n. 531.352-MG, julgado em 6.12.2005, pela 2ª Turma: trata-se de man-
dado de segurança objetivando o reconhecimento do direito à compensação de
indébito tributário. Houve a apresentação de pedido administrativo de restitui-
ção, em 21.12.1999. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que “o simples
pedido administrativo de compensação tributária não é motivo apto para inter-
romper o prazo prescricional”; e
- AgRg no Agravo de Instrumento n. 629.184-MG, julgado em 3.5.2005, pela
1ª Turma: trata-se de mandado de segurança ajuizado em 27.6.2000, visando
à declaração incidental da inconstitucionalidade de dado tributo sujeito a lan-
çamento por homologação, bem como ao reconhecimento do direito à compen-
sação desses valores, recolhidos indevidamente no período de fevereiro de 1990
a novembro de 1991. Foram apresentados pedidos administrativos em
30.11.1999 e em 12.1.2000. O Superior Tribunal de Justiça decidiu que “o pra-
zo prescricional, para fins de restituição de indébito de tributo indevidamente
recolhido, não se interrompe e/ou suspende em face de pedido formulado na
esfera administrativa”.
Diante disso, e admitindo que, de fato, em todos os casos analisados acima pelo
Superior Tribunal de Justiça os contribuintes tenham impetrado mandado de segu-
rança de índole preventiva, no mais das vezes, com vistas a resguardar futura com-
pensação a ser realizada com crédito decorrente de pagamento indevido, não se pode
taxar as decisões acima listadas de incorretas, ou de indicativas de uma mudança na
orientação daquele Tribunal acerca da condição do pedido administrativo de evitar
a decadência do direito à restituição.
Isso porque, aparentemente, os mandados de segurança então analisados não
tiveram por objeto a anulação de decisão administrativa denegatória da restituição,
donde, a despeito da apresentação, pelos contribuintes, de pedidos administrativos
de restituição, estes não impediram a fluência do prazo prescricional para o ajuiza-
mento de ação judicial tendente a resguardar o direito creditório, na linha do quan-
to visto anteriormente.
Há duas decisões, no entanto, que contrariam aquilo que foi dito no tópico an-
tecedente a propósito da restituição tributária.
A primeira delas for proferida pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no
AgRg no REsp n. 1.062.447-SP, em 14.10.2008, em ação de rito ordinário, em cujo
bojo foi requerida, dentre outras coisas, a anulação de decisão proferida na esfera
administrativa indeferindo a restituição de indébito tributário, da qual a autora da
demanda teve ciência em 8 de novembro de 2002.
A ação judicial foi ajuizada em 20.7.2004, observado, portanto, o prazo pres-
cricional de dois anos previsto no artigo 169 do Código Tributário Nacional, assim
como também foi atendido o prazo decadencial para a apresentação de pedido de
restituição, pois que, tratando-se de tributo sujeito a homologação referente ao pe-
ríodo de setembro de 1989 a março de 1992, o pedido apresentado em 28.6.1999
atendeu ao prazo decenal (artigo 150, parágrafo 4º, cumulado com o artigo 168,
inciso I, ambos do Código Tributário Nacional) para a tomada da medida.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça foi lacônica, limitando-se a dizer que
“o pedido administrativo não interrompe o prazo prescricional”, após o que foram
citadas ementas de julgado do Tribunal no mesmo sentido, sem, contudo, haver aná-
lise das regras legais atinentes à restituição tributária, muito menos daquela conti-
da no artigo 169 do Código Tributário Nacional.
Situação semelhante é aferível em relação ao acórdão proferido em 15.2.2007,
pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no AgRg no REsp n. 879.258-SP, pois,
do relatório de tal decisão, consta que o impetrante se valeu da ação mandamental,
aparentemente de índole repressiva, já que impetrado com vistas ao cancelamento
de ato ilegal perpetrado pela autoridade apontada como coatora, consistente no in-
deferimento, administrativamente, de pedido de restituição apresentado em
28.12.199911, objetivando reaver créditos de janeiro de 1990 a outubro de 1991, re-
lativos a tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Vale dizer, o mandado de segurança foi impetrado em 16.5.2001, antes do de-
curso do prazo estatuído no artigo 18 da Lei n. 1.533, uma vez que o indeferimento
do pedido administrativo de restituição ocorreu em 28.12.1999.
Ou seja, ao que tudo indica, o direito creditório não fora alcançado pela deca-
dência, tampouco o direito de ação fora fulminado pela prescrição. Não obstante isto,
o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, não sendo a apresentação de pedido
administrativo de restituição hipótese de interrupção da prescrição, as parcelas de
dado tributo, sujeito a lançamento por homologação, recolhidas nos dez anos ante-
riores à impetração, estavam prescritas.
Essas duas decisões do Superior Tribunal de Justiça são isoladas e pecam pela
análise, ao que tudo indica, superficial dos casos postos à discussão, não se poden-
do afirmar, ao menos não categoricamente, que elas refletem a orientação deste Tri-
bunal acerca do direito de os contribuintes se valerem de pedido administrativo de
restituição com o mister de resguardar seu direito contra a decadência.
Tanto isso é verdade que há ao menos cinco decisões da 2ª Turma daquele Tri-
bunal dizendo, ainda que “obter dictum”, que os pedidos administrativos apresen-
tados até 9.7.2005, data imediatamente anterior a de entrada em vigor do artigo 3º
da Lei Complementar n. 118, têm o condão de preservar o direito de restituição do
contribuinte quanto a tributos sujeitos a lançamento por homologação. É o que re-
tratam as seguintes ementas:
11
A ação, ao que parece, realmente é de natureza repressiva, pois, no relatório da decisão proferida pelo Superior Tri-
bunal de Justiça, fala-se que o contribuinte requereu o cancelamento de “ato abusivo e ilegal da autoridade coatora,
determinando-se seja dado normal seguimento ao processo administrativo formado pelo pedido de compensação”.
“Tributo. Lançamento por Homologação. Prescrição. Art. 3º da Lei Complementar
n. 118/2005. Inaplicabilidade.
1. A Primeira Seção do STJ, no julgamento dos EREsp n. 327.043/DF, firmou enten-
dimento de que a tese do ‘cinco mais cinco’, relativa à prescrição dos indébitos tribu-
tários, não restou derrogada pela Lei Complementar n. 118, de 9 de fevereiro de 2005,
no que se refere aos casos já ajuizados ou pleiteados pela via administrativa até a data
de 9 de julho de 2005.
2. Agravo regimental não-provido.” (2ª Turma do STJ, AgRg no Ag n. 717.599, Rel.
Ministro João Otávio de Noronha, DJ 20.03.2006, p. 245)
4. Conclusões
Feitas as considerações acima, conclui-se que:
- o direito de pleitear, na esfera administrativa, a restituição de indébito tribu-
tário, mais do que aferível pela interpretação do artigo 169 do Código Tribu-
tário Nacional, é decorrente do artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal,
que assegura o direito ao contencioso administrativo;
- não havendo inércia do contribuinte, tampouco decurso do lapso temporal de-
terminado na legislação tributária, não mais terá curso o prazo decadencial para
restituição tributária por ocasião da apresentação do pedido administrativo de
restituição, o que é decorrência do próprio sistema legal de restituição, o qual
estabeleceu prazo decadencial para o exercício do direito de reaver o indébito
tributário, de tal sorte a evitar a insegurança jurídica oriunda da inércia do con-
tribuinte, que não ocorre quando se lança mão daquele requerimento, confor-
me visto anteriormente;
- exceto por duas decisões isoladas e atécnicas, consistentes em erro de julga-
mento, inconsciente, as decisões existentes no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça sobre a matéria não são contrárias ao entendimento ora manifestado; e
- após o término da tramitação do processo administrativo, é garantido ao con-
tribuinte o direito de discutir judicialmente o indeferimento do direito credi-
tório, desde que observado o prazo prescricional para o ajuizamento da ação,
que será: (a) o do artigo 168 do Código Tributário Nacional - cumulado com o
artigo 150, parágrafo 4º, quando for o caso - na hipótese de ajuizamento de ação
de repetição de indébito, ou de mandado de segurança de índole preventiva; (b)
o do artigo 18 da Lei n. 1.533 quando impetrado mandado de segurança visando
à anulação de decisão administrativa denegatória do crédito cuja restituição se
pleiteia; e (c) o do artigo 169 do Código Tributário Nacional se ajuizada ação
anulatória desta mesma decisão denegatória.
A Não-incidência de Contribuição
Previdenciária sobre Verbas Trabalhistas
de Natureza Indenizatória e Eventual
Fernando Facury Scaff
Edson Benassuly Arruda
1 - Apresentação do Tema
A Constituição Federal prevê contribuições sociais de
natureza previdenciária, em seu art. 195, I, “a”, sobre deter-
minadas verbas trabalhistas. Assim, a contribuição é devida
pelo empregador, da empresa e da entidade a ela equipara-
da na forma da lei, incidentes sobre folha de salários e de-
mais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qual-
quer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo
sem vínculo empregatício.
Ocorre que nem todas as verbas recebidas pelos empre-
gados ou prestadores de serviço sofrem a incidência da con-
Fernando Facury tribuição previdenciária, entre elas destacamos as verbas tra-
Scaff
balhistas de natureza indenizatória e/ou eventual, como por
é Professor da
Faculdade de Direito exemplo, o adicional noturno, insalubridade, hora extra, sa-
da Universidade de lário-maternidade, terço constitucional de férias e férias in-
São Paulo - USP e da denizadas, adicional de periculosidade, salário-família, avi-
Universidade Federal so prévio, salário-educação, auxílio-doença e auxílio-creche.
do Pará - UFPA A cobrança de contribuição social sobre estas parcelas
(Licenciado), traz sérios prejuízos aos contribuintes, uma vez que oneram
Advogado e Doutor
em demasia sua folha de pagamento (estima-se em 20% o
em Direito pela USP.
recolhimento a maior da contribuição previdenciária), oca-
sionando enriquecimento ilícito para a União e pagamento
indevido pelos sujeitos passivos.
2
“Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocor-
rência.”
3
“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará
sucessivamente, na ordem indicada:
§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.”
4
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, inci-
dentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) a) a folha de salários e demais rendimen-
tos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo
empregatício (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).”
mos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho
ou sentença normativa5.
A expressão “remuneração paga ao empregado”, nada mais é que o próprio sa-
lário devido a eles.
Forçoso concluir que as contribuições do art. 22, I, da Lei 8.212/91 incidem,
unicamente, sobre o salário. Para Amauri Mascaro Nascimento, “salário é a totali-
dade das percepções econômicas dos trabalhadores, qualquer que seja a forma ou
meio de pagamento, quer retribuam o trabalho efetivo, os períodos de interrupção
do contrato e os descansos computáveis na jornada de trabalho”6.
O autor destaca que não integram o salário as indenizações, pois estas se dife-
renciam daquele por terem como finalidade a reparação de danos ou o ressarcimento
de gastos do empregado. Segundo Amauri Mascaro:
“existem várias obrigações trabalhistas de natureza não salarial. O título exemplifica-
tivo enumere-se, dentre as obrigações não salariais, indenizações, ressarcimento de
gastos para exercício da atividade, diárias e ajuda de custos próprias, verbas de quilo-
metragem e representação, participação nos lucros ou resultados desvinculada do sa-
lário, programas de alimentação e transporte, treinamento profissional, abono de fé-
rias não excedente de 20 dias, clubes de lazer (...).”7
Com isso, resta evidente que os valores percebidos pelos empregados de natu-
reza indenizatória, assim como os encargos sociais, não possuem natureza jurídica
de salário/remuneração, logo, não constituem fato gerador da contribuição previden-
ciária patronal calculada sobre a folha de salários, tampouco há que se falar na obri-
gação tributária das empresas recolherem o aludido tributo sobre estas parcelas.
O parágrafo 9º do art. 214 do Decreto 3.048/99 traz um rol exemplificativo das
verbas que não possuem natureza salarial. Entre elas destacamos:
a) os benefícios da previdência social;
b) a ajuda de custo;
c) as férias indenizadas,
d) o abono e respectivo terço constitucional;
e) aviso prévio indenizado;
f) participação nos lucros e resultados,
g) auxílio-doença etc.
Apesar da utilidade desta lista, não podemos esquecer que todas as verbas de
caráter não salarial, indenizatória ou encargo social, assim como as verbas percebi-
das de forma eventual, estão fora do âmbito de incidência da contribuição previden-
ciária, independente de expressa previsão legal.
5
“Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: I -
vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos
segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer
que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decor-
rentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador
ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou
sentença normativa.”
6
Curso de Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: Saraiva. 2001. p. 629.
7
Op. cit., p. 630.
O STF em vários julgados8 já se manifestou no sentido de que a contribuição
previdenciária só incide sobre o salário (espécie) e não sobre o total da remunera-
ção (gênero) e expressamente exclui do seu âmbito de incidência as parcelas cuja
natureza jurídica sejam indenizatórias e não habituais. De acordo com o posiciona-
mento do STF9, as parcelas que tenham um caráter indenizatório e não habitual es-
tão fora do alcance do conceito de salário e, conseqüentemente, do âmbito de inci-
dência das contribuições previdenciárias. Deste modo, as verbas recebidas a título
de adicional noturno, insalubridade, hora extra, salário-maternidade, terço consti-
tucional de férias e férias indenizadas, adicional de periculosidade, salário-família,
aviso prévio, salário-educação, auxílio-doença e auxílio-creche, por terem nature-
za jurídica indenizatória e/ou não habitual, não podem ser consideradas como salá-
rio em sentido estrito, tampouco seu pagamento enseja a obrigação tributária pre-
vista no art. 195, I, “a”, da CRFB c/c art. 22, I, da Lei 8.212/91.
A seguir analisaremos cada uma destas verbas trabalhistas, destacando suas res-
pectivas naturezas jurídicas, a fim de verificar se sobre elas incide ou não contribui-
ção previdenciária patronal calculada sobre a folha de salários.
8
RE 166.172, ADI 1.659-6.
9
O Ministro Marco Aurélio, relator do RE 166.772-2 RS, nas folhas de nos 722 e seguintes dos autos, assim se posicio-
nou quanto à natureza jurídico-constitucional do salário: “Descabe dar a uma mesma expressão - salário - utilizada
pela carta relativamente a matérias diversas, sentidos diferentes, conforme os interesses em questão. Salário, tal como
mencionado no inciso I do artigo 195, não se pode configurar em algo que discrepe do conceito que se lhe atribui
quando cogita, por exemplo, da irredutibilidade salarial - inciso VI do artigo 7º da Carta, considera-se que, na verda-
de, a lei ordinária mesclou institutos diversos ao prever a contribuição. Após alusão, no caput do artigo 3º, à expres-
são utilizada na própria carta federal - folha de salário - ao versar sobre o que pago aos administradores avulsos e
autônomos, refere a remuneração, talvez mesmo pelo fato de o preceito a que se atribui a pecha de constitucional
englobar, também, os segurados empregados. Desconheceu-se que salário e remuneração não são expressões sinôni-
mas. Uma coisa é a remuneração, gênero do qual salário, vencimentos, soldo, subsídios, pró-labore e honorários são
espécies. Seria fácil dar-se à previsão constitucional em questão o alcance dado pelo Instituto, no que se fugiria até
mesmo da necessidade de balizar-se, de maneira precisa e clara, as bases de incidências das contribuições sociais.
Suficiente seria, ao invés de utilizar-se a expressão ‘folha de salários’, a expressão ‘empregador’, aludir-se ao toma-
dor de serviços e à remuneração por estes satisfeita. Com acerto, enquadraram à matéria constitucionalistas e tribu-
taristas, dentre os quais destaco Ives Gandra, Geraldo Ataliba, Ruy Barbosa Nogueira e a também professora Misa-
bel Abreu Machado Dersi. Esta última emitiu parecer sobre a contribuição social incidente sobre a remuneração e o
pró-labore pagos a autônomos e administradores. De forma proficiente, apontou as diferenças entre o vocábulo ‘em-
presa’ e o vocábulo ‘empregador’, afirmando que o uso das expressões ‘empregador’ e ‘folha de salários’, contidas
na Carta de 1988, exclui as relações de trabalho não subordinado, como as que envolvem autônomos em geral e ad-
ministradores. Aduziu ainda que as constituições brasileiras sempre usaram os termos empregador e salário no sen-
tido próprio e técnico em que encontrados no direito do trabalho, o que, aliás, está consagrado jurisprudencialmente.
Já disse linhas atrás, que está em tela uma ciência. Assim enquadrado o direito, o meio justifica o fim, mas não este
aquele. Compreendo as grandes dificuldades de caixa que decorrem do sistema de seguridade social pátrio. Contudo,
estas não podem ser potencializadas, a ponto de colocar-se em segundo plano a segurança, que é o objetivo maior de
uma Lei Básica, especialmente no embate cidadão/Estado, quando as forças em jogo exsurgem em descompasso.”
mais gravosa. Em razão de situações de risco, jornadas de trabalho mais extenuan-
tes, contato com agentes nocivos para a saúde, entre outros, o Direito pátrio deter-
mina uma compensação financeira ao trabalhador. Em virtude disso, algumas ver-
bas trabalhistas têm caráter indenizatório e/ou eventual, uma vez que visam com-
pensar o empregado pelos prejuízos causados a sua vida pessoal e integridade físi-
ca, decorrente de uma jornada de trabalho mais penosa.
A - Hora extra
A jornada normal de trabalho é o espaço de tempo durante o qual o empregado
deverá prestar serviço ou permanecer à disposição do empregador, com habituali-
dade; nos termos da CF, art. 7º, XIII, sua duração deverá ser de até 8 horas diárias,
e 44 semanais; em se tratando de empregados que trabalhem em turnos ininterrup-
tos de revezamento, a jornada deverá ser de 6 horas, salvo negociação coletiva. Horas
extras são aquelas que ultrapassam a jornada normal fixada por lei, convenção co-
letiva, sentença normativa ou contrato individual de trabalho, e de acordo com o
mandamento constitucional, art. 7º, XVI10, o pagamento da hora extra é de no mí-
nimo 50%.
O corpo e a mente humana possuem capacidade limitada para a atividade labo-
ral, após determinado período perdemos produtividade e nosso organismo começa
e ficar deficitário. Além dos prejuízos físicos e mentais, a jornada prolongada de
trabalho limita a convivência familiar, diminui nossa participação social e impede
o desenvolvimento de outras atividades de cultura, lazer e esporte.
Não foi por outro motivo que o constituinte originário determinou o pagamen-
to de um adicional pela hora extra trabalhada, a fim de compensar o trabalhador pela
jornada extenuante de trabalho. Ademais, essas verbas são recebidas em caráter
eventual, podendo ser suprimidas a qualquer tempo e não são consideradas para o
cálculo do benefício previdenciário.
Ora, se tais verbas possuem caráter indenizatório, eventual e não são auferidas
para o cálculo do benefício previdenciário; não há que se falar no recolhimento de
contribuições sociais sobre elas. Apesar do STJ possuir decisões divergentes sobre
o tema11, o STF tem firmado orientação no sentido de não haver incidência da con-
tribuição previdenciária sobre hora extra, face sua natureza jurídica indenizatória12.
B - Adicional noturno
O trabalho noturno consiste no labor realizado no período das 22 horas até às 5
horas da manhã do dia seguinte. A jornada noturna urbana abrange 8 horas jurídi-
cas de trabalho, pois a hora noturna corresponde a 52 minutos e 30 segundos. Há,
portanto, uma redução de 7 minutos e 30 segundos, que multiplicados por 8 horas
10
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal.”
11
Favorável: AgRg no Ag 1.031.515/DF, RMS 22.239/PR; contra: REsp 972.451.
12
“(...) Contribuição Previdenciária sobre as Horas Extras e o Terço de Férias. Impossibilidade. Precedentes. Esta Corte
fixou entendimento no sentido que somente as parcelas incorporáveis ao salário do servidor sofrem a incidência da
contribuição previdenciária. Agravo Regimental a que se nega provimento.” (AI 727.958-7 AgR/MG. Relator(a):
Min. Eros Grau. Julgamento: 16/12/2008. Órgão Julgador: Segunda Turma - grifo nosso)
constitui uma redução de 1 hora. Com isto, a jornada de trabalho está estabelecida
em 7 horas.
Quanto à remuneração do adicional noturno, a CRFB, em seu art. 7º, IX, garante
que o trabalho noturno será superior ao diurno13. O art. 73 da CLT dispõe que terá
um acréscimo de 20% (vinte por cento), pelo menos, sobre a hora diurna.
O trabalho noturno possui remuneração e cômputo de horas diferenciado do tra-
balho diurno em razão do desgaste físico imposto ao trabalhador. O relógio bioló-
gico do ser humano é estruturado para funcionar durante o dia. À noite, há desace-
leração de nosso metabolismo e queda de nossa capacidade cognitiva, pois o corpo
se prepara para o descanso e o sono.
Augusto Cezar Ferreira de Baraúna expõe: “nossa legislação protege o trabalho
noturno, estabelecendo padrões e limites de atuação empresarial, inclusive, crian-
do um acréscimo salarial de natureza compensatória, ao qual se convencionou cha-
mar de adicional noturno”14.
O Decreto 5.005/04 promulgou a Convenção nº 171 da Organização Interna-
cional do Trabalho relativa ao Trabalho Noturno, a qual reconhece em vários dis-
positivos a natureza compensatória dessas verbas recebidas, senão vejamos:
“Artigo 3
1. Deverão ser adotadas, em benefício dos trabalhadores noturnos, as medidas especí-
ficas exigidas pela natureza do trabalho noturno, que abrangerão, no mínimo, aquelas
mencionadas nos artigos 4 a 10, a fim de proteger a sua saúde, ajudá-los a cumprirem
com suas responsabilidades familiares e sociais, proporcionar aos mesmos possibili-
dades de melhoria na sua carreira e compensá-los de forma adequada. Essas medidas
deverão também ser adotadas no âmbito da segurança e da proteção da maternidade, a
favor de todos os trabalhadores que realizam trabalho noturno.
(...)
Artigo 8
A compensação aos trabalhadores noturnos em termos de duração do trabalho, remu-
neração ou benefícios similares deverá reconhecer a natureza do trabalho noturno.”
Pelo exposto, resta evidente a natureza indenizatória do adicional noturno, onde
se busca compensar financeiramente uma jornada de trabalho em horário impróprio
ao trabalhador, não constituindo, assim, fato gerador das contribuições previden-
ciárias e sequer são levadas em conta para a concessão do benefício da aposentado-
ria. Vale a pena registrar que o STJ e o TRF da 1ª Região chegaram a corroborar este
posicionamento em algumas decisões15.
C - Adicional de insalubridade
O adicional de insalubridade constitui uma compensação financeira ao trabalho
prestado em condições vulneráveis à atuação de agentes nocivos à saúde do traba-
lhador. Ele possui diferentes percentuais dependendo do grau de insalubridade (grau
mínimo - 10%; grau médio - 20%; grau máximo - 40%). Em razão do risco emi-
13
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno.”
14
Curso de Direito do Trabalho. 1ª ed. Rio de Janeiro, Forense. 2009. p. 345.
15
AgRg no Ag 1.031.515/DF - STJ; RMS 22.239/PR - STJ; AMS 2001.37.00.000492-3/MA - TRF1.
nente à saúde do trabalhador e a necessidade de compensação à exposição do risco,
a matéria mereceu tratamento constitucional, em seu art. 7º, XXIII.
A CLT considera como insalubres as atividades ou operações que, por sua na-
tureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes no-
civos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da
intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos16.
Desta feita, o adicional de insalubridade possui natureza indenizatória em razão
dos riscos de contração de moléstias pelos trabalhadores; de modo que não há inci-
dência de contribuições previdenciárias sobre as verbas recebidas a este título. Ape-
sar do STJ entender pela incidência da contribuição, o TRF da 4ª Região possui
decisão favorável a esta tese17.
D - Adicional de periculosidade
O adicional de periculosidade é devido àquelas funções que, por sua natureza
ou método de trabalho, implicam contato constante com material inflamável, explo-
sivos, energia elétrica, atividades com operações com radiação ionizantes ou subs-
tâncias radioativas, ou ainda, em face de contato constante com bomba de gasolina.
Face o risco de morte em manipular ou estar em contato com estes produtos é
assegurado ao trabalhador um adicional de 30% sobre sua remuneração, como for-
ma de compensação pelo risco sofrido. Estas regras estão reguladas pelo art. 7º,
XXIII, da CRFB18 e pelo art. 193 da CLT19.
Assim como o adicional de insalubridade, o adicional de periculosidade possui
natureza indenizatória em razão do risco de morte sofrido pelos trabalhadores; de
modo que não há incidência de contribuições previdenciárias sobre as verbas rece-
bidas a este título, conforme orientação do TRF da 1ª Região20.
E - Salário-maternidade
De acordo com a Carta Magna, a empregada gestante passou a ter direito a 120
dias de repouso sem prejuízo do emprego e do salário21. A CLT faz a previsão deste
benefício nos arts. 39222 e seguintes. Trata-se, na verdade, de benefício de caráter
16
“Art. 189. Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou méto-
dos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão
da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.”
17
Apelação Cível nº 2001.72.00.003379-0/SC.
18
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.”
19
“Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministé-
rio do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com infla-
máveis ou explosivos em condições de risco acentuado.
§ 1º O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) so-
bre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa.”
20
AG 2005.01.00.056488-5/DF; AC 2001.34.00.029097-5/DF.
21
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias.”
22
“Art. 392. A empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do em-
prego e do salário.
§ 1º A empregada deve, mediante atestado médico, notificar o seu empregador da data do início do afastamento do
emprego, que poderá ocorrer entre o 28º (vigésimo oitavo) dia antes do parto e ocorrência deste.
previdenciário e, como tal, não pode ser considerado salário. Marcelo Leonardo
Tavares23 o define como:
“O salário-maternidade, juntamente com o salário família, é um dos benefícios que
visam à cobertura dos encargos familiares. Tem por objetivo a substituição da remu-
neração da segurada gestante durante os cento e vinte dias de repouso, referentes à li-
cença maternidade.”
O salário-maternidade não corresponde a uma forma de salário, pois não remu-
nera o empregado pelo exercício de uma atividade laboral. Possui natureza jurídica
previdenciária; ou seja, o salário-maternidade está fora do âmbito de incidência da
contribuição previdenciária, prevista no art. 195, I, “a”, da CRFB24.
F - Férias
As férias constituem um período de interrupção do contrato de trabalho, havendo
a obrigatoriedade do pagamento de salário e a contagem do tempo de serviço con-
cedido ao empregado no decurso do seu período aquisitivo de 12 meses, objetivan-
do a recuperação do trabalhador a fim de combater o cansaço físico e psicológico,
assim como meio de socialização do trabalhador.
A Constituição determina que o pagamento da remuneração (férias) seja acres-
cido de gratificação compulsória, onde o empregado tem direito a um terço a mais
no salário normal, conforme o art. 7º, XVII25. A jurisprudência pacífica do STF con-
sidera que este abono possui a finalidade de permitir um “reforço financeiro neste
período (férias)”26. Com isso, a Colenda Corte concluiu que esta verba possui natu-
reza jurídica compensatória/indenizatória27. Ademais, por constituir um ganho even-
tual, o terço constitucional de férias não é incorporado ao salário para efeito de con-
tribuição previdenciária e tampouco integra a base de cálculo do benefício, confor-
me o disposto no parágrafo 11 do art. 201 da CRFB28.
§ 2º Os períodos de repouso, antes e depois do parto, poderão ser aumentados de 2 (duas) semanas cada um, median-
te atestado médico.
§ 3º Em caso de parto antecipado, a mulher terá direito aos 120 (cento e vinte) dias previstos neste artigo.
§ 4º É garantido à empregada, durante a gravidez, sem prejuízo do salário e demais direitos:
I - transferência de função, quando as condições de saúde o exigirem, assegurada a retomada da função anteriormen-
te exercida, logo após o retorno ao trabalho;
II - dispensa do horário de trabalho pelo tempo necessário para a realização de, no mínimo, seis consultas médicas e
demais exames complementares.”
23
Direito Previdenciário, Regime Geral de Previdência Social e Regimes Próprios de Previdência Social. 9ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris. 2007. p. 168.
24
No TRF da 1ª Região, encontramos precedente neste sentido: AG 2005.01.00.056488-5/DF.
25
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal.”
26
“Ementa: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Processual Civil e Previdenciário. Ausência de Preques-
tionamento (Súmulas 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal). Impossibilidade da Incidência de Contribuição Pre-
videnciária sobre o Terço Constitucional de Férias. Agravo Regimental ao qual se nega Provimento. (...) 2. A juris-
prudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que somente as parcelas que podem ser incorpora-
das à remuneração do servidor para fins de aposentadoria podem sofrer a incidência da contribuição previdenciária.”
(AI 710361-4 AgR/MG. Relator(a): Min. Cármen Lúcia. Julgamento: 07/04/2009. Órgão Julgador: Primeira Turma
- grifo nosso)
27
AI 603.537-AgR/DF.
28
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação
obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
§ 11. Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição
previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.”
No mesmo sentido, não incide contribuição previdenciária sobre as férias inde-
nizadas. A natureza jurídica do abono pecuniário é indenizatória e objetiva resguar-
dar um acréscimo na remuneração do empregado, após seu período aquisitivo. Neste
mister, pode o empregado converter parte do seu período de férias em valor com-
pensatório pela continuidade relativa à prestação de serviço.
O art. 143 da CLT29 faculta ao trabalhador a conversão de 1/3 de suas férias em
abono pecuniário. O valor do abono será aquele da remuneração que faz jus a título
de férias, acrescido de um terço compensatório pelo período que a lei permite para
sua conversibilidade. A jurisprudência do STJ é unânime ao conferir natureza inde-
nizatória dessas verbas, abaixo30.
Destarte, resta evidente o caráter indenizatório do terço constitucional de férias
e do abono de férias e a conseqüente não obrigatoriedade do recolhimento da con-
tribuição previdenciária sobre estas parcelas.
G - Salário-família
O salário-família constitui um direito assegurado aos trabalhadores e será pago
mensalmente ao empregado pela empresa. Fazem jus ao benefício os trabalhadores
de baixa renda que possuírem renda entre R$ 472,00 e R$ 710,08 (Portaria nº 77,
de 12 março de 2008), além de dependentes. Trata-se de benefício de natureza pre-
videnciária e está previsto no art. 7º, XII, CRFB31 e no Decreto 3.048/9932.
O próprio Decreto 3.048/99 determina que o salário-família não poderá integrar
o salário-de-benefício para cálculo de renda mensal dos benefícios de prestação
continuada33. No mesmo sentido, o art. 9234 adverte que as cotas do salário-família
não serão incorporadas, para qualquer efeito, ao salário ou ao benefício.
29
“Art. 143. É facultado ao empregado converter 1/3 (um terço) do período de férias a que tiver direito em abono pe-
cuniário, no valor da remuneração que lhe seria devida nos dias correspondentes.”
30
REsp 863.244; REsp 898.142, AgRg no REsp 801.884; AgRg no REsp 859.423
“Tributário - Verbas Indenizatórias - Adicional de 1/3 de Férias Convertidas em Pecúnia - Não-incidência de Im-
posto de Renda - Repetição de Indébito - Dedução da Base da [sic] Cálculo do IR - Faculdade do Contribuinte - Lei
n. 8.383/91 - Ônus da Prova - Art. 333, I e II, do CPC.
1. Na hipótese dos autos, como as férias não gozadas foram indenizadas, mediante a sua conversão em pecúnia, não
há incidência do imposto de renda e, sendo o adicional de 1/3 um acessório, segue ele a sorte do principal, não estan-
do, também, sujeito à referida exação.
2. Uma vez julgada procedente a demanda, e por se tratar a presente de ‘Ação de Repetição de Indébito’, imperioso
que se declare o direito dos contribuinte [sic] à restituição das importâncias indevidamente recolhidas, nos termos
do pedido, conforme apurado em liquidação de sentença, sob pena de afronta ao comando insculpido no art. 66, § 2º,
da Lei n. 8.383/91. Recurso especial provido, para reconhecer a não-incidência do imposto de renda sobre o adicio-
nal de 1/3 de férias convertidas em pecúnia, bem como o direito do contribuinte à restituição das importâncias in-
devidamente recolhidas, nos termos do pedido, conforme apurado em liquidação de sentença.” (REsp 858.821-RS.
Relator(a): Min. Humberto Martins. Julgamento: 10/10/2006. Órgão Julgador: Segunda Turma - grifo nosso)
31
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XII - salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei.”
32
“Art. 81. O salário-família será devido, mensalmente, ao segurado empregado, exceto o doméstico, e ao trabalhador
avulso que tenham salário-de-contribuição inferior ou igual a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), na proporção
do respectivo número de filhos ou equiparados, nos termos do art. 16, observado o disposto no art. 83.”
33
“Art. 31. Salário-de-benefício é o valor básico utilizado para cálculo da renda mensal dos benefícios de prestação
continuada, inclusive os regidos por normas especiais, exceto o salário-família, a pensão por morte, o salário-mater-
nidade e os demais benefícios de legislação especial.”
34
“Art. 92. As cotas do salário-família não serão incorporadas, para qualquer efeito, ao salário ou ao benefício.”
Tratando-se de benefício previdenciário, não incorporável ao computo dos ren-
dimentos que integrarão a aposentadoria do trabalhador, não resta dúvida que o sa-
lário-família não constitui salário, não podendo incidir sobre ele, a contribuição
previdenciária patronal calculada sobre a folha de salários.
H - Aviso prévio
O aviso prévio tem como finalidade comunicar a outra parte do contrato de tra-
balho que não há mais interesse na continuidade do pacto laboral. Para isso, deve
haver um período mínimo de tempo previsto em lei, onde uma parte comunica a
outra que, no prazo de 30 dias, o contrato de trabalho será rescindido. Esta sistemá-
tica visa tanto dar ao empregado tempo hábil para procurar outro emprego, quanto
ao empregador repor a mão-de-obra.
O aviso prévio está regulado no art. 7º, XXI35, da CRFB e nos arts. 48736 e se-
guintes da CLT. O parágrafo 1º do art. 487 da CLT determina que rescindido o con-
trato antes de findo o prazo do aviso, o empregado tem direito ao pagamento do valor
relativo ao salário correspondente aquele período. Cumpre frisar que estas parcelas
não possuem natureza jurídica salarial, em virtude de constituir indenização pela
perda repentina do emprego. Além disso, o aviso prévio indenizado não pode ser
considerado como rendimentos de qualquer natureza, pois não decorre de prestação
de trabalho; assim, não há que se falar em incidência de contribuição previdenciá-
ria sobre tais verbas.
Em razão disso, não poderia o Decreto 6.727/0937 revogar a alínea “f” do inciso
V do parágrafo 9º do art. 214 do Decreto 3.048/99, o qual dispunha que o aviso pré-
vio não integrava o salário de contribuição. É sabido que as verbas indenizatórias
não compõem parcela do salário do empregado, posto que não têm caráter de habi-
tualidade, têm natureza meramente ressarcitória, pagas com a finalidade de recom-
por o patrimônio do empregado desligado sem justa causa, não incidindo sobre elas
a contribuição.
35
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei.”
36
“Art. 487. Não havendo prazo estipulado, a parte que, sem justo motivo, quiser rescindir o contrato deverá avisar a
outra da sua resolução com a antecedência mínima de:
I - oito dias, se o pagamento for efetuado por semana ou tempo inferior;
II - trinta dias aos que perceberem por quinzena ou mês, ou que tenham mais de 12 (doze) meses de serviço na em-
presa.
§ 1º A falta do aviso prévio por parte do empregador dá ao empregado o direito aos salários correspondentes ao pra-
zo do aviso, garantida sempre a integração desse período no seu tempo de serviço.
§ 2º A falta de aviso prévio por parte do empregado dá ao empregador o direito de descontar os salários correspon-
dentes ao prazo respectivo.
§ 3º Em se tratando de salário pago na base de tarefa, o cálculo, para os efeitos dos parágrafos anteriores, será feito
de acordo com a média dos últimos 12 (doze) meses de serviço.
§ 4º É devido o aviso prévio na despedida indireta.
§ 5º O valor das horas extraordinárias habituais integra o aviso prévio indenizado.
§ 6º O reajustamento salarial coletivo, determinado no curso do aviso prévio, beneficia o empregado pré-avisado da
despedida, mesmo que tenha recebido antecipadamente os salários correspondentes ao período do aviso, que integra
seu tempo de serviço para todos os efeitos legais.”
37
“§ 9º Não integram o salário-de-contribuição, exclusivamente:”
A jurisprudência do STJ38 e do TRF da 1ª Região39 sempre se posicionou pela
impossibilidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o aviso prévio
indenizado. Além disso, a Justiça Federal em vários Estados tem concedido limi-
nares e proferido sentenças40, no sentido de conceder a segurança para suspender os
efeitos do Decreto 6.727/09.
I - Auxílio-educação
O auxílio-educação é um subsídio pago pelo empregador em benefício do em-
pregado, a fim de qualificá-lo e elevar seu grau de escolaridade. Sendo assim, o
auxílio-educação compreende todos os níveis de educação (fundamental, médio,
superior e pós-graduação).
Salta aos olhos que apesar da Lei 8.212/91, em seu art. 28, parágrafo 9º, “t”41,
dispor expressamente que estas verbas não integram o salário-contribuição; a Re-
ceita Federal do Brasil, por meio de uma interpretação restritiva, entende que so-
mente as verbas despendidas para o ensino fundamental estão isentas da contribui-
ção previdenciária.
O entendimento do órgão fazendário, além de antijurídico, causa enorme pre-
juízo aos empregados uma vez que desestimula os empregadores a investir na qua-
lificação técnica de seus profissionais, limitando a possibilidade de promoções e
acesso a remunerações maiores. Teleologicamente, o legislador, ao conceder a isen-
ção do art. 28, parágrafo 9º, “t”, da Lei 8.212/91, buscou dar maior possibilidade
de ingresso aos trabalhadores em cursos de nível superior e pós-graduação. Este tipo
de formação acadêmica ainda é inacessível à maior parte da população brasileira e
o Estado não consegue suprir satisfatoriamente esta demanda. Por esta razão, criou
inúmeras políticas públicas em parceria com a iniciativa privada, visando o aumen-
to de vagas no ensino superior, a exemplo do Prouni e do Fies. Desta forma, não pode
o Fisco desnaturar estes incentivos, desfigurando o benefício fiscal concedido.
Ressalte-se que o art. 458, parágrafo 2º, II, da CLT42 é categórico ao determinar
que os pagamentos efetuados para a educação dos empregados não constitui salá-
rio. Ora, se nem a CLT, nem a Lei 8.212/91 faz qualquer restrição ao ensino supe-
rior, não cabe à Receita Federal do Brasil fazê-la. Ademais, o art. 28 da Lei 8.212/91
prevê que o salário-educação será devido sob as importâncias pagas, decorrentes do
trabalho realizado. Ora, o auxílio-educação é uma liberalidade do empregador, não
vinculada à remuneração da atividade laboral43.
38
REsp 3.794/PE.
39
AC 199738000616751; AC 200001000153456.
40
20096100013885-3 JF/SP; MS 20096110001796-8 JF/SP.
41
“§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente: t) o valor relativo a plano edu-
cacional que vise à educação básica, nos termos do art. 21 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e a cursos de
capacitação e qualificação profissionais vinculados às atividades desenvolvidas pela empresa, desde que não seja
utilizado em substituição de parcela salarial e que todos os empregados e dirigentes tenham acesso ao mesmo.”
42
“§ 2º Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas
pelo empregador: II - educação, em estabelecimento de ensino próprio ou de terceiros, compreendendo os valores
relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático.”
43
A jurisprudência do STJ corrobora o entendimento aqui exposto - REsp 767.726/PE.
J - Auxílio-doença
O auxílio-doença, previsto no art. 60 da Lei 8.213/9144, é o benefício concedi-
do em razão da incapacidade temporária do trabalhador, obrigando-o a se afastar da
atividade laboral por um período superior a 15 dias. Neste período inicial, o paga-
mento do salário é de responsabilidade do empregador, após esse prazo caberá à
Previdência Social arcar com estes custos.
O auxílio-doença é um benefício de natureza previdenciária que não se sujeita
ao pagamento da contribuição, pelo simples fato de que, nos primeiros 15 dias, não
há prestação de efetivo serviço, então não há que se falar em salário. Nunca é de-
mais repetir que o salário-contribuição previsto no art. 28, I, da Lei 8.212/91 tem
como fato gerador o salário, fruto de uma relação de trabalho. No presente caso, em
razão de uma enfermidade, o trabalhador fica impedido de exercer sua atividade
laboral, mas ainda assim, recebe pela empresa verba equivalente ao valor do seu
salário. Forçoso concluir que sobre esta parcela não pode haver recolhimento da
contribuição previdenciária45.
L - Auxílio-creche
O auxílio-creche é um benefício pecuniário concedido pelo empregador aos
empregados que possuam dependentes em idade pré-escolar. O pagamento deste
auxílio tem por objetivo garantir a formação educacional dos filhos dos trabalhado-
res e mantê-los em lugar seguro, enquanto os pais estão realizando a jornada de tra-
balho.
Este benefício está previsto no art. 7º, XXV, da CRFB46. Destaca-se que o art.
458, parágrafo 2º, II, da CLT47 é categórico ao determinar que o pagamento efetua-
do a título de auxílio-creche não constitui salário. No mesmo sentido, o art. 28, pa-
rágrafo 9º, “t”48 da Lei 8.212/91, exclui da incidência do salário-de-contribuição as
importâncias creditadas a este título.
Ora se nem a CLT, nem a Lei 8.212/91 faz expressa referência sobre a incidên-
cia de contribuição previdenciária sobre o auxílio-creche, não pode a Receita Fede-
ral do Brasil estender sua interpretação para realizar a cobrança, sob pena de ofen-
44
“Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da ati-
vidade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto ele permanecer inca-
paz.
§ 3º Durante os primeiros quinze dias consecutivos ao do afastamento da atividade por motivo de doença, incumbirá
à empresa pagar ao segurado empregado o seu salário integral.”
45
Mais uma vez, colacionamos jurisprudência favorável do STJ sobre o tema no AgRg no REsp 1.087.216/RS.
46
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-
escolas.”
47
“§ 2º Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas
pelo empregador: II - educação, em estabelecimento de ensino próprio ou de terceiros, compreendendo os valores
relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático.”
48
“§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente: t) o valor relativo a plano edu-
cacional que vise à educação básica, nos termos do art. 21 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e a cursos de
capacitação e qualificação profissionais vinculados às atividades desenvolvidas pela empresa, desde que não seja
utilizado em substituição de parcela salarial e que todos os empregados e dirigentes tenham acesso ao mesmo.”
sa à regra da tipicidade fechada em matéria tributária, de acordo como art. 150, I,
da CRFB. Ademais, o auxílio-creche possui caráter indenizatório, pelo fato de a
empresa não manter em funcionamento uma creche em seu próprio estabelecimen-
to e, conseqüentemente, não integra a base de cálculo da contribuição previdenciária,
em razão de sua natureza49.
5 - Conclusão
Pode-se mencionar de forma simplificada a tese aqui exposta dizendo: toda vez
que a verba paga pelo empregador não se constituir em salário, ou seja, contrapres-
tação pelo trabalho, com caráter remuneratório e periódico, não deverá haver a in-
cidência de contribuição previdenciária.
Nesse sentido, as verbas referentes a adicional noturno, insalubridade, hora
extra, salário-maternidade, terço constitucional de férias e férias indenizadas, adi-
cional de periculosidade, salário-família, aviso prévio, auxílio-educação, auxílio-
doença e auxílio-creche, por não se caracterizarem como remuneração pelo traba-
lho, mas sim como indenização, e também pelo seu caráter periódico, não devem
sofrer incidência previdenciária.
49
No mesmo sentido, o STJ já se manifestou em diversos julgados: AgRg no REsp 1.079.212/SP; AgRg no REsp
1.079.212/SP. Este entendimento já está, inclusive, sumulado, vejamos: “Súmula 310: O Auxílio-creche não integra
o salário-de-contribuição.”
50
“§ 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obe-
decido o disposto no art. 154, I.”
A Nova Lei do Mandado de Segurança
e as Restrições à Garantia de Jurisdição
em Matéria Tributária
Hugo de Brito Machado
1. Introdução
A Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, disciplina o
mandado de segurança antes regulado pela Lei nº 1.533, de
31 de dezembro de 1951. Segundo os que defendem a nova
Lei, teria havido apenas a consolidação em texto único do
que já estava em leis anteriores ou no entendimento jurispru-
dencial pacificado. Não nos parece, porém, que seja assim,
pois na verdade algumas inovações foram introduzidas, en-
tre elas a proibição pura e simples da concessão de medida
liminar e da execução provisória da sentença que concede o
mandado de segurança, quando a proteção pleiteada pelo
impetrante seja para o direito de compensar crédito tributá-
rio ou obter a liberação de mercadoria importada.1
Não desconhecemos a existência do art. 170-A, do Có-
digo Tributário Nacional, albergando norma segundo a qual
é vedada a compensação mediante o aproveitamento de tri-
buto, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo,
antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial.
Nem desconhecemos o que estabelecia a Lei nº 2.770, de
4 de maio de 1956, quanto à liminar e quanto à execução pro-
visória de sentença que determinasse a liberação de merca-
doria procedente do exterior.
Entretanto, não concordamos com o alcance atribuído ao
citado artigo do Código Tributário Nacional em decorrência
da confusão que tem sido feita entre duas situações distin-
tas. Uma, a situação na qual se discuta o direito à compen-
sação mediante a utilização, pelo contribuinte, de um crédi-
to seu contra a Fazenda Pública, crédito sobre o qual não
exista nenhuma pendência. E a outra, aquela situação na qual
se discuta o direito à compensação mediante a utilização,
pelo contribuinte, como crédito seu, do valor de um tributo
cujo pagamento o contribuinte considera indevido, mas es-
teja ainda pendente de decisão judicial definitiva a questão Hugo de Brito
Machado
de saber se realmente ocorreu pagamento indevido. E quan-
é Professor Titular de
to à Lei nº 2.770/56 lembramos que se vinha entendendo ser Direito Tributário da
UFC e Presidente do
Instituto Cearense de
1
Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, art. 7º, parágrafo 2º. Estudos Tributários.
a restrição na mesma contida aplicável apenas a mercadorias objeto de contraban-
do ou descaminho. Entendimento, aliás, inteiramente compatível com a norma de
seu art. 2º, que se refere a entrega ou vinda do exterior de mercadorias, bens ou
coisas de qualquer natureza, a indicar que o provimento judicial em questão seria
referente à autorização para importar mercadoria proibida.
Neste pequeno estudo pretendemos demonstrar a distinção essencial entre aque-
las duas situações nas quais se cogita de compensação, para deixar claro que a nova
Lei do mandado de segurança realmente inovou. E quanto à liberação de mercado-
rias importadas vamos demonstrar que a nova Lei do mandado de segurança tam-
bém inovou e suscitou questão praticamente superada. Em ambos os casos, ao ino-
var, incorreu em flagrante inconstitucionalidade porque violou a garantia de juris-
dição, retirando-a tanto do contribuinte que pretenda proteção para o seu direito à
compensação, como daquele que tenha contra si exigência arbitrária relacionada
com a importação regular de qualquer mercadoria.
Começaremos pelo exame da garantia constitucional de jurisdição, para deixar
claro que a mesma abrange o direito aos provimentos judiciais de urgência quando
estes sejam necessários, assim como o direito à execução das decisões judiciais, que
não podem servir apenas como peças de adorno da ordem jurídica. Depois vamos
demonstrar que realmente existe uma diferença essencial, da maior importância,
entre o direito ao crédito contra a Fazenda Pública e o direito de extinguir um cré-
dito tributário quando o contribuinte tenha contra a Fazenda Pública um crédito lí-
quido e certo, seja porque já por esta reconhecido, seja porque objeto de decisão
judicial definitiva. E finalmente examinaremos o alcance dos dispositivos da nova
Lei do mandado de segurança que albergam restrições relativas ao direito à com-
pensação, assim como ao direito à liberação de mercadorias, buscando demonstrar
que eles realmente inovaram e, nessa parte, consubstanciam flagrante inconstitu-
cionalidade.
2
Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XXXV.
3
Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. III, 2ª edição, Atlas, São Paulo, 2009,
p. 431.
ças a direitos. A adequada interpretação do preceito constitucional, que impede se faça
dele letra morta, não pode ser outra. O dispositivo constitucional há de ser interpreta-
do de modo a que não reste amesquinhado o seu conteúdo. A não ser assim não estará
sendo assegurada a máxima efetividade à norma da Constituição.
Segundo a moderna doutrina do Direito Constitucional, as normas de uma Constitui-
ção devem ser interpretadas com observância de alguns princípios, entre os quais se
destaca o da máxima efetividade. Como assevera Canotilho, ‘a uma norma constitu-
cional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê’.”4
A garantia de jurisdição, portanto, há de ser entendida como garantia a uma pres-
tação jurisdicional efetiva, isto é, uma prestação jurisdicional capaz de garantir os
direitos, evitando o perecimento ou a deterioração destes pelo decurso do tempo,
com os provimentos de urgência, quantos sejam necessários, como a efetividade dos
direitos, com a execução do julgado. No dizer de Ricardo Perlingeiro, “não assegu-
rar o direito à execução é o mesmo que negar o direito de ação, não sendo admissí-
vel, no atual estágio da sociedade, interpretar o princípio do Estado democrático de
Direito de modo a concluir que não há execução contra a Fazenda Pública”.5 E não
assegurar os provimentos de urgência, quando sejam necessários para evitar o pe-
recimento do direito, é também, indiscutivelmente, negar a jurisdição.
É importante, pois, entendermos o alcance da norma albergada no art. 170-A,
do Código Tributário Nacional, para que possamos entender a inconstitucionalida-
de do dispositivo da nova Lei do mandado de segurança, que veda pura e simples-
mente o deferimento de medida liminar que tenha por objeto o direito à compensa-
ção de créditos tributários.
4
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1996, p. 227.
5
Ricardo Perlingeiro, “Redefinição de Papéis na Execução de Quantia Certa Contra a Fazenda Pública”, Revista CEJ
vol. 31, CJF, Brasília, dezembro de 2005, p. 69.
Resposta afirmativa a essa questão não se pode admitir sem menosprezo à garantia
constitucional de jurisdição, posto que, nos casos em que os provimentos cautelares
ou antecipatórios são cabíveis, sua denegação implica denegação da própria jurisdição,
que para ser efetiva há de ter útil e não apenas formal. A melhor interpretação do
art. 170-A do Código Tributário Nacional, inclusive porque o coloca de acordo com a
Constituição, é aquela segundo a qual dita norma não exclui a possibilidade de provi-
mentos cautelares ou antecipatórios.”
Realmente, a norma albergada pelo art. 170-A, do Código Tributário Nacional,
não exclui de modo nenhum os provimentos judiciais liminares ou antecipatórios,
quando se esteja a discutir na ação apenas o direito à compensação. Essa norma só
abrange as situações nas quais exista litígio sobre a existência do crédito contra a
Fazenda. E mesmo nessa situação, por ela abrangida, temos de considerar que se
trata de norma dirigida apenas à autoridade administrativa. Entendê-la como regra
dirigida ao juiz implica colocá-la em aberto conflito com a Constituição, como já
tivemos oportunidade de demonstrar.6
Vejamos cada uma dessas duas situações.
6
Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. III, 2ª edição, Atlas, São Paulo, 2009,
pp. 468 a 473.
7
Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. III, 2ª edição, Atlas, São Paulo, 2009,
p. 465.
presume-se líquido e certo. É razoável, portanto, que não se admita a sua extinção
por compensação com um crédito sobre o qual existe um litígio. Entretanto, é razoá-
vel entender-se que a restrição feita pela norma do art. 170-A, do Código Tributá-
rio Nacional, dirige-se à autoridade administrativa, conforme demonstramos em
comentário a essa norma.8 Não nos parece que a referida norma constitua obstácu-
lo ao deferimento de provimento judicial de urgência, quando este seja cabível. A
interpretação que atribui a essa norma tamanho alcance a coloca decididamente em
conflito com a Constituição, como adiante será demonstrado.
8
Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. III, 2ª edição, Atlas, São Paulo, 2009,
pp. 470 e 471.
respectivos documentos é feita com exatidão, e a inexatidão consiste apenas na clas-
sificação fiscal correspondente, não de pode considerar a importação fraudulenta.
A divergência entre o importador e a Fazenda residirá em questão simplesmente de
direito. Questão cujo deslinde independe da produção de provas e por isto mesmo
pode dar-se no âmbito do mandado de segurança, a cuja impetração o contribuinte
tem inegável direito, inclusive com os efeitos ordinariamente a tal impetração ine-
rentes, sem ressalvas de qualquer natureza.
5. Flagrante Inconstitucionalidade
5.1. Fundamento constitucional do direito à compensação
Não temos dúvida de que o direito de compensar, em se tratando de crédito re-
conhecido pela Fazenda, ou já afirmado definitivamente pelo Judiciário, como é o
caso do crédito consubstanciado em precatório, é um direito que tem fundamento
na Constituição Federal, que alberga princípios inteiramente incompatíveis com a
idéia de lei que possa impor restrições ao direito de compensar.
Realmente, nossa Constituição Federal alberga, entre os objetivos fundamentais
de nossa República, construir uma sociedade livre, justa e solidária.9 E assegura que
a Administração Pública submete-se aos princípios que indica, entre os quais o prin-
cípio da moralidade.10 Está absolutamente claro, portanto, que justiça e moralidade
estão presentes nas relações do Estado com os cidadãos.
Aliás, o Direito só será justo se tiver fundamento moral. E só terá fundamento
moral, se for justo. Moral e justiça são idéias inseparáveis, com implicações recí-
procas. Sem elas o ordenamento jurídico é inútil, até porque sua eficácia restará de
tal forma comprometida que, ao menos nas relações entre o indivíduo e o Estado,
sobrarão espaços imensos para o arbítrio. Assim, ao examinarmos os fundamentos
do direito à compensação temos de começar confrontando esse direito com o prin-
cípio da moralidade.
A moralidade, hoje, repele a idéia de um Estado autoritário, irresponsável, so-
berano senhor do bem e do mal. O Estado de hoje há de ser tratado como um sujei-
to de direitos e de deveres, como qualquer outro, ressalvadas apenas e tão-somente
aquelas situações nas quais a Constituição estabelece limitações aos direitos dos
cidadãos. Assim, por exemplo, a Constituição atribui ao Estado o poder de tributar,
mas traça rigorosos limites ao exercício desse poder. O Estado tributa, mas o faz nos
termos da lei. Há de tratar a relação obrigacional tributária como relação jurídica
que é. Perante a relação tributária, há de colocar-se em condições de igualdade com
os cidadãos que da mesma participam, afastada toda e qualquer supremacia do Es-
tado, posto que a supremacia não pode ir além do próprio poder de instituir o tribu-
to.
Nem se venha dizer que as limitações do Estado se resumem no princípio da
legalidade e, por isto mesmo, uma vez estabelecidas pela lei, as restrições aos di-
reitos dos cidadãos seriam legítimas. Se essa tese, de clara inspiração autoritária,
fosse aceitável, chegaríamos à inevitável conseqüência de ter de admitir como vá-
lida uma lei que extinguisse, pura e simplesmente, créditos contra a Fazenda.
Imagine-se uma lei ordinária que, aprovada pela unanimidade dos membros do
Parlamento, dissesse expressamente que ficam extintas as dívidas da União. Essa
lei, não obstante aprovada pelo órgão competente - tendo-se assim atendido plena-
mente o princípio da estrita legalidade -, seria flagrantemente contrária aos direitos
que a Constituição assegura ao cidadão. Seria verdadeiramente teratológica, e sua
invalidade seria da maior evidência.
Da mesma forma e pelas mesmas razões, desprovida de validade, porque con-
trária à Constituição, é a lei que impõe restrições aos direitos do cidadão, entre eles
o direito à compensação, de sorte a extinguir por via oblíqua esses direitos que fi-
cam reduzidos a meras expressões retóricas.
A exclusão da compensação diretamente ou por via oblíqua consubstanciada na
exigência de formalidades descabidas, de tão absurda, é desprovida não só do am-
paro jurídico, mas também e especialmente do amparo na moralidade. Qualquer que
9
Constituição Federal de 1988, art. 3º, inciso I.
10
Constituição Federal de 1988, art. 37.
seja a concepção de moral que se adote entre as vigentes no mundo civilizado, nin-
guém encontrará apoio para a pretensão de receber seus créditos sem pagar os seus
débitos.
Além do princípio da moralidade, a vigente Constituição assegura o direito de
propriedade. Os créditos contra a Fazenda Pública constituem, sem dúvida, direi-
tos de propriedade, posto que integram o patrimônio do credor. Assim, admitir que
inexiste o direito à compensação contra a Fazenda Pública é admitir que esta não é
obrigada a respeitar o direito de propriedade de seu credor, ou então, em outras pa-
lavras, admitir que não existe o direito de propriedade ou que este não pode ser exer-
cido contra a Fazenda Pública, o que consubstancia evidente absurdo.
Os créditos do contribuinte, inclusive o crédito contra a Fazenda Pública, são
parcelas de seu patrimônio e estão, portanto, protegidos pelo denominado direito de
propriedade, que não se restringe, como podem pensar os menos avisados, aos di-
reitos sobre bens imóveis.
Nem se venha argumentar com as limitações ao direito de propriedade. Como
assevera com inteira razão Gabriel Lacerda Troianelli, as limitações ao direito de
propriedade são somente as previstas na própria Constituição,11 e entre estas não se
encontra a possibilidade de desconsideração, na cobrança dos tributos, dos créditos
que o contribuinte tenha contra a Fazenda Pública. Por isto mesmo afirma Cleide
Previtalli Cais, com toda razão, que:
“O princípio de proteção ao direito de propriedade tem larga aplicação nas normas
relativas ao exercício do direito de compensação de créditos tributários, visando evi-
tar a colocação de empecilhos ao seu exercício, e, com isso, afastando a ocorrência de
confisco e de enriquecimento sem causa por parte da Administração.”12
Restrições substanciais ao direito do contribuinte à compensação implicam, sem
dúvida alguma, confisco de seu crédito perante a Fazenda Pública, absolutamente
inadmissível.
A Constituição Federal, por outro lado, também alberga o princípio da isono-
mia, que consubstancia, aliás, idéia que é da própria essência do Direito. E o direi-
to à compensação tem também, inegavelmente, fundamento no princípio da isono-
mia. Tanto o direito à compensação como categoria geral, ou categoria da Teoria
Geral do Direito, como o direito à compensação no âmbito da relação tributária. O
crédito de um dos sujeitos da relação jurídica obrigacional não pode ser privilegia-
do em relação ao crédito do outro daqueles sujeitos.
Evidentemente o direito de crédito que a Fazenda Pública tem contra o contri-
buinte não é merecedor de maior proteção do que o direito de crédito que este tem
contra aquela. Coloca-se, então, o princípio da isonomia, como um fundamento do
direito que tem o contribuinte à compensação contra a Fazenda Pública.
Aliás, é sabido que a Fazenda Pública, quando tem de fazer algum pagamento,
e aquele a quem vai pagar é seu devedor, efetua a compensação correspondente e
paga apenas o saldo, se houver. Assim, mais evidente fica o direito do contribuinte
à compensação, fundado no princípio da isonomia.
11
Gabriel Lacerda Troianelli, Compensação do Indébito Tributário, Dialética, São Paulo, 1998, pp. 19/21.
12
Cleide Previtalli Cais, O Processo Tributário, 4ª edição, RT, São Paulo, 2004, p. 438.
Registre-se, ainda, que também o princípio da razoabilidade ampara o direito do
contribuinte de compensar seus créditos contra a Fazenda Pública com as dívidas
que tenha para com a mesma, na medida em que impede as vedações feitas por via
oblíqua. Se a lei estabelece condições ou requisitos a serem atendidos, que não se-
jam razoáveis, porque desnecessários para evitar fraudes e permitir o controle das
compensações por parte da Administração, ofende o princípio da razoabilidade e,
assim, resulta inconstitucional.
Ressalte-se que as restrições à compensação, mesmo não envolvendo a Fazen-
da Pública, já tiveram fundamento no interesse do Fisco. Como assevera Uelze, uma
causa dessas restrições já foi o interesse que o senhor feudal tinha na solução das
pendências, pois, de direito, auferia uma parcela da prestação em litígio.13 Isto, po-
rém, está hoje superado, porque inteiramente incompatível com a idéia de Estado
de Direito Democrático.
13
Hugo Barroso Uelze, “Compensação Tributária: uma Proposta de Conceituação à Luz das ‘Categorias Gerais de Di-
reito’ e do Novo Código Civil”, Revista Tributária e de Finanças Públicas nº 57, RT, São Paulo, julho/agosto de
2004, p. 154.
14
Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XXII.
ça concessiva da segurança. Ao conceder a medida liminar, o juiz deve ter observa-
do a presença dos requisitos legalmente exigidos para esse fim, e ao prolatar a sen-
tença o juiz já conhece as razões que levaram a autoridade a praticar o ato impug-
nado como ilegal ou abusivo. Por outro lado, o Poder Público dispõe, além do agra-
vo contra a concessão da liminar e da apelação contra a sentença, de um meio ex-
pedito para impedir a execução, tanto da liminar, como da sentença, que é o pedido
ao presidente do tribunal, de suspensão da liminar, e da sentença, nos casos em que
tal suspensão de algum modo pode ser justificável.
Não obstante, a Lei nº 12.016/09 estabelece que não será concedida medida li-
minar que tenha por objeto, entre outros, a compensação de créditos tributários e
a entrega de mercadorias ou bens provenientes do exterior.15 E estabelece também
que a sentença concessiva da segurança poderá ser executada provisoriamente, sal-
vo nos casos em que for vedada a concessão de medida liminar.16 E ainda, estabe-
lece também que as vedações quanto à medida liminar se estendem à tutela anteci-
pada a que se referem os arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil. Como se vê,
essa Lei proíbe a prestação jurisdicional efetiva e útil ao contribuinte, quando tenha
lesionado o seu direito à compensação. E o faz do modo mais amplo e absoluto,
incluindo na vedação até aqueles casos nos quais o crédito do contribuinte contra a
Fazenda não seja objeto de qualquer questionamento. Por isto mesmo, já afirmamos
serem esses dispositivos incompatíveis com a garantia de jurisdição e, assim, incons-
titucionais.17
É sabido que o trânsito em julgado da sentença que concede o mandado de se-
gurança geralmente demora demasiadamente, sobretudo quando a Fazenda quer
protelar, pois a possibilidade de interposição de recursos é praticamente inesgotá-
vel. Não temos dúvida, pois, de que os dispositivos legais em questão, ao vedarem
a concessão de medida liminar e a execução provisória da sentença em mandados
de segurança destinados a proteger o direito do contribuinte à compensação tribu-
tária ou à liberação de mercadorias importadas são flagrantemente inconstitucionais.
15
Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, art. 7º, parágrafo 2º.
16
Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, art. 14, parágrafo 3º.
17
Hugo de Brito Machado, Mandado de Segurança em Matéria Tributária, 8ª edição, Dialética, São Paulo, 2009,
p. 142.
Da Prescrição e da Decadência na
Cobrança de Contribuições Previdenciárias
Decorrentes de Reclamatórias e
Consignatórias Trabalhistas
Luciano Marinho de Barros e Souza Filho
1
Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 320 e ss.
2
“Critério Científico para distinguir a Prescrição da Decadência e identificar as Ações Imprescritíveis”. Revista dos
Tribunais 300/7.
No que compete especificamente à decadência vale ressaltar que também pos-
sui origem do fato jurídico ordinário - tempo. Entretanto, na decadência, o fator
tempo extingue o próprio direito do titular, caso ele não o exerça no lapso temporal
determinado. É a perda do próprio direito em decorrência do decurso do tempo so-
mado à inércia do titular que não o exerceu oportunamente.
Ao contrário da prescrição, o prazo decadencial pode ser estabelecido também
pela vontade das partes. Explique-se: caso a decadência de um determinado direito
decorra de lei, o interessado não pode renunciá-la; porém, se decorrer da vontade
das partes, torna-se renunciável, quando decorrido o prazo estabelecido.
Poderíamos, doravante, aqui enumerar uma série de distinções entre os institu-
tos tratados, posto que a doutrina se mostra abundante, mas haveremos de nos limi-
tar apenas a algumas que julgamos principais: o direito caduca e a pretensão pres-
creve; a decadência supõe um direito em potência, a prescrição requer um direito
já exercido pelo titular, mas que tenha sofrido uma obstaculização, dando origem à
violação daquele.
Outra diferença tradicional, balizada nas escolas italianas e francesas, embora
hoje, senão superada decerto mitigada pelo Código Consumerista, é a admissão de
suspensão e interrupção dos prazos apenas para a prescrição, negando-as à decadên-
cia. Afirmamos enfraquecida devido à flexibilização promovida pelas novas corren-
tes doutrinárias acerca desta característica e adotada entre nós, ilustrativamente, na
citada Lei nº 8.078/90.
Por derradeiro, a nosso ver, a postura adotada pelo legislador na nova consoli-
dação civil (Lei nº 10.406/02) demonstrou maturidade senão doutrinária, pragmá-
tica, ultimando quaisquer dúvidas sobre os institutos na medida em que foi expres-
so (ou taxativo) na apresentação das idéias e características que os circunscrevem
de sorte a tornar seu posicionamento no ordenamento mais objetivo, categorizando
situações que num passado próximo, ainda promoviam bastante insegurança entre
os jurisdicionados.
3
Curso de Direito Tributário. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 459-460.
4
Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 719-720.
anos, a contar da ocorrência do fato gerador. Uma vez expirado tal prazo sem que a
Fazenda Pública tenha se pronunciado, considera-se homologado o lançamento e
definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, frau-
de ou simulação. Para melhor visualização do tema, destacamos o art. 150, caput e
parágrafo 4º, do Código Tributário Nacional que impõe:
“O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atri-
bua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autori-
dade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhe-
cimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
(...)
§ 4º Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de 5 (cinco) anos, a contar da
ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha
pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o cré-
dito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.”
Dessa forma, a decadência do poder-dever de constituir o crédito tributário se
rege pelo art. 150, parágrafo 4º, do CTN, que estabelece como termo inicial para a
fluência de prazo a ocorrência do fato gerador. A incidência dessa regra supõe, evi-
dentemente como se explicou, hipótese típica de lançamento por homologação, isto
é, situação em que ocorre o pagamento antecipado do tributo. Se o pagamento do
tributo não for antecipado, ou seja, constatada a sua omissão, já não será caso de
lançamento por homologação, hipótese em que a constituição do crédito tributário
deverá observar o disposto no art. 173, inciso I, do CTN, no qual o termo inicial do
prazo será o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento pode-
ria ter sido efetuado. Resta, pois, a indagação: quando é que o lançamento poderia
ter sido efetuado?
Registre-se que a ressalva disposta na parte final do parágrafo 4º do art. 150 do
CTN constitui objeto de dissensão entre os doutrinadores pátrios. No entanto, des-
taca-se o entendimento dominante e acolhido pela doutrina perfilhada por Paulo de
Barros Carvalho, Fábio Fanucchi, Schubert de Farias Machado, entre outros, na
forma expressa a seguir por Sacha Calmon Navarro Coêlho, que tomamos por pa-
radigma:
“Então fica assentado que o qüinqüênio decadencial para homologar, com o dies a quo
fixado na data da ocorrência do fato gerador da obrigação, só opera quando houver
pagamento de boa-fé, certo ou errado. Quando ocorre dolo, com a meta optata de frau-
dar ou simular, o dies a quo se desloca para o primeiro dia do exercício seguinte àque-
le que o lançamento ex officio poderia ter sido efetuado.”5
Considera-se inadmissível, diante da interpretação sistemática do CTN, enten-
der-se que esse lançamento poderia ser feito a qualquer tempo. Resta consolidada,
pois, a tese da necessidade de prévio conhecimento do fato pela Fazenda Pública,
em face do princípio geral de direito, segundo o qual o prazo não corre contra quem
ignora o fato que dá origem ao direito de agir. Para fluência do tempo indaga-se:
houve inércia do Fisco? Se a resposta for positiva, como corolário, ocorrerá o de-
curso da caducidade. A fluência do prazo, por conseguinte, apenas ocorre com a
5
Liminares e Depósitos antes do Lançamento por Homologação - Decadência e Prescrição. São Paulo: Dialética, 2000,
p. 52.
disponibilização ao Fisco dos elementos que lhe possibilitem ter o conhecimento do
fato. Não nos parece razoável transferir condutas lesa-pátria à assunção do Estado,
condutas fraudulentas carreando danos sociais, sobretudo aos hipossuficientes vin-
culados e que deveriam ser tutelados, além de inúmeros efeitos econômicos e jurí-
dicos indesejáveis, tais como a concorrência desleal ou a litigiosidade intencional.
Compreensão mais ortodoxa que propale o poder-dever do Estado na fiscalização
como responsável pela omissão, reconhecendo a decadência desde o fato gerador
(ocultado) é optar, na prática, pela transferência de riscos socioeconômicos e acen-
tuar a evasão fiscal. Ainda se admitindo hipoteticamente possível ou viável a fisca-
lização (genérica) do ente público sobre empresas formalizadas - o que dizer, só para
citar alguns exemplos, sobre a responsabilidade fiscalizadora geral a ser emprega-
da aos autônomos (contratantes e contratados) e, melhor ainda, aos empregados
domésticos? Por absurdo, portanto, exclui-se tal interpretação.
Ante o exposto, um detalhe deve ser pontuado: a atividade de formalização do
crédito tributário exercida pelo Juízo Trabalhista é meramente declaratória de obri-
gação tributária preexistente que se originou com a ocorrência do fato gerador, ou
seja, com a aquisição do direito subjetivo à remuneração, em decorrência da pres-
tação do serviço e cujo cumprimento, pagamento da contribuição previdenciária
devida, não foi efetuado pelo sujeito passivo (empregador) na época própria. Em tais
hipóteses, não se poderá açodadamente afirmar, com fito evasivo, então, que a inci-
dência de contribuição social sobre a prestação de serviço ora reconhecida judicial-
mente (vínculo empregatício), propiciado pelo ajuizamento de reclamação trabalhis-
ta, pudesse restar total ou parcialmente deteriorada pelo tempo, porquanto contata
da realização do labor até a declaração judicial. Essa compreensão, como se viu,
rompe com a estrutura contributiva da previdência social e se equipara, no mínimo,
à omissão ou, mais precisamente, à situação descrita e ressalvada no parágrafo 4º
(parte final) do art. 150 do Código Tributário Nacional: dolo, fraude ou simulação.
Em circunstâncias tais, contrariamente, não há falha ou inércia da Administração,
mas manifesta conduta omissivo-fraudulenta do contribuinte ou responsável tribu-
tário.
Diante de uma relação entre empregado e patrão que até a decisão trabalhista
era obscurecida pela conduta do empregador faltoso, a Fazenda Pública não tinha
como efetuar o lançamento, pois os próprios sujeitos passivos por motivações di-
versas, utilizaram-se de artifícios para omitir, ou seja, tornar desconhecida pela Fa-
zenda Pública a situação fática. Nesse contexto e de qualquer forma, em se consi-
derando a hipótese de omissão, erro ou prática de algum ato ilícito por parte da pes-
soa obrigada a prestar declarações ou a proceder ao recolhimento antecipado do tri-
buto, a conseqüência legal será a mesma, na forma da argumentação legal e doutri-
nária expendida, ou seja, o termo inicial do prazo desloca-se para o primeiro dia do
exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Após, pois,
o conhecimento do fato jurídico pelo sujeito ativo da tributação.
Note-se que o próprio regulamento da Previdência Social, em seu art. 348, pa-
rágrafo 2º, assim determina, verbis: “Na hipótese de ocorrência de dolo, fraude ou
simulação, a seguridade social pode, a qualquer tempo, apurar e constituir seus cré-
ditos.”
Tratando-se de crédito tributário, decorrente de uma lide trabalhista, deve-se
considerar o termo inicial de fluência do prazo decadencial de constituição do cré-
dito tributário (lançamento) a notificação válida à União, enquanto o prazo prescri-
tivo escoa do trânsito em julgado da decisão judicial trabalhista, cognitiva ou ho-
mologatória de acordo, líquida ou liquidada, ou seja, a partir da circunscrição do
crédito do reclamante, oportunidade na qual serão conhecidos os títulos ou direitos
definitivos do autor (reclamante) e estarão reunidos e disponibilizados nos autos
judiciais com todos os elementos necessários à apuração do crédito, dando-se co-
nhecimento ao credor.
Constituindo a prescrição a perda do direito de ação do Fisco em virtude do
decurso do tempo, somente a partir da constituição definitiva do crédito tributário
fluiria o prazo prescricional de sua pretensão. Ocorre que no caso de execução fis-
cal trabalhista, haja vista a competência de ofício constitucionalmente atribuída ao
juiz do trabalho para executar as contribuições decorrentes de suas decisões, a apli-
cação prática do instituto da prescrição é praticamente inexistente, já que, lançada
a contribuição previdenciária devida, uma vez não satisfeita a obrigação pelo em-
pregador (reclamado), instaura-se de ofício a execução fiscal nos próprios autos
judiciais da lide trabalhista, através de simples comando judicial de expedição de
mandado de citação e penhora. O crédito tributário (contribuição social ou previ-
denciária) decorrente de decisão proferida em processo judicial trabalhista, portan-
to, não necessita de inscrição em Dívida Ativa e ajuizamento de ação de execução
fiscal, como outrora era proposto na Justiça Federal, antes do advento da Emenda
Constitucional nº 20/98. Desnecessário, portanto, descrever aqui a evolução legis-
lativa dos prazos de prescrição das contribuições previdenciárias, de acordo com a
variação de entendimento de sua natureza jurídica ou da própria natureza jurídica
do instituto do lançamento.
Deve-se pontuar, inclusive por recentes dispositivos normativos, a exemplo da
nova redação do art. 43 da Lei de custeio, alterado pela Lei nº 11.941/09, que cris-
taliza aplicação do regime de cômputo contributivo por competência indistintamente
às verbas rescisórias e às decorrentes de vínculos clandestinos porventura reconhe-
cidos e declarados devidos, garantindo, deste modo, a manutenção sistemático-in-
terpretativa (unitária) do subsistema arrecadatório específico e, aqui, fragmentado
à óptica da prescrição e da decadência, a configurar convergência às conseqüências
do subsistema já dogmatizado e instrumentalizado, como se depreende.
Pelo exposto, conclui-se que sempre que o empregador omitir-se ou praticar
qualquer artifício para obscurecer os direitos do empregado ou embaraçar a Fazen-
da Pública, não cumprindo obrigações principais ou acessórias, deixando, por exem-
plo, de reconhecer o vínculo empregatício existente pela ausência da anotação em
Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, ou pelo não registro em fichas
ou livros apropriados, ou, pela não contabilização dos fatos jurídico-tributários,
descumprindo obrigações intrínsecas da atividade exercida como, ainda, a não-apre-
sentação da GFIP - Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Ser-
viço e Informações à Previdência Social, o termo inicial da decadência é diferido
para o momento em que ocorrer ciência à União do fato gerador ocultado. Isso por-
que a conduta praticada pelos contratantes (empregadores e/ou empregados) enqua-
dra-se como omissão, ou mais precisamente como ocultação dolosa e fraudulenta
ou simulada (parágrafo 4º do art. 150 do CTN), e, nessa circunstância, o sujeito ati-
vo do crédito tributário somente poderá exercer o seu direito potestativo de consti-
tuir o título jurídico de exigência do tributo - lançamento - a partir do momento em
que a situação que deu causa à sonegação tornar-se definitivamente conhecida.
Registre-se que tal interpretação consolida convergência ao subsistema de arre-
cadação aqui sumariamente modelado, sem interferir na Súmula 08/20086 do C. STF
na medida em que continua absolutamente válida e aplicável em todo seu conteúdo
e alcance. O motivo é simples e traz consigo verdadeiro trocadilho: a discussão per-
passa ao seu largo. Noutras palavras: a questão é responder “quando” se inicia a
consumação do tempo e não “quanto” é o tempo de consumação.
6
A Súmula Vinculante 8/2008 do Supremo Tribunal Federal define que são inconstitucionais o parágrafo único do
art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência
de créditos tributários. Tal Súmula cristaliza-se em função dos precedentes: RE 560.626; RE 556.664; RE 559.882;
RE 559.943; RE 106.217 e RE 138.284. Rege-se por conseqüência também às contribuições sociais o tempo de cin-
co anos para fulminar o direito e outros cinco do lançamento para sua efetiva cobrança.
A Súmula Vinculante nº 08
e o Parcelamento
Marcos Rogério Lyrio Pimenta
1. Introdução
Em 11 de junho de 2008, o Supremo Tribunal Federal no
julgamento do Recurso Extraordinário nº 559.882-9, que
resultou na edição da Súmula Vinculante nº 08, pacificou o
entendimento de que o prazo de decadência e prescrição
aplicável às contribuições previdenciárias é de cinco anos,
tal como nos demais créditos de natureza tributária, como
determina o Código Tributário Nacional.
Além da declaração de inconstitucionalidade, o Pretório
Excelso resolveu modular os efeitos dessa decisão estabele-
cendo que: (i) os créditos tributários pendentes de pagamen-
to não poderão ser cobrados, em nenhuma hipótese, após o
lapso temporal quinquenal; e (ii) os pagamentos já realiza-
dos só podem ser restituídos, compensados ou de qualquer
forma aproveitados, caso o contribuinte tenha assim pleitea-
do até a mesma data pela via administrativa ou judicial.
Sendo assim, indaga-se: os débitos previdenciários pen-
dentes de pagamento no parcelamento em curso poderão ser
cobrados após o lapso temporal previsto no CTN? E os va-
lores das contribuições previdenciárias referentes às parce-
las já pagas poderão ser restituídos?
O presente trabalho busca responder às indagações aci-
ma, ou seja, examinar os reflexos da Súmula Vinculante nº 08
no parcelamento do crédito tributário.
1
Tiago Cappi Janini, “Os Efeitos Produzidos pela Modulação da Declaração de Inconstitucionalidade do Prazo Pres-
cricional de Dez Anos para a Cobrança dos Créditos Previdenciários na Hipótese de Parcelamento”, Revista Dialéti-
ca de Direito Tributário nº 159, Dialética, São Paulo, 2008, p. 129.
2
Idem.
3
Ibidem, p. 130.
Não obstante o entendimento externado no julgamento acima, sustentamos que
os pagamentos realizados no parcelamento, referentes aos créditos previdenciários
atingidos pelo lapso temporal de cinco anos, devem ser recuperados pelo contri-
buinte, mesmo com o rompimento do parcelamento após a data do julgamento, e in-
dependentemente de discussão nas esferas administrativa ou judicial, sob pena de
violação aos princípios mais comezinhos do Direito, senão vejamos.
A restrição imposta pelo Supremo Tribunal Federal à recuperação dos referidos
créditos previdenciários (existência de lide administrativa ou judicial acerca do tema
antes da conclusão desse julgamento), no nosso entender, viola o princípio geral da
proibição do enriquecimento sem causa.
Segundo Paulo Pimenta4 “Enriquecimento sem causa significa o acréscimo pa-
trimonial de um dos sujeitos de determinada relação jurídica em detrimento de ou-
tro, sem que exista uma causa que justifique esse acontecimento.”5 Dessa definição,
conclui o autor, “extrai-se os requisitos necessários à aplicação do princípio: (1)
enriquecimento; (2) empobrecimento; (3) ausência de causa que justifique o empo-
brecimento; (4) relação de pertinência lógica entre o enriquecimento e o empobre-
cimento”6.
No caso em tela, é notória a presença desses elementos. O primeiro e o segun-
do requisito nós encontramos na ocorrência do pagamento dos créditos previden-
ciários atingidos pelo prazo quinquenal e na vedação a sua restituição. O terceiro
requisito se verifica na ausência de uma situação protegida pelo direito que justifi-
que o enriquecimento do Fisco. E o último requisito se constata na relação implica-
cional existente entre o empobrecimento do contribuinte, decorrente de um paga-
mento indevido, e o enriquecimento do Fisco, oriundo da restrição à recuperação
dos pagamentos anteriormente realizados e reconhecidos como indevidos pela Sú-
mula nº 08.
Outro princípio violado pela decisão da Suprema Corte é o princípio da boa-fé7.
A aplicação deste permite ao particular, como assinala Jesus Gonzalez Perez, “re-
cobrar la confianza en que la Administración no va a exigirle más de lo que estric-
tamente sea necessário para la realización de los fines públicos que en cada caso
concreto persiga”8. Já para o Fisco, significa que o contribuinte deve agir com ho-
nestidade em todas as fases da relação jurídica.
4
Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade em Direito Tributário, Dialética, São Paulo, 2002, p. 61.
5
No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma: “enriquecimento sem causa é o incremento do pa-
trimônio de alguém em detrimento do patrimônio de outrem, sem que, para supeditar tal evento, exista uma causa
juridicamente idônea” (“O Princípio do Enriquecimento sem Causa em Direito Administrativo”, Revista Diálogo
Jurídico v. I, nº 2, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, Salvador, maio de 2001. Disponível em:
www.direitopublico.com.br, p. 4).
6
Idem.
7
Como pontifica Jesus Gonzales Perez “El principio general de buena fe, que juega, como se ha señalado, no solo en
el ámbito del ejercicio de derechos y potestades, sino en el de la constitución de las relaciones y en el cumplimiento
de los deberes, comporta la necesidad de una conducta leal, honesta, aquella conducta que, según la estimación de la
gente, puede esperarse de uma persona.” (El Principio General de la Buena Fe en el Derecho Adminitrativo, 2ª ed.,
Civitas, Madrid, 1989, p. 49)
8
Ibidem, p. 69.
Ora, a partir do momento em que o sujeito passivo cumpre com as condições
do parcelamento e o Fisco, por outro lado, ultrapassa os limites necessários ao al-
cance do interesse público, mediante a não-restituição dos pagamentos anteriormen-
te realizados dos créditos tributários atingidos pelo lapso temporal de cinco anos,
restará clara a violação ao princípio da boa-fé.
Pensamos, ainda, que a referida restrição fere também o princípio da moralidade.
De fato, o Fisco, ao manter em seus cofres os valores atingidos pelo prazo quinque-
nal, estará agindo em conformidade com norma declarada e reconhecida como in-
constitucional pela Súmula Vinculante nº 08. É o que pontifica Paulo Pimenta9:
“Em matéria tributária, é inegável a sua aplicação, mormente em fase de cobrança do
tributo. Na prática de atos administrativos visando fazer com que o sujeito passivo
cumpra a obrigação tributária, a Administração deve obedecer esse princípio, não po-
dendo, por exemplo, praticar atos cujos motivos legais estejam previstos em normas
declaradas inconstitucionais pelo STF.”
E nem se diga que a irretratabilidade e irrevogabilidade da confissão da dívida
parcelada configura óbice à sua restituição, uma vez que estas não são absolutas,
podendo ser desconstituídas pelo contribuinte no âmbito administrativo ou judicial,
independentemente da adesão ao parcelamento. Entender o contrário importa em
vilipêndio à Constituição, sobretudo ao direito de ação (inafastabilidade do Poder
Judiciário), encampado no art. 5º, XXXV, da CF.
Nesse contexto, sustentamos que a Súmula em epígrafe permite a restituição das
parcelas do crédito previdenciário alcançado pelo lapso temporal de cinco anos,
mesmo com o rompimento do parcelamento após 11 de junho de 2008 e indepen-
dentemente da existência de lide administrativa ou judicial.
4. Conclusão
Ante o exposto, podemos apresentar as seguintes conclusões:
1. Os débitos previdenciários pendentes de pagamento no parcelamento em cur-
so jamais poderão ser cobrados após o lapso temporal previsto no Código Tri-
butário Nacional.
2. Os valores das contribuições previdenciárias referentes às parcelas já pagas,
não obstante a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº
559.882-9, poderão ser restituídos, independentemente da existência de lide
administrativa ou judicial.
9
Op. cit., p. 58.
A Repercussão de Decisões de Órgãos
da Administração no Contencioso
Administrativo Tributário
Miquerlam Chaves Cavalcante
1. Delimitação do Tema
Temos observado repetidas vezes no âmbito do Conse-
lho Administrativo de Recursos Fiscais - Carf1 a análise de
casos em que os contribuintes pleiteiam o reconhecimento
da regularidade ou da licitude de operações societárias e
transações comerciais sob o argumento de que as mesmas já
foram objeto de manifestação prévia e favorável de outros
órgãos da Administração Pública.
São corriqueiras alegações tendentes a afastar o lança-
mento tributário valendo-se de assertivas no sentido de que
operações societárias gozariam de veracidade e regularida-
de pelo fato de terem recebido aval de agências reguladoras
ou outros órgãos públicos; ou ainda, por exemplo, assertivas
de que operações envolvendo remessas internacionais de
recursos seriam idôneas pelo simples fato de terem sido re-
gistradas perante o Banco Central do Brasil - Bacen.
Pretendemos, nas próximas linhas, enunciar alguns pon-
tos que entendemos relevantes para se determinar em que
extensão as decisões de outros órgãos da Administração Pú-
blica podem influenciar o lançamento tributário, bem como
a fase do contencioso administrativo que, via de regra, se
segue àquele.
Para tanto, faz-se necessário enveredarmos por alguns
conceitos e dispositivos legais, sobretudo de Direito Adminis-
trativo, de forma a nos auxiliar nas conclusões acerca das im-
plicações do tema no contencioso administrativo tributário.
2. Legislação de Regência
O Brasil observou recentemente, sobretudo a partir de
1995, importantes e profundas modificações no que tange à
condução da máquina estatal. Em outras palavras, o Estado
passou de uma função de prestador direto de determinados
serviços públicos para uma função eminentemente geren-
cial2.
1
Trata-se do antigo Conselho de Contribuintes, cujos novos contornos foram dados
pela Portaria MF nº 256, de 22 de junho 2009. Miquerlam Chaves
2
Importante histórico sobre o tema nos fornece CARVALHO FILHO, José dos San-
Cavalcante
tos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 308
e segs., bem como DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São é Procurador da
Paulo: Atlas, 2005. Fazenda Nacional.
Neste período, assistimos a privatizações da execução de vários serviços públi-
cos, sobretudo na área de energia elétrica, telecomunicações, mineração etc. Para-
lelamente ao processo de desestatização, observou-se a criação de diversas autar-
quias em regime especial, denominadas agências reguladoras, a fim de gerenciar,
fiscalizar e nortear os diversos serviços públicos cuja prestação estava passando para
a iniciativa privada.
Como consequência da adoção deste modelo, vimos a criação de agências re-
guladoras como a Aneel, Anatel, ANTT, Antaq, ANA, ANP, com atribuições e com-
petências distribuídas conforme as atividades e os serviços que gerenciam.
Não nos deteremos na análise pormenorizada das leis instituidoras de cada uma
das agências, uma vez que não constitui o objeto do presente trabalho, mas é preci-
so deixar claro, desde já, que a nenhuma destas agências compete manifestar-se
sobre os efeitos tributários decorrentes da atuação de empresas submetidas a sua
gerência.
Com efeito, a execução das atividades de arrecadação, lançamento, cobrança
administrativa, fiscalização, pesquisa e investigação fiscal e controle da arrecada-
ção relativamente a tributos internos da União e do comércio exterior são de com-
petência3 da Receita Federal do Brasil, cujas atribuições, inclusive, sofreram consi-
derável acréscimo através da Lei nº 11.457/2007.
O que gera celeuma, no entanto, é a exigência de submissão de determinadas
operações das empresas ao crivo das agências reguladoras (Administração Indire-
ta). Isso porque uma mesma operação pode receber manifestação favorável por parte
destas agências, ao mesmo tempo em que são tidas por fraudulentas ou simuladas
pela Administração Tributária.
Exemplo disso, no que respeita às concessões e permissões de serviços públi-
cos, é a exigência feita no art. 27 da Lei nº 8.987/1995, verbis:
“Art. 27. A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem
prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão.
Parágrafo único. Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo o
pretendente deverá:
I - atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade
jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e
II - comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.”
As manifestações divergentes entre órgãos da Administração se devem ao fato
de que, não raro, operações societárias são engendradas sem qualquer suporte fáti-
co-econômico que as justifiquem. São operações que visam somente evitar o reco-
lhimento de tributos. Em casos como este, o Fisco atua realizando o lançamento fis-
cal pertinente, muitas vezes desconsiderando tais operações societárias ou simples-
mente vedando-lhes os efeitos tributários almejados.
Os contribuintes alegam, por outro lado, que tais operações (v.g., incorporações,
fusões, alienações de ações) são hígidas e válidas, e que, inclusive, foram submeti-
das e aprovadas pela correspondente agência reguladora (poder concedente).
3
Entenda-se competência no sentido de competência administrativa, ou seja, atribuições legais (art. 2º da Lei nº
4.717/1965).
Esse embate não ocorre somente no que se refere a empresas e operações sub-
metidas ao crivo de agências reguladoras.
A mesma discussão acima relatada se verifica relativamente a empresas contra-
tantes com o Poder Público. Isso porque, tal como a Lei de concessões e permis-
sões de serviços públicos, a Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993) pune
com rescisão unilateral do contrato determinadas operações societárias não admiti-
das no edital de licitação.
É oportuna a transcrição do dispositivo citado da Lei nº 8.666/1993:
“Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
(...)
VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com
outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incor-
poração, não admitidas no edital e no contrato;
(...)
XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que
prejudique a execução do contrato (...).”
Assim, empresas que conseguem a anuência do Poder Público licitante para rea-
lizar determinadas alterações societárias se insurgem contra eventuais lançamentos
tributários sob a alegação de que a Administração já concordara com as mesmas.
O mesmo imbróglio se verifica com relação a outros casos em que a legislação
exige determinado tipo de manifestação do Poder Público, a exemplo do art. 54,
parágrafos 3º e 4º, da Lei nº 8.884/1994, que exige a manifestação do Cade em ma-
téria de defesa da livre concorrência; do art. 222 da CF/88 e da Lei nº 10.610/2002,
no que se refere à propriedade de empresa jornalística; do art. 176, parágrafo 1º, da
CF/88, que trata da lavra de recursos minerais.
Não podemos deixar de mencionar, ante a recorrente análise de casos concre-
tos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - Carf, que a mesma celeu-
ma ocorre com relação ao registro de operações financeiras e de investimento es-
trangeiro perante o Banco Central do Brasil - Bacen.
4
Também amplamente reconhecido em sede doutrinária, conforme nos ensina CAIS, Cleide Previtalli. O Processo
Tributário. São Paulo: RT, 2007, p. 285.
5
Disponível em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudencia.jsf.
Acesso em: 02/09/2009.
6
Disponível em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudencia.jsf.
Acesso em: 02/09/2009.
7
Disponível em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/consultarJurisprudencia.jsf.
Acesso em 02/09/2009.
É preciso mencionar, ainda, que as operações societárias realizadas em total
ausência de propósito negocial, ofendem inclusive os arts. 421 e 422 do Código
Civil, na medida em que não contam com qualquer função social. Transcrevemos
tais artigos:
“Título V
Dos Contratos em Geral
Capítulo I
Disposições Gerais
Seção I
Preliminares
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função so-
cial do contrato.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Não vemos como se admitirem contratos ou estatutos sociais de empresas cuja
única função é a de, por via oblíqua, obstar a tributação devida. Isso porque são os
tributos quem financiam a promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos em um
Estado Democrático de Direito.
Entendemos, nesta esteira, ser inadiável a análise de atos e contratos privados
dos contribuintes com os olhos do Direito Constitucional contemporâneo8.
Passemos a apontar nosso entendimento acerca deste aparente conflito de ma-
nifestações entre órgãos da Administração Pública.
Com efeito, a submissão de operações societárias às agências reguladoras e a
outros órgão da Administração Direta ou Indireta decorre de expressa determinação
legal e, de forma alguma, pode representar uma decisão definitiva em matéria tri-
butária. Tais agências e autarquias carecem deste poder, como vimos acima ao de-
limitar as atribuições da Receita Federal do Brasil.
A obrigatoriedade de submissão das operações societárias aos referidos órgãos,
mormente às agências reguladoras, diz mais com o Direito Administrativo do que
propriamente com o Direito Tributário.
Isso porque as sociedades que contratam com o Poder Público, mais precisamen-
te as sociedades empresárias que figuram como partes em contratos administrati-
vos (do qual são espécies os contratos de concessão e permissão de serviços públi-
cos), estão submetidas à disciplina jurídica diferente, no que tange às alterações e
operações societárias ocorridas no bojo da sociedade.
Tal disciplina diferenciada é exigida em razão da supremacia do Poder Público
nos contratos administrativos, que se manifesta através das chamadas cláusulas exor-
bitantes. Neste sentido, alterações societárias (v.g., alteração da sede social, aumento
do capital social, ingresso de sócios, alteração dos administradores etc.) ou opera-
ções societárias (transformação, incorporação, fusão e cisão) ganham contornos
especiais quando realizadas por sociedade contratante com a Administração.
8
A este respeito, os ensinamentos de SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008; e SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006, são de leitura obrigatória.
Assim, enquanto no dia a dia empresarial uma alteração da sede social de deter-
minada sociedade não traz maiores consequências, a mesma alteração poderá en-
sejar a rescisão do contrato administrativo se for prejudicial à execução do mesmo.
É por isso que a legislação administrativista prevê uma série de mecanismos para
amparar e garantir a execução dos contratos administrativos, tendo em vista que o
licitante escolhido para firmar o contrato administrativo submete-se, em regra, a
rigoroso procedimento licitatório, no qual são escolhidos a melhor proposta e o li-
citante mais idôneo e capacitado à sua consecução.
Nasce aí o caráter intuitu personae nos contratos administrativos. Neste senti-
do, a legislação, visando proteger a execução contratual de alterações inoportunas
na estrutura jurídica de uma das partes, limita a incidência destas alterações, sob
pena de rescisão contratual.
Esta é a razão das exigências previstas no art. 27 da Lei nº 8.987/1995; no art. 78,
VI e XI, da Lei nº 8.666/1993, acima transcritos, bem como no art. 9º da Lei de
Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004).
Assim, qualquer anuência das agências reguladoras - ou do Poder Público na
qualidade de parte em um contrato administrativo - relativamente às operações so-
cietárias de empresas submetidas a sua área de atuação diz respeito à capacidade de
estas empresas permanecerem na prestação dos serviços públicos.
Como se observa, qualquer ilação acerca da licitude de operações societárias sob
o ponto de vista tributário pelo simples fato de prévia anuência de agências regula-
doras deve ser rechaçada.
É preciso ressaltar, em outra seara, que a submissão de determinadas operações
societárias a órgãos da Administração pode dizer respeito a valores outros que o
governo brasileiro busca preservar.
Isso se verifica, por exemplo, na exigência de comunicação de alterações de
controle societário de empresas jornalísticas ao órgão competente do Poder Execu-
tivo (no caso, o Ministério das Comunicações). Com isso, quer o governo brasilei-
ro preservar a cultura nacional, evitando que o capital estrangeiro dite a geração de
conteúdo das rádios e TV’s brasileiras.
O mesmo raciocínio é procedente no que se refere à pesquisa e lavra de recur-
sos minerais (art. 176 da CF/88). Aqui, o interesse da Administração diz mais com
aspectos referentes à soberania nacional e com a reserva de mercado a nacionais do
que com qualquer aspecto tributário.
Ante a sua finalidade mais restrita, acrescente-se, a anuência do Poder Público
nos casos acima citados se baseia, não raro, na simples análise de documentos so-
cietários (estatutos, contratos sociais, aditivos).
Ao contrário, os lançamentos tributários decorrentes de operações societárias
sem propósito jurídico-negocial são fruto de profundas e minuciosas auditorias. Isso,
pelo menos, é o que se constata nos processos submetidos ao Carf.
Como se observa, a análise de determinadas operações societárias pela Admi-
nistração Pública não pode, de forma alguma, constituir óbice ao trabalho das au-
toridades fiscais. A anuência ou a reprovação das referidas operações sequer tangen-
cia - e nem poderia fazê-lo - qualquer conteúdo tributário.
Faz-se necessário, ainda, tecermos algumas linhas adicionais sobre as conse-
quências dos registros de operações perante o Banco Central do Brasil - Bacen, tendo
em vista a importância e a regularidade com que o tema se apresenta no Carf.
O monitoramento do fluxo de capitais “do” e “para” o Brasil é feito pelo Ba-
cen9, que se utiliza de vários mecanismos para gerenciamento destes recursos.
A partir de 1996, através da Resolução nº 2.237, de 28 de novembro de 1996, o
Bacen instituiu, gradativamente, o registro eletrônico como mecanismo de acom-
panhamento dos estoques de capitais que ingressam no Brasil ou saem do País.
Ocorre que o Carf, com a devida vênia, equivocadamente, tem atribuído valor
probatório demasiadamente elevado aos registros realizados perante o Banco Cen-
tral.
A então Quarta Câmara do Primeiro Conselho chegou a afirmar10, por exemplo,
que determinadas operações de mútuo internacional seriam lícitas pelo simples fato
de terem sido submetidas ao Banco Central, tendo sido nele registradas, e que, em
nenhum momento, o Bacen teria exigido qualquer tributo sobre tais operações,
mesmo sendo delas conhecedor.
Convém esclarecer, de pronto, que não cabe ao Bacen exigir tributo algum. Esta
atribuição, como afirmamos acima, é conferida única e exclusivamente à Receita
Federal do Brasil.
Ademais, o registro de operações no Banco Central é meramente declaratório.
Este é o teor dos próprios esclarecimentos e textos técnicos do Bacen sobre o tema11.
Isso significa que o Bacen realiza primeiramente um controle meramente quantita-
tivo e para fins estatísticos, ou seja, para simples avaliação de estoques e acompa-
nhamento do fluxo de ingressos e saídas de capitais estrangeiros.
Como se vê, nada impede que posteriormente o próprio Bacen ou outros órgãos
da Administração Pública exijam a documentação comprobatória das operações
registradas em seus sistemas ou que, até mesmo, questione a correição ou efetivi-
dade das mesmas12.
Verificando inconsistências em operações a ele submetidas, o Bacen deve co-
municar às autoridades competentes ou interessadas no fato, seja o Ministério Pú-
blico, a Receita Federal, a CVM etc. Não cabe ao Bacen a adoção de medidas que
não estejam dentre suas atribuições.
Acrescente-se neste contexto o fato de que os fechamentos de câmbio para qui-
tar obrigações do/para o exterior fazem parte da rotina diária (e dinâmica, diga-se
de passagem) das instituições financeiras.
9
Aplica-se o Decreto nº 55.762/1965, com a ressalva de que cabe ao Bacen as atribuições ali conferidas à extinta Su-
perintendência da Moeda e do Crédito - Sumoc.
10
Essa foi a conclusão do voto vencedor proferido nos Autos do Processo nº 10730.003110/2005-55, cuja ementa e
inteiro teor ainda não se encontram disponíveis, nesta data, no site do Carf: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/pu-
blic/pages/index.jsf. Acesso em: 02/09/2009.
11
Essas são as conclusões extraídas de publicação oficial intitulada “Capitais Internacionais e Mercados de Câmbio no
Brasil”, disponível em: http://www.bcb.gov.br/rex/LegCE/Port/Ftp/Capitais_Internacionais_Mercado_Cambio_
Brasil.pdf. Acesso em: 02/09/2009.
12
Corrobora nosso entendimento o fato de a estrutura regulatória do capital estrangeiro e do mercado de câmbio ser
pautada pelos princípios da legalidade, fundamentação econômica e do respaldo documental. Idem.
Assim, a verificação da higidez e da licitude de operações declaradas, sob as
penas da lei, ao Banco Central não faz parte da rotina das instituições financeiras.
Isso apenas reforça o caráter declaratório destes registros prévios e torna as opera-
ções financeiras correspondentes plenamente passíveis de serem auditadas por ou-
tras autoridades administrativas.
A natureza declaratória somada às finalidades do registro de capitais no Bacen
são fatores impeditivos de que se atribua um exacerbado valor probatório a opera-
ções registradas em seus sistemas.
Entendemos ser possível, mesmo em casos em que há manifestações aparente-
mente conflitantes, traçar uma linha divisória suficientemente nítida no que se re-
fere às atribuições de cada autoridade.
Peço vênia, neste ponto, para narrar o entrave ocorrido entre Bacen e Fisco, sub-
metido à mesma Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes e decidido
no Acórdão nº 104-21.95313.
Em apertada síntese, determinado contribuinte, empresa concessionária do ser-
viço de energia elétrica, visando à aquisição de empresa estatal submetida a leilão
de privatização, buscou recursos financeiros no exterior para viabilizar a referida
compra.
Para tanto, o contribuinte constituiu duas empresas subsidiárias integrais no
exterior. Ato contínuo, a captação de recursos se deu através da emissão de títulos
de crédito internacionais, os chamado Fixed Rate Notes, com a devida e necessária
autorização do Bacen. Os títulos foram, em sua totalidade, adquiridos pelas empre-
sas subsidiárias criadas pelo contribuinte.
Vale mencionar que a legislação brasileira, visando promover a manutenção de
recursos estrangeiros no País, confere um benefício fiscal no pagamento de juros
decorrentes da colocação de títulos de crédito no exterior.
Contudo, para se beneficiar da alíquota zero do imposto de renda na fonte, a lei
exige que os títulos de crédito internacionais tenham, no mínimo, 96 meses de prazo
médio para amortização dos mesmos. Este é o teor do art. 1º, IX, da Lei nº 9.481/1997.
No caso concreto, os títulos efetivamente foram emitidos com prazo superior ao
mínimo exigido, mas antes do transcurso de 96 meses o contribuinte promoveu um
aumento de capital nas referidas subsidiárias.
O Bacen, em um primeiro momento, entendeu que as remessas internacionais
de recursos destinadas ao aumento de capital das empresas subsidiárias configura-
riam, em verdade, antecipação de amortização dos Fixed Rate Notes. Por esta ra-
zão, o Bacen cancelou os certificados de registro para emissão dos títulos de crédi-
tos internacionais.
Em um segundo momento, o Bacen reviu o seu próprio posicionamento e afir-
mou faltar respaldo legal e regulamentar para cancelar os certificados de registro.
Cerrou, assim, o entendimento de que não houve qualquer irregularidade cam-
bial, embora tenha também reconhecido não haver norma que autorize o Banco
Central a glosar os certificados quando identificado artifício para obter benefício
fiscal supostamente indevido.
13
Disponível em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/index.jsf. Acesso em: 02/09/2009.
A despeito de discordar das conclusões adotadas, ao final e por maioria, pela
então Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes14, com base em inter-
pretação errônea, a nosso ver, do parecer do Banco Central, entendemos correto este
segundo posicionamento do Bacen, em alguns aspectos.
Em primeiro lugar, não havia impedimento legal à colocação dos títulos de cré-
dito no exterior, vez que observados os requisitos regulamentares exigidos pelo
Bacen.
Em segundo lugar, se houve alguma ilicitude, ela ocorreu quando das remessas
para aumento de capital das subsidiárias, e não na emissão de títulos de longo pra-
zo. Assim, o cancelamento dos certificados que amparavam a emissão dos Fixed
Rate Notes em nada obstaria ou reverteria eventual irregularidade.
Em terceiro lugar, corroborando o fato de o registro no Sisbacen, como vimos,
ser meramente declaratório e para fins quantitativos e estatísticos, o Banco Central
ressalvou que a licitude das operações se limitava ao aspecto cambial. É oportuna a
transcrição do referido trecho do parecer do Bacen:
“Do lado legal e regulamentar, não há qualquer indicação de que a [empresa], suas
subsidiárias ou os bancos intervenientes nas operações tenham deixado de cumprir ou
ferido qualquer norma específica na área de câmbio e de capitais estrangeiros.”
A regularidade sob a ótica cambial não vincula ou interfere nas repercussões
tributárias das operações. O próprio parecer manifestou expressamente este enten-
dimento:
“d) não se praticaram ilícitos afetos à matéria de câmbio e capital estrangeiro, de modo
que falta respaldo legal e regulamentar para o cancelamento dos ROF’s, embora reste
aos órgão públicos competentes, já comunicados, formar sua própria opinião acerca
da prática de ilícitos fiscais e penais.” (Destaque nosso)
Entendemos que, no caso concreto citado, o limite de atribuições entre Bacen e
Fisco foi suficientemente delineado. Não obstante, a maioria dos conselheiros en-
tendeu, em nosso sentir equivocadamente, pela extensão da regularidade das ope-
rações em matéria cambial também para fins tributários.
Considerar a manifestação favorável do Banco Central como definitiva e incon-
testável, é o mesmo que admitir, em se constatando ilícitos penais, que o Banco
deveria apresentar denúncia-crime diretamente, dispensando a atuação do Ministé-
rio Público. Não vemos como ser defensável nenhuma das posições.
4. Conclusões
Cremos, portanto, competir apenas ao Fisco conferir os devidos efeitos tributá-
rios às operações societárias ou negociais submetidas a outros órgãos da Adminis-
tração Pública.
Isso porque a submissão e análise das referidas operações por agências regula-
doras, pelo Banco Central ou outros órgãos públicos tem objetivos próprios, espe-
cíficos e mais limitados, que não podem, de forma alguma, determinar os efeitos
tributários delas decorrentes.
14
Foi dado provimento, por maioria de votos, ao recurso do contribuinte.
É preciso ponderar, contudo, que eventuais manifestações prévias de órgãos da
Administração podem servir como indício probatório em favor dos contribuintes,
mas, de forma alguma, pode ser atribuído às mesmas um valor probatório exacer-
bado no âmbito do processo administrativo-tributário15.
A auditoria fiscal, como visto, tem-se mostrado mais aprofundada que a análi-
se por parte de outros órgãos da Administração, sobretudo se considerarmos os ob-
jetivos mais amplos e os mecanismos de fiscalização que o Fisco dispõe.
Isso, ou seja, a profundidade da ação fiscal, somada à ampla defesa, ao contra-
ditório e à verdade material que regem o processo administrativo tributário, garan-
te que operações realmente hígidas, lícitas e com reais motivações empresariais não
sofram manifestações desfavoráveis pelo Fisco.
Ao contrário, para operações que não guardam qualquer verossimilhança nem
justificativa societário-negocial, entendemos, como igualmente vem entendendo o
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - Carf, não ser possível atribuir-lhes
os efeitos tributários almejados, ainda que tenha recebido prévio aval de outros ór-
gão da Administração Pública.
Coibir as operações que não contam com qualquer suporte fático é, em última
análise, privilegiar as operações efetivamente reais e que geram riquezas e empre-
gos ao País.
Dessa forma, não há, e nem pode haver, vinculação da autoridade tributária (fis-
calização ou órgãos de julgamento) às manifestações prévias da Administração Pú-
blica, aqui incluídas as agências reguladoras, o Banco Central, a CVM, a Adene, a
ADA etc.
15
Isso se revela mais nítido se tivermos em mente o fato de que até mesmo o processo judicial pode ser usado como
veículo para fraudar a lei, por meio de colusão entre as partes (art. 485, III, do CPC).
Direitos e Deveres da Administração
Tributária à Luz dos Direitos Humanos
Renato Lopes Becho
I - Colocação do Tema
Os direitos humanos vêm crescendo em importância e
em reconhecimento desde a metade do século passado. Di-
versos campos tradicionais do Direito são por eles fortemen-
te influenciados, com destaque para o Direito Internacional,
o Direito Penal e o Direito Trabalhista. Porém, compreen-
dendo os direitos humanos como intrinsecamente direitos
fundamentais constitucionais, como ocorre no Brasil, eles
exercerão efeitos em todos os quadrantes do jurídico, in-
cluindo o Direito Tributário. A dimensão dos efeitos dos di-
reitos humanos no Direito Tributário é insipiente na cultura
jurídica brasileira e é o objeto de nossa atenção neste artigo.
Para tratarmos dos direitos humanos aplicados à tribu-
tação, optamos por apresentar situações reais da vivência
fiscal atual, para que possamos avaliar, com maior facilida-
de, o quadro teórico principal. Em outras palavras, ao invés
de realizarmos uma razoável divagação teórica sobre os di-
reitos humanos aplicados à tributação, sem que o leitor pos-
sa identificar, claramente, onde a teoria pode ser aplicada,
optamos aqui por apresentarmos situações práticas, viven-
ciadas no dia-a-dia forense, e confrontá-las com a teoria dos
direitos humanos.
Para alcançar nosso intuito, pretendemos levantar a ques-
tão do desequilíbrio que há, atualmente, entre os direitos e
deveres da Administração Tributária (Receita Federal do
Brasil e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional) à luz dos
direitos humanos. Serão apresentadas duas situações fáticas:
o Sistema Público de Escrituração Digital - Sped, como di-
reito do Fisco, e o prazo necessário para que o mesmo órgão
da Administração Pública informe, ao contribuinte e ao Po-
der Judiciário Federal (em processos de execução fiscal), a
decisão exarada em processo administrativo onde houve ale-
gações de extinção do crédito tributário, como pagamento, Renato Lopes Becho
é Mestre, Doutor e
compensação ou retificação de dados, ponto levantado como Professor de Direito
dever do Estado. Tributário na PUC/SP,
Inicialmente, iremos expor os dois aspectos fáticos. Em Livre-docente em
seguida, abordaremos a relação entre o Direito Tributário e Direito Tributário pela
os direitos humanos para, no terceiro momento, unirmos os USP e Juiz Federal em
pontos levantados, focando o desequilíbrio entre os direitos São Paulo/SP.
e os deveres da Administração Tributária à luz dos direitos humanos. O aspecto prin-
cipal deste texto, portanto, são os direitos humanos aplicados à tributação. Os da-
dos fáticos servem apenas como força argumentativa e devem ser lidos como exem-
plo hipotético, como argumentos de retórica, para a obtenção do objetivo principal:
o foco tributário nos direitos humanos.
1
Conforme “Apresentação” do Sped, extraído do sítio www.receita.fazenda.gov.br, em 23/07/2009.
2
Conforme “Histórico” do Sped, extraído do sítio www.receita.fazenda.gov.br, em 23/07/2009.
sação), bem como de retificação de dados fiscais, apresentadas em Juízo como com-
probatórias de ausência de dívidas fiscais. O contribuinte informa ao Poder Judiciá-
rio que há pedido administrativo de extinção do crédito tributário, ainda pendente
de decisão. Se o contribuinte, executado, se defende em exceção de pré-executivi-
dade (sem ter bens penhorados), comprovando que requereu administrativamente,
junto à Receita Federal do Brasil, a regularização do feito, a prática demonstra que
a manifestação objetiva da Administração Tributária (pela extinção do feito, por
cancelamento da Certidão de Dívida Ativa - CDA, pela ratificação ou substituição
da CDA ou pelo prosseguimento do processo executivo fiscal, se o pedido do exe-
cutado foi considerado, administrativamente, improcedente) leva, em média, qua-
tro anos para ser apresentada.3 Infelizmente, não se apresenta uma solução imedia-
ta para esse problema. Do ponto de vista processual, em algumas decisões, enten-
demos por extinguir o processo executivo, por ausência de certeza do título execu-
tivo, ou ao menos suspender os efeitos das execuções fiscais, até que houvesse ma-
nifestação objetiva por parte da Procuradoria da Fazenda Nacional. O Egrégio Tri-
bunal Regional Federal da 3ª Região, contudo, diante da ausência de previsão ex-
pressa no art. 151 do Código Tributário Nacional, reformou as decisões, como se
comprova com os seguintes julgados:
“De fato, diante da propositura da execução fiscal, a suspensão, seja da exigibilidade
do crédito tributário ou da liquidez e da certeza do título executivo, somente pode ser
alcançada em situações específicas, legal ou jurisprudencialmente delineadas, assim,
por exemplo, em caso de embargos com garantia da dívida (Súmula 38, TFR), mas não
de forma indiscriminada.
Desse modo, ainda que a Fazenda Nacional não se manifeste sobre a defesa do deve-
dor no prazo fixado, a suspensão da execução - enquanto fenômeno processual -, não
acarreta o efeito material de afetar a exigibilidade do crédito tributário, dotado de li-
quidez e certeza, sem que estejam presentes as condições legais próprias para tal efei-
to jurídico.
Na espécie, o Juízo ‘a quo’, diante apenas da falta de manifestação da exequente a
pedido formulado pelo devedor contra a execução fiscal, extraiu causa jurídica para
afastar a exigibilidade do crédito tributário, permitindo, inclusive, a expedição de cer-
3
Referida informação pode ser comprovada por centenas de processos. Não vamos apresentar, aqui, seus números.
Todavia, caso a comunidade acadêmica considere importante, poderemos publicá-los em outra oportunidade. Apre-
sentamos, contudo, alguns indicativos. No Processo n. 2002.61.82.016223-0, a Fazenda Nacional requereu, em 18
de outubro de 2002, a suspensão do feito por 180 dias para análise, pela Receita Federal, do processo administrativo
(fls. 75); em 22 de novembro de 2002 requereu novamente o prazo de 180 dias (fls. 82); em 7 de julho de 2003
requereu prazo de 120 dias (fls. 107); em 13 de abril de 2005 requereu novo prazo de 120 dias (fls. 119), assim
como em 9 de fevereiro de 2007 (fls. 126). Em 27 de junho de 2007 o magistrado extinguiu o feito, por ausência
de certeza do débito (fls. 134-136). Em 15 de janeiro de 2009, a sentença foi reformada (fls. 209-212). E em 7 de
julho de 2009, a Fazenda Nacional requereu a extinção do feito (fls. 220), por cancelamento do débito. No Processo
n. 2002.61.82.050962-9, foi dada vista à exequente, para manifestação, em 30 de junho de 2003 (e em pedidos su-
cessivos, sendo que até hoje não há manifestação objetiva à petição do executado); no Processo n. 2003.61.82.015736-5,
a primeira vista para manifestação objetiva foi em 21 de julho de 2003 (também há pedidos posteriores, ainda es-
tando em aberto); no Processo n. 2002.61.82.056250-4, a primeira vista foi em 17 de maio de 2004; no Processo
n. 2004.61.82.019070-1, a primeira vista é de 19 de julho de 2004; no Processo n. 2004.61.82.023836-9, a primeira
vista é de 4 de outubro de 2004; no Processo n. 2003.61.82.050324-3, a primeira vista é de 2 de março de 2005; e no
Processo n. 2002.61.82.053395-4, a primeira vista para manifestação sobre o processo administrativo é de 11 de abril
de 2005. Em todos os casos, exceto o primeiro, ainda não há manifestação objetiva da exequente à exceção de pré-
executividade.
tidão de regularidade fiscal, o que se revela prematuro, mesmo porque não houve se-
quer decisão judicial, indicativa da iliquidez e da incerteza do título executivo.” (AG
n. 2006.03.00.093280-2, Rel. Des. Federal Carlos Muta, 3ª Turma, data da decisão:
29/09/2006)
4
Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 13.
E ainda:
“Característica importante dos direitos fundamentais é a de se expressarem por prin-
cípios, como acontece no catálogo do art. 5º da CF, que proclama, entre outros, os prin-
cípios da igualdade, da liberdade de manifestação do pensamento, da inviolabilidade
da casa.”5
Alberto Nogueira, seguindo a trilha de Ricardo Lobo Torres, demonstra a inar-
redável relação atual entre os direitos humanos e a tributação, bem como a estrita
relação entre direitos e deveres. A citação abaixo serve, ao nosso sentir, como bom
resumo de seu pensamento, no ponto que interessa ao presente estudo:
“a) que no âmbito da tributação os ‘direitos’ se harmonizam com os ‘deveres’ integran-
do-se no esquema ‘direitos/deveres’, à semelhança de outras categorias de direitos da
terceira geração, em especial da ecologia; b) que existe uma dimensão individual do
tributo e outra coletiva; c) que o contribuinte é ao mesmo tempo devedor (na perspec-
tiva individual) e credor (enquanto inserido no grupo e na sociedade); d) não se pode
deixar de reconhecer-lhe, em qualquer hipótese, o legítimo interesse (e o direito) de
sofrer o impacto da tributação dentro dos cânones previstos na Constituição, com to-
das as garantias correspondentes) e, ainda, de ver aplicados os mesmos princípios e
critérios aos outros membros da sociedade; e, por último, de que é cada indivíduo - e
não o Estado - o titular do poder (limitado) de tributar.”6
José Souto Maior Borges publicou artigo sobre os direitos humanos e a tributa-
ção, de onde colhemos o ensinamento:
“Os vínculos entre a tributação e os direitos humanos não se manifestam ao primeiro
e superficial exame exegético. Mas se ocultam nas dobras do ordenamento constitu-
cional brasileiro, ao longo dos princípios e normas que o integram.”7
Outros autores também já trabalham em questões tributárias sob a ótica dos di-
reitos humanos, como Fernando Facury Scaff8 e Agostinho Toffoli Tavolaro.9
O tema, ainda novo, é tratado em congressos científicos, como no XXI Congres-
so Brasileiro de Direito Tributário, organizado de 17 a 19 de outubro de 2007 pelo
Instituto Geraldo Ataliba - IGA-Idepe (Instituto Internacional de Direito Público e
Empresarial). Nele foi proferida palestra pelo Ministro Luiz Fux, intitulada “Direi-
tos Humanos e Tributação”.10 Diversos princípios foram levantados como demons-
trações de direitos fundamentais (direitos humanos) na tributação: capacidade con-
tributiva, proibição de tributação confiscatória, tipicidade fechada, contraditório e
devido processo legal. Quanto a este último, destacamos, por sua vinculação ao ar-
gumento do presente artigo, a seguinte afirmação de Luiz Fux:
“O comum é exatamente o contribuinte se defender no bojo da execução fiscal. E aí
surgem vários direitos fundamentais do executado-cidadão, como, por exemplo, cita-
5
Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 13.
6
A Reconstrução dos Direitos Humanos da Tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 178-179.
7
Constitucionalismo, Tributação e Direitos Humanos. Fernando Facury Scaff (organizador). Rio de Janeiro: Reno-
var, 2007, p. 327 e “Direitos Humanos e Tributação”. Revista Tributária e de Finanças Públicas v. 40, ano 9. São
Paulo: RT, set./out. de 2001, p. 189.
8
“Direitos Humanos e a Desvinculação das Receitas da União - DRU”. Revista de Direito Administrativo v. 236, Rio
de Janeiro: Renovar, abr./jun. de 2004, pp. 33-50.
9
“Estatuto do Contribuinte”. Revista Tributária e de Finanças Públicas v. 58, ano 12. São Paulo: RT, set./out. de 2004,
pp. 82-104.
10
Anais publicados na Revista de Direito Tributário v. 101. São Paulo: Malheiros, [2008], pp. 179-187.
do aqui, o redirecionamento da execução para os sócios, só naqueles casos específi-
cos que a Professora mencionou. A inteirabilidade [sic, provavelmente impenhorabi-
lidade] do faturamento, que evita, que conjura, o capital de giro do empresário. A im-
penhorabilidade do bem de família. A prescrição, que retira do contribuinte aquela
‘espada de Dâmocles’. Além, evidentemente, de inúmeros processos judiciais ofere-
cidos ao contribuinte, na medida em que nenhuma lesão ou ameaça de lesão está fora
da apreciação do Poder Judiciário.”11
Com os exemplos acima indicados, resta configurado que não é novidade, tam-
bém no Brasil, focar o Direito Tributário sob os holofotes dos direitos humanos.
Reconhecida essa possibilidade, apresentemos nossa linha de raciocínio. Natural-
mente, ela parte do texto da Constituição Federal.
11
Op. cit., p. 186.
tos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (§ 3º acres-
centado pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004).”
A Constituição Federal, como se vê, destaca os direitos humanos e os documen-
tos internacionais firmados pelo Poder Executivo e aprovados pelo Poder Legisla-
tivo federal.
Não disse o constituinte - e nem era necessário - que os direitos humanos pro-
tegem os contribuintes. A extensão desses direitos é a todas as pessoas, que mante-
rão a dignidade da pessoa humana e o quadro protetivo humanista em todas as suas
relações, sem exclusão de nenhuma. Assim, por imperativo lógico, os direitos hu-
manos protegem o homem na sua qualidade de contribuinte, sem necessidade de o
constituinte - quer originário, quer derivado - ter escrito essa relação.
Porém, em ao menos um pacto internacional firmado pelo Brasil, diretamente
relacionado aos direitos humanos, há menção expressa à tributação, como é expos-
to na sequência.
12
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 787.
13
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 789.
deixaria clara a vinculação. Afinal, a tributação é uma das expressões do Estado, e
todo Estado pode se tornar um ente opressor. Os direitos humanos expressam o de-
sejo e veiculam os mecanismos nacionais e internacionais de proteção da pessoa
humana em face do Estado. Este pode ferir os valores humanos que acompanham
as pessoas em situações de fragilidade, relacionados aos direitos civis (notadamen-
te de crianças, mães, idosos, inválidos etc.), eleitorais (defesa da democracia), tra-
balhistas (proteção das condições de trabalho, por exemplo), penais (devido processo
legal e tratamento humanitário dos presos, para citar apenas dois exemplos). Não
teriam relação com o Direito Tributário? Por quê?
O Estado Fiscal tem uma notável capacidade destrutiva, bem acentuada na afir-
mação clássica (de 1819) de Marshall: “o poder de tributar envolve o poder de des-
truir”.14 Conforme Aliomar Baleeiro, a afirmação de Marshall foi posta em autori-
zação ao poder de destruir, via tributação. Esse ponto levou ao contraponto: outra
posição célebre, mas contrária, de Oliver Holmes Jr. (afirmada em 1928), ao esta-
belecer que cabe ao Poder Judiciário impedir que os demais poderes usem a tribu-
tação para destruir, afirmando que “o poder de tributar não implicará no poder de
destruir, enquanto existir esta Corte”.15 Diante da nefasta possibilidade de destruir
que há no exercício do poder de tributar, não poderiam os instrumentos protetivos
da pessoa humana serem negados aos contribuintes. E não o são, como a Declara-
ção Americana dos Direitos e Deveres do Homem deixou claro.
Há uma possível objeção à afirmação de que a Declaração Americana dos Di-
reitos e Deveres do Homem eleva a tributação ao patamar dos direitos humanos.
Como o texto da Declaração fixa o “dever de pagar os impostos”, ela protege o Fis-
co, não o contribuinte. Há, assim, a defesa do direito estatal à cobrança dos tribu-
tos, não a deveres do Estado em matéria fiscal, deveres que incluam, por exemplo,
o de informar, rapidamente, o contribuinte. A objeção não se sustenta, como explo-
raremos no próximo item.
14
Apud Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª ed. atualizada por Misabel Abreu Ma-
chado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 566.
15
Ibidem, p. 568.
“O lado oposto do direito subjetivo é o dever jurídico, que consiste na situação em que
se encontra uma pessoa (sujeito passivo) de ter de praticar uma ação ou omissão, em
vantagem de outra, sob pena de sofrer uma sanção. Supõe, assim, vínculo que enlaça
o titular do direito ao devedor. É, pois, a sujeição jurídica de uma pessoa (devedor) a
outra (titular), que obriga aquela a uma prestação em favor desta.”16
Também A. Machado Paupério, que ensina o dever jurídico como:
“nada mais, nada menos que a obrigação, por parte de cada pessoa, de observar deter-
minado comportamento, ativo ou omissivo, sob pena de se ver compelida a fazê-lo pela
força da ordem jurídica.
Vê-se, assim, que o objeto do dever jurídico é o próprio comportamento do obrigado.”17
No campo próprio dos direitos humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade
fixa a correlação entre os direitos e os deveres como uma das grandes contribuições
da Declaração que estamos examinando ao sistema protetivo humanista, in verbis:
“Em perspectiva histórica, são as seguintes, resumidamente, as principais contribuições
da Declaração Americana de 1948 ao desenvolvimento do sistema interamericano de
proteção: a) a já mencionada concepção dos direitos humanos como inerentes à pes-
soa humana; b) a concepção integral dos direitos humanos (abarcando os direitos ci-
vis, políticos, econômicos, sociais e culturais); c) a base normativa vis-à-vis Estados
não-partes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos; d) a correlação entre
direitos e deveres.”18
Diante da correlação entre direitos e deveres, assim como os cidadãos das na-
ções americanas têm deveres em relação ao Fisco de seus países, esses órgãos têm
deveres frente aos contribuintes, destacando-se as obrigações de conferir-lhes tra-
tamento digno e igualitário. Compõe as obrigações do Estado o dever de informar,
com a presteza possível, a situação do contribuinte e a qualidade de seus documen-
tos fiscais, comprobatórios da prática de atos e de situações de fato, não apenas no
interesse da Administração Pública, mas também no interesse da pessoa humana do
contribuinte.
Registramos que o tema dever de pagar tributo é objeto de importantes consi-
derações doutrinárias, como de José Casalta Nabais19 e Maria Luiza Vianna Pessoa
de Mendonça,20 mas que, jamais, pode ser visto isoladamente.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, é um
importante documento que almeja proteger os direitos humanos no continente ameri-
cano. Mas, se houver - o que não nos parece - alguma perspectiva para se colocar
em dúvida a dimensão protetiva dos direitos humanistas dos contribuintes na indi-
gitada Declaração, outro Documento afasta, segundo nossa leitura, definitivamen-
16
Introdução à Ciência do Direito. 4ª ed. revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 196.
17
Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 44.
18
“O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Limiar do Novo Século: Recomendações para o Fortalecimento
de seu Mecanismo de Proteção”. Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Juris-
prudência. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001,
p. 27.
19
O Dever Fundamental de pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Con-
temporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 746.
20
Os Direitos Fundamentais e o Dever Fundamental de pagar Impostos: a Igualdade e o Imposto. Tese (doutorado).
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. p. 581.
te, a separação entre esses campos (tributação e direitos humanos). O sistema pro-
tetivo continental experimentou notáveis avanços com a Convenção Americana so-
bre Direitos Humanos, de 1969. Ela prevê, inclusive, órgãos supranacionais e me-
canismos que ofereçam efetiva proteção humanista, para além das importantes de-
clarações de direitos, que não veiculam as formas de solução para os conflitos que
envolvam as violações aos direitos humanos. Centremo-nos, pois, na Convenção
Americana.
21
Direitos Humanos Fundamentais: Comentários aos artigos 1º a 5º da Constituição da República Federativa do
Brasil, Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 1997, p. 39.
22
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 792.
23
“Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos”. Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo:
Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, pp. 84-85.
Destaca-se, dentre os primeiros dispositivos da Convenção Americana, o dever
dos Estados pactuantes de dotar seus respectivos ordenamentos jurídicos internos
com dispositivos legais que permitam a concretização dos direitos humanos, como
se confere:
“Artigo 2º Dever de adotar disposições de direito interno.
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver
garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes compro-
metem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposi-
ções desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem neces-
sárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.”24
Uma das garantias aos direitos humanos dada pela Convenção Americana está
a de jurisdição fiscal, estipulada expressamente no seguinte dispositivo:
“Artigo 8º Garantias judiciais.
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, esta-
belecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada
contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhis-
ta, fiscal ou de qualquer outra natureza.”25
Há o reconhecimento, no Continente Americano, de que os contribuintes têm
direito de serem ouvidos judicialmente, “com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável (...) na determinação de seus direitos e obrigações de caráter (...) fis-
cal”. Se não o forem, haverá violação aos direitos humanos, podendo ser acionados
os mecanismos protetivos que compõem a Convenção Americana. De fato, estipula
o art. 33 da Convenção dois órgãos que são competentes para conhecer de assuntos
relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-par-
tes nesta Convenção: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
O Brasil se submete às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
por decisão legislativa federal, qual seja, o Decreto Legislativo n. 89, de 3 de de-
zembro de 1998, nos seguintes termos:
“Artigo 1º É aprovada a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da
Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpreta-
ção ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos para fatos ocorri-
dos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do
artigo 62 daquele instrumento internacional.”
Significa dizer que as lesões aos direitos humanos dos contribuintes brasileiros,
praticados após 3 de dezembro de 1998, podem ser levadas à Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Desconhecemos a existência de precedente em matéria tributária na Corte Inte-
ramericana. Situação distinta ocorre na Corte Européia de Direitos Humanos. Con-
forme Philip Baker: “Foi possível identificar mais de 240 casos relativos a questões
tributárias nos quais decisões foram exaradas entre maio de 1959 e abril de 2000.”26
24
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 792.
25
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 796.
26
“A Tributação e a Convenção Européia de Direitos Humanos”. Tradução de João Dácio Rolim, inédito. Original
publicado in: British Tax Review n. 4, 2000, pp. 211-377. O trecho citado está na p. 1 da tradução.
Os principais temas foram assim listados por Baker: proteção à propriedade, direi-
to a um processo justo, proibição de discriminação, direito ao respeito, à privacida-
de e à vida humana e liberdade de pensamento, consciência e religião.
Parece-nos razoável supor, pois, que em algum momento a Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos poderá ser chamada a decidir violações aos direitos huma-
nos em matéria tributária. Uma decisão em Direito fiscal poderia vir a alterar o or-
denamento jurídico brasileiro, ainda que o Brasil não fosse parte litigante perante a
Corte, pois suas decisões valem em todos os Estados que a reconhecem.
Há um importante precedente, ainda que apenas indiretamente em matéria tri-
butária, mas que nos permite vislumbrar, no futuro, não aceitações de violações aos
direitos humanos em matéria tributária. O Supremo Tribunal Federal brasileiro não
mais aceita a prisão do depositário infiel, ainda que o depósito tenha sido determi-
nado judicialmente, o que tem implicações nos processos executivos fiscais. No
Recurso Extraordinário n. 349.703/RS, relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes;
no RE n. 466.343/SP, relator Min. Cezar Peluso; no Habeas Corpus n. 87.585/TO,
relator Min. Marco Aurélio e no Habeas Corpus n. 92.566/SP, relator Min. Marco
Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, aplicou a Convenção Ameri-
cana sobre Direitos Humanos, art. 7º, parágrafo 7º (além do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, art. 11). Em decorrência dessas decisões, o Tribu-
nal declarou expressamente revogada a Súmula n. 619/STF, que autorizava a decre-
tação da prisão civil do depositário judicial no próprio processo em que se consti-
tuiu o encargo, independentemente do prévio ajuizamento da ação de depósito, as-
sim como tem concedido diversos habeas corpus, como a Medida Cautelar em
Habeas Corpus n. 98.893-8/SP, relator Min. Celso de Mello (decisão de 09/06/2009),
que possui a seguinte ementa:
“‘Habeas Corpus’. Prisão Civil. Depositário Judicial. A Questão da Infidelidade De-
positária. Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A Jurisprudência Constitucio-
nal do Supremo Tribunal Federal. Ilegitimidade Jurídica da Decretação da Prisão Ci-
vil do Depositário Infiel. Medida Cautelar Deferida.
- Não mais subsiste, no modelo normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade
depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito volun-
tário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial.
Incabível, desse modo, no sistema constitucional vigente no Brasil, a decretação de pri-
são civil do depositário infiel. Doutrina. Precedentes.”
É claro que nas demandas envolvendo a prisão do depositário infiel o ponto
nuclear é a prisão, um instrumento que somente indiretamente interessa ao Direito
Tributário. Mas acreditamos que sirva de indício para a dimensão que as decisões
da Corte Interamericana de Direitos Humanos poderão ter no Direito interno brasi-
leiro, também em matéria tributária.
Voltando, agora, ao assunto prático levantado neste texto, apresentemos o últi-
mo ponto que pode estar em discussão: a demora desproporcional da Administra-
ção Tributária para se manifestar sobre as alegações dos contribuintes. É essencial
para a compreensão do problema posto o reconhecimento de que o contribuinte tem
direito de petição (e de resposta) em tempo razoável, inclusive na esfera de atuação
do Poder Executivo, pois que o aspecto fático colocado não envolve o acesso ao
Poder Judiciário. Envolve a atuação do Poder Executivo Federal brasileiro, que não
tem respondido ao chamado judicial “dentro de um prazo razoável”, quando a de-
manda interessa ao contribuinte. Age, contudo, de forma oposta quando o seu inte-
resse é prevalente.
Ao que nos parece, estamos diante de uma violação ao devido processo legal,
pelos motivos a seguir apresentados.
27
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, pp. 786 e 787.
28
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Série Estudos n. 13), 2001, p. 804.
Como visto, na dimensão principiológica há farto aparato protetivo contra a
demora nos feitos judiciais e administrativos de natureza contenciosa, em tema que
sempre interessou à dogmática tributária brasileira, como prova Antônio Roberto
Sampaio Dória29 e Lucia Valle Figueiredo.30
Voltemos, agora, ao quadro fático proposto, procurando verificar seus efeitos
diante dos dispositivos legais constitucionais e internacionais aplicáveis ao Brasil.
29
Direito Constitucional Tributário e Due Process of Law. 2ª ed. revisada. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 215.
30
Estudos de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 87-100.
tratamento digno e eficiente às demandas daqueles que suportam o peso dos tribu-
tos. Sobre eles não deve pesar, também, excessos burocráticos sem importância e
inúteis para o Estado, assim como a eficiência em atendê-los tem que ser exemplar,
como exemplar é a arrecadação.
Acreditamos que a Administração Tributária tenha condições, por conta própria,
de melhorar os mecanismos de respeito aos contribuintes, equilibrando os bônus e
os ônus do Estado Fiscal. Caso contrário, as hierarquias superiores do Poder Exe-
cutivo (Ministério da Fazenda e Presidência da República), assim como os demais
Poderes, devem promover os ajustes para que os direitos humanos dos contribuin-
tes sejam plenamente respeitados.
X - Conclusão
As justificativas da Administração Tributária para o Sped, citadas no início deste
artigo, servem muito bem contra a manutenção da inércia da mesma Administração
em informar sobre as guias de pagamento apresentadas em juízo. Imagine-se um
advogado brasileiro, diante de seu cliente estrangeiro, administrador de uma multi-
nacional com atividades em nosso País, dizendo que aquela guia de pagamento que
eles têm em mãos demorará quatro anos para ser reconhecida e que é melhor depo-
sitar o valor (que já foi pago) em juízo para se defender em embargos à execução?
Confronte-se essa situação hipotética com as explicações da Receita Federal para
vermos como a Administração Tributária em juízo atua contra os interesses econô-
micos do País. Todavia, a economia não é nosso campo de atuação. Juridicamente,
confrontemos a atuação da Administração Tributária em juízo, nas situações levan-
tadas aqui, diante do Texto Constitucional (notadamente os princípios do devido
processo legal, da duração razoável dos processos e da eficiência administrativa) e
dos documentos legais internacionais, protetivos dos direitos humanos, para iden-
tificarmos uma significativa falha do Estado brasileiro em matéria de tributação.
Dos Regimes Fiscais de Reconhecimento
das Variações Monetárias Cambiais nas
Bases de Cálculo do IRPJ e da CSLL.
O Momento de Exercício do Direito
Sacha Calmon Navarro Coêlho
Misabel Abreu Machado Derzi
1
Sacha Calmon Navarro Coêlho. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 6ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 384.
Ora, renda não é receita bruta ou singelo rendimento. Aliás, a União, no exercí-
cio de sua competência privativa, expressa ou residual, à luz da Constituição de
1988, não poderá, de modo algum, miscigenar os conceitos de renda e capital (ou
patrimônio). Esse imperativo já se impunha anteriormente, com a Carta Magna de
1967 e Emenda Constitucional nº 1, de 1969, como registram as melhores obras
jurídicas da especialidade2. Na Constituição da República falece competência à
União para criar imposto, por meio de lei ordinária, sobre o faturamento, a receita
bruta ou o rendimento. E, em todas as teorias econômicas ou jurídicas, consideran-
do a dogmática brasileira e a jurisprudência consolidada, renda será sempre o ex-
cedente, a riqueza nova, o acréscimo de patrimônio apurado em certo período de
tempo3, como já observamos no Curso de Direito Tributário Brasileiro, na parte das
Atualizações.
Que tempo? Houve época em que os resultados de uma atividade empresarial
somente eram apurados ao final de uma série de operações idênticas, necessariamen-
te se aguardando o seu término. Tornando-se cada vez mais intensas e complexas
tais operações com o desenvolvimento do comércio, a partir do século XVII, come-
çam os usos a introduzir a periodização. Sobre o assunto já pontuamos:
“Sendo a continuidade da atividade um princípio comercial e contábil básico, a perio-
dização é uma ficção, cujos efeitos devem ser atenuados, mas é inafastável.
Explica Freitas Pereira que a regra anual foi universalmente adotada em razão dos se-
guintes fatores:
- o período não pode ser tão curto que seus resultados não sejam significativos, nem
tão longo que impeça sua renovação;
- a duração do período deve permitir a comparação entre exercícios sucessivos;
- o período deve integrar um ciclo completo de estações de modo a neutralizar influên-
cias sazonais. E conclui:
‘A adoção de uma base anual para a elaboração das contas preenche estes requisitos e
reflete o juízo de uma longa experiência segundo a qual o ano nem é demasiado longo
nem demasiado curto e, além disso, projeta o ritmo normal em que se desenvolve a vida
econômica e social, toda ela marcada pelo ciclo das estações’. (Cf. Freitas Pereira, A
Periodização do Lucro Tributável, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1988).”4
Muitas conseqüências advêm da dimensão temporal da renda, artificialmente
posta pelo legislador, ainda que ele se conserve dentro desses critérios de razoabili-
dade. São dela resultantes, como lembra ainda Freitas Pereira: a regra da anualida-
de do imposto; o princípio da anterioridade para a vigência da lei tributária que
2
Ver J. L. Bulhões Pedreira. Imposto de Renda, Rio de Janeiro, Justea, 1971; Gilberto de Ulhôa Canto. Temas de Di-
reito Tributário, vols. I, II e III, Rio de Janeiro, Alba, 1971; Rubens Gomes de Sousa. “A Evolução do Conceito de
Rendimento Tributável”, Revista de Direito Público vol. 4, São Paulo, p. 339; Henry Tilbery. A Tributação dos
Ganhos de Capital, São Paulo, Resenha Tributária e IBDT, 1977 et alii.
3
Ver, além dos autores citados na nota de rodapé nº 2, os seguintes: Modesto Carvalhosa. “Imposto de Renda. Con-
ceituação no Sistema Tributário da Carta Constitucional”, Revista de Direito Público vol. I, São Paulo; García Bel-
sunce. El Concepto de Redito en la Doctrina y en el Derecho Tributário, Buenos Aires, Depalma, 1967; Musgrave.
“In Defense of an Income Concept”, Tax Law vol. I. P. White. Darthmouth. Pub. Livr. England, 1995; George Shwanz.
Archiv I, 1896; Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro, atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi, 11ª
edição, Rio de Janeiro, Forense, 2000; Klaus Tipke. Steuerrecht. Ein Systematicher Grundriss. 9. Koln, 1983.
4
Cf. Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro, atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi, 11a edição, Rio
de Janeiro, Forense, 2000, p. 325.
majora o imposto; a independência dos exercícios; a importância do período-base,
como marco na irretroatividade da lei; as dificuldades do regime de imputação das
receitas e das despesas, etc.
Como se constata, a periodização é um corte, feito no tempo, sobre os frutos da
atividade produtiva, em princípio contínua, corte que tem como efeito imediato a
delimitação temporal do pressuposto tributário, que se renova, a cada decurso de
novo período. Sendo a regra da continuidade da exploração um princípio contábil e
de Direito Comercial universal, dela resultam ainda outras regras tecnicamente ne-
cessárias e reconhecidas pelos ordenamentos jurídicos em geral, tais como a uni-
formidade ou permanência de métodos utilizados; a especialização dos exercícios;
a identidade entre o balanço de abertura de um exercício e o balanço de encerramen-
to do exercício anterior; a cautela ou não-paridade de tratamento entre lucro e pre-
juízo5.
Enfim, a regra da anualidade do imposto, sendo artificialmente posta, acarreta
outras, que atenuam eventuais efeitos nocivos da periodização. Assim é que surgem
problemas, tanto do lado da imputação dos rendimentos a determinados exercícios,
como do lado da imputação dos gastos e das perdas. Do ponto de vista dos custos,
cria-se a figura da provisão, que serve para antecipar uma perda apenas provável,
mas futura, que ainda não se realizou ou a figura da amortização ou depreciação,
que serve para adiar ou repartir um custo por vários exercícios, entre outras técni-
cas. Ademais, o legislador brasileiro, como pode ocorrer em outros países, também
atenua os efeitos que a periodização anual acarreta para a arrecadação. Em lugar de
aguardar o decurso do período-base, as necessidades do Tesouro impuseram a cria-
ção de antecipações obrigatórias, “estimadas” e provisórias, do imposto que somente
será apurado ao fim do período.
Mais ainda, deixe-se consignado que a periodização anual, embora seja um ar-
tifício jurídico, razoável, para a apuração da renda, está implicitamente adotado pela
Constituição da República. Como corte, o período anual se repete como aspecto
temporal do pressuposto do tributo, fato-signo de riqueza, ano a ano. Por isso, o
princípio da anterioridade, constante do art. 150, proíbe “cobrar tributos no mesmo
exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”.
Quando os tributos têm por pressuposto não um ato ou negócio jurídico isolados,
mas a renda ou o patrimônio que, por definição, são resultado de situações contí-
nuas, a arrecadação, necessariamente, renova-se ano a ano, para compor o orçamento
estatal, por imposição da Constituição. O corte no tempo, artificialmente imposto,
é dado antes pela Constituição Federal e passa a integrar os direitos e garantias do
contribuinte. Se for concedido ao legislador o arbítrio de estabelecer periodizações
de duração menor, contra os princípios constitucionais e a prática brasileira, ele re-
novará, com a frequência que quiser, os fatos geradores do imposto de renda, assim
5
V. autores alemães como Plückebaum-Wendt-Ehmck-Niemeier. Einkommensteuer, 16A. Achim: Fleischer, 1991;
Blümich/Falk. Einkommensteuergesetz Kommentar, München, Verlag Vahlen, 1987; K. Tipke. Steuerrecht, Ein Sys-
tematicher Grundriss. Koln, 1983, pp. 224-226; ver ainda sobre as regras contábeis adotadas pelos legisladores eu-
ropeus, Montesinos Juve, Las Normas de Contabilidad en la Comunidad Economica Europea, Madrid, Instituto de
Planificación Contable, 1980, pp. 356 e ss.; Sidney Davidson, Modern Accounting Theory, New Jersey, Prentice Hall;
Eldon S. Hendriksen e Michael F. Van Breda, Teoria da Contabilidade, tradução da 5ª edição por Antonio Zoratto
Sanvincente. São Paulo, Atlas, 2007.
como daqueles incidentes sobre o patrimônio. As conseqüências são graves do ponto
de vista da igualdade, capacidade contributiva, unicidade do tributo e proibição do
confisco.
Assim, apenas o período anual bitola razoavelmente a atividade produtiva da
pessoa (física ou jurídica), pois a capacidade econômica de contribuir inicia-se após
a dedução dos gastos necessários à aquisição, produção e manutenção da renda e do
patrimônio. Haverá certos dias ou meses do ano, especialmente em atividades sa-
zonais, rurais e silvícolas, em que os rendimentos são elevados, as entradas ou flu-
xos são altos, mas não significam renda nem lucro. Devem apenas estar à disposi-
ção do contribuinte para gastos e despesas previsíveis ou imprevisíveis, que logo
anularão o superávit. O contribuinte, especialmente a pessoa empresarial, não pode
ser chamada a pagar imposto em período curtíssimo, de 30 dias, porque o fato com-
promete, muitas vezes, o patrimônio da pessoa ou seu capital, impondo-lhe sacrifí-
cios superiores aos de sua capacidade econômica de contribuir, em afronta aos arti-
gos 145, parágrafo 1º, e 150, IV, da Constituição.
Portanto, ao manter o regime anual de apuração da renda, a empresa não está,
de forma alguma, no exercício de um privilégio, ou de uma exceção. Ao contrário
ela está adotando a regra-padrão básica, constitucional e logicamente incorporada
à legislação nacional. Outra periodização menor, que lhe fosse imposta pelo legis-
lador, seria inconstitucional. Em contrapartida, a lei brasileira determina pagamen-
tos mensais antecipatórios do imposto, sujeitos a ajuste e acerto final, uma vez ocor-
rido o fato gerador com o encerramento do balanço.
É verdade que a lei ordinária também admite a periodização mais curta, a tri-
mestral, que somente não é inconstitucional porque não é obrigatória, é opção aberta
ao contribuinte. Feita a opção, ele não terá o dever de antecipar o imposto “estima-
do” mês a mês ao Fisco (essa a vantagem), mas em contrapartida, verá reduzido o
ano-base de apuração para três meses.
Assim é que as normas que impõem o cumprimento das estimativas, em verda-
de, atuam tão-somente sobre o mandamento da norma impositiva tributária, pois a
lei reconhece que o fato gerador do imposto só ocorre em 31 de dezembro. Ou seja,
impõe-se ao contribuinte o dever de pagar o tributo antes mesmo de ocorrido o fato
gerador, sem qualquer influência sobre a hipótese de incidência (situada no antece-
dente da norma de tributação), mantendo-se o aspecto temporal da hipótese de in-
cidência, no regime de Lucro Real Anual, em 31 de dezembro do exercício. Toda-
via, o momento dos pagamentos (circunstância temporal, situada no conseqüente da
norma impositiva) é antecipado para o mês seguinte ao período de apuração men-
sal de cada estimativa e o quantum devido a título de tais estimativas obedece aos
critérios legais de apuração a seguir expostos.
A Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, alterou os prazos e formas de pa-
gamento do imposto de renda das pessoas jurídicas. A alteração mais significativa
ficou por conta da base de cálculo do imposto que passou a ser apurada mensal-
mente, de forma antecipada sujeita a ajuste ao final do exercício, quando se apura o
imposto efetivamente devido. Na prática, a União recebe parcelas mensais do im-
posto, antes mesmo da ocorrência do fato gerador, o que é muito cômodo para o
Tesouro Público. Mas, como diziam os romanos, nossos prógonos em matéria jurí-
dica, “ubi comodo, ibi incomodo”, ou em vernáculo: toda comodidade implica al-
gum incômodo!
Dito isso, prossigamos na exposição dos critérios legais regentes das antecipa-
ções mensais do imposto de renda anual.
Com efeito, as empresas brasileiras tributadas segundo a sistemática do Lucro
Real entraram efetivamente no sistema de pagamentos em bases correntes. Assim,
já no ano-calendário de 1992, o pagamento do imposto de renda das pessoas jurí-
dicas passou a ser devido mensalmente, à medida que os lucros fossem auferidos
e, portanto, com a obrigatoriedade dessas empresas apurarem a base de cálculo do
imposto e o imposto devido a cada mês (art. 38, parágrafo 1º):
“Art. 38. A partir do mês de janeiro de 1992, o imposto de renda das pessoas jurídicas
será devido mensalmente, à medida em que os lucros forem auferidos.
§ 1º Para efeito do disposto neste artigo, as pessoas jurídicas deverão apurar, mensal-
mente, a base de cálculo do imposto e o imposto devido.”
A Lei nº 8.981/95 veio consolidar a exigência mensal do IRPJ, nos termos do
seu art. 27, a saber:
“Art. 27. Para efeito de apuração do Imposto de Renda, relativo aos fatos geradores
ocorridos em cada mês, a pessoa jurídica determinará a base de cálculo mensalmente,
de acordo com as regras previstas nesta seção, sem prejuízo do ajuste previsto no art. 37.”
Segundo o art. 35 da Lei nº 8.981/95, com as alterações introduzidas pela Lei
nº 9.065/95, a pessoa jurídica tributada pelo Lucro Real Anual, pode suspender ou
reduzir os pagamentos mensais estimados do imposto de renda, desde que o mon-
tante acumulado no ano supere aquele que seria devido, inclusive adicional, com
base no Lucro Real até então apurado. É conferir:
“Art. 35. A pessoa jurídica poderá suspender ou reduzir o pagamento do imposto de-
vido em cada mês, desde que demonstre, através de balanços ou balancetes mensais,
que o valor acumulado já pago excede o valor do imposto, inclusive adicional, calcu-
lado com base no lucro real do período em curso.
§ 1º Os balanços ou balancetes de que trata este artigo:
a) deverão ser levantados com observância das leis comerciais e fiscais e transcrito no
livro Diário;
b) somente produzirão efeitos para determinação da parcela do imposto de renda e
da contribuição social sobre o lucro devidos no decorrer do ano-calendário.” (Grifos
nossos)
Assim é que os contribuintes sujeitos ao Lucro Real Anual estão obrigados ao
pagamento mensal do imposto e da contribuição social sobre o lucro de duas for-
mas: ou calculando-o com base na receita bruta mensal (art. 2º da Lei nº 9.430/96 -
forma presumida de pagamento) ou nos balanços de suspensão/redução (art. 35 da
Lei nº 8.981/95, com base no acréscimo patrimonial verificado até o mês em que
se pretende reduzir/suspender o pagamento mensal dos tributos), podendo alternar
as formas de apuração a cada mês. Evidente, portanto, que o dever de pagamento
mensal do imposto de renda com base em estimativa não infirma o caráter anual do
tributo, o que de resto se confirma pela necessidade de ajuste ao final de cada ano-
base, como previsto pelo art. 37 da Lei nº 8.981/95, in verbis:
“Art. 37. Sem prejuízo dos pagamentos mensais do imposto, as pessoas jurídicas obri-
gadas ao regime de tributação com base no lucro real (art. 36) e as pessoas jurídicas
que não optarem pelo regime de tributação com base no lucro presumido (art. 44) de-
verão, para efeito de determinação do saldo do imposto a pagar ou a ser compensa-
do, apurar o lucro real em 31 de dezembro de cada ano-calendário ou na data da ex-
tinção.
(...)
§ 5º O disposto no caput somente alcança as pessoas jurídicas que:
a) efetuaram o pagamento do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro,
devidos no curso do ano-calendário, com base nas regras previstas nos arts. 27 a 34;
b) demonstrarem, através de balanços ou balancetes mensais (art. 35):
b. 1) que o valor pago a menor decorreu da apuração do lucro real e da base de cálculo
da contribuição social sobre o lucro, na forma da legislação comercial e fiscal; ou
b. 2) a existência de prejuízos fiscais, a partir do mês de janeiro do referido ano-ca-
lendário.” (Grifamos)
O lucro apurado no ajuste final, feito em 31 de dezembro de cada ano, é a ver-
dadeira base de cálculo do imposto de renda, tendo a estimativa caráter precário e
provisório. É o que mais uma vez se vê do parágrafo 3º do art. 2º da Lei nº 9.430/96:
“Art. 2º A pessoa jurídica sujeita a tributação com base no lucro real poderá optar pelo
pagamento do imposto, em cada mês, determinado sobre base de cálculo estimada,
mediante a aplicação, sobre a receita bruta auferida mensalmente, dos percentuais de
que trata o art. 15 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, observado o disposto
nos §§ 1º e 2º do art. 29 e nos arts. 30 a 32, 34 e 35 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro
de 1995, com as alterações da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995.
(omissis)
§ 3º A pessoa jurídica que optar pelo pagamento do imposto na forma deste artigo
deverá apurar o lucro real em 31 de dezembro de cada ano, exceto nas hipóteses de
que tratam os §§ 1º e 2º do artigo anterior.
§ 4º Para efeito da determinação do saldo de imposto a pagar ou a ser compensado, a
pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido o valor:
(...);
IV. do imposto de renda pago na forma deste artigo.” (Grifamos)
A diferença entre os valores recolhidos das estimativas e demais antecipações
ao longo do ano e o IRPJ apurado pelo Lucro Real Anual no fim do ano-base, devi-
do com base no efetivo acréscimo patrimonial verificado no ano será: (a) recolhida
em quota única, se negativa (débito residual a pagar); ou (b) se positiva (crédito do
contribuinte, denominado saldo negativo a pagar de IRPJ), compensada com o im-
posto a ser pago a partir do ano subseqüente, se favorável ao contribuinte, assegu-
rada a este a alternativa de requerer, após a entrega da declaração de rendimentos, a
restituição do montante pago a maior (parágrafo 1º do art. 6º da Lei nº 9.430/96).
Quanto à compensação do crédito de saldo negativo de IRPJ e CSLL, o art. 29 da
Medida Provisória nº 449/2008 a vedou, em se tratando de débitos de estimativas
daqueles mesmos tributos, mantendo-se a possibilidade de compensação com os de-
mais tributos administrados pela RFB. Essa proibição, embora inconstitucional,
impossibilitou a compensação dos créditos das empresas brasileiras - real excres-
cência autoritária - com o IRPJ e CSLL, levando-a a utilizar os mesmos créditos para
pagamento da CIDE, alternativa que lhe é legalmente facultada6, nem sempre sufi-
ciente para observar o excesso de tributação...
6
A inconstitucionalidade do dispositivo é patente e a manutenção da vedação está a depender da manifestação do
Congresso Nacional no processo de conversão em lei, já tendo sido afastado o dispositivo pela Câmara.
A apuração das estimativas e do saldo negativo se dá, em relação à CSLL, de
forma idêntica ao IRPJ, na conformidade dos arts. 28 e 30 da Lei nº 9.430/96, a sa-
ber:
“Art. 28. Aplicam-se à apuração da base de cálculo e ao pagamento da contribuição
social sobre o lucro líquido as normas da legislação vigente e as correspondentes aos
arts. 1º a 3º, 5º a 14, 17 a 24, 26, 55 e 71, desta Lei.
(...).
Art. 30. A pessoa jurídica que houver optado pelo pagamento do imposto de renda na
forma do art. 2º fica, também, sujeita ao pagamento mensal da contribuição social so-
bre o lucro líquido, determinada mediante a aplicação da alíquota a que estiver sujeita
sobre a base de cálculo apurada na forma dos incisos I e II do artigo anterior.”
Tem-se assim, no regime de tributação pelo Lucro Real Anual, a ocorrência de
fato gerador, apurado com base no efetivo acréscimo patrimonial anual, coexistin-
do com o dever de se efetuarem pagamentos estimados mensais, donde se infere que:
(a) o fato gerador do IRPJ e da CSLL não se confunde com os fatos que ensejam o
pagamento das estimativas, sendo também diversos os períodos de apuração da
matéria tributável; e (b) que as estimativas constituem meramente um regime tri-
butário de pagamento antecipado de IRPJ e CSLL, sem qualquer efeito sobre a hi-
pótese de incidência de tais tributos e o valor devido dos mesmos, que têm por base
o Lucro Real verificado no ano, e não em cada um dos meses que formaram o ano-
base. As antecipações correm a favor do Tesouro, subjugando os contribuintes ao
querer estatal de receber imposto ainda incerto, por receitas supostamente tribu-
táveis no futuro.
De se notar, ademais, que o não recolhimento de uma estimativa ou o seu reco-
lhimento a menor, no curso do ano-calendário, não autoriza o Fisco a exigir a dife-
rença, trazendo como conseqüência jurídica tão-somente a aplicação da multa iso-
lada de 50% prevista no art. 44, II, b, da Lei nº 9.430/96, reconhecendo-se a ino-
corrência do fato gerador do IRPJ e CSLL antes do término do ano-calendário, a
suscitar a exigência das estimativas eventualmente em aberto. É dizer, as estimati-
vas de IRPJ são precárias, não havendo que se falar, uma vez findo o exercício fis-
cal, em relação jurídica tributária que obrigue ao seu pagamento, faltando-lhes as-
sim o elemento essencial de validade e eficácia. Ao cabo do exercício, passam o IRPJ
e a CSLL a ser devidos unicamente em função de sua apuração anual, a qual reflete
o quantum debeatur efetivamente devido.
Assim, encerrado o ano-calendário, não há falar em estimativa. O imposto
apurado é o final. E bem pode haver, não obstante a apuração de estimativas devi-
das, a apuração de prejuízo fiscal no ano, a afastar a incidência do IRPJ e CSLL,
confirmando-se, mais uma vez, que as estimativas não afetam a obrigação tributá-
ria a título de IRPJ e CSLL. Na medida em que a apuração de bases de cálculo po-
sitivas em determinados meses pode ser revertida pela apuração de prejuízos em
outros meses, resultando em prejuízo fiscal ao término do ano-calendário, a adoção
do regime de caixa ou competência ao longo do ano, para fins de cálculo das esti-
mativas, em nada afeta o valor apurado do imposto em bases anuais. A base tribu-
tável definitiva dos tributos só sofrerá alteração pela adoção de um regime ou outro
na apuração dos tributos na DIPJ, em base anual, quando se consolidam todos os
eventos que permitem se inferir a ocorrência ou não de matéria tributável.
Confirmando o caráter precário e transitório das estimativas de CSLL, o que vale
também para o IRPJ, e a prevalência da apuração do tributo com base no resultado
anual, consolidou-se a jurisprudência. É de ver o acórdão do STJ:
“Recurso Especial. Tributário. Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Contribuição Social
sobre o Lucro. Antecipação por Estimativa. Cessação de Recolhimento. Pagamento
Suficiente. Multa. Decreto-Lei n. 2.354/87. Impossibilidade de Aplicação da Penali-
dade Prevista para a Falta ou Insuficiência do Pagamento.
Acertadas as decisões de primeiro grau e da Corte de origem de afastar a aplicação
da multa de 50%, prevista no art. 16 do citado Decreto-Lei n. 1.967/82, sobre a falta
de recolhimento, tendo em vista que, muito embora tenha havido a cessação do reco-
lhimento das antecipações devidas, o pagamento restou ao final do balanço suficien-
te para suprir a totalidade do imposto devido para o período, o que a acarreta a im-
possibilidade de aplicação da penalidade prevista para a falta ou insuficiência do pa-
gamento, o que, in casu, não ocorreu.
Recurso especial improvido.” (STJ, REsp nº 371.178/RS, Rel. Min. Franciulli Netto,
Segunda Turma, DJ 23.05.2005, p. 189)
Corroborando o posicionamento esposado, reitera a jurisprudência administra-
tiva. Confiram-se, interplures, os acórdãos a seguir:
“IRPJ. Recolhimento por estimativa. Multa isolada. Encerrado o período de apuração
do imposto de renda, a exigência de recolhimentos por estimativa deixa de ter sua efi-
cácia, uma vez que prevalece a exigência do imposto efetivamente devido apurado, com
base no lucro real, em declaração de rendimentos apresentada tempestivamente, reve-
lando-se improcedente a cominação de multa sobre eventuais diferenças, se o impos-
to recolhido superou, largamente, o efetivamente devido.” (Ac. 1º C.C. nº 103-20.572)
7
É evidente, sob o ponto de vista conceitual, que o regime de competência (regime econômico, accrual basis) tem
qualidade incomensuravelmente superior ao regime de caixa (cash basis) e, por isso, não é à toa que este último so-
mente seja adotado pela legislação do IRPJ em situações especialíssimas, relacionadas taxativamente na lei, além de
ser empregado para a tributação da renda das pessoas físicas por razões de facilidade de cumprimento da obrigação
tributária e da respectiva fiscalização (Ricardo Mariz de Oliveira. Fundamentos do Imposto de Renda, São Paulo,
Quartier Latin, 2008, p. 316).
8
Comentários à Lei de Sociedades por Ações, 3º volume, São Paulo, Saraiva, p. 643.
ção pelo lucro presumido ou tributação das receitas com variação cambial, p. ex.),
o registro contábil (competência) e o fiscal excepcional (caixa) devem coexistir de
forma harmoniosa9.
É o que dispõe o parágrafo 2º do já citado art. 177 da Lei das Sociedades Anô-
nimas:
“Art. 177. (...)
§ 2º A companhia observará exclusivamente em livros ou registros auxiliares, sem
qualquer modificação da escrituração mercantil e das demonstrações reguladas nesta
Lei, as disposições da lei tributária, ou de legislação especial sobre a atividade que
constitui seu objeto, que prescrevam, conduzam ou incentivem a utilização de méto-
dos ou critérios contábeis diferentes ou determinem registros, lançamentos ou ajustes
ou a elaboração de outras demonstrações financeiras.” (Grifos nossos)
Tais exceções da lei tributária ao regime de competência (caixa), geram reper-
cussões apenas sobre o aspecto temporal, pois exigem que o ganho (ou perda) te-
nha sido efetivamente recebido em dinheiro para que seja considerado base de in-
cidência (ou dedução) do imposto sobre a renda.
Em algumas hipóteses, como no caso das variações cambiais, o regime fiscal
mais adequado é o de caixa, pois antes da liquidação o ganho (ou perda) é mera-
mente potencial, verdadeira ficção jurídica. O resultado efetivo somente poderá ser
conhecido no momento do encerramento do contrato, e de sua efetiva execução.
Em se verificando a necessidade de adoção do regime de caixa para fins de aten-
dimento ao disposto na legislação tributária, a sua evidência deverá ser realizada em
registros auxiliares, sem qualquer modificação da escrituração contábil.
Novamente ensina Modesto Carvalhosa10:
“A lei institui o controle em registros auxiliares, que completarão a escrituração dos
registros permanentes. Estes serão escriturados conforme determinações legais e sua
escrituração será denominada mercantil. Nos registros auxiliares, as informações ex-
traídas da escrituração mercantil serão adaptadas às disposições da lei tributária ou de
legislação especial sobre determinadas atividades (...).”
Isso deixa ainda mais nítido que as demonstrações e registros contábeis devem
atender apenas ao regime de competência, mesmo que a legislação tributária pres-
creva tratamento diverso. É clara a separação entre o regime contábil e eventual
regime diverso do ponto de vista fiscal. Estabelecida tal diferença, no que tange ao
regime de competência para fins contábeis, deve a empresa apresentar critérios
uniformes e consistentes ao longo de todo um exercício. É o que se chama de prin-
cípio ou postulado contábil da consistência, amplamente difundido pela doutrina
contábil.
“(...) a consistência está relacionada com a utilização dos mesmos procedimentos con-
tábeis ao longo do tempo para permitir a formação de séries de tempo adequadas para
o trabalho de previsão e análise. (...) A consistência é um meio para a obtenção da re-
levância da informação contábil, e esse fato não pode ser esquecido.”11
9
Equipe de professores da FEA/USP. Contabilidade Introdutória, 10a edição, São Paulo, Atlas, p. 73.
10
Op. cit., p. 649.
11
Alexsandro Broedel Lopes e Eliseu Martins. Teoria da Contabilidade: uma Nova Abordagem, São Paulo, Atlas, 2007,
p. 117.
“Assim, a convenção da consistência diz-nos que, uma vez adotado determinado pro-
cesso, entre os vários possíveis que podem atender a um mesmo princípio geral, ele
não deverá ser mudado com demasiada freqüência, pois assim estaria sendo prejudi-
cada a comparabilidade dos relatórios contábeis.”12
A seriedade com que a questão é tratada é tamanha, que a LSA possui referên-
cia explícita ao dever de informação quando houver modificação de determinado
procedimento.
“Art. 177. (...)
§ 1º As demonstrações financeiras do exercício em que houver modificação de méto-
dos ou critérios contábeis, de efeitos relevantes, deverão indicá-la em nota e ressaltar
esses efeitos.”
Contudo, deve-se atentar que o dever de informação diz respeito aos critérios
contábeis apenas. E não poderia ser diferente, uma vez que os critérios de apuração
de tributos, caso divergentes da escrituração contábil, devem estar registrados em
controles auxiliares e não em registros permanentes. Novamente, tais considerações
são ratificadas pela melhor doutrina contábil, nas palavras de Alexsandro Broedel
e Eliseu Martins:
“Se o regime de competência fornece números mais próximos dos fluxos futuros de
caixas futuros do que o próprio fluxo de caixa passado, podemos concluir que a rele-
vância da informação contábil reside no regime de competência. Mais especificamen-
te, podemos dizer que o conteúdo informativo da contabilidade está no regime de com-
petência. (...) Consideramos como conteúdo informativo a capacidade da contabilidade
de fornecer informações que possuam relevância econômica ao usuário. A relevância
econômica se refere à capacidade da informação de alterar as crenças e percepções dos
observadores.”13
No caso da empresa hipotética que nos move, tal dever sequer se aplica ao caso
concreto, eis que a operação se restringe a critérios de ordem tributária e não con-
tábil. Não houve qualquer modificação no conteúdo informativo das demonstrações
que pudesse alterar a interpretação do mercado e de seus observadores (CVM, in-
vestidores, etc.). A questão surge em função da contabilização das receitas e despe-
sas pelo regime de competência, e a possibilidade de tributá-las pelo regime de cai-
xa (ou competência).
12
Equipe de Professores da FEA/USP. Contabilidade Introdutória. São Paulo, Atlas, 2008, p. 271.
13
Alexsandro Broedel Lopes e Eliseu Martins. Teoria da Contabilidade: uma Nova Abordagem, São Paulo, Atlas, 2007,
pp. 68-69.
14
Princípios de contabilidade são normas que, por convenção, decide-se adotar como apropriadas para demonstrar o
patrimônio de uma empresa e seus resultados (demonstrações financeiras). Princípios de contabilidade são, portan-
to, normas convencionais que variam no tempo e no espaço (Modesto Carvalhosa. Comentários à Lei de Sociedades
Anônimas, 3º volume, São Paulo, Saraiva, p. 634).
aplicados por expressa determinação da Lei nº 6.404/76. Dentre os mencionados
princípios geralmente aceitos, tem-se o já citado princípio da competência.
A variação cambial abrange as oscilações (valorização e desvalorização) da
moeda nacional em relação ao valor contratado em moeda estrangeira. No caso dos
contratos internacionais, as operações são convertidas em moeda nacional no mo-
mento em que assumidas as respectivas obrigações. Todavia, mensalmente, a de-
monstração financeira deverá reproduzir o efeito patrimonial das variações cambiais.
Contudo, tal reprodução do efeito das variações é um registro eminentemente
contábil. A repercussão, do ponto de vista tributário, ficará a critério da legislação
e por um motivo singelo: a variação registrada contabilmente representa uma infor-
mação relevante, mas não necessariamente se amolda ao conceito de ganho ou per-
da fixado para fins de imposto, conforme estipular a legislação tributária. O ganho
apurado em um mês pode ser totalmente revertido pela perda do mês subseqüente,
tudo isso antes da liquidação do contrato. Essa é inclusive uma tendência quando
se trabalha com variações cambiais. A oscilação da taxa de cambio é verificada quase
que diariamente. A função precípua da contabilidade, novamente, é informar e per-
mitir a tomada de decisões por parte de seus usuários. E é por isso que o controle
das variações por competência, considerando cada contrato de forma individual, é
relevante.
Mas as receitas e despesas ocorridas ao longo do contrato nada mais represen-
tam do que ganhos ou perdas potenciais. O resultado efetivo do contrato será conhe-
cido no ato de sua execução e liquidação e pode diferir bastante dos resultados in-
termediários. Qualquer evento econômico externo relevante pode mudar, substan-
cialmente, os resultados apurados.
Em contratos de mútuo celebrado em dólar, por exemplo, a valorização do real
frente à moeda estrangeira implica diminuição do saldo devedor. A diferença, por
conseqüência, é tratada como receita financeira, geralmente contabilizada como
resultado positivo em conta de variação cambial. Exemplifique-se:
Ao realizar uma venda de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares), com o
dólar avaliado a R$ 2,50 (dois reais e cinqüenta centavos) para ser paga em parcela
única no 12º mês, a empresa registra, no momento em que firmado o contrato, um
direito de receber R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais). Neste
momento, a empresa registra uma receita com vendas de mercadorias no mesmo
valor.
Contudo, o valor desta obrigação será mensalmente ajustado em função da va-
riação do dólar, até o momento em que for realizado o pagamento. Se, no mês se-
guinte, o dólar sofrer variação positiva para R$ 2,60 (dois reais e sessenta centavos),
o total do valor a receber registrado no ativo será aumentado para R$ 2.600.000,00
(que representa a multiplicação do valor em dólares fixado no contrato pela cota-
ção da moeda norte-americana).
Neste segundo momento, a empresa passa a registrar em seu ativo o direito de
receber R$ 2.600.000,00. A diferença apurada entre o valor do ativo no primeiro mês
e seu valor reajustado no segundo (R$ 100.000,00) será registrado como uma receita
de variação cambial. Mas isto não significa que a empresa irá necessariamente re-
ceber os R$ 2.600.000,00, já que o contrato só será liquidado ao final do décimo
segundo mês. Contudo, no regime de competência, aquela receita de variação cam-
bial, embora incerta, será levada à tributação no mês em que se registrar, de forma
antecipatória.
Da mesma maneira, caso no mês seguinte o dólar apresente desvalorização para
o patamar de R$ 2,40, a empresa deverá contabilizar em seu ativo o direito de rece-
ber R$ 2.400.000,00. A diferença apurada entre o valor do ativo no segundo mês e
seu valor reajustado no terceiro (R$ 200.000,00 negativos) será registrada como uma
despesa com variação cambial. No regime de competência, tal despesa, embora tam-
bém incerta, será dedutível no mês em que for registrada, para fins de antecipação.
Disto decorre que a flutuação do câmbio irá gerar uma receita ou uma despesa,
a cada mês, mas o efeito econômico efetivo e real desta variação só será verificado
em definitivo no momento em que quitado o contrato. Só então a empresa terá a
noção exata da diferença causada pela variação do câmbio entre o momento da as-
sunção da obrigação e o momento da sua realização. Esta é a regra de contabiliza-
ção das variações cambiais determinada pela lei aplicável. No regime de caixa,
utilizável apenas para fins tributários, os ganhos e as perdas decorrentes da varia-
ção cambial somente interferirão no imposto a pagar, quando efetivamente embol-
sados os ganhos ou desembolsadas as perdas, ou seja, no momento da liquidação
do contrato.
Do ponto de vista tributário, excepcionalmente, como já registramos, a despei-
to de se tratar de receita financeira (ou despesa), a lei prevê dois diferentes critérios
para reconhecimento e oferecimento à tributação de tais valores, a saber: (i) o regi-
me de caixa, segundo o qual somente integrarão a base de cálculo do imposto os
valores realizados com o efetivo recebimento, ou liquidação do contrato; ou (ii) re-
gime de competência, em que não se dá discrepância entre a escrituração contábil-
comercial e a fiscal, oferecendo-se à tributação, mesmo antes da liquidação do con-
trato, valores potenciais de ganho, com base em variações aferidas a cada mês, ou
no final do ano-base.
Lado outro, adotado o regime de caixa para fins fiscais, a escrituração contábil
não se altera, permanecem os ganhos e perdas escriturados segundo o regime de
competência, mas tais efeitos, provocados ao longo do contrato pelo princípio con-
tábil da competência devem ser anulados, por meio de estratégias externas (regis-
tros auxiliares), via adição ou exclusão da base de cálculo, no ato da apuração do
imposto de renda.
Mas não se deve jamais esquecer que o resultado real, ainda que estejamos fa-
lando do regime de competência, decorrente da valorização ou desvalorização da
moeda somente será verificado no ato da liquidação do contrato, ocasião em que se
verificará um acertamento.
“(...)
3. A matéria já foi objeto de discussão nesta Casa Julgadora, culminando-se com o
entendimento firmado na linha de que a exigibilidade do PIS e da Cofins, decorrente
da variação cambial dos contratos de mútuo, firmados em moeda estrangeira, só ocor-
re por ocasião de sua liqüidação. Precedentes: REsp 640.069/CE, Rel. Min. Franciulli
Netto, DJ 08/11/04; REsp 872.492/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 14/12/06.
4. Recurso especial não-provido.” (REsp nº 898.372/CE, Rel. Min. José Delgado, Pri-
meira Turma, julgado em 03.05.2007, DJ 28.05.2007, p. 299)
15
REsp nº 320.455/RJ, DJU 20.08.2001.
so que, no caso em apreço, a mens legis é evitar a incidência de tributos sobre valo-
res virtuais, que não refletem o impacto sobre o patrimônio e tampouco sobre a
materialidade tributada pelo IRPJ e CSLL, o que, de resto, se dessume da exposi-
ção de motivos da MP nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001:
“9. Os art. 30 e 31 da proposta têm por objetivo permitir que as receitas e despesa fi-
nanceiras decorrentes de variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações
do contribuinte, em função da taxa de câmbio, sejam consideradas na determinação
da base de cálculo do imposto de renda, da contribuição social sobre o lucro líquido,
da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, bem assim da determinação do lucro da
exploração, quando de sua efetiva realização.
10. Justifica-se tal proposição, tendo em vista que o reconhecimento, para fins tributá-
rios, pelo regime de competência, de receita decorrente de variações cambiais nem
sempre representa um resultado definitivo para o beneficiário, vez que a taxa de câm-
bio pode oscilar em função de diversos fatores econômicos. Assim, uma receita pro-
duzida por um determinado ativo ou passivo em um primeiro momento pode ser ab-
sorvida total ou parcialmente, em um momento posterior, pelo mesmo ativo ou passi-
vo, em razão da oscilação da taxa de câmbio. Na verdade, em um sistema de taxas flu-
tuantes como o atualmente vigente, o resultado decorrente de variação cambial só será
efetivo quando do encerramento da operação que lhe deu origem.” (Grifos nossos)
Ora, não haveria nenhum sentido em se antecipar para o início do exercício a
opção pelo regime de caixa, tornando-a irretratável, se a finalidade da MP é pre-
cisamente proteger o patrimônio do particular da intercadência cambial, como ocor-
reu nos anos de 1999 e 2008, em um contexto de crise econômica que levou à varia-
ção abrupta do câmbio. Para que o dispositivo se concretize em sua plenitude, su-
põe-se que seja facultado ao contribuinte ter conhecimento prévio das oscilações
cambiais, para então poder optar por um ou outro critério de cálculo das variações,
como pressuposto à apuração do IRPJ e da CSLL, que se dá, como visto, no caso
da empresa, em 31 de dezembro. Postular que a opção deve ser exercida com o cál-
culo da primeira estimativa, antes que ocorram as oscilações das quais a lei preten-
deu proteger os particulares, contraria o espírito e a finalidade das normas em co-
mento, tornando-as inócuas. É uma interpretação “a la diable” de uma norma sen-
sata. Tão-somente a cupidez do Fisco a explica, se tanto.
De mais a mais, o efeito das variações cambiais sobre o IRPJ e a CSLL só pode
ser conhecido ao término do exercício, quando se tem a base de cálculo dos tribu-
tos, objeto de apuração anual e definitiva. Por pertinência lógica, e em prestígio à
boa-fé que informa a relação Fisco-contribuinte, aquele também o momento em que
o contribuinte está autorizado a fazer a opção, já que a adoção de um ou outro cri-
tério só faz sentido por integrar a metodologia de apuração da base de cálculo dos
tributos. Pensar de forma diversa seria privilegiar a alea, em detrimento da segurança
jurídica, amesquinhando-se o direito dos contribuintes, em prol de uma assimetria
intolerável nas relações entre o Estado e o particular, em prejuízo dos princípios da
boa-fé e da proteção da confiança na lei. O Fisco quer o regime de caixa nas varia-
ções cambiais.
Não se trata de falha, mas de deliberada intenção, como examinaremos mais
adiante, o tratamento dado pelo Fisco a outros regimes opcionais, em que ele se
mostrou atento e vigilante.
Ora, o art. 30 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, em face das motivações
e dos fundamentos expostos acima, inverteu a regra, das variações cambiais esta-
belecendo como padrão, para todos os contribuintes, o regime de caixa (liquidação
do contrato) e, opcionalmente, para o contribuinte, o reconhecimento via regime de
competência.
Confira-se:
“Art. 30. A partir de 1º de janeiro de 2000, as variações monetárias dos direitos de cré-
dito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio, serão considera-
das, para efeito de determinação da base de cálculo do imposto de renda, da contri-
buição social sobre o lucro líquido, da contribuição para o PIS/Pasep e Cofins, bem
assim da determinação do lucro da exploração, quando da liquidação da correspondente
operação.
§ 1º À opção da pessoa jurídica, as variações monetárias poderão ser consideradas na
determinação da base de cálculo de todos os tributos e contribuições referidos no ca-
put deste artigo, segundo o regime de competência.
§ 2º A opção prevista no § 1º aplicar-se-á a todo o ano-calendário.”
A mudança é substancial. A partir de 1º de janeiro de 2000, o reconhecimento
da receita ou despesa será feito pelo regime de (i) caixa, na liquidação do contrato;
(ii) competência, mediante atualização do saldo credor de direitos ou saldo deve-
dor de obrigações. Como exigência, tem-se que a opção adotada pelo Contribuinte
seja para todo o ano-calendário.
O resultado da conta de variação cambial (variação ativa ou passiva) será con-
siderado receita ou despesa financeira, lançada diretamente contra conta de resul-
tado, nos termos da Lei nº 9.718/98:
“Art. 9º As variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contri-
buinte, em função da taxa de câmbio ou de índices ou coeficientes aplicáveis por dis-
posição legal ou contratual serão consideradas, para efeitos da legislação do imposto
de renda, da contribuição social sobre o lucro líquido, da contribuição PIS/Pasep e da
Cofins, como receitas ou despesas financeiras, conforme o caso.”
Como afirmado, com a publicação da MP nº 2.158-35/2001, as variações cam-
biais passam a ser tributadas, à escolha do contribuinte, pelo regime de caixa ou
competência, desde que a opção exercida se refira a todo o exercício. Nesse con-
texto, deve o contribuinte optar livremente, desde que a opção abranja todo um exer-
cício. Foi exatamente como procederam as empresas brasileiras.
Deve-se insistir no fato de que a edição da referida Medida Provisória trouxe
alterações (opção) sobre o regime fiscal, nada dispondo sobre normas contábeis, que
quanto a esse aspecto permanecem inalteradas na Lei nº 6.404/76.
Importante destacar que a Receita Federal veda, inclusive, a realização de Redarf
para mudança no regime de tributação do imposto de renda das pessoas jurídicas.
Confira-se:
“Instrução Normativa RFB 672/06.
Art. 11. Serão indeferidos os pedidos de retificação que versem sobre:
V - alteração de código de receita que corresponda à mudança no regime de tributa-
ção do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, quando contrariar o disposto na legis-
lação específica.” (Grifos nossos)
A IN nº 093/97, ao regulamentar a forma de pagamento do imposto de renda,
traz dispositivo semelhante. Abaixo:
“Art. 17. A adoção do pagamento trimestral do imposto, a que se refere o § 1º do art. 2º,
pelas pessoas jurídicas que apurarem o imposto pelo lucro real, ou a opção pela forma
de pagamento por estimativa, a que se referem os arts. 3º a 10, será irretratável para
todo o ano-calendário.
§ 1º A opção pelo pagamento por estimativa será efetuada com o pagamento do im-
posto correspondente ao mês de janeiro do ano-calendário, ainda que intempestivo, ou
com o levantamento do respectivo balanço ou balancete de suspensão.
§ 2º No caso de início de atividades, a opção de que trata o parágrafo anterior será
manifestada com o pagamento do imposto correspondente ao primeiro mês de ativi-
dade da pessoa jurídica.”
Em síntese, nas ocasiões em que a opção por determinado regime deve obser-
var o critério de irretratabilidade, a Receita Federal tratou de regulamentar expres-
samente a questão, fixando o momento da opção e seu caráter.
Situação diversa ocorre na opção da tributação das receitas com variação cam-
bial. A única ressalva veiculada pela MP é que a opção seja uniforme para todo um
ano-calendário. Nada mais. Essa foi também a interpretação dada pela Receita Fe-
deral, pelo menos aquela espelhada em seus atos normativos e instruções de proce-
dimento.
E não poderia ser diferente. Uma norma voltada à proteção do contribuinte con-
tra a distorção que se poderia gerar na tributação de acréscimos patrimoniais fictí-
cios, em virtude da volatilidade das taxas de câmbio, não poderia fixar o momento
da opção para o início do ano e tratar a pretensa escolha como irretratável, pois tal
comando estaria em desacordo com o próprio fundamento da norma.
A exigência da adoção de um critério uniforme é razoável, muito embora não
seja regra em todas as opções estabelecidas pela legislação tributária pátria. Basta
dizer que o contribuinte pode flutuar livremente entre apurar o imposto de renda com
base no Lucro Real por meio de receita bruta ou balancetes de suspensão e redu-
ção, na modalidade do Lucro Real Anual.
Enfim, a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 não fixa o momento em que deve
se dar validamente a opção pela tributação pelo regime de caixa ou de competên-
cia, nem afirma ser essa escolha irretratável. Em consonância com o momento da
ocorrência do fato gerador do imposto de renda sobre o Lucro Real (último átimo
do dia 31 de dezembro), a opção do contribuinte no que concerne à tributação das
receitas com variação cambial somente ocorrerá com a entrega da DPIJ, no mês de
junho do ano subseqüente ao encerramento do ano-calendário. Esta é a única data
possível e plausível.
E não é outro o entendimento da Receita Federal. Para fins de regulamentação
da mudança de opção pelo regime de tributação das receitas com variação cambial,
foi editada a Instrução Normativa nº 345/2003. Confira-se:
“Art. 2º As variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuin-
te, em função de taxa de câmbio, serão consideradas, para efeito de determinação da
base de cálculo do imposto de renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL), bem assim da determinação do lucro da exploração, quando da liqui-
dação da correspondente operação.
§ 1º À opção da pessoa jurídica, as variações monetárias de que trata o caput poderão
ser consideradas, na determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, segundo o
regime de competência.
§ 2º A opção prevista no § 1º aplicar-se-á a todo o ano-calendário.
§ 3º Na hipótese de alteração do critério de reconhecimento das variações monetá-
rias previsto no caput para o regime de competência, deverão ser computadas na base
de cálculo do IRPJ e da CSLL, em 31 de dezembro do período de encerramento do ano
precedente ao da opção, as variações monetárias incorridas até essa data, inclusive
as de períodos anteriores.
§ 4º Na hipótese de alteração do critério de reconhecimento das variações monetárias
pelo regime de competência para o regime previsto no caput, no período de apuração
em que ocorrer a liquidação da operação, deverão ser computadas na base de cálculo
do IRPJ e da CSLL as variações monetárias relativas ao período de 1º de janeiro do
ano-calendário da opção até a data da liquidação.
§ 5º As variações monetárias relativas a anos-calendário anteriores ainda não com-
putadas em virtude de mudança de critério de reconhecimento em data anterior à da
publicação desta Instrução Normativa deverão ser computadas na base de cálculo do
IRPJ e da CSLL até 31 de dezembro de 2003.” (Grifos nossos)
Os trechos grafados deixam clara a intenção do ato normativo em fixar uma
opção anual. Este é o único requisito. As disposições que regulamentam a mudança
de regime fazem referência à opção do ano precedente. Se existe mecanismo pró-
prio de informação à Receita Federal, não se pode admitir que esta se dê de forma
tácita, com o primeiro recolhimento de estimativa mensal...
Admitir o contrário seria induzir o contribuinte a erro. No que diz respeito ao
imposto de renda, a regra é pela opção anual, formalizada sempre com a entrega da
DIPJ. Quando se fez necessária regulamentação diversa, o legislador e a autorida-
de administrativa o fizeram de forma expressa, restringindo ou apenas regulamen-
tando o direito de opção do contribuinte.
1. Introdução
A Lei nº 11.196/05, conhecida como “Lei do Bem”, já
que a maioria de seus dispositivos cuida de benefícios fis-
cais, traz, em seus artigos 17 a 26, diversas regras aplicáveis
à fruição de incentivos à pesquisa e desenvolvimento de ino-
vação tecnológica.
A finalidade de tais incentivos, conforme se infere da
exposição de motivos da Medida Provisória nº 66/02, con-
vertida na Lei nº 10.637/02, que antecedeu a Lei nº 11.196/05,
é o “estímulo à pesquisa e à inovação tecnológica, indispen-
sáveis à construção do projeto de desenvolvimento brasilei-
ro”.
A maioria dos benefícios fiscais à inovação tecnológica
estabelecidos pela Lei nº 11.196/05 refere-se à apuração do
Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas e da Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido, embora haja também benefí-
cios relacionados ao Imposto sobre Produtos Industrializa-
dos e ao Imposto de Renda Retido na Fonte. Tais incentivos,
contudo, gravitam em torno da definição do que seria ino-
vação tecnológica, conceito trazido no parágrafo 1º do arti-
go 17 da Lei em questão.
Passados alguns anos da entrada em vigor da Lei nº
11.196/05, verifica-se que em poucas ocasiões a Receita
Federal do Brasil se manifestou sobre a matéria, sendo a
identificação da existência de um projeto de pesquisa e de-
senvolvimento de inovação tecnológica tarefa em princípio
a cargo do Ministério da Ciência e Tecnologia - MCT.
A sistemática declaratória da fruição de tais benefícios
fiscais, contudo, faz com que caiba, em primeiro lugar, ao
contribuinte determinar se o mesmo cumpre ou não os requi-
sitos previstos na legislação, de modo que, com vistas a evi-
tar futuras contingências fiscais, deve-se ter o máximo cui-
Sergio André Rocha dado na interpretação da Lei nº 11.196/05.
é Mestre e Doutor em O objetivo do presente artigo consiste na análise do con-
Direito pela UGF,
ceito de inovação tecnológica previsto na Lei nº 11.196/05,
Professor de Direito
Tributário da
examinando-o a partir do Manual de Oslo, o qual contém
Faculdade de Direito uma “proposta de diretrizes para coleta e interpretação de
da FGV-RJ e dados sobre inovação tecnológica”, analisando-se os relató-
Advogado. rios publicados pelo MCT referentes à fruição dos benefícios
de inovação tecnológica nos anos de 2006 e 2007 e as decisões da Receita Federal
sobre o tema. Para uma melhor contextualização de nossos comentários, apresen-
taremos inicialmente uma visão geral dos benefícios da Lei do Bem.
1
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca. Tradução Finep - Financiadora de Estudos e Projetos. Disponível na Internet em: http://www.finep.gov.br/im-
prensa/sala_imprensa/manual_de_oslo.pdf, p. 12.
Segundo o Manual de Oslo,
“inovações Tecnológicas em Produtos e Processos (TPP) compreendem as implanta-
ções de produtos e processos tecnologicamente novos e substanciais melhorias tecno-
lógicas em produtos e processos. Uma inovação TPP é considerada implantada se ti-
ver sido introduzida no mercado (inovação de produto) ou usada no processo de pro-
dução (inovação de processo). Uma inovação TPP envolve uma série de atividades
científicas, tecnológicas, organizacionais, financeiras e comerciais. Uma empresa ino-
vadora em TPP é uma empresa que tenha implantado produtos ou processos tecnolo-
gicamente novos ou com substancial melhoria tecnológica durante o período em aná-
lise.”2
Percebe-se que, assim como o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei nº 11.196/05, o
conceito de inovação tecnológica apresentado pelo Manual de Oslo também se cen-
tra no produto, sendo que, segundo o Manual, “o termo ‘produto’ é usado para co-
brir tanto bens como serviços”3.
Os produtos se dividem em produtos tecnologicamente novos e produtos tecno-
logicamente aprimorados. De acordo com o Manual “um produto tecnologicamen-
te novo é um produto cujas características tecnológicas ou usos pretendidos dife-
rem daqueles dos produtos produzidos anteriormente”, enquanto que um “produto
tecnologicamente aprimorado é um produto existente cujo desempenho tenha sido
significativamente aprimorado ou elevado”4.
Além da inovação tecnológica de produto, o Manual de Oslo cuida também da
inovação tecnológica de processos, a qual
“é a adoção de métodos de produção novos ou significativamente melhorados, incluin-
do métodos de entrega dos produtos. Tais métodos podem envolver mudanças no equi-
pamento ou na organização da produção, ou uma combinação dessas mudanças, e
podem derivar do uso de novo conhecimento. Os métodos podem ter por objetivo pro-
duzir ou entregar produtos tecnologicamente novos ou aprimorados, que não possam
ser produzidos ou entregues com os métodos convencionais de produção, ou preten-
der aumentar a produção ou eficiência na entrega de produtos existentes.”5
O Manual reconhece que em algumas indústrias, como a de serviços, a distin-
ção de inovação de produto e de processo é mais difícil e apresenta uma série de
exemplos de atividades que configuram inovação tecnológica no caso de empresas
prestadoras de serviços6. Tais exemplos encontram-se listados abaixo:
Atacadistas de máquinas, equipamentos e suprimentos
- Criação de websites na Internet onde novos serviços como informações so-
bre produtos e várias funções de apoio podem ser entregues aos clientes gra-
tuitamente.
2
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca, p. 54.
3
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca, p. 55.
4
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca, pp. 55-56.
5
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca, p. 56.
6
OCDE. Manual de Oslo: Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológi-
ca, pp. 57-58.
- Publicação de um novo catálogo para clientes em CD compacto. As imagens
podem ser escaneadas digitalmente e gravadas diretamente no CD, onde po-
dem ser editadas e vinculadas a um sistema administrativo que dê informações
sobre o produto e os preços.
- Novos sistemas de processamento de dados.
Bancos
- Introdução de cartões inteligentes e cartões de múltiplos propósitos em plás-
tico.
- Nova agência bancária sem qualquer pessoal onde os clientes “fazem normal-
mente seus negócios” através de terminais de computadores à sua disposição.
- Banco via telefone, que permite aos clientes realizar muitas de suas transa-
ções bancárias por telefone, no conforto de seus lares.
- Mudança de escaneamento de imagem para OCR’s (Optical Character Rea-
ders - Leitoras Óticas de Caracteres) no manuseio de formulários/documentos.
- Escritório de apoio paperless (sem papéis - todos os documentos são esca-
neados para registro em computadores).
7
Todas as informações sobre os relatórios encontram-se disponíveis no sítio do MCT, www.mct.gov.br.
com aproveitamento dos incentivos previstos na Lei 11.196/05 - Lei de Bem, o que
confirma a necessidade que havia de um marco legal deste nível para o estímulo às
atividades inovativas dentro das empresas”.
Embora o MCT tenha apontado dificuldades com a documentação apresentada,
não foi feita qualquer ressalva quanto ao atendimento ou não dos requisitos para a
fruição dos benefícios fiscais, sendo apresentada em anexo ao relatório a lista das
empresas beneficiárias. O relatório também apresentou informações a respeito da
utilização dos benefícios fiscais por setor, conforme a tabela abaixo:
Empresas Setor
30 Mecânica e Transportes
22 Química
22 Metalurgia
13 Eletroeletrônica
11 Farmacêutica
5 Papel e Celulose
4 Alimentos
4 Software
3 Construção
2 Mineração
2 Bens de Consumo
1 Têxtil
11 Outros
7. Conclusão
Os benefícios fiscais da Lei nº 11.196/05 são um importante incentivo para o
desenvolvimento de projetos de pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnoló-
gica. Contudo, embora a legislação aplicável não seja nova, ainda testemunhamos
um processo de conhecimento dos procedimentos de sua aplicação.
A análise das poucas decisões da Receita Federal sobre o assunto, assim como
o exame dos relatórios do MCT referentes à fruição dos benefícios fiscais dos anos
base 2006 e 2007 mostra a necessidade de que as empresas tenham um grande cui-
dado no fornecimento das informações para o MCT, com vistas a evitar sua inclu-
são na lista de empresas que não cumpriram corretamente os requisitos da Lei do
Bem. Além disso, importantíssimo também a manutenção de documentação-suporte,
com o atendimento do previsto no parágrafo 1º do artigo 14 do Decreto nº 5.798/06,
assim como a contabilização das despesas em contas separadas, como determina o
inciso I do artigo 22 da Lei nº 11.196/05.
Aspectos Institucionais do FAP -
Fator Acidentário de Prevenção
Wladimir Novaes Martinez
Introdução
Sempre se tentou estabelecer uma correlação entre o ní-
vel de acidentalidade de uma empresa e sua contribuição
social destinada ao Seguro de Acidentes do Trabalho, esti-
muladora das prevenções infortunísticas. Tal disposição fez
parte dos programas do Governo Federal há mais de 20 anos.
Rigorosamente, a existência de alíquotas distintas da patro-
nal (20%) é um anacronismo histórico, mas se presta, de al-
guma forma, para incentivar o cumprimento das NR’s da Lei
n. 6.514/77. A Lei n. 7.787/89 já dispunha sobre uma tarifa-
ção individual para as empresas com número de acidente
menor do que a média do setor, mas tal programa governa-
mental não prosperou.
FAP é o Fator Acidentário de Prevenção, que já foi cha-
mado de Fator Acidentário Previdenciário. Compreende a
norma jurídica instituidora, certo reflexo dos procedimentos
preventivos das empresas e informações prestadas pelo Mi-
nistério da Previdência Social conducentes ao estabeleci-
mento de um determinante de ordem fiscal.
Basicamente ele é um número, menor ou maior que um,
a ser multiplicado pela alíquota de contribuição do Seguro
de Acidentes do Trabalho da empresa vigente em 1º de ju-
nho de 2007 (1%, 2% ou 3%).
Por exemplo, se o FAP for 1,50 e a taxa do Seguro de
Acidentes do Trabalho igual a 2,0%, a alíquota resultante
será: 2,0% x 1,50 = 3,0%
As taxas de contribuição previstas no art. 28, I, do Pla-
no de Custeio e Organização da Seguridade Social, a partir
de 2010, variarão todos os anos, a partir do mês de compe-
tência janeiro de cada exercício, com base num período an-
terior de apuração, de dois anos. Em 2011 serão considera-
dos os anos 2008/2009, identificados pelo Ministério da Pre-
vidência Social em 2010.
Embora as normas não especifiquem com clareza, cada
empresa apurará os dados informadores individualizados do
cálculo a partir de cada um dos seus estabelecimentos, as- Wladimir Novaes
sim entendidos aqueles com CNPJ próprio. O Ministério da Martinez
Previdência Social armazenará os dados de cada atividade é Advogado
econômica por código principal e secundário da Classifica- Especialista em
ção Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Direito Previdenciário.
A variação do intervalo contínuo das taxas de contribuições após a conversão
operada pelo FAP será:
Grau de risco SAT original Variação do FAP Mínimo Máximo
Leve 1,0% 0,5% a 2,0% 0,5% 2,0%
Médio 2,0% 1,0% a 4,0% 1,0% 4,0%
Grave 3,0% 1,5% a 6,0% 1,5% 6,0%
Excepcionalmente, como determina o último parágrafo do subitem 2.5 - Perio-
dicidade e Divulgação dos Resultados, constante da Resolução CNPS n. 1.308/09,
no primeiro ano de aplicação (2010), se majorada a alíquota, o FAP será multipli-
cado por 0,75%, quando o índice exceder a 1 (um). Entende-se que se for igual ou
inferior a 1, ele se manterá sem esse bônus.
Exemplo: FAP: 1,80. Alíquota da empresa: 3,0%
1,80 x 3,00% = 5,40%
5,40 x 0,75% = 4,05%
Já na sua 10ª edição, o CID é uma lista do Código de Internacional de Doenças,
incapacitantes ou não, que fornece números indicativos das moléstias humanas.
Esses códigos devem ser apresentados em diferentes documentos que envolvam as
doenças ocupacionais.
O manejo do FAP, tanto quanto o do Nexo Técnico Epidemiológico Previden-
ciário (NTEP) (um elemento indicador), não pode se olvidar dos direitos humanos,
em particular aqueles referentes à privacidade de cada um. Trata-se de um direito
constitucional garantido nas leis trabalhistas e previdenciárias, que precisa ser ob-
servado nos seus limites legais.
Desde a contratação, durante a vigência do contrato de trabalho, em face dos
sucessivos exames internos, por ocasião do pedido de benefícios (e no seio da pró-
pria Administração Pública), o aplicador da norma somente pode agir nos termos
que a lei, em cada caso, determinar. O tema é polêmico e não coincide a política do
Conselho Federal de Medicina com a atribuição das empresas cometidas pela CLT.
Enquanto a lei não disciplinar em melhores condições essas relações, o mais
adequado é a empresa instituir rotinas trabalhistas de admissão e acompanhamento
e elaborar um Regulamento de Pessoal, preparado pelo setor jurídico em colabora-
ção com o setor de recursos humanos, nos estritos termos da norma, e que explicite
o que é possível e o que não é.
Tem-se entendido que a colaboração de um assistente social, consoante a disci-
plina legal dessa função, é uma solução para muitos dos problemas que se apresen-
tam. O assistente social tem maiores poderes que o do exame admissional.
V. Trabalhadores Envolvidos
Não são todos os colaboradores que operam numa empresa que deflagram in-
formações para o FAP. De regra, apenas os empregados regidos pela CLT.
Empregados celetistas são trabalhadores registrados ou não. Contratos por pra-
zo determinado ou não, contrato de experiência ou períodos de aprendizagem pre-
vistos na CLT.
Os servidores filiados ao RGPS, que contribuem e se beneficiam do plano de
benefícios do INSS, estão incluídos, obrigando os entes públicos aos ônus do FAP.
Obreiros deficientes admitidos ex vi do art. 93 do Plano de Benefícios da Previ-
dência Social (PBPS) são empregados eficientes (Os Deficientes no Direito Previ-
denciário, São Paulo: LTr, 2009).
Desde 24 de julho de 1991, os trabalhadores rurícolas estão compreendidos no
RGPS.
Os aposentados que voltaram ao trabalho não fazem jus às prestações acidentá-
rias e as consequências reduzem-se ao âmbito da relação entre empregado e empre-
gador.
Rigorosamente, eles também denunciam a presença de agentes nocivos e deve-
riam fazer parte das estatísticas, mas isso não foi previsto nas normas administrati-
vas.
Estagiários da Lei n. 11.788/08 não estão incluídos porque não são empregados
e sua proteção social se dá com o seguro privado obrigatório ou caso filiados como
contribuintes individuais (O Estágio Profissional em 1420 Perguntas e Respostas,
São Paulo: LTr, 2009).
Autorizados a trabalhar pela Lei n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal) ainda as-
sim, os presidiários não estão incluídos, porque não são empregados das empresas
para as quais eventualmente prestem serviços.
Temporários que prestam serviços nos estabelecimentos da contratante de mão
de obra; não são seus empregados. Embora a culpa pelo sinistro possa ser atribuída
materialmente à contratante, o fato induzirá a taxa de seguro da fornecedora de mão
de obra.
Excetuados os empregados da cooperativa que trabalham na sua administração,
os cooperados são contribuintes individuais e não têm proteção acidentária (embo-
ra possam fazer jus à aposentadoria especial).
Os autônomos e os eventuais são contribuintes individuais e somente fazem jus
aos benefícios comuns.
Trabalhadores avulsos constituem uma categoria atípica de segurados obrigató-
rios, não são empregados dos Orgãos Gestores de Mão de Obra (OGMO), mas têm
a cobertura acidentária.
Os empresários que prestam serviços em nome de pessoas jurídicas contratadas
não são empregados das contratantes.
Até que perca a qualidade de segurado, que vai até o prazo máximo em 37 me-
ses + 15 dias a contar da resilição contratual, o ex-empregado poderá requerer um
beneficio acidentário e tal fato constará das estatísticas.
O número de pessoas que contesta o vínculo empregatício, até que seja dirimi-
da a dúvida na Justiça do Trabalho, não faz parte do FAP.
X. Constitucionalidade do FAP
Em virtude do modelo técnico protetivo do País (seguro social), da história da
Previdência Social e da convenção institucional acolhida no ordenamento jurídico
de todo o mundo - uma seguradora que assume os riscos de pagar a indenização tem
a seu favor o poder de estabelecer regras. O interessado, forçado ou não, adere a elas.
No seguro social, em virtude de se submeter à norma pública, o INSS tinha e
tem o poder-dever de submeter o segurado à perícia médica para verificar a incapa-
cidade do segurado. Isso é indiscutível e jamais um tribunal poderá subtrair esse
poder de império da Administração Pública.
A Lei n. 10.666/03 seria inconstitucional se ela vedasse o direito à impugnação
por parte do contribuinte; como não fez isso nem poderia fazer, o FAP é constitucio-
nal. O que talvez não seja legal é a rotatividade das empresas (ausente na lei, mas
tida como um favor fiscal).
PA R E C E R E S
IPI. Furto e Roubo de Mercadoria.
Exame da Existência de Competência
e de Exercício de Competência.
Intributabilidade das Meras Saídas
Físicas a Título de IPI
Humberto Ávila
1. A Consulta
1.1. A Consulente, porque produz cigarros, é contribuinte do
Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI.
1.2. Em algumas situações, os cigarros produzidos são rouba-
dos após saírem do estabelecimento industrial com destino ao
mercado interno ou externo, surgindo a questão de saber se o men-
cionado imposto, mesmo assim, deve ser pago.
1.3. A Receita Federal, de um lado, entende que o imposto
seria devido, porque o fato gerador, legalmente definido como sen-
do a saída do produto do estabelecimento industrial, ocorreria, e a
circunstância posterior de o produto ter sido roubado não seria
definida em lei como causa de extinção ou de exclusão do crédito
tributário; de outro, sustenta que a hipótese de imunidade também
não se verificaria, tendo em vista que a remessa do produto ao
exterior, no caso de roubo, não se concretizaria.
1.4. Tendo sido autuada pela falta de recolhimento do impos-
to supostamente devido nesses casos, a Consulente ingressou com
uma ação judicial perante o Poder Judiciário, ainda não concluí-
da, destinada a anular os créditos tributários correspondentes.
1.5. Diante desse quadro, honra-me a Consulente com pedido
de parecer, com o objetivo de saber se, na hipótese de roubo dos
produtos industrializados, o mencionado imposto incide e a imu-
nidade é aplicável.
2. O Parecer
2.1. Plano constitucional
2.1.1. Normas jurídicas não são dispositivos, mas sentidos
Humberto Ávila normativos construídos a partir de um ou mais dispositivos.1 Os
é Livre-docente em dispositivos não são normas, mas meros fragmentos de normas.2
Direito Tributário Tanto é assim que há dispositivos sem norma (dispositivos redun-
pela USP, Doutor em dantes ou cujo sentido já é conotado por um ou outro dispositivo),
Direito pela normas sem dispositivo (os princípios da proporcionalidade e da
Universidade de razoabilidade são normas, embora não tenham nenhum dispositi-
Munique, Professor da vo que lhes dê suporte direto), dispositivos que geram mais de uma
Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 1
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 30.
Advogado e 2
GUASTINI, Riccardo. Teoria e Dogmatica delle Fonti. Milano: Giuffrè, 1998,
Parecerista. p. 33; Le Fonti del Diritto e L’interpretazione. Milano: Giuffrè, 1993, p. 25.
norma (o dispositivo segundo o qual só se pode instituir tributo mediante lei gera o princí-
pio da legalidade, o princípio da tipicidade, a proibição de delegação normativa, o dever de
instituição de regulamentos executivos e a vedação de interpretação analógica) e normas que
dependem de mais de um dispositivo (o princípio da segurança jurídica é construído com
base nos dispositivos que vedam retroatividade e impõem o Estado de Direito, a legalidade
e a anterioridade). E tanto é assim, igualmente, que há a técnica da interpretação conforme
a Constituição, devendo o intérprete escolher, dentre os vários sentidos atribuíveis a um dis-
positivo, aquele que seja compatível com o ordenamento constitucional. Em suma, não se
podem identificar normas com dispositivos.
2.1.2. Essas considerações gerais também valem para a regra de competência do IPI: ela
não pode ser buscada num único dispositivo constitucional, devendo ser, em vez disso, cons-
truída a partir do conjunto de dispositivos referentes ao mencionado imposto.
2.1.3. Nesse aspecto, dois dispositivos são preliminarmente importantes: o inciso IV do
artigo 153, que atribui poder à União Federal para instituir o imposto sobre “produtos in-
dustrializados”; e o inciso II do parágrafo 3º do mesmo artigo, que estabelece que o referi-
do imposto “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com
o montante cobrado nas anteriores”.
2.1.4. Se o inciso II do parágrafo 3º do artigo 153 visa afastar o efeito cumulativo da
carga tributária incidente em “cada operação” relativa a produtos industrializados, desde a
sua produção até o seu consumo, claro está que a Constituição não só estabeleceu que a car-
ga tributária devesse ser suportada pelos consumidores finais, como também previu que o
imposto só poderá incidir quando efetivamente ocorrerem as operações a eles destinadas. Isso
porque, se o imposto incidir também nos casos em que o produto não se destinar ao consu-
mo, o industrial será responsável por uma carga tributária superior àquela incidente na ope-
ração que deu causa, fazendo não apenas com que o imposto seja cumulativo, mas que ele
também seja suportado economicamente pelo industrial em vez do consumidor.
2.1.5. Sendo assim, o termo “operação” só pode conotar o negócio jurídico por meio do
qual os produtos industrializados sejam efetivamente destinados ao consumo. Eles só têm,
porém, esse destino, quando a sua propriedade é transferida pelo industrial a quem irá re-
vendê-lo ou consumi-lo. Assim, se o imposto incidir mesmo quando o produto não for ven-
dido, a carga tributária agregada pelo industrial irá recair sobre ele, fazendo não só com que
o imposto deixe de ser sobre o consumo, como, da mesma forma, que a sua carga seja acu-
mulada durante o ciclo econômico. Mas, se o imposto deixar de ser sobre o consumo e a sua
carga for acumulada, não se estará respeitando aquilo mesmo que a Constituição determi-
nou - que o contribuinte seja responsável pela carga tributária incidente na sua própria ope-
ração.
2.1.6. Não por outro motivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem interpretado
o termo “operação” como conotando negócios jurídicos: em decisão relativa ao imposto sobre
circulação de mercadorias, mas totalmente aplicável ao imposto ora analisado, decidiu que
o “emprego da expressão ‘operações’, bem como a designação do imposto, no que consa-
grado o vocábulo ‘mercadoria’, são conducentes à premissa de que deve haver o envolvi-
mento de ato mercantil...” (Agravo de Instrumento nº 131.941, relator Ministro Marco Au-
rélio, DJ 19.04.91); em decisão relativa ao mesmo imposto, definiu que “o termo operação
exsurge na acepção de ato mercantil” (Recurso Extraordinário nº 203.075-9, relator Minis-
tro Maurício Corrêa, DJ 29.10.99).
2.1.7. Por conseguinte, a Constituição Federal só permite a incidência do IPI quando o
produto industrializado for vendido pelo industrial ao varejista ou ao consumidor. Isso, con-
tudo, só ocorre quando o produto for entregue pelo vendedor ao comprador (artigos 1.122
do Código Civil e 191 do Código Comercial, hoje previstos no artigo 481 do Novo Código
Civil). Tanto é assim que, enquanto isso não ocorrer, os riscos correm por conta do vende-
dor (artigo 620 do Código Civil, atualmente no artigo 1.267 do Novo Código Civil).
2.1.8. As considerações anteriores deixam claro que a Constituição, quando utilizou o
termo “cada operação”, fez referência aos negócios jurídicos translativos de propriedade, tal
como regulados pelo Direito Privado. Esses conceitos, em virtude disso, passaram a fazer
parte da própria Constituição, não podendo ser alterados pelo legislador tributário, em vir-
tude do postulado da supremacia da Constituição, meramente explicitado pelo disposto no
artigo 110 do Código Tributário Nacional.3
2.1.9. A regra de competência em comento, conseqüentemente, somente atribui poder à
União Federal para cobrar o mencionado imposto quando houver negócio jurídico transla-
tivo da propriedade de produto industrializado e a carga tributária agregada possa ser trans-
ferida para o consumidor. Entender que o referido imposto possa incidir sobre fatos que não
importem na transferência de propriedade implica violação à regra de competência construída
com base na leitura integral do artigo 153 da Constituição Federal.
2.1.10. Ressalte-se, todavia, que defender a incidência do referido imposto sobre fatos
que não envolvam mudança de propriedade, não apenas implica violação à referida regra de
competência, mas tem por conseqüência, também, a ofensa a dois princípios constitucionais:
o princípio da capacidade contributiva e o princípio da neutralidade tributária.
2.1.11. O princípio da capacidade contributiva tem duas dimensões: a objetiva e a sub-
jetiva.4 A dimensão objetiva é decorrente da aplicação objetiva do princípio da igualdade,
que veda a distinção entre pessoas com base em medidas de comparação inexistentes ou que
não mantenham relação de pertinência com a finalidade da diferenciação. No Direito Tri-
butário, ela funciona como parâmetro para a instituição de qualquer imposto, de maneira que
eles só sejam cobrados sobre situações indicativas de capacidade econômica. Ela veda, por
exemplo, a cobrança de impostos sobre o ato de respirar. A dimensão subjetiva é consectá-
ria da aplicação subjetiva do princípio da igualdade, que impõe a distinção entre pessoas com
base em elementos nelas residentes. No âmbito tributário, ela serve de critério de gradua-
ção dos impostos cuja finalidade seja a distribuição isonômica da carga tributária, de modo
que seu montante seja tanto maior quanto maior for a capacidade econômica do sujeito pas-
sivo. Ela obriga o legislador, por exemplo, a cobrar mais imposto de renda de quem aufere
mais renda.
2.1.12. Sustentar que o imposto sobre produtos industrializados também possa incidir
sobre a mera saída física do estabelecimento industrial, sem que ela envolva a transferência
da sua propriedade, implica admitir que ele possa recair sobre situações que não são indica-
tivas de capacidade econômica alguma, a exemplo do que ocorre no caso do deslocamento
físico de produtos em razão da força das águas, como numa enchente, ou dos ventos, como
num tufão, ou da ação dolosa de terceiros, como no caso de roubo.5 Desse modo, sustentar
que o imposto incida igualmente sobre a simples saída física é aceitar a violação à dimen-
são objetiva do princípio da capacidade contributiva.
2.1.13. O princípio da neutralidade tributária, também corolário do princípio da igual-
dade, proíbe que os entes federados criem desvantagens competitivas injustificadas a con-
tribuintes que exerçam atividades equivalentes.6 Ele veda, por exemplo, que um contribuin-
te seja mais onerado quando estiver na mesma situação relativamente ao fato gerador de um
imposto, ou não deixe de ser menos onerado ou até desonerado, quando não estiver na mes-
ma situação.
3
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 209.
4
ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 88.
5
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. DERZI, Misabel Abreu Machado (atual.). Rio de Janei-
ro: Forense, 1999, p. 385.
6
ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 99.
2.1.14. Argüir que o imposto sobre produtos industrializados possa igualmente incidir
tanto no caso de venda quanto no de roubo, importa consentir que os entes federados pos-
sam incluir, no âmbito da mesma regra, quem age voluntariamente e tem como objetivo trans-
ferir o ônus tributário para a operação seguinte, e quem é atingido involuntariamente por fato
externo ou comportamento alheio e não tem como deslocar a carga tributária para a opera-
ção posterior. Tal entendimento implica tratar igualmente dois contribuintes que estão em
situação desigual relativamente ao fato gerador do imposto. Portanto, defender que o imposto
incida sobre a simples saída física é conformar-se com a ofensa ao princípio da neutralida-
de da tributação.
2.1.15. Como o poder de tributar, atribuído aos entes federados pelas regras de compe-
tência, deve ser exercido de acordo com os princípios constitucionais, não se pode interpre-
tar a regra de competência para instituir o imposto sobre produtos industrializados sem que
ela seja uma concretização dos princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes.
2.1.16. À vista disso, todas as considerações anteriores, relativas ao plano normativo
constitucional, conduzem à tranqüila conclusão de que a União Federal só tem competên-
cia para tributar os negócios jurídicos translativos de propriedade de produtos industrializa-
dos, indicativos de capacidade econômica e capazes de fazer com que o sujeito passivo seja
responsável pela carga tributária gerada na operação que deu causa e possa repassá-la ao
consumidor. Não há dúvida alguma, portanto, de que a União Federal não pode exercer a
sua competência sobre saídas de produtos que não envolvam a transferência voluntária da
propriedade, que não sejam indicativas de capacidade econômica e que não permitam com
que o sujeito passivo possa transferir ônus tributário para o consumidor. Entender de modo
contrário é violar, manifestamente, o disposto nos artigos 5º, 145, 153, IV, e parágrafo 3º da
Constituição Federal.
2.1.17. Não causa surpresa a constatação de que a posição da Receita Federal, a favor
da tributação das meras saídas físicas pelo imposto sobre produtos industrializados, foi con-
cebida há muito tempo, antes mesmo do advento da Constituição de 1988: os Pareceres
Normativos que representam esse entendimento datam de 1971 (CST nº 209) e de 1977 (CST
nº 95).
7
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 140.
2.2.4. O artigo 116 do mesmo Código prevê que o fato gerador considera-se ocorrido,
“tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituí-
da nos termos do direito aplicável”. Desse modo, se o fato gerador envolver um negócio
jurídico, ele somente ocorrerá quando os seus requisitos, de acordo com o Direito Privado,
forem concretizados, não antes.
2.2.5. Ora, considerando que, no plano constitucional, ficou assentado que a União Fe-
deral só tem competência para tributar os negócios jurídicos translativos da propriedade de
produtos industrializados, indicativos de capacidade econômica e capazes de fazer com que
o sujeito passivo seja responsável pela carga tributária gerada na operação que deu causa e
possa repassá-la ao consumidor, e se é preciso, de acordo com o Código Tributário Nacio-
nal, que o fato ocorrido seja suficiente ao nascimento da obrigação tributária, e o fato gera-
dor, quando envolver um negócio jurídico, somente ocorre quando os seus requisitos legais
estiverem presentes, só surgirá o fato gerador do imposto sobre produtos industrializados
quando se perfectibilizar o negócio jurídico bilateral e oneroso.
2.2.6. Como já visto, a transferência da propriedade só ocorre quando o produto for
entregue pelo vendedor ao comprador (artigo 1.122 do Código Civil, hoje no artigo 481 do
Novo Código Civil), não antes. Por conseqüência, de acordo com a parte geral do Código
Tributário Nacional, a lei ordinária federal só poderá considerar como momento da ocorrên-
cia do fato gerador do produto industrializado o momento da translação da propriedade do
bem.
2.2.7. No tocante aos dispositivos especificamente relativos ao próprio imposto sobre
produtos industrializados, o mencionado Código contém dois dispositivos: o inciso II do
artigo 46, que estabelece que o fato gerador do imposto é a “saída dos estabelecimentos”; e
o inciso II do artigo 47, que prevê a sua base de cálculo como sendo “o valor da operação
de que decorrer a saída da mercadoria”.
2.2.8. Bem, se a base de cálculo do imposto é o “valor” da “operação” de que “decor-
rer” a saída da mercadoria, o seu fato gerador não é a saída, mas a conclusão do negócio
jurídico de que resulte a saída, o que é algo distinto. Lembre-se, sempre, que é a base de
cálculo que revela o fato gerador.8 Logo, não apenas a Constituição Federal como também,
o próprio Código Tributário Nacional condiciona a ocorrência do fato gerador do imposto à
conclusão de um negócio jurídico subjacente à operação de industrialização.
2.2.9. Como a norma geral, dentro de cujos contornos deverá ser legalmente exercida a
competência tributária da União Federal para instituir o imposto sobre produtos industriali-
zados, estabelece que somente poderá ser considerado como fato gerador do referido imposto
o momento translativo da propriedade do produto industrializado, a lei federal deve insti-
tuí-lo dentro desses limites, sob pena de flagrante ilegalidade.
2.2.10. Pois bem, todas as ponderações precedentes, referentes ao plano das normas
gerais, igualmente conduzem à mansa conclusão de que a União Federal só pode exercer a
sua competência tributária definindo, na lei, o fato gerador como sendo o momento transla-
tivo da propriedade do produto industrializado. Assim sendo, do mesmo modo que a Cons-
tituição Federal, também o Código Tributário Nacional não deixa a menor margem de dúvi-
da quanto à ausência de poder para a União Federal fixar as meras saídas físicas, que não
envolvam transferência de propriedade destinada ao consumo, como fato gerador do referi-
do imposto. Entender de modo contrário é violar, patentemente, o disposto nos artigos 46,
II, 47, II, 114 e 116 do Código Tributário Nacional.
8
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 338.
2.3. Plano legal
2.3.1. Em caráter geral, a União Federal exerceu a sua competência constitucional para
instituir o imposto sobre produtos industrializados por meio do disposto no inciso II do arti-
go 14 da Lei nº 7.798/89, segundo o qual “constitui valor tributável, quanto aos produtos
nacionais, o valor total da operação de que decorrer a saída do estabelecimento industrial
ou equiparado a industrial”.
2.3.2. A singela leitura do referido dispositivo não deixa qualquer espaço para a incer-
teza no que se refere à base de cálculo do imposto sobre produtos industrializados: ela será
“o valor total da operação de que decorrer a saída do estabelecimento industrial. Insista-se,
uma vez mais: o fato gerador não é a simples saída; ele é a operação da qual irá decorrer
uma posterior saída, sendo a base de cálculo o seu valor. Em termos legais, por conseguin-
te, o fato gerador do mencionado imposto não é a mera saída, mas a operação da qual ela irá
resultar. A lei é clara.
2.3.3. Em caráter específico, importa registrar que, para as operações envolvendo a venda
de cigarros, a União Federal exerceu, primeiramente, a sua competência para instituir o im-
posto em comento por meio do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 1.593/77, segundo o
qual o “valor tributável, na saída do estabelecimento industrial ou equiparado a industrial,
será obtido mediante aplicação de uma percentagem, fixada pelo Poder Executivo, sobre o
preço de venda no varejo”. Posteriormente, tal legislação foi alterada pela Lei nº 7.798/89,
cujos artigos 2º e 3º estabeleceram um mecanismo de tributação sobre o “preço normal da
operação de venda”, de acordo com critérios específicos.
2.3.4. A mera leitura dos artigos em comento não deixa espaço para dúvida de que essa
percentagem será aplicada sobre o “preço de venda no varejo”, ou “preço normal da opera-
ção de venda”. Ora, se o próprio legislador fala em “preço” e “venda”, é indubitável que ele
definiu o fato gerador do imposto como sendo o negócio jurídico por meio do qual seja trans-
ferida a propriedade do produto industrializado e seja fixado um valor de remuneração. In-
disputável, à vista disso, que o legislador não fixou como fato gerador do imposto em exa-
me qualquer outro fato que não tenha sido objeto de negócio jurídico ou de pagamento.
2.3.5. Tanto é assim, que o próprio Regulamento do IPI, de 1998, estabelece, no inciso
V do artigo 174, que “Será anulado, mediante estorno na escrita fiscal, o crédito do imposto
relativo a matérias-primas, produtos intermediários, material de embalagem e quaisquer
outros produtos que hajam sido furtados ou roubados...”, e, no artigo 284, que “Ressalvadas
as quebras apuradas pelos Auditores Fiscais e as faltas comprovadamente resultantes de furto,
roubo, incêndio ou avaria”, a diferença de estoque do tabaco em folha será considerada, nas
quantidades correspondentes, falta, como saída de produto beneficiado pelo estabelecimen-
to sem emissão de nota fiscal, ou excesso, como aquisição do tabaco em folha ao produtor
sem comprovação da origem. Esses dispositivos encontram-se previstos no atual Regulamen-
to do IPI, de 2002, nos artigos 193 e 306, respectivamente.
2.3.6. Ora, se o próprio Regulamento do imposto prevê que o crédito deverá ser estor-
nado quando houver roubo, e que as quebras decorrentes de roubo não serão consideradas
como vendas sem emissão de nota, é indiscutível que não surge o fato gerador quando o
produto for roubado antes da sua entrega ao destinatário. Entender que só o roubo ocorrido
antes da saída da mercadoria permitiria o estorno seria diferenciar os contribuintes em ra-
zão de um curioso critério de diferenciação, o momento do roubo, em vez de distingui-los
em razão da medida de comparação implicada pela regra de tributação, a atividade de in-
dustrialização, em patente violação ao princípio da igualdade.
2.3.7. Todas as reflexões anteriores, referentes ao plano legal, conduzem à incontrover-
sa conclusão de que a União Federal definiu, na lei, o fato gerador como sendo o momento
translativo da propriedade do produto industrializado. Da mesma forma que a Constituição
Federal e o Código Tributário Nacional, também a legislação aplicável não deixa qualquer
espaço para entender que as saídas físicas, sem transferência de propriedade destinada ao
consumo, teriam sido definidas como fato gerador do referido imposto. Compreender de
maneira diversa é infringir, patentemente, o disposto nos artigos 4º do Decreto-Lei nº 1.593/77,
2º, 3º e 14, II, da Lei nº 7.798/89.
2.3.8. Pois bem, se nem a Constituição Federal, nem o Código Tributário Nacional, nem
a legislação autorizam a tributação das meras saídas físicas de produtos industrializados do
estabelecimento, inquestionável que, nos casos de roubo de produtos após a sua saída do
estabelecimento, não há competência para a tributação, não há normas gerais permitindo o
exercício da tributação, nem há lei concretizando essa tributação. As razões são quase sin-
gelas: no caso de roubo, não se aperfeiçoa o negócio jurídico translativo da propriedade de
produto industrializado, a carga tributária agregada não pode ser transferida para o consu-
midor, e não há valor da operação.
2.3.9. Mas mesmo que assim não fosse, ainda assim nada seria devido, pois a Consti-
tuição Federal prevê, no inciso III do parágrafo 3º do artigo 153, que o imposto “não incidi-
rá sobre produtos industrializados destinados ao exterior”. Como há uma norma constitucio-
nal excludente de competência, tem-se é uma regra de imunidade que, como tal, não pode
ser ampliada nem restringida por obra do legislador infraconstitucional.
2.3.10. Ora, se a Constituição tornou imunes as operações que destinam produtos indus-
trializados para o exterior, se houvesse - o que se conjectura, apenas para argumentar - com-
petência para instituir o imposto inclusive sobre as saídas físicas de produtos, objeto de rou-
bo, em decorrência da regra de competência, ela não existiria quando esses produtos fossem
destinados ao exterior, em razão da regra de imunidade.
2.3.11. Registre-se que a Constituição em nenhum momento condiciona a imunidade ao
efetivo destino do produto ao exterior. Independente, porém, de saber se o direito à imuni-
dade só surge com o destino efetivo, é, no mínimo, contraditório entender, de um lado, que,
para verificar a competência tributária, é relevante a mera saída e irrelevante o efetivo desti-
no, mas para constatar a imunidade tributária, é irrelevante a mera saída e relevante o efeti-
vo destino. Essa compreensão, além de contraditória, é parcial, por valorizar um elemento
quando é para prejudicar, e desvalorizar o mesmo elemento quando é para favorecer.
2.3.12. Diante desse quadro, resta claro que, com relação a meras saídas de produtos
roubados, não há competência para tributar, não há normas gerais permitindo a tributação,
nem mesmo há legislação instituindo o imposto sobre produtos industrializados.
2.3.13. Para aceitar a cobrança do imposto sobre produtos industrializados sobre as meras
saídas de produtos roubados é preciso vencer uma verdadeira corrida de obstáculos. Primeiro,
é necessário interpretar, isoladamente, o inciso IV do artigo 153 da Constituição Federal, que
menciona “produtos industrializados”, sem atribuir, porém, qualquer importância nem ao
previsto no inciso II do parágrafo 3º do mesmo artigo, que faz referência à expressão “cada
operação”, e nem ao fixado nos artigos 5º e 145, que estabelecem os princípios da igualda-
de e da capacidade contributiva. Segundo, é indispensável interpretar, apartadamente, o dis-
posto no inciso II do artigo 46 do Código Tributário Nacional, que menciona a “saída dos
estabelecimentos”, sem, contudo, atribuir qualquer consideração ao disposto no inciso II do
artigo 47, que se refere ao “valor da operação”, e o previsto nos artigos 114 e 116, que con-
dicionam o surgimento da obrigação tributária à concretização dos requisitos de validade dos
negócios jurídicos. Terceiro, é ainda essencial interpretar, destacadamente, o disposto no
parágrafo 2º do artigo 2º da Lei nº 4.502/64, para o qual o fato gerador do imposto é a saída
do produto do estabelecimento, sem, todavia, atribuir qualquer relevância às modificações
trazidas pelos artigos 2º e 3º e pelo inciso II do artigo 14 da Lei nº 7.798/89, que se referem
ao “preço normal da operação de venda” e ao “valor total da operação”, ao disposto no arti-
go 4º do Decreto-Lei nº 1.593/77, que menciona o “preço total de venda” do produto, e ao
previsto nos artigos 193 e 303 do Regulamento do IPI/2002, que determinam o estorno das
operações em que haja roubo.
2.3.14. Em suma, para aceitar a cobrança do imposto sobre produtos industrializados
sobre as meras saídas de produtos roubados é preciso fazer uma interpretação deliberada-
mente fragmentada de alguns dispositivos legais, sem atenção para o sistema do qual eles
fazem parte e dentro do qual adquirem sentido normativo. É interpretar o Direito “em tiras”,
em suma.9 Com a permissão para o uso de uma ilustrativa metáfora já incorporada ao uso, a
interpretação que conduz à admissão da cobrança do imposto também nos casos em que o
produto é roubado, não somente olha para as árvores, sem considerar a floresta da qual elas
fazem parte, como ainda olha para as árvores erradas.
2.3.15. Mais, tal interpretação, além de desconsiderar os elementos jurídicos pertinen-
tes, ainda negligencia os pressupostos ontológicos sobre os quais esses mesmos elementos
se assentam. As normas jurídicas veiculam os modais deônticos relativos a condutas “obri-
gatórias, proibidas e permitidas”. Esses ditos “modais do dever ser”, contudo, só podem in-
cidir sobre o universo das condutas humanas possíveis onde reinem os denominados “mo-
dais do ser” referentes às condutas “possíveis”, nunca podendo verter nem sobre as condu-
tas impossíveis, nem sobre os comportamentos necessários.10 Tanto à norma que obrigasse
o indivíduo a tocar a lua com o dedo, quanto à norma que o proibisse de respirar faltariam
os pressupostos ontológicos para a operabilidade das normas jurídicas: a possibilidade de
observância e de inobservância pelos destinatários.
2.3.16. Pois bem, a interpretação que admite a instituição e cobrança do imposto sobre
produtos industrializados nos casos de produtos roubados não apenas flagrantemente ladeia
os numerosos limites constitucionais, gerais e legais antes mencionados, como, igualmente,
rodeia os pressupostos ontológicos para sua aplicação, colocando, par a par, o contribuinte
que concretiza, voluntariamente, um negócio jurídico bilateral de compra e venda, com o
contribuinte que, involuntariamente, tem frustrada, por ato ilícito, a sua vontade de finalizar
o negócio jurídico anteriormente celebrado.
2.3.17. Portanto, mais do que inválida, a referida interpretação é irrazoável, tanto por
deixar de atentar para a singularidade do caso concreto (razoabilidade-eqüidade), quanto por
desatentar para a realidade que as normas visam regular (razoabilidade-congruência).11
3. Conclusões
3.1. As considerações precedentes permitem chegar às seguintes conclusões:
1) O exame do plano constitucional evidencia que a União Federal só tem competên-
cia para tributar os negócios jurídicos translativos de propriedade de produtos indus-
trializados, indicativos de capacidade econômica e capazes de fazer com que o sujeito
passivo seja responsável pela carga tributária gerada na operação que deu causa e pos-
sa repassá-la ao consumidor, inexistindo, por conseqüência, poder para tributar meras
saídas físicas de produtos que não envolvam a transferência voluntária da proprieda-
de, que não sejam indicativas de capacidade econômica e que não permitam com que
o sujeito passivo possa transferir ônus tributário para o consumidor, sob pena de, as-
sim entendendo, haver violação manifesta do disposto nos artigos 5º, 145, 153, IV, e
parágrafo 3º da Constituição Federal.
9
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 44.
10
VILANOVA, Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: RT, 1977, p. 33.
11
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 152 e 155.
2) A investigação do plano das normas gerais patenteia que a União Federal só pode
exercer a sua competência tributária definindo, na lei, o fato gerador como sendo o mo-
mento translativo da propriedade do produto industrializado, não havendo, por conse-
guinte, poder para a fixação das meras saídas físicas, que não envolvam transferência
de propriedade destinada ao consumo, como fato gerador do referido imposto, sob pena
de, assim interpretando, infringir-se o disposto nos artigos 46, II, 47, II, 114 e 116 do
Código Tributário Nacional.
3) A análise do plano legal demonstra que meras saídas físicas, que não envolvem trans-
ferência de propriedade destinada ao consumo, nem possuem valor, não são legalmente
tributadas, consubstanciando o entendimento contrário infração patente do disposto nos
artigos 2º, 3º, 14, II, da Lei nº 7.798/89 e 4º do anterior Decreto-Lei nº 1.593/77.
4) Como no caso de furto ou roubo de produto industrializado não se aperfeiçoa o ne-
gócio jurídico translativo da sua propriedade, não pode a carga tributária agregada ser
transferida para o consumidor, nem há propriamente um preço recebido em razão da
operação, é inválida, por inconstitucional e ilegal, a cobrança do imposto sobre pro-
dutos industrializados.
Este é meu parecer, s. m. j.
Processo Administrativo: Decisão que
anula Outra Anterior, com Base na
Lei Complementar - Irretroatividade
da Lei Ordinária
Ives Gandra da Silva Martins
Consulta
Formula-me, a empresa, por seus eminentes advogados Pio
Cervo e Vinicius Nadler Cervo, a consulta que se segue:
“A Consulente, originariamente uma sociedade civil, hoje denomi-
nada ‘sociedade simples’, com sede em Uruguaiana (RS), foi cons-
tituída em 1992 por sócios exclusivamente despachantes aduanei-
ros.
Amparada no § 4º do art. 31, do Código Tributário do Município
de Uruguaiana, promulgado pela Lei Municipal nº 2.413/93, de 20
de dezembro de 1993, e sendo uma sociedade civil constituída por
profissionais liberais, a empresa recolhia o ISSQN com base em
alíquota fixa, em guias que inclusive eram previamente submetidas
à seção de arrecadação da Prefeitura.
Entretanto, em 1999 a empresa sofreu autuação fiscal, onde lhe foi
lançado referido imposto com base na alíquota de 4% sobre seu
faturamento.
A exigência foi oportunamente impugnada. Posteriormente, a Lei
Municipal nº 3.023, de 13.12.2000, alterou o mencionado § 4º do
referido dispositivo, para acrescentar-lhe a expressão ‘conforme
classificados nos itens 1, 4, 8, 24, 88, 90, 91 e 92 do Anexo 1’, que
vinha a ser a antiga lista de serviços do DL nº 406/1968, onde não
constavam os despachantes aduaneiros.
No processo administrativo do contencioso fiscal municipal, o re-
curso voluntário do contribuinte foi provido pelo órgão de julga-
mento, que, no caso, era o senhor Prefeito Municipal. O fisco mu-
nicipal e o contribuinte foram notificados da decisão e os créditos
tributários foram baixados na dívida ativa. Dois anos depois, ao
argumento de que houve alteração na legislação tributária alteran-
do a alíquota do imposto em relação às atividades exercidas pelo
contribuinte, e, com apelo à predominância do interesse público
sobre o privado, o senhor Prefeito Municipal ‘revisou’ a decisão de
procedência do recurso voluntário e, com base nas Súmulas 346 e
473 do STF, deu efeito retroativo às normas da lei nova, e julgou
improcedente o recurso, aviventando os créditos tributários. Impe-
trado Mandado de Segurança, nas razões de decidir, o relator aco-
lheu o entendimento do Prefeito Municipal, mas, no ‘decisum’, in-
deferiu a ordem porque o direito líquido e certo não estava presen- Ives Gandra da
te a demandar dilação probatória. Apresentada exceção de pré-exe-
Silva Martins
cutividade (objeção à execução), foi ela sumariamente rejeitada,
nestes termos: é Professor Emérito
‘2. Quanto ao mérito da presente exceção de pré-executividade, da Universidade
convém salientar que o pedido de nulidade da decisão do Chefe Mackenzie, em cuja
do Poder Executivo Municipal, consistente na ‘revisão’ da de- Faculdade de Direito
cisão que extinguiu o crédito tributário em comento, já foi ob- foi Professor Titular de
jeto de decisão transitada em julgado nos autos do Mandado de Direito Constitucional.
Segurança proposto pela ora excipiente, cujo trâmite deu-se perante o juízo da 3ª Vara Cível
desta Comarca, cuja ementa do acórdão segue transcrita para o fim de refutar-se a presente
exceção, ‘verbis’:
Apelação Cível. Mandado de Segurança. ISS. Ato do Prefeito Municipal que reconsiderou
Decisão Anterior Lançada em Recurso Administrativo Fiscal. 1. Desde que ainda não decor-
rido o prazo decadencial, nada obsta ao Administrador Público, com base no princípio da
legalidade estrita, reconsiderar seu próprio ato (CF, art. 37, ‘caput’; STF, Súmula 473). 2. Não-
demonstração de existência de direito líquido e certo. Questões que demandam dilação pro-
batória. 3. Apelação desprovida.’ (Apelação Cível nº 70014292106, Primeira Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, julgado em 13.12.2006 - grifei)
Apesar de o Mandado de Segurança configurar via estreita de cognição em que se refutou
unicamente a existência de direito líquido e certo do então impetrante, e não se declarou a
ausência de seu direito, a verdade é que os argumentos, aqui, se repetem, no sentido de que
ao Administrador Público é dado reformar seus próprios atos quando elevados de vícios que
os tornem ilegais, havendo, como única barreira, o prazo decadencial.
No caso em comento, não se cogita do decurso do apontado prazo e, ainda, enfatiza-se a pos-
sibilidade de revisão, de forma que não há nulidade alguma na decisão que, revisando deci-
são proferida em processo administrativo, reconheceu sua nulidade e, portanto, elidiu a nela
declarada extinção do crédito tributário.
Nesse sentido, excertos do acórdão mencionado:
‘É que o administrador público está jungido ao princípio da legalidade estrita, hoje expres-
samente previsto no ‘caput’ do art. 37 da CF. Assim sendo, pode, e até deve, sem que seja
provocado, revisar seus próprios atos, quando entendê-los em desacordo com a lei a única
barreira é o prazo decadencial.
Diga-se de passagem, a autoridade coatora invocou a Súmula 473 do STF (fls. 24 6-8), a qual
diz o seguinte: A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que
os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de con-
veniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os ca-
sos, a apreciação judicial.
Ora, se o Administrador Público pode anular os próprios atos, quando entendê-los eivados
de vícios que os tornam ilegais, não se pode entender que o exercício desse poder-dever vio-
le direito líquido e certo.’
Assim, em não havendo nulidade na decisão que revisou a decisão extintiva do crédito tribu-
tário e que, pois, culminou na CDA que ora se executa, a exceção merece ser de plano recha-
çada.
Do exposto, julgo improcedente a exceção de pré-executividade.
2. Considerando que não se trata de incidente que implique suspensão do processo executi-
vo, foi deferido o pedido de penhora ‘on line’, no entanto, os valores encontrados são infe-
riores ao crédito executado, conforme documentos que seguem e que servem de termo de pe-
nhora (...) Intimem- se.’
O agravo de instrumento, tempestivamente apresentado, não mereceu antecipação da pretensão
recursal com o singelo despacho de que, ‘pela mesma fundamentação do juízo agravado, não
lhe deu efeito suspensivo’. O agravo regimental não foi conhecido ao argumento da E. 1ª T. do
TJRS de que incabível qualquer recurso contra decisão que concede ou indefere efeito suspen-
sivo ou antecipatório de tutela em agravo de instrumento.
Quesitos:
1. Mesmo considerando a ‘lista de serviços’ do DL nº 406/1968 como ‘numerus clausus’, esta-
va facultado - segundo a legislação vigente à época - à Prefeitura Municipal de Uruguaiana es-
tender a tributação ‘privilegiada’ a todas as sociedades civis de profissionais liberais, como fa-
zia seu Código Tributário? No caso de ter estendido, por lei municipal, a alteração posterior pode
ser considerada como modificação dos critérios jurídicos do lançamento, nos termos do art. 146
do CTN?
2. O mandado de segurança que não apreciou o mérito nele posto, ao argumento de não ter sido
comprovado o direito líquido e certo impede a renovação da alegação do contribuinte em obje-
ção à execução ou em embargos à execução fiscal?
3. A jurisprudência do STF que admite a revisão dos atos administrativos se aplica, ou não, às
decisões proferidas dentro do processo do contencioso fiscal, especialmente quando não há pre-
visão dessa revisão superior no próprio procedimento do contencioso?
4. É possível dar efeito retroativo à norma de lei nova tributária que altera a alíquota e a base de
cálculo de imposto (ISSQN) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da sua vi-
gência, mesmo ao argumento de que a lei posterior, por mais benéfica ao erário municipal, deva
ser aplicada pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, como alegado
na revisão da decisão proferida em segundo grau no contencioso fiscal, envolvendo as leis mu-
nicipais de Uruguaiana, RS, de nº 2.413/1993; nº 3.023/2000 e nº 3.313/2003?
5. A decisão de segundo grau, transitada em julgado, com ciência de ambas as partes, com bai-
xa na dívida ativa, no processo administrativo do contencioso fiscal e favorável ao contribuinte
é definitiva, no sentido de extinguir o crédito tributário ali discutido e gera direito ao contribuinte
de alegar essa extinção?
6. A norma municipal (Lei 2.413/93) que concedia tributação minorada do ISSQN a todas as
sociedades civis prestadoras de serviço em amplitude maior que aquela prevista na legislação
nacional vigorante à época (DL 406/68 e tabela anexa) pode ser afastada para aplicar diretamente
sobre a prestadora de serviços a norma tributária nacional? Ou, de outra forma, é possível exi-
gir ISSQN de prestadora de serviços com fulcro no DL 406/68 e tabela anexa e na CF 88, sem
a existência de lei municipal específica do tributo ou contra ela?
7. A ciência do cumprimento da ordem de bloqueio de valores em conta corrente ou de investi-
mentos financeiros do executado tem valor de termo de penhora para efeitos de início do prazo
de embargos, execução fiscal ou necessidade de lavratura de termo específico de penhora com a
formal intimação do representante da executada?”
Resposta
A primeira questão envolve duas indagações, a saber: o poder de legislar dos Municí-
pios em face dos limites estabelecidos pelas normas gerais do CTN e a aplicabilidade do ar-
tigo 146 daquela Lei com eficácia de complementar, no caso de alteração de critérios jurídi-
cos, em relação a um mesmo contribuinte1.
A primeira dessas questões diz respeito à força cogente da lei complementar.
Como determina a Constituição - e já o fazia à luz do texto anterior - a lei complemen-
tar objetiva apenas explicitar o texto constitucional, que, em matéria tributária, apenas defi-
ne competências dos entes tributantes e o regime jurídico do sistema.
Há dois tipos de leis complementares tributárias. Aquelas auto-aplicáveis, que instituem
tributo, como a que impõe um empréstimo compulsório, e aquelas outras que definem nor-
mas gerais, dependendo, portanto, neste caso, a criação do tributo da legislação ordinária2.
O Decreto-lei nº 406/68, por força do princípio de recepção em Direito Constitucional,
ganhou eficácia de lei complementar, pois, à época de sua edição, estando o Congresso Na-
1
Luciano da Silva Amaro lembra que: “É correta a conclusão a que chegou a doutrina pátria, no sentido que o CTN
vigora plenamente após a Constituição de 1967, e tem eficácia de lei complementar.” (Direito Tributário 5, Comen-
tários ao Código Tributário Nacional, vol. 3, coordenação minha com Hamilton Dias de Souza e Henry Tilbery, São
Paulo: José Bushatsky, 1977, p. 287)
2
Escrevi: “Em direito tributário, como, de resto, na grande maioria das hipóteses em que a lei complementar é exigida
pela Constituição, tal veículo legislativo é explicitador da Carta Magna. Não inova, porque senão seria inconstitu-
cional, mas complementa, tornando clara a intenção do constituinte, assim como o produto de seu trabalho, que é o
princípio plasmado no Texto Supremo.
É, portanto, a lei complementar norma de integração entre os princípios gerais da Constituição e os comandos de apli-
cação da legislação ordinária, razão pela qual, na hierarquia das leis, posta-se acima destes e abaixo daqueles. Nada
obstante alguns autores entendam que tenha campo próprio de atuação - no que têm razão -, tal esfera própria de atua-
ção não pode, à evidência, nivelar-se àquela outra pertinente à legislação ordinária. A lei complementar é superior à
lei ordinária, servindo de teto naquilo que é de sua particular área mandamental.” (O Sistema Tributário na Consti-
tuição, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 123/125)
cional fechado, os decretos-leis tanto veiculavam matérias próprias de legislação ordinária
quanto de legislação complementar. É, todavia, materialmente, um diploma legal comple-
mentar, porque veio estabelecer normas gerais para o ISS, mas não é auto-aplicável, caben-
do a cada município a instituição de tributos, mediante lei ordinária.
No caso especificado pela consulente, a Lei Municipal nº 2.413/93, implementadora do
ISS no Município de Uruguaiana, dispôs, em seu artigo 31:
“Art. 31 (...)
§ 4º As sociedades civis constituídas exclusivamente por profissionais liberais, terão seu imposto
calculado com base na alíquota de 250% da UPRM, multiplicada pelo número de profissionais
habilitados que sejam sócios, empregados ou não, mas que prestem serviço em nome da socie-
dade.”
Como se vê, a lei ordinária estabeleceu que, no concernente às categorias de profissio-
nais liberais, todas elas poderiam pagar o ISS calculado com base em alíquotas fixas. Não
as discriminou, dispondo que todas as sociedades de profissionais prestadores de serviços
pessoais estariam sujeitas a esse regime.
Ao tempo em que essa Lei foi editada, o DL nº 406/68 vigorava com a redação da Lei
Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987. Embora o diploma não incluísse a ativi-
dade exercida pela Consulente entre aquelas em que a tributação deveria seguir o mesmo
regime - alíquotas fixas - quer prestados quando por sociedades, quer sob a forma de traba-
lho pessoal do próprio contribuinte, na verdade não vedava expressamente que o legislador
adotasse essa prática com relação a outras atividades. Por essa razão, a Lei nº 2.413/93 as-
sim dispôs.
A limitação desse regime a determinadas categorias profissionais só veio a ocorrer, no
âmbito da legislação municipal, quando a Lei nº 3.023/2000, modificando a legislação an-
terior, definiu claramente que as categorias mencionadas no DL nº 406/68 - posteriormente
complementado pelo DL nº 834/69 e pelas Leis Complementares nos 56/87 e 116/2003 -
seriam as únicas a estar sujeitas às alíquotas fixas3.
Ora, tal Lei modificadora da anterior, à evidência, não pode retroagir, por força do arti-
go 150, inciso III, letra “a”, da Constituição Federal, assim redigido:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver insti-
tuído ou aumentado; (...).”
Não há, por outro lado, qualquer nulidade na decisão administrativa mencionada na
consulta, considerando legítima a legislação anterior, que submetia a sociedade consulente
ao recolhimento do ISS com base em alíquotas fixas. É que a ilegalidade da Lei nº 2.413/93
leva a uma situação bem mais desfavorável ao Município, pois impõe concluir pela não-in-
cidência do imposto no período então analisado, por falta e um dos elementos essenciais para
conformar a obrigação tributária, que é a alíquota.
À luz do Direito Tributário, a teor do que estabelece o artigo 97 do CTN, a Lei deve
definir, por inteiro, todos os elementos que conformam as hipóteses de imposição4. Vale di-
3
As categorias mencionadas na nova Lei foram apenas as dos itens 1, 4, 8, 24, 88, 90, 91, 92 correspondente ao DL nº
406/68, o que vale dizer com exclusão das atividades da empresa consulente constituída de profissionais liberais
dedicados ao despacho aduaneiro.
4
Reza o artigo 97 do CTN: “Art. 97. A falta ou insuficiência de pagamento do imposto de renda e da contribuição
social sobre o lucro está sujeita aos acréscimos legais previstos na legislação tributária federal.
Parágrafo único: No caso de lançamento de ofício, no decorrer do ano-calendário, será observada a forma de apura-
ção da base de cálculo do imposto adotada pela pessoa jurídica.”
zer, o que na lei não estiver, não pode ser exigido. Assim, se anteriormente à Lei nº 3.023/2000,
a tributação com base em alíquotas fixas nos moldes previstos na Lei nº 2.413/93 for consi-
derada ilegal por violar o DL nº 406/68, então, durante toda a vigência desse diploma muni-
cipal não houve a incidência do ISS, por falta do elemento quantitativo - alíquota - da hipó-
tese de incidência.
Por outro lado, não pode a Administração Municipal dar aplicação retroativa à Lei nº
3.023/2000 para fazer com que alcance fatos geradores ocorridos anteriormente à sua pro-
mulgação, porque a hipótese de imposição, tal como nela conformada, não havia no passa-
do, além do impedimento representado pelo artigo 150, III, “a”, da CF.
Considerando que o DL nº 408/68 com as alterações da legislação posterior, não auto-
rizava a Lei Ordinária nº 2.413/93 a estabelecer alíquotas fixas para a atividade da consu-
lente, o contribuinte que recolheu o ISS com base nesse regime o terá feito indevidamente,
pois não estava obrigado a submeter-se a essa imposição, por ilegal, nem à incidência sob
outro regime (alíquota variável), por inexistir tal previsão na lei ordinária. Sendo leis de
diretrizes tributárias, as leis complementares de normas gerais não são auto-aplicáveis5.
O caso da consulente, a meu ver, situa-se, portanto, em dois planos distintos. Se a Lei
nº 2.413/93, ao estender para todas as sociedades de prestação de serviços o regime de alí-
quotas fixas, agiu contra o Decreto-lei nº 406/68, recolheu o tributo indevidamente; por outro
lado, como, ao prever a alíquota fixa, o diploma municipal deixou de definir alíquotas espe-
cíficas e forma de calcular o tributo devido pelas empresas prestadoras de serviço não en-
quadradas nas hipóteses do DL nº 406/68 - o que só veio a ocorrer em 2000 e 2003, com a
promulgação das Leis nos 3.023 e 3.313 - também recolheu indevidamente, pois faltaram à
norma elementos essenciais para criar validamente a incidência.
Assim, a Municipalidade,
1) ao cobrar tributo por alíquota fixa que não poderia cobrar, deveria devolver o tribu-
to arrecadado;
e
2) não poderia cobrar o tributo, no período, por alíquotas variáveis de acordo com o
valor de prestação de serviços, por não haver previsão legal na legislação ordinária
instituidora do imposto no seu território - já que a lei complementar, ao estabelecer
normas gerais, não obriga o poder tributante a criar o tributo, cujos contornos explici-
ta6.
5
Juan José Soler escreve sobre o princípio da irretroatividade: “I. El principio de la irretroactividad. La irretroactivi-
dad de la ley es una medida técnica escogitada para dar seguridad al ordenamiento jurídico. Su zona ontológica no
está, pues, en la filosofía jurídica sino en la jurisprudencia o ciencia del Derecho.
Las disquisiciones de los canonistas, que consideraban la irretroactividad como de Derecho divino y a la retroactivi-
dad de Derecho humano, así como las de los jusnaturalistas, que entendian que la irretroactividad es de Derecho na-
tural y la retroactividad de Derecho positivo, están hoy superadas. Se acepta, unánimemente, que la irretroactividad
no es uno de los llamados principios generales del Derecho, un prius del ordenamiento jurídico, sino un posterius
encaminado a evitar los trastornos económicos y sociales emergentes de toda regresión al pasado.
La irretroactividad es, dentro de la técnica jurídica, un principio de aplicación más que de interpretación de la ley,
por lo mismo que no busca desentrañar el sentido de la ley sino medir sus efectos en el tiempo. Pero no hay aplica-
ción sin interpretación previa. La interpretación y la aplicación son operaciones de tracto sucesivo.” (Enciclopédia
Jurídica Omeba, vol. 14, p. 881)
6
Hamilton Dias de Souza e eu, inclusive, na Constituição defendemos a necessidade de lei complementar prévia para
introdução no sistema de qualquer tributo, cuja vinculação, à evidência, far-se-ia por lei ordinária. Escrevi: “Nos
debates com constituintes e nos contactos não só com os membros da Comissão, mas também com o denominado
grupo ‘Centrão’, que pediu a Hamilton Dias de Souza e a mim a preparação de um anteprojeto articulado, concorda-
ram conosco e colocaram, por decorrência, no Texto o princípio de que nenhum tributo, qualquer que fosse a sua
espécie, poderia ingressar no cenário jurídico sem que houvesse, antes, sua definição em lei complementar.
Lembro-me, quando de minha audiência pública na Constituinte em 1987, que o presi-
dente Dornelles, da Subcomissão de Tributo, indagou-me a razão pela qual tão poucos mu-
nicípios cobravam o ISS. Respondi que isso se devia à complexidade do tributo, que torna-
va, para os pequenos municípios, mais onerosa a cobrança que a arrecadação. E os Decre-
tos-lei nos 406/68 e 834/68 já dispunham, à época, das normas gerais daquele imposto (1987).
Ora, na hipótese, como não houve, na legislação municipal, menção às alíquotas variá-
veis para as sociedades de prestação de serviços, nitidamente, tornou-se não-incidível o tri-
buto para tais empresas. Apenas em 2000 e 2003, ou seja, muito além do período objeto da
consulta (1994-1999), o tributo passou a ser perfeitamente regulado e exigível, no Municí-
pio de Uruguaiana.
Antes disso, configura-se típico caso de não-incidência, pois, se a hipótese não estava
prevista na lei complementar e não poderia ser exigida no regime jurídico adotado pela lei
ordinária, a hipótese não foi regularmente criada; por outro lado, essa falha não pode ser
suprida pela legislação posterior, à qual a Constituição veda efeitos retroativos.
À primeira sub-questão respondo, pois, que:
a) não podem as Leis nos 3.023/2000 e 3.313/2003 gerar efeitos retroativos, por veda-
ção da CF e da Lei Complementar;
b) poderia a consulente, dentro do lapso prescricional, ter pedido de volta o que pagou,
incorretamente, por ter a lei municipal exigido hipótese não prevista no DL nº 406/68;
c) o fato de não ter definido o regime jurídico correto para todas as sociedades presta-
doras de serviço pessoal não mencionadas no DL nº 406/68, leva a nítido caso “de não
Incidência Tributária”, caso se repute ilegal a Lei nº 2.413/937.
Passo, agora, a responder a segunda parte da primeira questão.
Reza o artigo 146 do CTN que:
“Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa
ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lan-
çamento, somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato
gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”8
O artigo merece ser examinado por dois prismas.
O primeiro diz respeito ao perfil jurídico próprio da imposição tributária.
É certo que o ato administrativo nulo, eivado de ilegalidade, pode ser revisto. No direi-
to administrativo, se a Administração atribui a determinada norma legal interpretação que
depois se revela inconsistente, poderá rever o seu ato, e adotar outra interpretação mais con-
sentânea com o conteúdo legal. Aquilo que a Administração Pública anteriormente consi-
derava legal, pode revelar-se ilegal. É bem verdade que o ato administrativo goza de pre-
sunção de legalidade até ser considerado ilegal pela própria Administração ou pelo Poder
A letra a, portanto, diz que a lei complementar cuidará: da definição dos tributos e suas espécies, mas em relação aos
impostos, além da definição, faz menção à necessidade de previsão dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo
e contribuintes. À evidência, dever-se-ia falar em ‘tributo’ e não ‘tributos’, posto que o tributo é gênero do qual pen-
dem as cinco espécies tributárias hospedadas pelo sistema.” (O Sistema Tributário na Constituição, 7ª ed., São Pau-
lo: Saraiva, 2007, pp. 140/1)
7
A Súmula nº 473 do STF assim redigida: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios
que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportu-
nidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”, não é aplicável à
hipótese pela inexistência de qualquer ato nulo.
8
Américo Masset Lacombe comenta-o: “Confirma este artigo o princípio geral da imutabilidade do lançamento. Se
houver mudança na valoração jurídica dos dados ou elementos de fato que informam a autoridade administrativa no
exercício da atividade do lançamento, tal mudança só poderá ser considerada quanto a fatos geradores ocorridos após
a introdução dessa modificação.” (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. 2, 5ª ed., São Paulo: Saraiva,
2008, p. 317)
Judiciário, o que significa, em outras palavras, que aquilo que era tido por legal, passa a ser
ilegal e considera-se nulo o ato expedido à luz da pretérita exegese, por contrário à lei9.
O que não tem sido objeto de exame acurado pela doutrina e pela Administração Públi-
ca, nas diversas esferas e até mesmo, algumas vezes, pelo Poder Judiciário, é o conteúdo do
artigo 146 e seus efeitos, para o Direito Tributário10.
Ao declarar, o legislador complementar, que:
“A modificação introduzida de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial,
nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento so-
mente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorri-
do posteriormente à sua introdução.”
Deixa claro que o Direito Tributário tem forma de enfrentar a questão da ilegalidade
diversa do Direito Administrativo, objetivando garantir a segurança jurídica, como determi-
na a Constituição, no “caput” do artigo 5º, que torna este direito inviolável11.
Em termos diversos: se houver alteração da exegese oficial e o que era legal no passa-
do, passa a ser ilegal no presente, para o mesmo contribuinte e em relação ao mesmo fato
gerador, a Administração não poderá adotar a nova inteligência. Tal exegese valerá apenas
para o futuro e não para o passado12.
Antecipou o legislador do CTN a adoção de um critério, ou mesmo um princípio, que
veio a ser abraçado nas Leis nos 9.868/99 e 9.882/99 - esta última contou com a participa-
9
A Lei Federal nº 9.784/99, que regula o processo administrativo, estabelece que esse direito não é ilimitado, como se
vê de seu artigo 54, “verbis”: “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decor-
ram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo
comprovada má-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção
do primeiro pagamento. § 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administra-
tiva que importe impugnação à validade do ato.”
10
Zuudi Sakakihara ensina: “No entanto, se o crédito tributário já tiver sido constituído segundo os critérios anterior-
mente adotados, ter-se-á uma situação jurídica consolidada, cuja estabilidade deve ser preservada e, por isso, impe-
de a aplicação retroativa do novo entendimento.
É por isso que este art. 146, ao dispor que a modificação introduzida nos critérios jurídicos adotados no exercício do
lançamento só pode ser efetivada quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução, traz a regra implí-
cita da irretroatividade da nova interpretação decorrente da modificação dos mencionados critérios, apenas em rela-
ção a um mesmo sujeito passivo, querendo dizer que, se o crédito tributário referente a um sujeito passivo já foi cons-
tituído pelo lançamento, de acordo com determinados critérios, a modificação destes não mais poderá afetar a situa-
ção jurídica que se criou para esse mesmo sujeito passivo.” (Código Tributário Nacional Comentado, coordenador
Vladimir Passos de Freitas, São Paulo: RT, 1999, p. 574)
11
O “caput” do artigo 5º está assim redigido: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga-
rantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-
dade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”, tendo merecido o princípio da segurança de Cretella
o seguinte comentário: “Comentamos, neste livro, o ideal dos constituintes, expresso no Preâmbulo, de ‘assegurar o
exercício dos direitos, sociais e individuais, como a segurança’, repetindo-se, agora, no art. 6º, que ‘a Constituição
assegura a inviolabilidade dos direitos concernentes à segurança’. Nos dois passos da Constituição, podemos obser-
var os vocábulos ‘assegurar a segurança’, o que reflete a falta de cuidado com a linguagem e o estilo do diploma mais
importante e significativo da Nação Brasileira. Garantir a segurança é, de fato, garantir o exercício das demais li-
berdades, porque a vis inquietativa impede o homem de agir.” (Comentários à Constituição 1988, vol. I, Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 1989, p. 185 - grifos meus)
12
Neste sentido, leia-se acórdão do STJ: “ICMS - Armazéns Gerais. 1. Os armazéns gerais, por serem estabelecimen-
tos destinados, unicamente, a receberem como fiéis depositários mercadorias de terceiros, são neutros em relação aos
fenômenos tributários decorrentes do ICMS. 2. Precedente da 1ª Turma: REsp 239.360, Paraná, Rel. Min. Garcia
Vieira. 3. No caso, há, também, de se aplicar a regra do art. 146, do CTN, em face de consulta respondida pelo Fisco
sobre o assunto, na linha da pretensão da recorrente. 4. Recurso provido para afastar a obrigação da recorrente, ar-
mazém geral, de recolher diferença de alíquota de ICMS que lhe está sendo cobrada, em face da empresa depositante
ter comercializado a mercadoria depositada para o Estado de São Paulo, onde a alíquota é maior do que a praticada
pelo Estado onde a vendedora está situada.” (REsp nº 278.178/SP, 1ª T., Rel. Min. José Delgado, j. 28.11.2000, DJ
01.04.2002, p. 170)
ção, na sua redação, do autor do presente parecer -, ao determinarem, em seus artigos 27 e
11, respectivamente, que:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões
de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal,
por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir
que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a
ser fixado.”
13
Gilmar Mendes assim explica o artigo 27: “Nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/99, o STF poderá proferir, em tese,
tanto quanto já se pode vislumbrar, uma das seguintes decisões:
a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstituciona-
lidade ‘ex nunc’), com ou sem repristinação da lei anterior;
b) declarar a inconstitucionalidade com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declara-
ção de inconstitucionalidade com efeito pro futuro), com ou sem repristinação da lei anterior;
c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, permitindo que se opere a suspensão de aplicação
da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre a situação
inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade = restrição de efeitos); e, eventual-
mente,
d) declarar a inconstitucionalidade dotada de efeito retroativo, com a preservação de determinadas situações.
Assim, tendo em vista razões de segurança jurídica, o Tribunal poderá afirmar a inconstitucionalidade com eficácia
‘ex nunc’. Nessa hipótese, a decisão de inconstitucionalidade eliminará a lei do ordenamento jurídico a partir do trân-
sito em julgado da decisão (cessação da ultra-atividade da lei) (hipótese ‘a’).
Outra hipótese (hipótese ‘b’) expressamente prevista no art. 27 diz respeito à declaração de inconstitucionalidade com
eficácia a partir de um dado momento no futuro (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro). Nesse
caso a lei reconhecida como inconstitucional, tendo em vista fortes razões de segurança jurídica ou de interesse so-
cial, continuará a ser aplicada dentro do prazo fixado pelo Tribunal. A eliminação da lei declarada inconstitucional
do ordenamento submete-se a um termo pré-fixo. Considerando que o legislador não fixou o limite temporal para a
aplicação excepcional da lei inconstitucional, caberá ao próprio Tribunal essa definição.” (Controle Concentrado de
Constitucionalidade, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 565/566)
14
Ementário DRJ, Receita Federal.
representou, a meu ver, um não exercício do direito de exigir o tributo antes de seu advento,
pois:
a) a lei instituidora do tributo não obrigava as sociedades de prestação de serviços pro-
fissionais não mencionadas no DL nº 406/68, a recolhê-lo com base em alíquotas vin-
culadas à movimentação;
b) à falta de descrição de todos os elementos essenciais ao surgimento da obrigação
tributária, a consulente não deveria ter recolhido o tributo com base em alíquotas fixas.
Assim, se não tivesse prescrito seu direito, poderia a Consulente - e todas as sociedades
não especificadas no DL nº 406/68 às quais foi aplicado o regime - repetir o indébito, pois
pagaram por um tributo que não foi regularmente instituído15.
Desta forma, respondo, positivamente, a questão. O artigo 146 determina que, qualquer
modificação de critério exegético, vale dizer, qualquer nova interpretação que torna ilegal a
interpretação que antes era considerada legal, só poderá ser aplicado para o futuro em rela-
ção ao mesmo contribuinte e aos mesmos fatos geradores apurados no procedimento fiscal
de lançamento.
No caso concreto, inclusive, a revisão da decisão administrativa, no processo lançamento
transitado em julgado, não poderia ser aplicada a fatos passados. É de se ressaltar que, no
caso da atividade da consulente, os novos critérios só foram introduzidos na legislação, a
partir de 2000. Ora, a legislação posterior não pode ser aplicada a fatos geradores pretéri-
tos, risco de ferir-se gravemente o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição
Federal, assim redigido:
“XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
(...).”16
A decisão administrativa que anulou, com base em Lei posterior, a decisão administra-
tiva anterior, transitada em julgado e lastreada na Lei nº 2.413/93, é manifestamente ilegal e
inconstitucional, ferindo, inclusive, a meu ver, o princípio da moralidade pública (artigo 37
“caput” da CF)17.
Passo, agora, à segunda questão.
Se o mandado de segurança não julgara o mérito da impetração, todas as vias proces-
suais ordinárias permanecem abertas. É pacífica a jurisprudência a respeito e decorre da pró-
pria natureza do remédio heróico.
15
A Súmula Vinculante nº 8 do STF está assim redigida: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do De-
creto-lei 1.569/77 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.”
16
Celso Bastos lembra que: “Nossa Lei Maior, ao contrário do que muitas vezes somos levados a crer, não consagra o
princípio da irretroatividade, nem de forma implícita, nem explícita. Poder-se-ia dizer que esse princípio transcende
o direito posto para fazer parte dos princípios gerais de direito. Não cremos, contudo, que haja necessidade de apelar
para um aprofundamento do tema por esse caminho. Isso porque a Constituição não é omissa ou lacunosa na maté-
ria. Ela simplesmente preferiu outra modalidade de proteção das situações pretéritas, que nos parece de alcance téc-
nico muito mais alto.” (Comentários à Constituição do Brasil, 2º vol., São Paulo: Saraiva, p. 209)
17
Hely Lopes Meirelles lembra que: “A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de
todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, “caput”). Não se trata - diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito
- da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como ‘o conjunto de regras de conduta tiradas da dis-
ciplina interior da Administração’. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrati-
vo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do
desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente
entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também
entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer
somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, confor-
me já proclamavam os romanos: ‘non omne quod licet honestum est’. A moral comum, remata Hauriou, é imposta
ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna,
segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.” (Direito Administrativo
Brasileiro, 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 1990, p. 83)
O mandado de segurança, assim como o “habeas corpus”, são instrumentos processuais
e garantias constitucionais da maior relevância no direito, pois objetivam dar imediata pro-
teção judicial a quem tenha sua liberdade ou direito líquido e certo postos em risco.
São, como o denominam os processualistas, remédios heróicos. O pedido de liminar
decorre da urgência na proteção plasmada na Constituição por violação do direito de ir e vir
ou do direito líquido e certo.
O mandado de segurança, inclusive, não tem fase probatória. O direito líquido e certo a
ser protegido há de ser demonstrado, de imediato e por inteiro, ou seja, gerando no julgador
a convicção, de um lado, da relevância da pretensão (“fumus bonni iuris”), e, de outro lado,
da urgência de sua concessão (“periculum in mora”), conformando para a concessão da li-
minar, a convicção de que a falta do provimento pode acarretar prejuízos ao direito questio-
nado ou até seu perecimento18.
Ora, não havendo fase probatória, uma vez prestadas as informações sobre seu procedi-
mento pela autoridade impetrada e ouvido o Ministério Público, já está preparado o magis-
trado para decidir.
E decidirá, à luz de sua convicção, podendo adotar um de dois critérios, a saber:
a) entender que a matéria de direito e de fato é suficientemente clara, independente-
mente de qualquer outra prova, concedendo ou não a ordem;
e
b) entender que não há direito líquido e certo porque os fatos não estão devidamente
provados, deixando de julgar o mérito da questão e indeferindo a ordem por carência
da ação.
Nesta hipótese, à evidência, todas as vias ordinárias processuais restam abertas, poden-
do a questão ser, por outros instrumentos processuais, levada à apreciação do Poder Judi-
ciário.
É o que decorre da Súmula nº 304 do STF:
“Decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetran-
te, não impede o uso da ação própria.”19
No caso concreto, à evidência, as vias processuais ordinárias foram preservadas, pois a
decisão judicial concluiu pela ausência de direito líquido e certo.
18
Alfredo Buzaid lembra que: “A ação de mandado de segurança se distingue das duas precedentes. Tem por pressu-
posto não um título líquido e certo senão um direito líquido e certo. A sua apreciação é feita em um tipo de processo
mais abreviado, porque independe de prova testemunhal ou pericial. O mandado de segurança tem forma e figura de
juízo. A circunstância de não admitir a produção de prova testemunhal ou pericial não lhe tira o caráter de processo
contencioso; ele se constitui pelo pedido do impetrante, desenvolve-se com a audiência da autoridade coatora e ter-
mina pela sentença judicial. Tratando-se de processo preordenado à tutela de determinada categoria de direitos, se o
juiz verificar que não estão preenchidos os pressupostos de sua procedência, dirá simplesmente ‘non liquet’, sem en-
trar no mérito. A nota marcante do instituto não está propriamente na inexistência de discussão em torno do direito
afirmado pelo impetrante, mas na existência de um direito líquido e certo insuscetível de discussão judicial.” (Do
Mandado de Segurança, vol. I, São Paulo: Saraiva, 1989, São Paulo, p. 83)
19
“O Min. Luiz Gallotti dá as dimensões desse enunciado: “A ação ordinária cabe ao impetrante do mandado de segu-
rança, quando este é denegado, por não lhe reconhecer direito líquido e certo; não, porém, se o julgado conclui pela
inexistência do direito reclamado, como na espécie ocorreu.
Esse o verdadeiro sentido da Súmula 304, como se depreende dos seus termos: ‘Decisão denegatória de mandado de
segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria’.
Quer dizer: quando a decisão denegatória de segurança não faz coisa julgada contra o impetrante (‘não fazendo coi-
sa julgada’ diz a Súmula), facultado estará o uso da ação própria.
Diz o despacho, que admitiu o recurso extraordinário, que o Supremo Tribunal, para o efeito da ação rescisória, não
tem atribuído força de coisa julgada a decisões denegatórias de mandado de segurança.
Mas isso quando a denegação desta ocorre por não assistir direito líquido e certo ao impetrante, caso em que lhe fica
aberta a via ordinária, donde não caber ação rescisória (RE 6.352, RTJ 52/344; RT 415/400).” (Roberto Rosas, Di-
reito Sumular, 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 119/120)
Há, entretanto, outros aspectos que envolvem a questão, principalmente:
a) a não auto-aplicabilidade da lei complementar (DL nº 406/68), que apenas dispõe
sobre o perfil do ISS;
b) a inexistência de lei ordinária excluindo os serviços prestados pela consulente do
regime jurídico das alíquotas fixas e submetendo-a ao regime das alíquotas variáveis,
no período objeto indicado na consulta, o que apenas ocorreu com a lei posterior20;
c) ter a lei que excluiu a categoria da consulente do regime de alíquotas fixas, sido pro-
mulgada depois dos fatos objetos do auto de infração.
A matéria, portanto, pode ser reaberta, visto que o mandado de segurança não abordou
as questões acima mencionadas, não tendo, pois, enfrentado e dirimido o mérito da “quaes-
tio juris”21.
Passo à terceira questão.
Como já acima examinado, é inquestionável o direito da Administração de rever seus
próprios atos administrativos, para anulá-los, no caso de ilegalidade, dentro dos limites le-
gais, remanescendo a responsabilidade civil do Estado e, no caso de culpa ou dolo, o direito
de regresso contra a autoridade, pelas lesões que seu ato tiver causado ao administrado, nos
termos do artigo 37, parágrafo 6º, da CF assim redigido:
“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços pú-
blicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, asse-
gurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”22
O direito de regresso é imprescritível (artigo 37, parágrafo 5º).
Diferente é, todavia, o caso de decisão proferida no processo administrativo tributário
decorrente do ato de lançamento, em que tenham sido exauridos todos os recursos cabíveis,
configurando-se como que o “trânsito em julgado administrativo”.
Nessa hipótese, embora alguns admitam que a matéria possa ser pelo Estado submetida
à revisão judicial, a esmagadora maioria da doutrina e a jurisprudência administrativa e ju-
dicial, inclusive do STF, é no sentido de que a decisão consolidada a favor do contribuinte,
no processo administrativo, não pode ser alterada. Há, em matéria tributária, efetivo trânsi-
to em julgado.
Leia-se, neste sentido:
“Ministério da Fazenda - Secretaria da Receita Federal - Delegacia da Receita Federal de Julga-
mento em Ribeirão Preto.
Acórdão nº 14-6528, de 12 de novembro de 2004.
20
Roberto Rosas ao examinar a Súmula nº 304, escreve: “Muita cautela deve haver na consideração do exame do mé-
rito. Só pode ser considerado quando a decisão expressamente decidiu em razão do mérito, e não simples apreciação
da questão de fundo, para denegar o mandado por outro fundamento, ou então a liquidez, ou o não conhecimento
pela decadência, apesar de observar, de passagem, a falta de liquidez pelo exame do mérito (RTJ 67/876 e 58/737 -
v. o expressivo esclarecimento do Min. Xavier de Albuquerque).” (Direito Sumular, ob. cit., p. 120)
21
A nova Lei do mandado de segurança (nº 12.016/09) não alterou - até porque princípio processual constitucional - a
exegese consagrada sobre a matéria.
22
Carlos Mário da Silva Pereira ensina: “E a Constituição Federal assenta que as pessoas jurídicas de direito público
responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causaram a terceiros, cabendo ação regressiva con-
tra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo (Emenda Constitucional nº 1, de 1969, art. 107 e seu pará-
grafo único; Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, art. 37, nº XXI), segundo o qual a teoria do risco integral
compreende as pessoas jurídicas de direito público, bem como as de direito privado prestadoras de serviços públi-
cos.
É pacífico, e já requer maior explanação, que os vocábulos, ‘representantes’ e ‘funcionários’ não são usados em ac-
cepção estrita, porém ampla, naquele sentido acima assentado, de quem no momento exercia uma atribuição ligada à
sua atividade ou à sua função.
É de se entender, igualmente, que no vocábulo ‘estado’ compreende-se as pessoas jurídicas de direito público e as
de direito privado prestadoras de serviços públicos.” (Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 139)
Assunto: Processo Administrativo Fiscal.
Ementa: Direito Creditório. Coisa Julgada Administrativa. Sob pena de ofensa à coisa julgada
administrativa, não pode a autoridade julgadora reapreciar questão relativa ao direito credi-
tório postulado, em razão da existência de decisão definitiva na esfera administrativa (grifos
meus).
Data do fato gerador: 30/09/1998, 31/10/1998, 30/11/1998, 31/12/1998, 31/01/1999, 28/02/1999,
31/03/1999, 30/04/1999, 31/05/1999, 30/06/1999, 31/07/1999, 31/08/1999, 30/09/1999.”23
23
Decisões - Ementário DRJ da Receita Federal.
24
Receita Federal, Decisões (Ementário DRJ).
25
Receita Federal, Decisões (Ementário DRJ).
26
Receita Federal, Decisões (Ementário DRJ).
Resolve o Supremo Tribunal Federal, pela sua 2ª Turma, não conhecer do recurso. Notas taqui-
gráficas.
Custas ‘ex lege’.
Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1957.
L. de Andrade - presidente
A. Vilas Boas - Relator.”27
“RE 68.253/PR
Recurso Extraordinário
Relator(a): Min. Barros Monteiro
Julgamento: 02/12/1969 - Orgão Julgador: Primeira Turma
Publicação: DJ 08-05-1970
Ementa:
Coisa julgada fiscal e direito subjetivo. A decisão proferida pela autoridade fiscal, embora de
instância administrativa, tem, em relação ao fisco, força vinculatória, equivalente à da coisa
julgada, principalmente quando gerou aquela decisão direito subjetivo para o contribuinte (gri-
fos meus).
Recurso Extraordinário Conhecido e Provido.
Indexação
Coisa Julgada Fiscal. Direito Subjetivo. Decisão Administrativa:
Força Vinculatória.
Direito Tributário
Coisa Julgada Fiscal
Observação: Documento Incluído sem Revisão do STF
Ano: 1970 Aud: 06-05-1970.”29
“MS 7.853/GB
Mandado de Segurança
Relator(a): Min. Henrique D’Avila - Convocado
Julgamento: 19/10/1960 - Órgão Julgador: Tribunal Pleno
ADJ Data 17-07-1961, pp. 161.
27
Site do Supremo Tribunal Federal.
28
Site STF, Ementário nº 1.168-1.
29
DJ 08.05.1970.
Ementa:
A jurisdição administrativa se processa em escala ascendente, sem hiatos, por via de recursos
hierárquicos pré-determinados - A autoridade de grau superior não pode, estribada apenas em
sua preeminência, sem forma, nem figura de juízo, desfazer o ato de grau inferior, mormente,
quando este já produziu seus efeitos de direito e foi editado em consonância com a lei - man-
dado de segurança - sua concessão (grifos meus).
Indexação
Ato Administrativo, Revogação, Impossibilidade, Coisa Julgada, Natureza Administrativa, Ocor-
rência, Direito Subjetivo, Legalidade, Ato (AD).
AD 2.099, Ato Administrativo
Revogação
Coisa Julgada
Observação:
Votação: Unânime. Resultado: Concedido. PRV 08.
Ano: 1960. AUD: 21-12-1960.”30
“Acórdão 8.810
O Ministro da Fazenda não pode reformar decisão final dos Conselhos de Contribuintes, quan-
do não se verificar nulidade da decisão.
Mandado de Segurança nº 8.810-DF (2002)
Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros
Impetrante: (...)
Advogado: (...) José Roberto Pisani e Outros
Impetrado: Ministro de Estado da Fazenda
Ementa: Administrativo - Mandado de Segurança - Conselho de Contribuintes - Decisão Irre-
corrida - Recurso Hierárquico - Controle Ministerial - Erro de Hermenêutica - I - A competên-
cia ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descon-
trolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua com-
petência e do devido processo legal. II - O controle do Ministro da Fazenda (arts. 19 e 20 do
DL 200), sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo
de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegia-
do errou na interpretação da Lei. III - As decisões do conselho de contribuintes, quando não
recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, exonerar o sujeito
passivo ‘dos gravames decorrentes do litígio’ (Dec. 70.235/72, art. 45). IV - Ao dar curso a apelo
contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco di-
reito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida (grifos meus).
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Minis-
tros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, prosseguindo no julgamento, por unanimidade, conceder a segurança, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Eliana Calmon, Francisco Falcão,
Franciulli Netto, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki, Castra Meira e Fran-
cisco Peçanha Martins (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento
o Sr. Ministro José Delgado. Brasília (DF), 13 de agosto de 2003 (Data do Julgamento).
Ministro Humberto Gomes de Barros - Relator.”31
Como se percebe, a orientação é no sentido de distinguir a possibilidade de a Adminis-
tração rever seus próprios atos, da impossibilidade de revisão das decisões decorrentes do
denominado “contencioso administrativo tributário”, quando esgotados todos os recursos
para alteração do lançamento.
30
DJ 21.12.1960.
31
Site do STJ - jurisprudência.
Tenho para mim, como já me manifestei, na segunda parte da primeira questão, que a
invalidação dos atos administrativos, em matéria tributária, por serem considerados ilegais
em virtude de uma nova exegese, por força do artigo 146 do CTN é apenas aplicável a fatos
futuros, e não a fatos passados praticados pelo mesmo contribuinte.
Assim, para mim, os atos administrativos que, por nova interpretação adotada pela Ad-
ministração, são considerados ilegais, podem ser revogados com efeitos pretéritos, dentro
dos limites legais; já os atos administrativos tributários, só podem ser revistos e anulados em
virtude de mudança de exegese, em relação ao mesmo contribuinte, para alcançar fatos ge-
radores futuros. Não há a possibilidade Administrativa ou Judicial de anular a decisão final
proferida em processo administrativo tributário a favor do contribuinte. Principalmente, no
presente caso, em que não houve nenhum ato nulo, pois a Lei nº 2.413/93 não continha pre-
visão legal submetendo da atividade exercida pela consulente a outro regime que não o de
alíquota fixa, não sendo possível constitucionalmente dar efeito retroativo à Lei posterior32.
Enquanto não encerrado o processo administrativo, o recurso hierárquico é admissível.
Não será, todavia, possível qualquer tipo de recurso ou revisão administrativa, após o trân-
sito em julgado de decisão administrativa, como decorre da leitura do acórdão abaixo:
“RMS 12.386/RJ
Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 2000/0092265-0
Relator(a): Ministro Franciulli Netto (1.117)
Órgão Julgador: Segunda Turma
Data do Julgamento: 19/02/2004
Data da Publicação/Fonte: DJ 19/04/2004, p. 168.
Ementa: Recurso Ordinário - Mandado de Segurança - Conselho de Contribuintes do Estado do
Rio de Janeiro - Recurso Hierárquico - Secretário de Estado da Fazenda do Estado - Expressa
Previsão Legal - Legalidade - Precedentes.
A previsão de recurso hierárquico para o Secretário de Estado da Fazenda quando a decisão do
Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro for prejudicial ao ente público não fere
os princípios constitucionais da isonomia processual, da ampla defesa e do devido processo
legal, porque é estabelecida por lei e, ao possibilitar a revisão de decisão desfavorável à Fa-
zenda, consagra a supremacia do interesse público, mantido o contraditório.
Nesse sentido, assevera Hely Lopes Meirelles que os recursos hierárquicos impróprios ‘são per-
feitamente admissíveis, desde que estabelecidos em lei ou no regulamento da instituição, uma
vez que tramitam sempre no âmbito do Executivo que cria e controla essa atividade. O que não
se permite é o recurso de um Poder a outro, porque isto confundiria as funções e compromete-
ria a independência que a Constituição da República quer preservar.’
Além disso, o contribuinte vencido na esfera administrativa sempre poderá recorrer ao Poder
Judiciário para que seja reexaminada a decisão administrativa. Já a Fazenda Pública não poderá
se insurgir caso seu recurso hierárquico não prospere, uma vez que não é possível a Adminis-
tração propor ação contra ato de um de seus órgãos.
32
Ricardo Lobo Torres ensina, hospedando idêntica tese que: “O lançamento definitivamente constituído é insuscetí-
vel de revisão, por erro de direito, na órbita administrativa. A irreversibilidade do lançamento por erro de interpreta-
ção decorre da leitura, a ‘contrario sensu’, do art. 149, que a não prevê, e dos termos do art. 146, que adiante analisa-
remos.
De feito, a autoridade administrativa, depois de efetivado o lançamento, não pode alterá-lo, de ofício, sob o argu-
mento de que a interpretação jurídica adotada não era a correta, a melhor ou a mais justa. Nem mesmo se os Tribu-
nais Superiores do país firmarem orientação jurisprudencial em sentido diverso daquela que prevaleceu no lançamento,
com o que se teria robustecida a convicção da presença do erro de direito, poderá o agente fazendário modificar o
ato para agravar a situação dos contribuintes.
Se o contribuinte acreditou na palavra da Administração, firmada no lançamento notificado, não poderá ficar a mer-
cê de eventuais alterações de critérios jurídicos, a pretexto de erro na interpretação. Pelo menos no Estado de Direi-
to.” (Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica, Pesquisas Tributárias - Nova Série 11, São Paulo: CEU/RT,
2005, São Paulo, p. 70)
Recurso não provido.
Acórdão:
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Minis-
tros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em negar provimen-
to ao recurso ordinário, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator. Os Srs. Ministros João Otá-
vio de Noronha, Castro Meira, Francisco Peçanha Martins e Eliana Calmon votaram com o Sr.
Ministro Relator”33.
A distinção é, portanto, clara, no excelente acórdão relatado pelo saudoso Ministro Fran-
ciulli Neto, pois permite sempre a revisão, enquanto não transitada em julgado a decisão
administrativa, mas não permite que a decisão administrativa julgada favoravelmente ao
contribuinte seja rediscutida em juízo, para que a Fazenda anule, judicialmente, o seu pró-
prio entendimento consagrado na decisão administrativa.
No caso da consulente, a questão é de gravidade maior, pois:
a) não consta de legislação municipal o tipo de revisão aplicado à decisão transitada em julgado
a favor da consulente, revisão esta que contrariando a decisão do STJ, relatada pelo Ministro João
Otávio Noronha, está assim redigida:
“Processo Administrativo. Revisão. Segurança Jurídica.
Extinto o crédito tributário por decisão não mais passível de recurso, não pode a Adminis-
tração aproveitar o mesmo processo para rever tal ato. Somente com o início de novo pro-
cesso, desde que não consumada a decadência, é que a Administração poderá anular a deci-
são transitada em julgado do anterior processo já findo, isso em razão do princípio da seguran-
ça jurídica. REsp 572.358-CE, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/10/2006.”
(grifos meus)34
b) A revisão foi fundamentada em lei posterior aos fatos mencionados no processo;
c) a decisão deu à nova lei efeitos pretéritos, tornando-a retroativa e violando os artigos 5º, inci-
so XXXVI, e 150, inciso XXX, letra “a”, da Lei Suprema, além dos artigos 106 e 146 do CTN35.
A resposta, portanto, ao quesito, é que não pode a autoridade administrativa rever, no
próprio processo administrativo tributário, decisão terminativa desse processo, por falta de
previsão legal, por contrariar a jurisprudência e por violentar os artigos 106 e 146 do CTN,
como os artigos 5º, inciso XXXVI, e 150, inciso VII, letra “a”, da Carta Máxima.
Passo a responder a quarta questão.
A resposta é, manifestamente, não.
Não há interesse público maior do que o respeito à Lei Suprema.
É interessante notar que, entre os cinco princípios fundamentais da lei suprema brasi-
leira, não está o “interesse público”, cujo atendimento é mera decorrência do bem maior que
uma Constituição deve preservar, que é o cidadão.
Não sem razão, o presidente da Constituinte chamou a Lei Maior de 88 de “Constitui-
ção cidadã”, isto porque seu mais relevante título é, indiscutivelmente, o Título II, dedicado
aos direitos e garantias individuais e coletivos, sociais, à nacionalidade e entes políticos (ar-
tigos 5º e 17)36.
33
Site do STJ - jurisprudência.
34
Site do STJ - jurisprudência.
35
O artigo 106 do CTN só permite a retroatividade para beneficiar o contrato. Está assim redigido: “Art. 106. A lei aplica-
se a ato ou fato pretérito:
I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos
dispositivos interpretados;
II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de
tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha
implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei
vigente ao tempo da sua prática.”
36
Sobre o respeito ao lançamento transitado em julgado e irreformável, assim escreve Sacha Calmon: “O lançamento
tributário já definitivamente constituído é irrevisível pela Administração em caso de erro de direito ou de valoração
Com efeito, reza o “caput” do artigo 5º que são invioláveis cinco princípios fundamen-
tais, a saber:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...).”
Toda a Constituição é endereçada ao povo e o interesse público deve ser entendido aquele
interesse público voltado ao cidadão. Jamais à conveniência dos detentores do poder, que
podem ser responsabilizados civil e criminalmente, se lesarem o “cidadão”, nos termos do
artigo 37, parágrafo 6º, da CF, sendo inclusive imprescritível sua responsabilidade (artigo
37, parágrafo 5º).
Não há interesse público que supere a cláusula pétrea do artigo 5º, inciso XXXVI, que
não permite a retroatividade da lei.
Não há interesse público que justifique a retroatividade à lei tributária contra o contri-
buinte, ou seja, apenas porque permitirá um aumento de arrecadação, se aplicada a fatos
pretéritos, regidos por outra lei. Tal atitude é, nitidamente, imoral37, além de pôr em xeque o
interesse público primário, que é a segurança jurídica, em prol do interesse público secun-
dário (interesse da arrecadação) - ilegítimo por contrariar o primeiro38.
O artigo 150, inciso III, letra “a”, claramente fulmina tal inteligência, permitindo-me
repetir o seu teor:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver insti-
tuído ou aumentado; (...).”39
jurídica dos fatos. Entre nós ganhou foros de cidade a irrevisibilidade por erro na interpretação da lei ou por altera-
ção nos critérios de sua aplicação, quando com erronia agiu a própria Administração. O Código Tributário Nacional
diz que tais critérios jurídicos podem ser alterados pela Administração ao produzir lançamentos, mas relativamente
a fatos geradores posteriores à alteração. E agrega: no concernente a um mesmo contribuinte.” (Pesquisas Tributá-
rias - Nova Série 11, p. 87)
37
Aristides Junqueira lembra que: “Assim também, quando o Estado-Juiz, pelos seus órgãos jurisdicionais, máximo e
superiores, já disse o direito, dando interpretação acabada a normas constitucionais e legais, por meio de decisões
reiteradas e transitadas em julgado, não pode o Estado Administração, personificado em servidor fazendário, se re-
belar contra elas, editando normas de hierarquia inferior, contrárias aos julgamentos jurisdicionais, sob pena de afronta
aos princípios da legalidade e da moralidade administrativas”, continuando: “Assim agindo, o agente estatal trans-
gride o princípio da moralidade administrativa, usando ‘de artifício para procrastinar ou dificultar o exercício regu-
lar de direito do contribuinte, causando-lhe dano moral e material’, incidindo tal comportamento funcional na veda-
ção expressa no Código de Ética, já antes referida e agora repetida.” (“O Princípio da Moralidade no Direito Tributá-
rio”. Pesquisas Tributárias - Nova Série 2, 2ª ed., São Paulo: CEU/RT, 1998, São Paulo, pp. 49/50)
38
Fátima Fernandes Rodrigues de Souza ensina que: “o interesse primário a ser perseguido pelo administrador público
há de ser sempre o interesse público consistente em exigir do sujeito passivo da obrigação tributária apenas e exclu-
sivamente aquilo que a lei autoriza. Interesses secundários, como, por exemplo, os de obter o máximo de receitas ou
acelerar a arrecadação, só são legítimos na medida em que se compatibilizem com o primário, o que não ocorrerá
sempre que a Administração busque aumentar seus recursos exigindo do contribuinte mais do que a lei lhe autori-
za”, e cita Renato Alessi que faz distinção, baseada em Carnelutti, entre interesses primários e secundários: “Esses
interesses públicos, coletivos, cuja satisfação está a cargo da Administração, não são simplesmente o interesse da
Administração entendida como ‘aparato organizativo’, mas o que se chamou de interesse coletivo primário, forma-
do pelo conjunto de interesses individuais preponderantes em uma determinada organização jurídica da coletivida-
de, enquanto o interesse do aparelhamento (se é que se pode conceber um interesse de aparelhamento unitariamente
considerado) seria simplesmente um dos interesses secundários que se fazem sentir na coletividade, e que podem ser
realizados somente em caso de coincidência com o interesse coletivo primário e dentro dos limites de dita coinci-
dência. A peculiaridade da posição da Administração Pública reside precisamente nisto, em que sua função consiste
na realização do interesse coletivo, público, primário.” (Instituciones de Derecho Administrativo, t. 1, Buenos Aires:
Bosch Casa Editorial, 1970, pp. 184-185)
39
Manoel Gonçalves Ferreira Filho assim o comenta: “Irretroatividade. Tem-se aqui uma projeção do princípio de ir-
retroatividade, que é essencial para a segurança individual. Decorre do texto em exame que a lei instituidora do tri-
As Leis nos 3.023/2000 e 3.313/2003, que conformaram alíquotas variáveis para as hi-
póteses de imposição do ISS, no tocante aos serviços prestados pela consulente, não podem
ser aplicadas retroativamente ao período do Auto lavrado 1994/1999. A Lei nº 2.413/93, por
outro lado, dava o tratamento rigorosamente seguido pela consulente, visto que aplicável a
todas as sociedades de prestação de serviço com profissionais de uma mesma especialida-
de. Como já mostrei anteriormente, por não prevista no DL nº 406/68 a hipótese, e por não
haver outro regime para tais sociedades, o caso era de “não-incidência” do ISS.
A revisão procedida fere, portanto, a Lei Suprema em seus artigos 150, inciso III, letra
“a”, e 5º, inciso XXXVI, ensejando, inclusive, a responsabilização do Município pelas le-
sões causadas ao contribuinte, visto que a responsabilidade do Estado é objetiva, vale dizer,
independentemente de dolo ou culpa.
A resposta, portanto, é no sentido de não ser possível dar-se o efeito retroativo preten-
dido.
A resposta à quarta questão, que passo a proceder, já, de certa forma, respondida foi,
anteriormente.
A decisão é definitiva e - conforme mostrou o Ministro João Noronha do STJ, em texto
que reproduzi, além de outras autoridades e Tribunais relacionados na resposta ao quesito 3
- não pode ser revista no próprio processo administrativo encerrado, definitivamente, nem
em processo judicial.
Vale, para esta resposta, o elenco de decisões assinaladas no quesito 3.
A decisão final do processo administrativo tributário que beneficia o contribuinte é de-
finitiva, acarretando, a meu ver, a responsabilização civil do Estado, a pretendida revisão da
decisão “transitada em julgado” administrativamente40.
As Súmulas nos 346 e 473, do STF, assim redigidas:
“STF Súmula nº 346 - 13/12/1963 - Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tri-
bunal Federal - Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 151.
Administração Pública - Declaração da Nulidade dos seus Próprios Atos
A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.”
buto não pode colher senão fato gerador posterior à sua vigência (v., sobre a problemática da irretroatividade v. 1
destes Comentários, p. 7 e s.).” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 106)
40
Hugo de Brito Machado afirma: “A lei é forma de manifestação do Estado, que não pode retroagir em prejuízo do
cidadão, mas pode alcançar fatos do passado para favorecê-lo. O princípio da irretroatividade é garantia do cidadão.
Não do Estado. E não apenas o princípio da irretroatividade. Todos os princípios constitucionais foram elaborados,
ao longo do tempo, como instrumentos jurídicos contra o arbítrio. Garantias do cidadão contra os abusos de poder
dos governantes.” (Pesquisas Tributárias - Nova Série 11, p. 136)
41
Helenilson Cunha Pontes escreve, ao falar sobre o artigo 146 do CTN, que: “O princípio da irretroatividade tem o
condão de resgatar um dado do/passado e mantê-lo no futuro, garantindo em face da lei nova as expectativas legiti-
mamente construídas no passado diante da lei então vigente. Assim, o sentido de um evento passado adquire um
É fundamental lembrar que a aplicação retroativa da nova inteligência, no mesmo pro-
cesso, deu-se por força de Lei posterior aos fatos, que incluiu na hipótese de imposição ele-
mentos antes nela não constantes.
O interesse público, no caso das súmulas, é, para a presente consulta, preservar a or-
dem jurídica, não violentar os artigos 150, inciso III, “a”, e 5º, inciso XXXVI, da Lei Su-
prema, respeitar o artigo 146 do CTN e não exigir tributo sem lei que o autorize (artigo 150,
inciso I, da CF).
Volto ao tema inicial para responder ao presente quinto quesito.
O pretendido crédito tributário, inexistente à época dos fatos objetos do lançamento, e
assim considerado na decisão administrativa, não pode ser considerado extinto, pois o que
nunca existiu, não pode ser extinto. O que a decisão administrativa definitivamente consoli-
dou foi sua inexistência, razão pela qual - risco de responsabilização civil do Estado - o
mesmo processo não poderia ser reaberto, de acordo com mansa e pacífica jurisprudência,
quando havendo trânsito em julgado de processo administrativo42.
A resposta é, portanto, positiva. A decisão é definitiva.
A sexta questão, também já abordada na resposta ao primeiro quesito, tem como res-
posta que não pode a Prefeitura exigir tributo exclusivamente aplicando - sem lei municipal
- a lei com eficácia de complementar, que é o DL nº 406/68.
É elementar que a lei complementar, como seu próprio nome está dizendo, apenas com-
plementa a constituição.
Sobre ela escrevi:
“A utilização no campo do direito das normas de integração, em escala intermédia, permite que
o sistema plasmado na Constituição tenha contextura capaz de dar estabilidade à exação dos
diversos poderes tributantes.
É, pois, a lei complementar uma garantia de estabilidade do sistema, não permitindo que cinco
mil Municípios, vinte e seis Estados e a União tenham sistemas próprios, assim como do paga-
dor de tributos, que na Federação pode livremente viajar ou alterar seu domicílio, à luz dos
mesmos princípios gerais que regem o sistema.”43
Da mesma forma que a lei suprema não cria imposições, mas apenas defere competên-
cias, a lei complementar, que a explicita, não é auto-aplicável, dependendo de lei ordinária
do poder competente para criar tributos44.
contorno próprio, na forma do direito então vigente, tornando-se imune ao sentido que a lei posterior eventualmente
lhe atribua, ressalvadas as alterações ‘in bonam partem’.
Antonio Roberto Sampaio Dória assim sintetizou os princípios do direito intertemporal brasileiro, observando-se,
desde logo, que onde o autor se refere a ‘lei’ deve-se contemplar também a norma jurídica decisional (resultado da
interpretação da lei pela autoridade administrativa):
‘a) a lei nova não pode retroagir, expressa ou implicitamente, para atingir direitos adquiridos, a coisa julgada e o ato
jurídico perfeito, bem como seus efeitos, já inteiramente consumados no regime legal anterior’.” (Pesquisas Tribu-
tárias - Nova Série 11, p. 277)
42
Yoshiaki Ichihara assim se manifesta: “A regra geral de todas as regras e princípios deve ser aplicada sempre para o
futuro e nunca retroativamente.
A segurança jurídica, o princípio da boa-fé, entre outros, direcionam o entendimento neste sentido.
No nosso entender, os deveres éticos devem ser observados principalmente pelo Estado, que pela própria finalidade
e justificação da existência deve buscar o interesse coletivo e, por conseqüência, a segurança jurídica e a estabilida-
de do sistema.” (Pesquisas Tributárias - Nova Série 11, p. 409)
43
O Sistema Tributário na Constituição, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, 126.
44
Sobre a matéria escrevi: “Nossa resposta à questão é a seguinte: ‘Não é possível os Municípios legislarem sobre campo
reservado no exercício da competência concorrente às normas gerais. Portanto, não é possível os 5.500 Municípios
legislarem sobre limitações constitucionais ao poder de tributar ou em relação às imunidades tributárias, alterando o
conceito constitucional a pretexto de que objetiva estabelecer critério especial de tributação e prevenir desequilíbrios
da concorrência’.” (Pesquisas Tributárias - Nova Série 11, p. 408)
A Lei Complementar nº 87/95, por exemplo, definiu as normas gerais do ICMS, mas
todos os estados geraram as leis ordinárias para aplicá-la.
O próprio Município de Uruguaiana produziu a Lei nº 2.413/93 e esta impôs às socie-
dades de prestação de serviços o mesmo regime daquelas sociedades expressamente men-
cionadas no DL nº 406/68. Para mim, como a hipótese era ilegal e não havia outra forma de
imposição possível, caracterizou-se nítida hipótese de não-incidência, tendo a consulente
recolhido indevidamente o tributo.
É evidente que a partir das Leis de 2000 e 2003, com a expressa inclusão daquelas socie-
dades não mencionadas no DL nº 406/68 sob o regime de alíquotas variadas, passou a con-
sulente a ter de seguir o novo regime, rigorosamente irretroativo em relação a todas as ope-
rações passadas, praticadas pela consulente.
À primeira parte desta questão respondo, pois, que lei complementar, que explicita a
Constituição, define apenas competências e não pode ser auto-aplicável, pois dependente de
lei ordinária, inexistente à época dos fatos objetos do auto de infração lavrado em processo
administrativo, que transitou em julgado de forma definitiva45.
A segunda parte da questão é rigorosamente igual à primeira, pois, formulada “a con-
trario sensu”, tem por resposta, com os fundamentos da primeira, que não é possível exigir
ISS apenas com base na lei com eficácia de complementar (DL nº 406/68), à falta de lei or-
dinária - implantadora da exigência46.
Por fim, em relação à última questão, é de se lembrar que a Lei de Execução Fiscal
(6.830/80) é clara ao determinar que a execução principia com o termo de penhora, a partir
do qual começa a fluir o prazo para embargos à execução.
45
Neste sentido, Hamilton Dias de Souza preleciona: “Assim explica Amilcar de Araújo Falcão tal função da lei nacio-
nal, ao comentar o dispositivo contido no artigo 59, inciso XV, letra b da Constituição Federal de 1946: ‘Está claro
que, tendo o legislador constituinte pretendido, em princípio sob um critério de rigidez, segregar as diferentes áreas
de competência tributária, de modo a atribuir exclusividade ao exercício de cada uma delas e incomunicabilidade às
categorias de receitas fiscais respectivas, não se poderia conceber tivessem os diferentes titulares do poder de tribu-
tar ampla faculdade de definir os pressupostos de sua própria competência, o que equivale a definir os limites entre
as suas e as demais esferas de competência tributária.
A norma geral de direito financeiro, para cuja decretação é competente a União, evidentemente poderá ditar os prin-
cípios de regulamentação e de atuação, para que a discriminação de rendas opere em toda a sua plenitude, para o que
é necessário fixar-se de modo uniforme o conceito de cada um dos impostos especificamente discriminados, como
aliás do mesmo passo se impõe a precisa distinção ‘in genere’ dos tributos em imposto, taxa e contribuição de me-
lhoria, coisa que, bem ou mal, o legislador federal já fez através do Decreto-lei nº 2.416, de 17 de julho de 1940, e da
Lei nº 854, de 10 de outubro de 1.949.’
As observações do ilustre e saudoso professor, mostram que as normais gerais da Constituição de 1946 (cujo campo
abrangia a regulação de conflitos de competência) tinham por finalidade a correta atuação dos dispositivos relativos
à discriminação de rendas e não a desobediência a esses mesmos dispositivos.
Por tais razões, a lei complementar não cria tributos, pois só a lei ordinária do nível de governo competente poderá
criá-los. A função mais relevante da lei complementar prevista no art. 18, § 1º consiste em delimitar o campo de atua-
ção das competências impositivas, já previsto na Constituição. Tal delimitação, contudo, não exclui a competência
legislativa dos Estados para definir hipóteses de incidência, instituindo tributos, pois delimitar é fixar os limites dentro
dos quais a competência poderá ser exercida.” (Direito Tributário 2, São Paulo: José Bushatsky, 1973, pp. 34 a 36)
46
Gilberto de Ulhôa Canto explica, inclusive, a razão da lei complementar, ele que foi um dos autores do anteprojeto
do CTN: “matérias que a Carta de 1988 mandou regular, em que pesem suas muitas deficiências, o CTN tem presta-
do ao Brasil o relevantíssimo serviço de amparar os contribuintes contra a arbitrariedade e a prepotência fiscais, jus-
tamente porque formula diversos princípios e regras que submetem a administração tributária da União, dos Estados
e do Distrito Federal, e dos Municípios, à observância de critérios uniformes em matéria que tem a ver com as nor-
mas constitucionais, que dificilmente se poderia impor a mais de 5.000 entes públicos diferentes, se a cada um deles
fosse lícito entender e aplicar certas normas básicas como lhe aprouvesse. É indispensável a preservação da unidade
e da abrangência do CTN numa só lei, organicamente elaborada e compreensiva de todas as regras que asseguram ao
contribuinte o tratamento prescrito na Constituição.” (“Lei Complementar Tributária”, Caderno de Pesquisas Tri-
butárias vol. 15, São Paulo: CEU/Resenha Tributária, 1989, p. 15/16)
O bloqueio de valores em conta-corrente tem em vista a penhora de dinheiro para ga-
rantir a execução. Sem que haja a lavratura um termo de penhora e a respectiva intimação
do contribuinte, não começa a fluir o prazo para o oferecimento de embargos.
É o que dispõe o artigo 16 da Lei nº 6.830/80, assim redigido:
“Art. 16. O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:
I - do depósito;
II - da juntada da prova da fiança bancária;
III - da intimação da penhora.
§ 1º Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução.
§ 2º No prazo dos embargos, o executado deverá alegar toda matéria útil à defesa, requerer pro-
vas e juntar aos autos os documentos e rol de testemunhas, até três, ou, a critério do juiz, até o
dobro desse limite.
§ 3º Não será admitida reconvenção, nem compensação, e as exceções, salvo as de suspeição,
incompetência e impedimentos, serão argüidas como matéria preliminar e serão processadas e
julgadas com os embargos”,
que, neste particular, por ser lei especial, não pode, a meu ver, ser alterado, na nova lei pro-
cessual por falta de expressa menção47.
Remanescem opiniões contrárias, principalmente dos advogados do Fisco, que lutam por
reduzir o prazo de defesa dos contribuintes, nada obstante a Constituição assegurar a ampla
defesa no artigo 5º, inciso IV. Tal prazo não poderia ser reduzido, após 5 de outubro de 1988,
sem que tal ampla defesa fosse também reduzida48.
De qualquer forma, a própria lei processual civil exige, para a fluência do prazo de
embargos, a realização da penhora para garantia do Juízo e a intimação do executado (arti-
gos 736 e 738 do CPC)49.
A resposta, portanto, lastreada exclusivamente na Lei, é de que não serve o mero blo-
queio de termo de penhora. O prazo para embargos somente fluirá se o dinheiro bloqueado
for penhorado e desse ato intimado, formalmente, o contribuinte para apresentação de sua
defesa.
É esta a minha opinião.
47
O parágrafo 2º do artigo 2º da Lei de Introdução do Código Civil está assim redigido “Art. 2º (...)
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei
anterior.”
48
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal está assim redigido: “LV - aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes.”
49
Estão os respectivos artigos do CPC assim redigidos:
“Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de
embargos (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
(...)
Art. 738. Os embargos serão oferecidos no prazo de 15 (quinze) dias, contados da data da juntada aos autos do man-
dado de citação. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).”
JURISPRUDÊNCIA
Íntegras de Acórdãos
EXECUÇÃO FISCAL - FRAUDE - ALIENAÇÃO DE IMÓVEL - LC 118 - CTN ART. 185 -
PRESUNÇÃO DEPENDENTE DE PRÉVIO REGISTRO DA PENHORA
Ementa
Processual Civil e Tributário. Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo de Ins-
trumento. Execução Fiscal. Fraude em Execução. Ausência de Registro da Penhora. Súmula 375/STJ.
Violação ao art. 535 do CPC. Contradição e Obscuridade. Vícios não Evidenciados.
1. Os embargos de declaração são cabíveis quando o provimento jurisdicional padece de omis-
são, contradição ou obscuridade nos ditames do art. 535, I e II, do CPC, bem como para sanar a
ocorrência de erro material, vícios inexistentes na espécie.
2. O acórdão embargado, considerando que não é possível aplicar a nova redação do art. 185 do
CTN (LC 118/05) à hipótese em apreço (tempus regit actum), respaldou-se na interpretação da
redação original desse dispositivo legal adotada pela jurisprudência do STJ. Tal entendimento é
no sentido de que, para resguardar o direito de terceiro de boa-fé, a constatação de fraude em
execução decorrente da alienação de imóvel exige, além do ajuizamento da ação e a citação do
devedor, o registro da penhora no ofício de imóveis (para que a indisponibilidade do bem gere
efeitos de eficácia erga omnes), salvo se evidenciada a má-fé dos particulares (consilium frau-
dis), o que, conforme consignado pela Corte de origem, não ficou demonstrado nos autos.
3. A presunção de fraude de que trata o art. 185 do CTN depende do prévio registro da penhora
do bem imóvel alienado, preservando-se, assim, os interesses dos adquirentes de boa-fé. Essa é
a inteligência da recente Súmula 375/STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do
registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
4. Contradição e obscuridade não evidenciados.
5. Embargos de declaração rejeitados.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros
da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, rejeitar os embargos de declara-
ção, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Luiz Fux
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki.
Licenciada a Sra. Ministra Denise Arruda.
Brasília (DF), 06 de outubro de 2009 (Data do Julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves
Relator
Relatório
O Exmo. Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Trata-se de embargos de declaração opostos
pela Fazenda Nacional em face de acórdão prolatado pela Primeira Turma, assim ementado (fl. 173):
Processual Civil e Tributário. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Fraude à Execu-
ção. Art. 185 do CTN. Terceiro de Boa-fé. Ausência de Registro da Penhora. Súmula 375 do STJ.
1. Hipótese em que a Fazenda Nacional busca a penhora de bem imóvel alienado pelo devedor
no curso da execução fiscal.
2. Tendo em vista que o registro da alienação em apreço no Ofício de Imóveis ocorreu em data
anterior (17/8/2004) ao início da vigência da LC 118/05, deve ser aplicada a redação original do
art. 185 do CTN, em conformidade com o princípio tempus regit actum.
3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a fim de resguardar o direito de terceiro de
boa-fé, consolidou o entendimento de que a constatação de fraude em execução decorrente de
alienação de imóvel exige, além do ajuizamento da ação executiva e a citação do devedor, o re-
gistro da penhora no ofício de imóveis (para que a indisponibilidade do bem gere efeitos de efi-
cácia erga omnes), salvo se evidenciada a má-fé dos particulares (consilium fraudis), o que, con-
forme consignado pelo [sic] Corte de origem, não ficou demonstrado neste feito.
4. Rever as conclusões do Tribunal a quo a respeito da falta de comprovação pelo exequente acerca
da má-fé do adquirente implica reexame do conjunto fático-probatório, inviável ante o óbice da
Súmula 7/STJ.
5. Agravo regimental não provido.
A embargante sustenta que há contradição no acórdão impugnado. Para tanto, aduz (fl. 178):
Ora, considerando que o próprio acórdão embargado consignou que seria pertinente ao caso o
art. 185 em sua redação original e consignou, ainda, que estariam presentes os requisitos para
aplicação desse dispositivo legal - quais sejam, a existência de execução fiscal, com a citação do
devedor, afigura-se contraditório afirmar que a Fazenda Nacional não comprovou a má-fé do
devedor. Isso porque a aplicação do art. 185 do CTN, atendidos os requisitos de sua antiga ou
nova redação conforme o caso - reiterando que nestes casos, foram atendidos os requisitos mais
rigorosos da redação pretérita - implica que se tenha como presumidamente fraudulenta a alie-
nação, não se podendo exigir, pois, qualquer prova nesse sentido por parte do credor tributário.
É relatório.
Voto
O Senhor Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Como cediço, os embargos de declaração são
cabíveis quando o provimento jurisdicional padece de omissão, contradição ou obscuridade nos dita-
mes do art. 535, I e II, do CPC, bem como para sanar a ocorrência de erro material, vícios inexistentes
na espécie.
Com efeito, o acórdão embargado, considerando que não é possível aplicar a nova redação do
art. 185 do CTN (LC 118/05) à hipótese em apreço (tempus regit actum), respaldou-se na interpreta-
ção da redação original desse dispositivo legal adotada pela jurisprudência do STJ. Tal entendimento
é no sentido de que, para resguardar o direito de terceiro de boa-fé, a constatação de fraude em execu-
ção decorrente da alienação de imóvel exige, além do ajuizamento da ação e a citação do devedor, o
registro da penhora no ofício de imóveis (para que a indisponibilidade do bem gere efeitos de eficácia
erga omnes), salvo se evidenciada a má-fé dos particulares (consilium fraudis), o que, conforme con-
signado pela Corte de origem, não ficou demonstrado nos autos.
Verifica-se, portanto, que o entendimento desta Corte é no sentido de que a presunção de fraude de
que trata o art. 185 do CTN depende do prévio registro da constrição do bem imóvel alienado, preser-
vando-se, assim, os interesse [sic] do adquirente de boa-fé. Essa é a inteligência da recente Súmula
375/STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado
ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Sobre a matéria em comento, confiram-se os seguintes precedentes:
Tributário e Processual Civil. Execução Fiscal. Embargos de Terceiro. Ausência de Registro de
Penhora. Fraude. Não Configuração. Embargos de Declaração. Omissão e Erro Material Ine-
xistentes.
I - Os embargos de declaração constituem recurso de rígidos contornos processuais, exigindo-
se, para seu acolhimento, que estejam presentes os pressupostos legais de cabimento.
II - As alegadas omissões quanto à ausência de prequestionamento do art. 659, § 4º, do CPC;
ausência de juntada de cópia integral do acórdão paradigma e incidência do verbete sumular
nº 07/STJ, não foram aventadas anteriormente pela embargante, configurando-se, em verdade,
inovação à lide, incabível nesta sede recursal. Ademais, diante de tal constatação, também se pode
concluir que o acórdão não pode ser tachado de omisso, bem como que se operou a preclusão
lógica de tais matérias.
III - A nova redação do art. 185 do CTN, aviada pela LC nº 118/05, deve ser balizada pelo prin-
cípio do “tempus regit actum”, somente podendo ser aplicada às ações propostas após o início
de sua vigência, o que não ocorre no presente caso, no qual a ação foi proposta em 20.05.2004.
IV - Inexistentes, assim, omissão e erro material no aresto embargado, que adotou o entendi-
mento firmado nesta Corte, segundo o qual é válida a alienação a terceiro que adquiriu o bem
sem conhecimento da constrição judicial, anteriormente ao registro da penhora do imóvel, am-
parado pela boa-fé, afastando, neste caso, a fraude à execução. Precedentes: AgRg no REsp nº
854.778/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 30/10/2006; AgRg no Ag nº 480.706/MG,
Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 26/10/2006 e REsp nº 670.958/PR, Relator
Ministro Castro Meira, DJ de 15/09/2006.
V - Não houve a declaração de inconstitucionalidade, a ensejar a aplicação do art. 97 da CF/88,
o qual cuida da reserva de plenário, mas sim a adequação da lei ao caso concreto. Precedentes:
AgRg no REsp nº 924.327/RS, Rel. Ministro José Delgado, DJ de 13/08/2007 e REsp nº 446.393/PB,
Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 03/08/2006.
VI - Embargos de declaração rejeitados (EDcl no AgRg no REsp 1.035.146/PB, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 5/8/2008, DJe 27/8/2008 - grifo nosso).
Processual Civil e Tributário. Agravo Regimental. Execução Fiscal. Embargos de Terceiro. Alie-
nação de Veículo. Ausência de Registro. Adquirente de Boa-fé. Não-ocorrência de Fraude. Pre-
cedentes. Desnecessidade de Declaração de Inconstitucionalidade da Norma Legal.
1. Agravo regimental contra decisão que negou seguimento a recurso especial.
2. O acórdão a quo considerou inexistente a fraude à execução, visto que, mesmo ocorrendo a
tradição do veículo após a citação da devedora, quando do registro no Detran, não havia nenhu-
ma anotação de cláusula de intransferibilidade no referido órgão, caracterizando, assim, a boa-
fé quando da aquisição do bem.
3. “O CTN nem o CPC, em face da execução, não estabelecem a indisponibilidade de bem alfor-
riado de constrição judicial. A pré-existência de dívida inscrita ou de execução, por si, não cons-
titui ônus ‘erga omnes’, efeito decorrente da publicidade do registro público. Para a demonstra-
ção do ‘consilium’ ‘fraudis’ não basta o ajuizamento da ação. A demonstração de má-fé, pressu-
põe ato de efetiva citação ou de constrição judicial ou de atos repersecutórios vinculados a imó-
vel, para que as modificações na ordem patrimonial configurem a fraude. Validade da alienação
a terceiro que adquiriu o bem sem conhecimento de constrição já que nenhum ônus foi dado à
publicidade. Os precedentes desta Corte não consideram fraude de execução a alienação ocorri-
da antes da citação do executado alienante” (EREsp nº 31.321/SP, Rel. Min. Milton Luiz Perei-
ra, DJ de 16/11/1999).
4. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que o terceiro que adquire veículo de pessoa
diversa da executada, de boa-fé, diante da ausência do registro da penhora junto ao Detran, não
pode ser prejudicada pelo reconhecimento da fraude à execução.
5. Desnecessidade de apreciação da constitucionalidade da norma legal discutida (art. 185 do
CTN), mas, sim, adequá-la ao caso concreto. Decisão tomada com base em inúmeros preceden-
tes desta Corte.
6. Agravo regimental não-provido (AgRg no REsp 924.327/RS, Rel. Ministro José Delgado, Pri-
meira Turma, julgado em 26/06/2007, DJ 13/08/2007, p. 351).
Não vislumbro, pois, a contradição apontada.
Ante o exposto, rejeito os embargos de declaração.
É como voto.
Certidão de Julgamento
Primeira Turma
Número Registro: 2008/0037631-5 EDcl no AgRg no Ag 1.019.882/PR
Números Origem: 200070060012240 200704000085279 200804000003991
Em Mesa Julgado: 06/10/2009
Relator
Exmo. Sr. Ministro Benedito Gonçalves
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro Benedito Gonçalves
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. Ivaldo Olímpio de Lima
Secretária
Bela. Bárbara Amorim Sousa Camuña
Autuação
Agravante: Fazenda Nacional
Agravado: Dupla Propaganda e Marketing S/C Ltda
Agravado: Marelaine Wittes Bolsan
Agravado: Newton Amorim da Silva Júnior
Advogado: s/ Representação nos Autos
Assunto: Direito Tributário
Embargos de Declaração
Embargante: Fazenda Nacional
Embargado: Dupla Propaganda e Marketing S/C Ltda
Embargado: Marelaine Wittes Bolsan
Embargado: Newton Amorim da Silva Júnior
Advogado: s/ Representação nos Autos
Certidão
Certifico que a egrégia Primeira Turma, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta
data, proferiu a seguinte decisão:
A Turma, por unanimidade, rejeitou os embargos de declaração, nos termos do voto do Sr. Minis-
tro Relator.
Os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Luiz Fux votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki.
Licenciada a Sra. Ministra Denise Arruda.
Brasília, 06 de outubro de 2009.
Bárbara Amorim Sousa Camuña
Secretária
NOTAS DA DIALÉTICA
1) A ementa do acórdão acima reproduzido foi publicada no DJe de 14.10.2009.
2) Vide Íntegras de Acórdãos do STJ - 2ª Turma (RDDT 102:174 e 169:181), e Acórdãos do STJ - 2ª
Turma (RDDT 101:231, 109:226 e 135:222) e do TRF da 1ª Região - 3ª Turma (RDDT 89:229).
Ag. Reg. no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 372.124-1 Rio Grande do Sul
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata
de julgamentos e das notas taquigráficas, por decisão unânime, negar provimento ao agravo regimen-
tal no agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 8 de setembro de 2009.
Ricardo Lewandowski - Relator
Relatório
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão que
deu parcial provimento a recurso extraordinário da União.
A agravante insurgiu-se contra decisão que entendeu pela incidência de correção monetária sobre
créditos escriturais de IPI no período em que se reconheceu a ilegítima resistência do Fisco.
Alegou-se, em suma, que conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não é possível a
correção monetária de créditos escriturais.
É o relatório.
Voto
O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Eis o teor da decisão agravada:
“Em 27/2/2003, o então Relator, Ministro Carlos Velloso, negou seguimento ao presente recur-
so extraordinário ao entendimento de que há direito do contribuinte de creditar-se do IPI na aqui-
sição de insumos sujeitos à alíquota zero (fl. 305).
Contra essa decisão foi interposto agravo regimental, no qual se sustentou, em suma, que não
foi examinada a questão do aproveitamento de créditos na aquisição de insumos não-tributa-
dos e que não há decisão definitiva desta Corte acerca daqueles sujeitos à alíquota zero. Ale-
gou-se, ainda, ser indevida a correção monetária dos créditos escriturais do IPI.
Assiste razão à agravante, em parte. Reconsidero a decisão de fl. 305 e passo a apreciar o re-
curso extraordinário.
O acórdão recorrido reconheceu o direito do contribuinte de creditar-se do IPI na aquisição de
insumos sob o regime de isenção, não-tributação ou sujeitos à alíquota zero.
No RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, sustentou-se apenas a inconstitucionalida-
de do crédito de IPI na aquisição de insumos sob o regime de não-tributação e alíquota zero,
bem como o descabimento de correção monetária sobre créditos escriturais do IPI.
A pretensão recursal merece acolhida, em parte.
Observe-se inicialmente, que o direito aos créditos de IPI na aquisição de produtos isentos não
foi objeto do recurso extraordinário e, dessa forma, a matéria ficou preclusa.
Quanto às outras situações atacadas no apelo, verifico que o Plenário desta Corte, no julga-
mento do RE 353.657/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, e do RE 370.682/SC, Rel. Min. Ilmar Gal-
vão, deu provimento aos recursos por entender que, nas hipóteses de não-tributação ou de alí-
quota zero do IPI, a admissão do creditamento implica ofensa ao art. 153, § 3º, II, da Consti-
tuição, não havendo falar em direito a crédito presumido, ante a inexistência de parâmetro nor-
mativo para se definir a quantia a ser compensada, não competindo tal tarefa ao Judiciário, que
não possui função de legislador positivo.
Ademais, ‘esclareceu-se que a Lei 9.779/99 não confere direito a crédito na hipótese de alíquo-
ta zero ou de não-tributação e sim naquela em que as operações anteriores foram tributadas,
mas a final não o foi, evitando-se, com isso, tornar inócuo o benefício fiscal’ (Informativo 456
do STF).
No mesmo sentido, cito as seguintes decisões, entre outras: RE 459. 553/SC, Rel. Min. Eros Grau;
RE 539. 821/MG, Rel. Min. Carlos Britto; RE 396.371/SC, Rel. Min. Cármen Lúcia; RE 407.823/MG,
Rel. Min. Marco Aurélio; RE 352.424/PR, Rei. Min. Cezar Peluso.
Com relação à discussão sobre a incidência de correção monetária aos créditos reconhecidos
nos autos, não é de se aplicar a jurisprudência do Tribunal que, ressalvada a previsão em le-
gislação local, entende indevida a correção monetária dos créditos regularmente escriturados.
É que a Corte admite a incidência da correção monetária referente ao período em que se reco-
nheceu ilegítima a resistência do Estado em possibilitar o aproveitamento dos créditos mencio-
nados, a exemplo do que ocorreu no julgamento do RE 282.120/PR, Rel. Min. Maurício Cor-
rêa, cuja ementa transcrevo a seguir:
‘Recurso Extraordinário. Prequestionamento. Exportação. Produtos Industrializados. ICMS.
Matéria-prima e Outros Insumos. Compensação. Autorização Legal. Suspensão Liminar. Cré-
dito Impossibilitado. Constitucionalidade Reconhecida posteriormente. Retorno da Situação
ao Status Quo Ante. Correção Monetária. Cabimento.
1. Prequestionamento. Ausente o interesse de recorrer, por falta de sucumbência, basta para
o atendimento do requisito que a tese jurídica suscitada como causa de pedir tenha sido ob-
jeto das contra-razões apresentadas pela parte por ocasião dos recursos de apelação e extraor-
dinário, e também tratada nos embargos de declaração.
2. ICMS. Compensação autorizada pelo artigo 3º da Lei Complementar federal 65/91. Regra
legal suspensa liminarmente. Julgamento de mérito superveniente que reconheceu a constitu-
cionalidade do dispositivo (ADI 600, DJ 30/06/95). Efeitos ex-tunc da decisão.
3. Créditos escriturais não realizados no momento adequado por óbice do Fisco, em obser-
vância à suspensão cautelar da norma autorizadora. Retorno da situação ao status quo ante-
rior. Garantia de eficácia da lei, desde sua edição. Correção monetária devida, sob pena de
enriquecimento sem causa da Fazenda Pública.
4. Atualização monetária que não advém da permissão legal de compensação, mas do impe-
dimento causado pelo Estado para o lançamento na época própria. Hipótese diversa da mera
pretensão, de corrigir-se, sem previsão legal, créditos escriturais do ICMS.
Acórdão mantido por fundamentos diversos.
Recurso extraordinário não conhecido.’
Nessa mesma, esteira de pensamento, anoto, ainda, os seguintes precedentes: RE 200.379-ED-
ED-EDv/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RE 301.753-AgR/PR, Rel. Min. Ellen Gracie.
Isso posto, reconsidero a decisão agravada, conheço do recurso extraordinário e dou-lhe par-
cial provimento apenas para negar o direito ao crédito de IPI decorrente da aquisição de pro-
dutos não tributados ou sujeitos à alíquota zero e limitar a correção monetária dos créditos
devidos ao período compreendido entre a ilegítima resistência do Fisco em permitir seu apro-
veitamento e o trânsito em julgado da decisão que possibilitou esse direito” (fls. 327-329).
Bem reexaminada a questão, verifica-se que a decisão ora atacada não merece reforma, visto que a
recorrente não aduz novos argumentos capazes de afastar as razões nela expendidas.
No caso dos autos, não é de se aplicar a jurisprudência do Tribunal que, ressalvada a previsão em
legislação local, entende indevida a correção monetária dos créditos regularmente escriturados.
É que a Corte admite a incidência da correção monetária referente ao período em que se reconhe-
ceu ilegítima a resistência do Estado em possibilitar o aproveitamento dos créditos mencionados, a
exemplo do que ocorreu no julgamento do RE 200.379-ED-ED-EDv/SP, ReI. Min. Sepúlveda Pertence,
cuja ementa transcrevo a seguir:
“ICMS: direito de crédito do imposto pago na aquisição de bens para o ativo fixo, com correção
monetária: embargos de divergência: não conhecimento: não aplicação ao caso da jurisprudên-
cia invocada pelo embargante. 1. É assente a jurisprudência do Supremo Tribunal que, em se tra-
tando de regular lançamento de crédito tributário em decorrência de recolhimento de ICMS, não
haverá incidência de correção monetária no momento da compensação com o tributo devido na
saída da mercadoria do estabelecimento. Precedentes. 2. O caso, contudo, é de crédito tributário
- reconhecido pelo acórdão embargado e não contestado pelo embargante -, cuja escrituração não
ocorrera por óbice imposto pelo Estado, hipótese em que é devida a correção monetária e não se
aplica a jurisprudência citada, cujo pressuposto é a regularidade da escrituração. Precedente: RE
282.120, Maurício Corrêa, RTJ 184/332.”
Nessa mesma esteira de pensamento, anoto, ainda, os seguintes precedentes: RE 282.120/PR, Rel.
Min. Maurício Corrêa; RE 301.753-AgR/PR, Rel. Min. Ellen Gracie.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.
Extrato de Ata
Ag. Reg. no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 372.124-1
Proced.: Rio Grande do Sul
Relator: Min. Ricardo Lewandowski
Agte(s).: União
Adv(a/s).: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Agdo(a/s).: American Tool do Brasil Ltda.
Adv(a/s).: Marcos Leandro Pereira e Outro(a/s)
Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental no agravo regimental no recurso extraor-
dinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª Turma, 08.09.2009.
Presidência do Ministro Carlos Ayres Britto. Presentes à Sessão os Ministros Marco Aurélio, Ri-
cardo Lewandowski e a Ministra Cármen Lúcia.
Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas.
Ricardo Dias Duarte
Coordenador
NOTAS DA DIALÉTICA
1) A ementa do acórdão acima reproduzido foi publicada no DJe de 24.9.2009, p. 54.
2) Vide Íntegra de Acórdão do STF - 1ª Turma (RDDT 169:190).
ITR - IMÓVEL INVADIDO - MOVIMENTO “SEM-TERRA” - PERDA DO DOMÍNIO E
DOS DIREITOS INERENTES À PROPRIEDADE - INSUBSISTÊNCIA DA EXAÇÃO
Ementa
Tributário. ITR. Incidência sobre Imóvel. Invasão do Movimento “Sem Terra”. Perda do Domí-
nio e dos Direitos Inerentes à Propriedade. Impossibilidade da Subsistência da Exação Tribu-
tária. Princípio da Proporcionalidade. Recurso Especial não Provido.
1. Conforme salientado no acórdão recorrido, o Tribunal a quo, no exame da matéria fática e pro-
batória constante nos autos, explicitou que a recorrida não se encontraria na posse dos bens de
sua propriedade desde 1987.
2. Verifica-se que houve a efetiva violação ao dever constitucional do Estado em garantir a pro-
priedade da impetrante, configurando-se uma grave omissão do seu dever de garantir a observân-
cia dos direitos fundamentais da Constituição.
3. Ofende os princípios básicos da razoabilidade e da justiça o fato do Estado violar o direito de
garantia de propriedade e, concomitantemente, exercer a sua prerrogativa de constituir ônus tri-
butário sobre imóvel expropriado por particulares (proibição do venire contra factum proprium).
4. A propriedade plena pressupõe o domínio, que se subdivide nos poderes de usar, gozar, dis-
por e reinvidicar [sic] a coisa. Em que pese ser a propriedade um dos fatos geradores do ITR,
essa propriedade não é plena quando o imóvel encontra-se invadido, pois o proprietário é tolhi-
do das faculdades inerentes ao domínio sobre o imóvel.
5. Com a invasão do movimento “sem terra”, o direito da recorrida ficou tolhido de praticamen-
te todos seus elementos: não há mais posse, possibilidade de uso ou fruição do bem; consequen-
temente, não havendo a exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de
renda ou de benefícios para a proprietária.
6. Ocorre que a função social da propriedade se caracteriza pelo fato do proprietário condicio-
nar o uso e a exploração do imóvel não só de acordo com os seus interesses particulares e egoís-
ticos, mas pressupõe o condicionamento do direito de propriedade à satisfação de objetivos para
com a sociedade, tais como a obtenção de um grau de produtividade, o respeito ao meio ambiente,
o pagamento de impostos etc.
7. Sobreleva nesse ponto, desde o advento da Emenda Constitucional n. 42/2003, o pagamento
do ITR como questão inerente à função social da propriedade. O proprietário, por possuir o do-
mínio sobre o imóvel, deve atender aos objetivos da função social da propriedade; por conseguin-
te, se não há um efetivo exercício de domínio, não seria razoável exigir desse proprietário o cum-
primento da sua função social, o que se inclui aí a exigência de pagamento dos impostos reais.
8. Na peculiar situação dos autos, ao considerar-se a privação antecipada da posse e o esvazia-
mento dos elementos de propriedade sem o devido êxito do processo de desapropriação, é inexi-
gível o ITR diante do desaparecimento da base material do fato gerador e da violação dos referi-
dos princípios da propriedade, da função social e da proporcionalidade.
9. Recurso especial não provido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Minis-
tros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taqui-
gráficas, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Eliana Calmon, Castro Meira, Humberto Martins e Herman Benjamin votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Humberto Martins.
Brasília (DF), 13 de outubro de 2009.
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator
Relatório
O Exmo. Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto pela União, com fulcro na alínea “a” do permissivo consti-
tucional, contra acórdão prolatado pelo TRF da 4ª Região que, por unanimidade, negou provimento a
remessa oficial e a recurso de apelação interposto contra sentença exarada nos autos de mandado de
segurança, em que se pleiteia o afastamento da exigência tributária relativa ao Imposto Territorial Ru-
ral (ITR) incidente sobre dois imóveis da propriedade da impetrante.
O Tribunal recorrido consignou que “restando incontroverso que, desde 1987 o proprietário não
detém o direito de usar, gozar e dispor do imóvel, em decorrência de sua invasão por integrantes do
movimento “sem terra”, e o direito de reavê-lo não é assegurado pelo Estado, a propriedade se man-
tém na mera formalidade e não configura fato gerador do ITR”.
Nas razões do recurso especial, sustenta a recorrente violação ao artigo 29 do Código Tributário
Nacional (CTN) e ao artigo 535 do Código de Processo Civil. Aduz, em síntese, ser devida a cobrança
relativa [a]o ITR, tendo em vista constituir a propriedade fato gerador da referida exação.
Nas contra-razões recursais, pugna a recorrida pelo não conhecimento do recurso especial - ante a
incidência do enunciado das Súmulas 282 e 356 do STF. No mérito, sustenta o seu não provimento.
É o relatório.
Voto
O Exmo. Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator):
Cinge-se a controvérsia em verificar se é devido o ITR pelo proprietário que tem a sua propriedade
esbulhada pelo movimento dos “sem terra”.
Conforme salientado no acórdão recorrido, o Tribunal a quo, no exame da matéria fática e proba-
tória constante nos autos, explicitou que a recorrida não se encontraria na posse dos bens de sua pro-
priedade desde 1987 (fl. 381):
(...) a farta documentação acostada à inicial deixa antever que, de fato, a impetrante não mais se
encontra na posse dos imóveis acima mencionados há quase vinte anos, eis que foram ocupados
por integrantes do movimento dos “sem-terra” em 1987.
Da análise das fotocópias das inúmeras decisões judiciais já proferidas com relação aos imóveis
em questão, conclui-se também que a impetrante envidou todos os esforços na defesa de sua posse
que, no entanto, não mais detém.
O inciso XXII da Constituição, norma de direito fundamental, garante o direito à propriedade, que
se desdobra na necessidade da prestação de uma obrigação negativa e de uma obrigação positiva por
parte do Estado. A obrigação negativa possui eficácia vertical, por meio da qual o Estado não pode, ao
seu livre talante, violar a propriedade particular, salvo nos casos previstos na Constituição e mediante
a devida indenização. A obrigação positiva, por outro lado, possui eficácia horizontal, no sentido de
que o Estado deve garantir que os demais particulares não violem o direito de propriedade de deter-
minado cidadão.
No caso ora tratado, verifica-se que houve a efetiva violação ao dever constitucional do Estado em
garantir a propriedade da impetrante, configurando-se uma grave omissão do seu dever de garantir a
observância dos direitos fundamentais da Constituição.
Ofende os princípios básicos da razoabilidade e da justiça o fato do Estado violar o direito de ga-
rantia de propriedade e, concomitantemente, exercer a sua prerrogativa de constituir ônus tributário
sobre imóvel expropriado por particulares (proibição do venire contra factum proprium).
Há uma verdadeira iniquidade no caso em tela, consubstanciada na possibilidade do Estado, apro-
veitando-se da sua própria inércia, tributar propriedade que, devido à sua própria omissão em prover
segurança, ocasionou a perda das faculdades inerentes ao direito de propriedade da ora recorrida.
A propriedade plena pressupõe o domínio, que se subdivide nos poderes de usar, gozar, dispor e
reinvidicar [sic] a coisa. Em que pese ser a propriedade um dos fatos geradores do ITR, essa proprie-
dade não é plena quando o imóvel encontra-se invadido, pois o proprietário é tolhido das faculdades
inerentes ao direito de domínio sobre o imóvel. Assim giza o artigo 1.228 do Código Civil:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de rea-
vê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econô-
micas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e se-
jam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou
utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público
iminente.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em ex-
tensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de
pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços con-
siderados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário;
pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Com a invasão do movimento “sem terra”, o direito da recorrida ficou tolhido de praticamente to-
dos seus elementos: não há mais posse, possibilidade de uso ou fruição do bem; consequentemente,
não havendo a exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de renda ou de
benefícios para a proprietária.
Ocorre que a função social da propriedade se caracteriza pelo fato do proprietário condicionar o
uso e a exploração do imóvel não só de acordo com os seus interesses particulares e egoísticos, mas
pressupõe o condicionamento do direito de propriedade à satisfação de objetivos para com a socieda-
de, tais como a obtenção de um grau de produtividade, o respeito ao meio ambiente, o pagamento de
impostos etc.
Sobreleva nesse ponto, desde o advento da Emenda Constitucional n. 42/2003, o pagamento de
impostos como questão inerente à função social da propriedade. O proprietário, por possuir o domí-
nio sobre o imóvel, deve atender aos objetivos da função social da propriedade; por conseguinte, se
não há um efetivo exercício de domínio, não seria razoável exigir desse proprietário o cumprimento
da sua função social, o que se inclui aí a exigência de pagamento dos impostos reais.
Diante [d]o exposto, espera-se, no mínimo, que o Estado reconheça que, diante da sua própria omis-
são e da dramaticidade dos conflitos agrários no País, aquele que não tem mais direito algum não pos-
sa ser tributado por algo que, somente em razão de uma ficção jurídica, detém sobre o bem o título de
propriedade. Ofende o princípio da razoabilidade, o da boa-fé objetiva e o próprio bom senso o Esta-
do utilizar-se da aparência desse direito ou do resquício que ele deixou, para cobrar tributos que pres-
supõem a incolumidade e a existência nos planos jurídicos (formal) e fáticos (material) dos direitos
inerentes à propriedade.
Insta salientar ser irrelevante que a omissão estatal limite-se a esferas diversas da Administração
Pública, pois seus entes são partes de um todo maior que é o Estado brasileiro: ao final, é esse que
responde pela garantia dos direitos individuais e sociais e pela razoabilidade da conduta de seus entes
(em que se divide e organiza), aí se incluindo a própria autoridade tributária.
Dessa feita, na peculiar situação dos autos, ao considerar-se a privação antecipada da posse e o es-
vaziamento dos elementos de propriedade sem o devido êxito do processo de desapropriação, é inexi-
gível o ITR diante do desaparecimento da base material do fato gerador e da violação dos referidos
princípios da propriedade, da função social e da proporcionalidade.
Ante o exposto, entendo pelo não provimento do recurso especial.
É como voto.
Certidão de Julgamento
Segunda Turma
Número Registro: 2009/0114749-3 REsp 1.144.982/PR
Número Origem: 200770000116084
Pauta: 13/10/2009 Julgado: 13/10/2009
Relator
Exmo. Sr. Ministro Mauro Campbell Marques
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro Humberto Martins
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. Eugênio José Guilherme de Aragão
Secretária
Bela. Valéria Alvim Dusi
Autuação
Recorrente: Fazenda Nacional
Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Recorrido: Gelza Regina de Abreu Moresco
Advogado: Irineu Palma Pereira e Outro(s)
Assunto: Direito Tributário - Impostos - ITR/Imposto Territorial Rural
Certidão
Certifico que a egrégia Segunda Turma, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta
data, proferiu a seguinte decisão:
“A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Minis-
tro(a) Relator(a).”
Os Srs. Ministros Eliana Calmon, Castro Meira, Humberto Martins e Herman Benjamin votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 13 de outubro de 2009.
Valéria Alvim Dusi
Secretária
NOTAS DA DIALÉTICA
1) A ementa do acórdão acima reproduzido foi publicada no DJe de 15.10.2009.
2) Vide Acórdão do TRF da 3ª Região - 6ª Turma (RDDT 17:206).
Ementa
Tributário. Imóvel na Área Urbana. Destinação Rural. IPTU. Não-incidência. Art. 15 do DL
57/1966. Recurso Repetitivo. Art. 543-C do CPC.
1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que
comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindus-
trial (art. 15 do DL 57/1966).
2. Recurso Especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução
8/2008 do STJ.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros
da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça: “A Seção, por unanimidade, deu provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.” Os Srs. Ministros Mauro Campbell
Marques, Benedito Gonçalves, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Luiz Fux, Castro Meira e Hum-
berto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Denise Arruda.
Brasília, 26 de agosto de 2009 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin
Relator
Relatório
O Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator): Trata-se de Recurso Especial interposto, com
fundamento no art. 105, III, “a”, da Constituição da República, contra acórdão assim ementado (fl. 170):
Apelação - Mandado de Segurança - IPTU x ITR - Imóvel situado em zona urbana - Alegação
de produção agrícola - Cobrança de IPTU devida - Competência do ente Municipal para fixar as
diretrizes visando o desenvolvimento das funções sociais da cidade - Somente o Município pode
definir critérios de cobrança do imposto sobre a propiiedade [sic] existente na zona urbana -
Recurso provido.
Os Embargos de Declaração foram rejeitados (fl. 193).
O recorrente aponta ofensa ao art. 15 do Decreto[-lei] 57/1966, pois submete-se ao ITR o imóvel
“que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuário ou agro-
industrial” (fl. 219).
O Recurso foi admitido na origem (fl. 271).
Reconheci o Recurso como representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, e
determinei as providências cabíveis, além de intimação da Fazenda Nacional (fl. 278), que deixou de
se manifestar (fl. 283).
O MPF opinou pelo não conhecimento do Recurso (fl. 284).
É o relatório.
Voto
O Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator): Discute-se a aplicação do art. 15 do DL 57/1966
como critério para afastamento da incidência do IPTU.
Inicialmente, analiso a questão levantada pelo MPF em seu parecer, ao opinar pelo não conheci-
mento do Recurso, pois “o recorrente não fez demonstração cabal de que sua propriedade destina-se a
atividades rurais”, o que atrairia o disposto na Súmula 7/STJ (fl. 284).
Ocorre que a destinação do imóvel para atividades agrícolas é incontroversa. Transcrevo trecho da
sentença (fl. 126):
Observa-se, a despeito dessa situação, não poder ser descartado o critério de utilização e desti-
nação do imóvel, que no caso dos autos resta devidamente comprova[do] no sentido de utiliza-
ção para o cultivo de hortaliças e eucalipto, portanto de natureza rural, a despeito de inserido em
zona qualificada como urbana pelo Município.
Essa realidade não foi impugnada na Apelação do Município (fls. 129-139), razão pela qual não
foi reexaminada pelo Tribunal de Justiça.
A análise do Recurso Especial, portanto, parte de premissa fática incontroversa (destinação rural
do imóvel), o que afasta o disposto na Súmula 7/STJ.
No mérito, a discussão a respeito da incidência do IPTU ou do ITR é caso clássico de conflito de
competência a ser dirimido pela legislação complementar, nos termos do art. 146, I, da CF.
O art. 32, § 1º, do CTN adota o critério da localização do imóvel e considera urbana a área defini-
da na lei municipal, desde que observadas pelo menos duas das melhorias listadas em seus incisos.
Ademais, considera-se também nessa situação o imóvel localizado em área de expansão urbana, cons-
tante de loteamento aprovado, nos termos do § 2º, do mesmo dispositivo.
Ocorre que o critério espacial do art. 32 do CTN não é o único a ser considerado. O DL 57/1966,
recepcionado pela atual Constituição como lei complementar (assim como o próprio CTN), acrescen-
tou o critério da destinação do imóvel, para delimitação das competências municipal (IPTU) e federal
(ITR):
Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel
de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou
agro-industrial, incidindo assim, sôbre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobra-
dos.
Destaco que o STF reconhece a vigência do dispositivo legal no sistema tributário contemporâneo:
Ementa: - Direito Constitucional, Tributário e Processual Civil. Imposto Predial e Territorial Ur-
bano (I.P.T.U.). Imposto Territorial Rural (I.T.R.). Taxa de Conservação de Vias. Recurso Extraor-
dinário.
(...)
2. R.E. conhecido, pela letra “b”, mas improvido, mantida a declaração de inconstitucionalidade
do art. 12 da Lei federal n. 5.868, de 12.12.1972, no ponto em que revogou o art. 15 do Decreto-
lei n. 57, de 18.11.1966.
3. Plenário. Votação unânime.
(RE 140.773/SP, Relator: Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/1998, DJ
04-06-1999, pp-00017, Ement Vol-01953-01, pp-00127)
Nesse sentido, a jurisprudência do STJ é pacífica ao reconhecer a aplicabilidade do art. 15 do DL
57/1966 como critério delimitador da incidência tributária sobre imóveis:
Tributário. IPTU. ITR. Imóvel. Exploração Extrativa Vegetal. Art. 32 do CTN, 15 do Decreto-
Lei nº 57/66.
1. O artigo 15 do Decreto-Lei nº 57/66 exclui da incidência do IPTU os imóveis cuja destinação
seja, comprovadamente a de exploração agrícola, pecuária ou industrial, sobre os quais incide o
Imposto Territorial Rural - ITR, de competência da União.
2. Tratando-se de imóvel cuja finalidade é a exploração extrativa vegetal, ilegítima é a cobrança,
pelo Município, do IPTU, cujo fato gerador se dá em razão da localização do imóvel e não da
destinação econômica. Precedente.
3. Recurso especial improvido.
(REsp 738.628/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 12/05/2005, DJ
20/06/2005, p. 259)
Tributário. IPTU. ITR. Fato Gerador. Imóvel Situado na Zona Urbana. Localização. Destinação.
CTN, art. 32. Decreto-Lei n. 57/66. Vigência.
1. Ao ser promulgado, o Código Tributário Nacional valeu-se do critério topográfico para deli-
mitar o fato gerador do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e o
Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR): se o imóvel estivesse situado na zona urba-
na, incidiria o IPTU; se na zona rural, incidiria o ITR.
2. Antes mesmo da entrada em vigor do CTN, o Decreto-Lei nº 57/66 alterou esse critério, esta-
belecendo estarem sujeitos à incidência do ITR os imóveis situados na zona rural quando utili-
zados em exploração vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial.
3. A jurisprudência reconheceu validade ao DL 57/66, o qual, assim como o CTN, passou a ter o
status de lei complementar em face da superveniente Constituição de 1967. Assim, o critério to-
pográfico previsto no art. 32 do CTN deve ser analisado em face do comando do art. 15 do DL
57/66, de modo que não incide o IPTU quando o imóvel situado na zona urbana receber quais-
quer das destinações previstas nesse diploma legal.
4. Recurso especial provido.
(REsp 492.869/PR, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 15/02/2005,
DJ 07/03/2005, p. 141)
Assim, não incide IPTU, mas sim o ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município,
desde que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou
agroindustrial.
Ao lado do critério espacial previsto no art. 32 do CTN, deve ser aferida a destinação do imóvel,
nos termos do art. 15 do DL 57/1966.
Por fim, por se tratar de recurso submetido ao regime do art. 543-C do CPC, determino a adoção
das providências relativas à Resolução 8/2008 do STJ.
Diante do exposto, dou provimento ao Recurso Especial.
É como voto.
Certidão de Julgamento
Primeira Seção
Número Registro: 2009/0051088-6 REsp 1.112.646/SP
Números Origem: 16752004 4391495 4391495601
Pauta: 26/08/2009 Julgado: 26/08/2009
Relator
Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro Teori Albino Zavascki
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. Flavio Giron
Secretária
Bela. Carolina Véras
Autuação
Recorrente: Mário Yokoya
Advogado: Fernando Dias Júnior e Outro(s)
Recorrido: Município de São Bernardo do Campo
Procurador: Andrea Alionis Banzatto e Outro(s)
Assunto: Direito Tributário - Impostos - ITR/Imposto Territorial Rural
Certidão
Certifico que a egrégia Primeira Seção, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nes-
ta data, proferiu a seguinte decisão:
“A Seção, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Minis-
tro Relator.”
Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Hamilton Carvalhido, Eliana
Calmon, Luiz Fux, Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Denise Arruda.
Brasília, 26 de agosto de 2009.
Carolina Véras
Secretária
NOTAS DA DIALÉTICA
1) A ementa do acórdão acima reproduzido foi publicada no DJe de 28.8.2009 e antecipada na RDDT
170:231.
2) Vide Acórdãos do STJ - 1ª Seção (RDDT 170:231) e do TRF da 3ª Região - 3ª Turma (RDDT
10:199).
Decisões
COFINS E PIS - RECEITA BRUTA - ART. 3º, § 1º DA LEI 9.718 - APORTES
FINANCEIROS ESTRANHOS - PROPOSTA DE SÚMULA VINCULANTE
(Ministra Ellen Gracie, Presidente da Comissão de Jurisprudência, do STF)
Proposta de Súmula Vinculante 22
Origem: PSV - 40820 - Supremo Tribunal Federal
Proced.: Distrito Federal
Propte(s).: Supremo Tribunal Federal
NOTA DA DIALÉTICA
Vide Íntegras de Acórdãos do STJ - 1ª Turma (RDDT 144:119 e 152:156) e do TRF da 4ª Região - 1ª
Turma (RDDT 114:147), e Acórdãos do STJ - 1ª Turma (RDDT 143:209 e 165:203).
NOTA DA DIALÉTICA
Vide Íntegras de Acórdãos do STF - 1ª Turma (RDDT 106:159 e 109:139), e Acórdãos do STF - Ple-
no (RDDT 118:205) e do STF - 1ª Turma (RDDT 108:218, 110:222 e 151:208).
Decisão Monocrática
Vistos etc.
Nego seguimento ao presente agravo de instrumento, forte no art. 557, “caput”, do CPC, porque se
trata de recurso manifestamente improcedente.
Ressalvo o posicionamento que até então vinha adotando em casos análogos, e modifico minha
posição, passando a adotar o posicionamento da 22ª Câmara Cível, bem como do 11º Grupo Cível, do
qual a 22ª Câmara Cível faz parte, no sentido da ausência de irregularidade na exigência antecipada
da diferença de alíquota interestadual do ICMS quando do ingresso no Estado do Rio Grande do Sul
de mercadorias oriundas de outros Estados.
Isto porque não há qualquer sentido prático na manutenção da posição antes adotada quando a
mesma será fatalmente revertida no Órgão Fracionário, bem como no Grupo, apenas gerando falsas
expectativas aos contribuintes que, ao final, não terão êxito na demanda, apenas ocorrendo, de forma
desnecessária, a proliferação de ações, quando o resultado final é certo e contrário às pretensões do
contribuinte.
Por estas razões, e observando que uma das funções do Tribunal de Justiça é a uniformização de
jurisprudência, gerando a tranqüilidade jurídica, passo a adotar o novo posicionamento, embora, rei-
tero, ressalvando minha posição anterior.
Em conseqüência deste novo posicionamento, não há que se falar em violação ao princípio da le-
galidade no tocante à exigência antecipada da diferença de alíquota interestadual do ICMS quando do
ingresso de mercadorias oriundas de outros Estados porque houve a edição da Lei Estadual nº 12.741/07,
que deu nova redação ao artigo 24 da Lei nº 8.820/89:
“Art. 24 - O imposto será pago em estabelecimento bancário credenciado, na forma e nos pra-
zos previstos em regulamento. (...)
§ 6º - Na hipótese de estabelecimento comercial adquirir, sem substituição tributária, as merca-
dorias relacionadas no Apêndice II, Seção II, item I, o imposto decorrente do débito próprio re-
lativo à operação subseqüente é devido: a) na entrada das mercadorias no território deste Es-
tado, se adquiridas de outra unidade da Federação ou importadas e não desembaraçadas neste
Estado; b) no desembaraço das mercadorias, se importadas e desembaraçadas neste Estado;
c) na aquisição, em licitação pública, das mercadorias, se importadas do exterior e apreendi-
das ou abandonadas.
§ 7º - Além das hipóteses previstas no parágrafo anterior, sempre que houver necessidade ou con-
veniência, poderá ser exigido o pagamento antecipado do imposto, com a fixação, se for o caso,
do valor da operação ou da prestação subseqüente, a ser realizada pelo próprio contribuinte,
exceto nas saídas de couro e de pele, classificados no Capítulo 41 da NBM/SH-NCM.
§ 8º - O imposto será pago antecipadamente, total ou parcialmente, no momento da entrada das
mercadorias relacionadas em regulamento no território deste Estado, se recebidas de outra uni-
dade da Federação por estabelecimento que comercialize mercadorias.
§ 9º - Relativamente ao imposto devido conforme disposto no § 8º, o Poder Executivo poderá,
nas condições previstas em regulamento, autorizar que o pagamento seja efetuado em prazo pos-
terior.”
Logo, foi sanada a irregularidade anteriormente existente porque agora a determinação de recolhi-
mento antecipado do imposto não decorre mais por força de Decreto, mas por força de lei, sendo, pois,
perfeitamente legal o procedimento adotado pelo Fisco Estadual.
Neste sentido:
Tributário. ICMS. Operação Interestadual. Diferença de Alíquota. Ilegitimidade Ativa ad Cau-
sam. Contribuinte. Estado Destinatário. 1. Nas operações interestaduais de ICMS destinadas a
contribuinte do imposto, é devido ao Estado da localização do destinatário a diferença entre a
alíquota interna e a interestadual. O ICMS relativo à saída de mercadorias adquiridas de outras
Unidades da Federação deve ser pago, antecipadamente, por ocasião da entrada da mercadoria
no território, nos termos do artigo 24 da lei nº 8.820/89. 2. O contribuinte localizado no Estado
exportador não tem legitimidade ativa ad causam para impugnar a cobrança antecipada da dife-
rença entre as alíquotas por não ser o sujeito ativo da obrigação tributária. Incumbe ao contri-
buinte destinatário da mercadoria a obrigação de pagar, antecipadamente, a diferença entre as alí-
quotas. Recurso provido por ato do Relator. Art. 557 do Código de Processo Civil. (Apelação
Cível nº 70029046489, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 31/03/2009)
Apelação Cível. Direito Tributário. Ação Declaratória. ITBI. Base de Cálculo. O IPTU tem por
Base a Planta Genérica de Valores para o Cálculo do Respectivo Imposto, ao Passo que o ITBI
observa o Valor Real de Mercado. Lançamento por Arbitramento. Possibilidade. Presunção de
Legalidade Relativa. Ônus da Prova. Descumprimento.
Não há direito do contribuinte em recolher o ITBI utilizando como base de cálculo o valor venal
do imóvel observado pela Municipalidade para incidência do IPTU, que tem como parâmetro
planta genérica para o respectivo cálculo, ao passo que o ITBI tem por base o valor venal do
imóvel, passível de arbitramento, na forma do artigo 148 do CTN, inexistindo demonstração de
qualquer excesso praticado pelo fisco municipal no arbitramento efetuado.
Descumprimento do ônus probatório que incumbia ao contribuinte, que não desfez a presunção
de legalidade que se reveste o ato administrativo.
Inteligência dos artigos 146, inciso III, alínea a, e 156, incisos I e II, da CF; 33, 38 e 148, do
CTN; 5º da LC nº 07/73 e 11, da LC nº 197/89, legislação esta do Município de Porto Alegre.
Precedentes do STJ e do TJRGS.
Apelação do réu provida liminarmente.
Recurso adesivo a que se nega provimento.
Decisão Monocrática
Vistos etc.
Juliano Rauber ajuizou ação declaratória contra o Município de Porto Alegre, objetivando ver re-
conhecido o direito de recolher ITBI com base de cálculo no valor venal atribuído pelo réu para efeito
de incidência do IPTU, sobrevindo a prolação de sentença com o seguinte dispositivo:
“Diante do exposto, julgo procedente em parte o pedido ajuizado por Juliano Rauber contra o
Município de Porto Alegre para declarar que a base de cálculo para fins de ITBI deverá ser o valor
da transação realizada.
Em virtude da sucumbência recíproca, as custas processuais serão suportadas por metade por cada
parte, sendo que cada litigante arcará com os honorários advocatícios de seus patronos.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se, inclusive o Ministério Público.”
Inconformado, apela o réu. Assevera que não existe identidade de base de cálculo entre o ITBI e o
IPTU, procedendo em análise comparativa da legislação pertinente. Argumenta que inexiste direito
subjetivo do contribuinte de calcular e recolher o ITBI pelo valor que entende “correto”, uma vez que
este, de regra, é diverso (menor) do real valor de mercado do imóvel. Aduz que a matéria demanda
produção de prova pericial, que foi negligenciada pela parte autora. Destaca a presunção de legalida-
de e legitimidade que se reveste o ato administrativo, razão pela qual cumpre ao demandante o ônus
de provar suas alegações, nos termos do art. 333, I, do CPC. Colaciona doutrina e jurisprudência, dis-
correndo sobre a legislação municipal sobre a matéria. Requer o provimento do recurso, para que seja
reformada a sentença hostilizada, julgando-se totalmente improcedente a ação, com a condenação do
autor nos ônus de sucumbência.
O autor apresentou contra-razões à apelação, fls. 153-158, interpondo na oportunidade recurso
adesivo. Em suas razões recursais, afirma que a sentença é extra petita pois, ao declarar que a base de
cálculo do ITBI seria o valor da transação, decidiu-se fora do pedido inicial, que postula tão-somente
a identidade de base de cálculo de ITBI e IPTU para os imóveis de sua propriedade. Reitera argumen-
tação anteriormente despendida na inicial, tecendo considerações sobre a legislação pertinente aos tri-
butos em comento, aduzindo possuírem a mesma base de cálculo, qual seja, o valor venal do imóvel,
que não pode ser diverso quando cobrado pelo mesmo ente. Colaciona doutrina e jurisprudência, des-
tacando os valores utilizados para o lançamento do IPTU e os pretendidos para fins de cálculo do ITBI.
Requer a total procedência da ação, para que seja reconhecido o direito de recolher o ITBI conside-
rando como base de cálculo o valor venal fixado e utilizado pelo Município na cobrança de IPTU dos
imóveis.
Contra-razões do Município às fls. 168-169.
Nesta instância, o Ministério Público opina pelo conhecimento e provimento da apelação do réu,
restando prejudicado o recurso adesivo do autor, fls. 177-194.
Vieram os autos conclusos para julgamento.
É o relatório.
Dou provimento liminarmente à presente apelação, negando provimento ao recurso adesivo, forte
no art. 557, § 1º-A, do CPC, admitido o julgamento singular, observada a posição desta Câmara e de
outros órgãos fracionários deste Tribunal de Justiça sobre o tema.
Inicialmente, afasto a prefacial de nulidade da sentença, suscitada no recurso adesivo interposto
porque a sentença em questão não é nula, tendo a eminente Magistrada decidido a questão de acordo
com seu convencimento, fixando o valor do imposto de acordo com o valor da transação efetuada pelo
autor, observada a incidência de norma legal que determina que o imposto será calculado de acordo
com o valor venal praticado, não podendo desbordar de tal texto legal, por este motivo, desacolhendo
parcialmente a pretensão do demandante que era a coincidência de valores do ITBI e IPTU, isto é,
pretensão de cálculo do imposto em valor inferior ao valor venal, o que não é admissível, como será
visto no mérito do recurso.
Não fosse isto, a solução final da lide autoriza, de igual forma, o afastamento da prefacial de nuli-
dade da sentença.
Passo a análise de mérito da ação.
Com efeito, o ponto nodal da lide cinge-se na diferença de valores utilizados pelo demandado para
o cálculo de IPTU e do ITBI, no caso, a avaliação fiscal municipal para efeito do cálculo do IPTU atin-
giu o montante de R$ 75.396 (Apartamento nº 902), fls. 24-25, e de R$ 7.394,14 (Box nº 03), ao passo
que a avaliação para efeito de incidência de ITBI chegou à quantia de, respectivamente, R$ 98.500,00;
e R$ 14.000,00, conforme guias de fls. 22-23.
Primeiramente, sobre o IPTU e o ITBI, deve-se observar os termos dos artigos 33 e 38 do CTN, in
verbis:
“Seção II
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
(...)
Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.”
(...)
Seção III
Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles Relativos.
(...)
Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.”
A Constituição Federal, por sua vez, trata da matéria nos artigos 146, inciso III, alínea a, e 156,
incisos I e II:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados
nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana
II- transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza
ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de
direitos a sua aquisição.”
Em relação à legislação do Município de Porto Alegre, os tributos mencionados são regulados em
parte pelos artigos 5º da LC nº 07/73, que trata do IPTU, e 11, da LC nº 197/89, que institui e discipli-
na o ITBI:
“LC 07/73:
(...)
Art. 5º - A base de calculo do imposto é o valor venal do imóvel”.
“LC 197/89:
(...)
Art. 11 - A base de cálculo do imposto é o valor venal do imóvel objeto da transmissão ou da
cessão de direitos reais a ele relativos, no momento da estimativa fiscal efetuada pelo Agente
Fiscal da Receita Municipal.”
O termo “valor venal”, segundo ensinamento de Aires Fernandino Barreto, in Curso de Direito
Tributário, coordenado por Ives Gandra Martins, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 739 e 753, “(...)
é o preço provável que o imóvel alcançará para compra e venda à vista, diante de mercado estável e
quando comprador e vendedor têm plena consciência do potencial de uso e ocupação que ao imóvel
pode ser dado.”
Todavia, o valor venal do imóvel “(...) não corresponde necessariamente ao valor pelo qual se
efetuou a transação”, ressalvando-se que “(...) caso se tenha efetivado uma transação imobiliária por
valor inferior àquele estabelecido pela Municipalidade para o cálculo do IPTU, devidamente atuali-
zado, este último prevalecerá. (...) na falta de outros elementos, utilize-se como base de cálculo do
ITBI o mesmo valor previsto pela Municipalidade para o imóvel para fins de tributação pelo IPTU,
devidamente atualizado.” (José Mauricio Conti, in imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI):
principais questões, artigo publicado na Revista de Direito Tributário, São Paulo, Malheiros, 1996,
v. 74, p. 188-189).
Isto porque a “fixação do elemento temporal do fato gerador do IPTU é incumbência de lei ordi-
nária municipal. A data normalmente eleita é o dia 1º de janeiro de cada exercício, momento em que
se identifica o contribuinte e a base de calculo e demais aspectos do imposto, sem qualquer interfe-
rência de ulteriores modificações inclusive quando à condição do imóvel”, sendo que “(...) o momento
para se determinar a base de cálculo [do ITBI] é o dia da transmissão, que se considera como data
da ocorrência do fato gerador. Assim, posterior alteração do valor do bem (para mais ou para me-
nos) implicando a modificação do valor venal (terreno em que tenham sido feitas edificações, prédio
que tenha sido reformado ou demolido), não enseja tributação sobre a nova valoração, mais sim deve
ser observado o objeto da transmissão tributada quando da realização do respectivo negócio”, lição
de José Jayme de Macedo, in Impostos Municipais: ISS, ITBI, IPTU: comentários, doutrina e juris-
prudência, p. 273 e 243, Saraiva, São Paulo, 2009.
Na mesma obra, o autor registra que “(...) os valores de compra e venda de qualquer bem variam
entre o ponto mínimo e um ponto ótimo, todos constituindo valores venais. Sendo assim, tal definição
legal, para o IPTU, deve funcionar como limite, e não como montante que necessariamente é de ser
base de cálculo. De enfatizar que a própria determinação do valor do imóvel para fins de cálculo desse
imposto reveste condição de presunção relativa, plenamente mutável no tempo em virtude de circuns-
tâncias alheias ou não à vontade de seu proprietário”, obra citada, fl. 287.
Em relação à controvérsia posta nos autos, sobre a identidade entre a base de cálculo do IPTU e a
do ITBI, aduz que “(...) soa no mínimo estranha a existência de diferença na quantificação da base
imponível do IPTU e do ITBI (base calculada), por implicar desarmonia e incompatibilidade no sis-
tema tributário. Esse modo de ver a quaestio busca amparo no fato de que, quando a administração
tributária do Município determina o valor venal do IPTU por via de lançamento direto (sem qualquer
participação dos contribuintes), vincula-se, por conseqüência, para fins do ITBI, considerando que a
base legal para cálculo desses impostos é a mesma, obra citada, fl. 313.
Contudo, conclui às fls. 313-314 que “(...) cabe aos legisladores ordinários estabelecer os crité-
rios de valoração dos tributos, funcionando a lei complementar como indicativa dos limites de tal mis-
ter. Daí, quer para um, quer para outro imposto, o CTN fixa valor venal do bem como parâmetro,
incumbindo as leis ordinárias próprias estabelecerem a forma de quantificar-se cada um, segundo
métodos que podem ser distintos. E tanto isso é verdade que a maioria delas começa por definir para
o IPTU o lançamento direto e para o ITBI, o por declaração, além de determinar para o primeiro a
adoção de plantas e valores (estimativa) e para o segundo, a verificação do preço de mercado, caso
a caso. Ressalta-se, logo, que a questão se transfere para o plano normativo, e não prático, pelo que
se explica divergirem base impositivas concretas para tais impostos, ainda que relativamente a um
mesmo imóvel.”
Desta forma, não há que se falar em direito do contribuinte em recolher o ITBI utilizando como
base de cálculo o valor venal do imóvel atribuído pela Municipalidade para efeito de incidência do
IPTU, que tem como parâmetro planta genérica para o respectivo cálculo, tendo em vista as particula-
ridades de cada tributo, que ocasionam a diversidade de valores, principalmente levando-se em conta
o aspecto temporal dos seus fatos geradores e a sua forma de lançamento.
Neste sentido, precedente desta Câmara, em caso análogo ao presente feito, na Apelação Cível nº
70028964161, de minha Relatoria, julgado em 30/04/2009:
Apelação Cível. Direito Tributário. Ação Declaratória. ITBI. Base de Cálculo. O IPTU tem por
Base a Planta Genérica de Valores para o Cálculo do Respectivo Imposto, ao Passo que o ITBI
observa o Valor Real de Mercado. Lançamento por Arbitramento. Possibilidade. Presunção de
Legalidade Relativa. Ônus da Prova. Descumprimento. Não há direito do contribuinte em reco-
lher o ITBI utilizando como base de cálculo o valor venal do imóvel observado pela Municipali-
dade para incidência do IPTU, que tem como parâmetro planta genérica para o respectivo cálcu-
lo, ao passo que o ITBI tem por base o valor venal do imóvel, passível de arbitramento, na for-
ma do artigo 148 do CTN, inexistindo demonstração de qualquer excesso praticado pelo fisco
municipal no arbitramento efetuado. Descumprimento do ônus probatório que incumbia ao con-
tribuinte, que não desfez a presunção de legalidade que se reveste o ato administrativo. Inteligência
dos artigos 146, inciso III, alínea a, e 156, incisos I e II, da CF; 33, 38 e 148, do CTN; 5º da LC
nº 07/73 e 11, da LC nº 197/89, legislação esta do Município de Porto Alegre. Precedentes do
STJ e do TJRGS. Apelação conhecida em parte e, no ponto, provida. (Apelação Cível nº
70028964161, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos
Eduardo Zietlow Duro, Julgado em 30/04/2009)
De igual sorte, preclara jurisprudência deste Tribunal de Justiça, citando-se:
Apelação Cível. Direito Tributário. ITBI. Base de Cálculo. Valor da Avaliação. Ausência de Pro-
vas a demonstrar Excesso na Avaliação Realizada pelo Município. 1 - À autoridade fiscal é dado
arbitrar a base de cálculo do imposto, sempre que as informações fornecidas pelo sujeito passi-
vo levantarem suspeitas. Inteligência do art. 148 do CTN. 2 - Caso concreto em que não há pro-
vas a demonstrar o excesso na avaliação realizada pelo Município. 3 - A base de cálculo do ITBI
não deve necessariamente ser a mesma do IPTU, tendo em vista que, embora em ambos os ca-
sos, a previsão legal seja o ‘valor venal’ do imóvel, eles são apurados em momentos distintos.
Apelação Desprovida. (Apelação Cível nº 70024684888, Segunda Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Denise Oliveira Cezar, Julgado em 26/11/2008)
Tributário. Valor Venal. O art. 38 do CTN, refere que a base de cálculo do imposto de transmis-
são será ‘o valor venal dos bens ou direitos transmitidos’, pressupondo que se leve em conta, para
efeito de recolhimento do tributo, o valor constante da estimativa fiscal ou de negócio entabula-
do entre as partes, não cabendo usar o mesmo cálculo do IPTU para o pagamento do ITBI. De-
ram provimento ao apelo, prejudicado o reexame necessário. Unânime. (Apelação e Reexame
Necessário nº 599495348, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Luís Augusto Coelho Braga, Julgado em 23/11/2000)
De outra parte, não concordando a Municipalidade com o valor declarado pelo contribuinte, possí-
vel a realização de arbitramento, nos termos do artigo 148 do CTN, porque a base de cálculo não é o
preço de venda, mas o valor venal, sendo que sua diferença é relevante, pois o preço é determinado
pelas partes, que são livres para contratar, e o valor dos bens é determinado pelas condições do merca-
do, em razão da oferta e da procura, conforme adverte Hugo de Brito Machado, in Curso de Direito
Tributário, 29ª Edição, Malheiros, São Paulo, p. 397, que também preleciona sobre o arbitramento no
caso do ITBI, consignando que “(...), tem-se como ponto de partida para a determinação de sua base
de cálculo na hipótese mais geral, que é a compra e venda, o preço. Este funciona no caso como uma
declaração de valor feita pelo contribuinte, que pode ser aceita, ou não, pelo fisco, aplicando-se na
hipótese de divergência, a disposição do art. 148 do CTN”, p. 398.
Neste sentido, precedentes do STJ:
Tributário. ITBI. Base de Cálculo. Lançamento pelo Fisco. Base de Cálculo. Valor de Mercado.
Art. 38 do CTN. Aplicação de Multa. Súmula 284/STF.
1. Na hipótese em que o contribuinte não recolhe o ITBI, afigura-se legítimo o lançamento efe-
tuado pelo Fisco que arbitre, como base de cálculo, o valor de mercado dos bens transmitidos.
2. A falta de indicação do dispositivo legal supostamente contrariado, por não permitir a com-
preensão de questão infraconstitucional hábil para viabilizar o trânsito do recurso especial, atrai
o óbice previsto na Súmula n. 284/STF.
2. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, não-provido.
(REsp 210.620/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 03/05/2005,
DJ 27/06/2005 p. 308)
Apelação Cível. Execução Fiscal. ICMS. Lançamento por Arbitramento. Legalidade. Presunção
de Certeza e Liquidez da CDA não Elidida pela Prova dos Autos. Condenação por Crime de
Sonegação Fiscal que confirma o Proceder Faltoso do Contribuinte. À Unanimidade, negaram
Provimento. (Apelação Cível nº 70005529912, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Des. Francisco José Moesch, Julgado em 03/09/2003)
Outrossim, o valor atribuído no arbitramento não se mostra dissociado ou desarrazoado do valor
do imóvel, observada a quantia negociada pelo autor, R$ 85.000,00 pelo apartamento e R$ 10.000,00
pelo box, conforme destacado pelo Douto Procurador de Justiça, Dr. Paulo Valério Dal Pai Moraes,
fl. 192.
Diante do exposto, forte no art. 557, § 1º-A, do CPC, dou provimento liminarmente à apelação in-
terposta pelo Município de Porto Alegre, para efeito de julgar improcedente ação ajuizada por Juliano
Raube, invertidos os ônus de sucumbência e negando provimento ao recurso adesivo do autor.
Intimem-se.
Porto Alegre, 09 de setembro de 2009.
Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro,
Relator.
NOTA DA DIALÉTICA
Vide Íntegras de Acórdãos do STJ - 1ª Turma (RDDT 158:186) e do STJ - 2ª Turma (RDDT 170:194).
Ementário de Acórdãos
Observação: a Equipe Técnica da Revista Dialética de Direito Tributário
não fornece cópias de íntegras de acórdãos publicados neste Ementário.
Quando os reputa muito relevantes, publica-os na íntegra.
NOTA DA DIALÉTICA
Vide Decisão do Magistrado Luciano Tolentino PIS - BASE DE CÁLCULO - RECEITA
Amaral, do TRF da 1ª Região (RDDT 109:202), ESTRANHA AO FATURAMENTO -
e Acórdão do STJ - 2ª Turma (RDDT 161:238). SEGURO, TAXAS DE TERMINAIS E
PEDÁGIOS