HIPÓTESE DE AÇÃO RESCISÓRIA PREVISTA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 Juliana Furtado Costa Araujo1
Sumário: 1. Introdução – 2. Cumprimento versus execução de
sentença – 3. Das matérias a serem arguidas em impugnação: da inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação – 4. Da possibilidade de dispositivo da lei processual produzir efeitos rescisórios sob decisão com coisa julgada – 5. Do alcance inter- pretativo do art. 535, §5º, do CPC/2015: impugnação de sentença com efeitos rescisórios – 6. Da nova hipótese de ação rescisória para fins de desconstituição de título executivo em cumprimento de sentença – 7. Conclusões.
1. Introdução
A análise do CPC/2015 sob a ótica do direito material e, no
que nos interessa, do direito tributário, faz-nos identificar al- gumas alterações relevantes introduzidas pela nova legislação
1. Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora do Mestrado Profissional
da FGV/Direito SP e dos cursos de pós-graduação do IBET e GVlaw. Procuradora da Fazenda Nacional em São Paulo. no sistema jurídico nacional com reflexos importantes no dia a dia daqueles que atuam no contencioso judicial tributário. Elegemos, como tema deste artigo, o cumprimento de sentença que reconheça a obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública, mais especificamente, a devolução de valores reconhecidos como indevidamente recolhidos em de- cisão com trânsito em julgado proferida em ação de repetição de indébito. Nesse ponto, o CPC/2015 aperfeiçoou a sistemática até então vigente e inovou em vários aspectos: (i) introduziu o sincretismo processual entre processo de conhecimento e de execução; (ii) melhor definiu as hipóteses em que uma decisão da Suprema Corte pode impactar a satisfação do título execu- tivo; bem como (iii) previu a possibilidade de uma nova hipó- tese de ação rescisória quando se está diante de uma decisão contrária a um entendimento do STF. Sobre estas questões é que nos debruçaremos neste ar- tigo, tendo por objetivo demonstrar os reflexos dessas alte- rações no cumprimento de sentença em face da Fazenda Pública.
2. Cumprimento versus execução de sentença
Relativamente à obrigação da Fazenda Pública de pagar
quantia certa, vemos no CPC/2015 a intenção do legislador em adotar um modelo processual sincrético, onde em um único processo se reconhece o direito, que é judicialmente pleite- ado, bem como já se prevê, nos mesmos autos, a satisfação deste mesmo direito. Esta tendência, já presente nas execu- ções oriundas de ações instaladas entre particulares na legis- lação processual anterior, foi estendida às hipóteses em que a Fazenda Pública ocupa o polo passivo da relação jurídica de pagar quantia certa. Passamos a ter um único processo que pode ser dividi- do em duas etapas: a primeira, dita fase cognitiva, quando se envida esforços para convencer o juiz a reconhecer o direito daquele que buscou a tutela jurisdicional (o autor) ou daquele que foi demandado na mesma lide (o réu); e a segunda, nome- ada fase de cumprimento da decisão então prolatada, onde o juiz irá satisfazer o direito reconhecido. É por conta desta opção de continuidade no processo de conhecimento da antiga etapa de execução que houve alte- ração na nomenclatura utilizada na legislação processual. Antes, utilizava-se a expressão execução de sentença, pois a fase executiva, com a apresentação dos valores a serem devol- vidos, dava-se em autos apartados, formando-se uma nova re- lação processual, oportunizando ao executado apresentar em- bargos à execução no prazo de 30 (trinta) dias. No CPC/2015, a expressão eleita é cumprimento de sentença, uma vez que a satisfação do direito dar-se-á nos próprios autos em que este foi reconhecido, sendo dada, ao devedor, a opção de apresen- tar impugnação no mesmo prazo trintenal. Podemos nos perguntar qual seria a razão que levou o legislador a adotar a ideia do processo sincrético na fase de satisfação e realização do indébito tributário. A resposta pa- rece ser bem simples: manter a coerência da lei processual quanto à concretização de um dos seus principais pilares, que é a garantia da instrumentalidade. E diga-se: instrumen- talidade aliada à duração razoável do processo. Sem dúvida, aposta-se na celeridade da entrega da prestação jurisdicional, retirando a imprescindibilidade de instauração de uma nova relação processual (o “velho” processo executivo) quando a realização do direito pode ocorrer nos mesmos autos em que o indébito tributário foi reconhecido. Apesar da mudança de rumo noticiada, na prática, os efeitos daí provenientes não devem alterar significativamente a atuação das partes em juízo, uma vez que o direito de defesa do Fisco, que ocupa o polo passivo da relação jurídica obje- to de cumprimento, foi mantido no mesmo prazo trintenal, sendo ainda reconhecida a possibilidade de condenação em verba honorária a favor da parte que se sair vitoriosa, ainda que em cumprimento de sentença, nos termos do art. 85, §1º do CPC/2015.2 Com o trânsito em julgado da decisão que reconhece o di- reito à repetição do indébito, cabe ao autor, titular dos valores indevidamente recolhidos, apresentar a memória discrimina- da de cálculos, com todas as informações capazes de garantir o cumprimento da sentença que, como dito, poderá ser objeto de impugnação por parte da fazenda pública. Portanto, cabe ao contribuinte dar andamento ao pedido de satisfação de seu direito então reconhecido, sendo imprescindível atender a to- dos os requisitos do art. 534 do CPC/2015.3 A identificação precisa dos valores a serem devolvidos é devida, pois, no momento seguinte (o da impugnação), cabe ao Fisco se insurgir contra eles, apresentando razões fun- damentadas que demonstrem a inadequação dos valores apresentados. Um grande avanço do CPC/2015 deu-se em relação à im- prescindibilidade de que o Fisco, caso alegue em impugna- ção excesso de execução por parte do contribuinte, declare de imediato os valores que entende corretos, sob pena de sua arguição não ser conhecida.
2. Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado
do vencedor. § 1o São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente. 3. Art. 534. No cumprimento de sentença que impuser à Fazenda Pública o dever de pagar quantia certa, o exequente apresentará demonstrativo discriminado e atu- alizado do crédito contendo: I – o nome completo e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica do exequente; II – o índice de correção monetária adotado; III – os juros aplicados e as respectivas taxas; IV – o termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados; V – a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso; VI – a especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados. [...]. Apesar do STJ já possuir entendimento neste sentido por meio do recurso representativo de controvérsia 1.387.248,4 tal exigência foi afastada pelo Poder Judiciário na específica hi- pótese em que a fazenda pública estivesse ocupando a posição de impugnante. Isto porque seria aplicado, no caso, o prin- cípio da indisponibilidade do interesse público, reforçado, ainda, pela ausência de previsão normativa neste sentido no art. 741 do CPC/73, que dispunha sobre os fundamentos que podiam ser invocados nos embargos à execução opostos pela Fazenda Pública. Portanto, era real a possibilidade da Fazenda Pública se insurgir contra os valores objeto de execução além do prazo concedido para embargar as contas apresentadas, em espe- cial naquelas hipóteses em que a conferência do indébito de- pendia de atuação da autoridade administrativa responsável pelo lançamento.
4. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA – PROCESSU-
AL CIVIL – BRASIL TELECOM S/A – CONTRATO DE PARTICIPAÇÃO FINAN- CEIRA – COMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES – IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – ILIQUIDEZ DO TÍTULO – MATÉRIA PRECLUSA – EXCESSO DE EXECUÇÃO. INDEFERIMENTO LIMINAR – CABIMENTO – ART. 475-L, § 2º, DO CPC/73 – MULTA DO ART. 475-J DO CPC/73 – ÓBICE DA SÚMULA 283/STF. 1. Para fins do art. 543-C do CPC/73: “Na hipótese do art. 475-L, §2º, do CP/73C, é indispensável apontar, na petição de impugnação ao cumprimento de sentença, a parcela incontroversa do débito, bem como as incorreções encontradas nos cálculos do credor, sob pena de rejeição liminar da petição, não se admitindo emenda à ini- cial”. 2. Caso concreto: 2.1 Impossibilidade de se reiterar, em impugnação ao cumprimento de sentença, matéria já preclusa no curso da execução. Precedentes. 2.2 “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles” (Súmula 283/STF). 2.3 Aplicação da tese firmada no item 1, supra, ao caso concreto. 2.4 Inviabilidade de revisão de honorários advocatícios em sede de recurso espe- cial, em razão do óbice na súmula 7/STJ, que somente pode ser afastado quando exorbitante ou irrisório o valor arbitrado, o que não ocorre na espécie. 3. RECURSO Especial conhecido, em parte, e desprovido. (REsp 1387248/SC, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Corte Especial, j. 07.05.2014, DJe 19.05.2014). Tal situação muda completamente com o disposto no art. 535, §2o do CPC/2015 que prescreve o seguinte: “Quando se alegar que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante do título, cumprirá à executada declarar de imediato o valor que entende correto, sob pena de não conhecimento da arguição”. Portanto, ou a Fazenda Pública se insurge motivada- mente acerca do excesso de execução ou sua impugnação se- quer será conhecida, permitindo o cumprimento imediato da sentença. Dentre as matérias passíveis de arguição pela Fazenda Pública em contraposição ao título executivo, objeto de cum- primento, estão as elencadas no art. 535 do CPC/2015, que as- sim dispõe:
Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu re-
presentante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir: I – falta ou nulidade da citação se, na fase de conhecimento, o processo correu à revelia; II – ilegitimidade de parte; III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação; IV – excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; V – incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução; VI – qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes ao trânsito em julgado da sentença. [...].
Interessa-nos, particularmente, neste texto, a hipótese
prevista no inciso III do artigo referido: inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação. 3. Das matérias a serem arguidas em impugnação: da inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação
Um dos pontos da impugnação do Fisco pode se referir a
vícios no título executivo e na obrigação nele consubstancia- da. Neste sentido, Cassio Scarpinella Bueno afirma:
a inexequibilidade do título relaciona-se a eventuais defeitos do
próprio título executivo, considerado em seu aspecto formal. A inexigibilidade da obrigação nele retratada, diz respeito, em har- monia com a previsão do art. 783, à falta de um dos atributos do título executivo e deve ser analisada na perspectiva do direito material.5
A inexigibilidade da obrigação, na dicção da legislação
processual, abre oportunidade à Fazenda Pública de rescin- dir os efeitos do título executivo, caso haja decisão do STF em sentido contrário àquele contido no título executivo objeto de cumprimento. Neste contexto, o art. 535, §5º da nova legislação considera
[...] inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judi-
cial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucio- nal pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
Neste ponto, identificamos certa impropriedade da legis-
lação. Na verdade, o título é em princípio eficaz, mas passível de ter sua desconstituição decretada pelo juízo, dada sua in- compatibilidade com posição firmada pela Corte Suprema. A obrigação, por sua vez, seria inexigível quando não possa ser objeto de cumprimento, pois há ainda termo ou condição a ser cumprida, o que não ocorreria nesta específica situação.
5. BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. Volume único. 2ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 449. Esta aparente atecnia do legislador não nos impede, porém, de adentrarmos e fixarmos o real conteúdo do dispositivo. Evidente a intenção do CPC/2015 em fazer prevalecer o entendimento do STF, admitindo a desconstituição do título, ainda que já operada a coisa julgada material, após manifes- tação do juízo responsável pela sua satisfação. Haverá a con- frontação entre a decisão presente no título e aquela exarada pelo STF sobre o mesmo tema, sendo possível que a autorida- de judicial mantenha ou não o comando condenatório então dotado de amplos efeitos. Este dispositivo praticamente repete o disposto no art. 6 741, parágrafo único, do CPC/1973. Acrescenta, porém, a pos- sibilidade de a decisão do STF ter sido proferida tanto em con- trole difuso quanto em controle concentrado de constitucio- nalidade. Também determina o momento em que a mudança de entendimento do STF pode ser arguida, se em impugnação ou em ação rescisória específica, como veremos adiante. Quanto ao primeiro ponto, acreditamos que ao se referir ao controle difuso, o referido dispositivo não abarca toda e qualquer decisão do STF proferida na resolução dos recursos extraordinários sob sua competência. Encampa somente as decisões submetidas à sistemática de julgamento de recursos extraordinários repetitivos, prevista nos arts. 1.036 e seguin- tes do CPC/2015 e que, nos termos do art. 927, apresentam efeito vinculativo a todo o Poder Judiciário. Quanto aos julgados em sede de controle concentrado de constitucionalidade, não há nenhuma novidade comparativa- mente à legislação processual anterior, uma vez que as deci- sões do STF proferidas neste ambiente, por força constitucio- nal, sempre apresentaram efeito vinculativo e erga omnes.
6. Art. 741, parágrafo único, do CPC/73: “Para efeito do disposto no inciso II do
caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundamento em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supre- mo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.” Relativamente à vinculação do entendimento do STF em controle difuso, pensamos que o CPC/2015 segue a linha por ele traçada de uniformização do entendimento jurispruden- cial e a criação da figura dos precedentes vinculantes. Em outras palavras, faz-se necessário que o Poder Judiciário re- solva os conflitos que lhes são apresentados segundo deter- minados padrões de condutas que sirvam de parâmetro para toda a sociedade. Para tanto, necessita apresentar a mesma solução jurídica para controvérsias que se identificam. E, nesse contexto da novel legislação processual civil, cabe aos Tribunais de piso e juízes seguirem o entendimento do STF, que tem a função de interpretar, em última instância, a Carta Constitucional. E isto não seria diferente em se tratando de cumprimen- to de sentença, quando efetivamente será realizado o direito reconhecido em decisão previamente construída na fase de conhecimento do processo. Há, porém, aqui, um dado relevante e que não pode ser esquecido. A decisão que pretende ser rescindida em fase de impugnação fez coisa julgada, sendo imprescindível adentrar- mos nesta seara, diante da possibilidade de o Código indicar que a coisa julgada pode ter sua supremacia maculada no contexto do cumprimento de sentença.
4. Da possibilidade de dispositivo da lei processual
produzir efeitos rescisórios sob decisão com coisa julgada
Sabe-se que o instituto da coisa julgada é garantido pelo
texto constitucional. Apesar disto, cabe ao legislador infra- constitucional regular seu regime e impor limites objetivos e subjetivos, sempre dentro de padrões constitucionais pré-es- tabelecidos, como a segurança jurídica, o contraditório, a pro- porcionalidade, dentre outros. Quando se identifica que o sopesamento de princípios constitucionais na órbita legal autoriza tal relativização, apa- rece a figura da lei infraconstitucional dando contorno ao tema. É o que ocorre, por exemplo, quando se estabelece a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória nas hipóteses legais previamente definidas (art. 966 do CPC/2015), que tam- bém privilegiam princípios constitucionais, mas que em de- terminado contexto, merecem sobrepor-se à ideia da garantia absoluta à manutenção de decisão final de mérito, introduzi- da no sistema pelo Poder Judiciário, em favor de outro valor constitucional que se sobrepõe. O mesmo ocorre quando se vê a possibilidade de impug- nação a cumprimento de sentença com efeitos rescisórios. É a lei delimitando o regime da coisa julgada, por um objetivo maior: garantir uniformidade e isonomia dentre aqueles que buscam a satisfação jurisdicional de seus conflitos. Esta questão foi levada à apreciação do STF por meio da ADI 2418.7 Vários questionamentos foram levantados, sendo, ao que nos interessa, o de maior importância, tratou da possi- bilidade da coisa julgada ser desconstituída por meio de em- bargos à execução de sentença, tal qual disposto no parágrafo único do art. 741 do CPC/73, cujo tratamento normativo no CPC/2015, em seu art. 535, §5º, foi semelhante, embora não igual, como demonstrado acima. Em recente posicionamento, já após a vigência do CPC/2015, a Corte Suprema manifestou-se pela constitucio- nalidade do dispositivo, entendendo, inclusive, que o fato do dispositivo apreciado ter sido revogado pelo CPC/2015 não prejudicaria a apreciação, considerando a relativa identidade entre eles quanto ao objeto discutido na ADI. Entendeu, o STF, que a sobrevalorização do princípio da manutenção da coisa julgada não pode ir de encontro a outros princípios, como o da supremacia da própria Constituição
Federal. Por outro lado, ainda, afirmou o STF, que não é pos- sível, também, que se elasteça aos extremos a possibilidade de rescisão da coisa julgada, sob pena de ser deixado de lado um dos principais efeitos da coisa julgada formada no processo no que diz respeito à relação material conflituosa, a pacificação social com a eliminação de controvérsias. Em resumo: cabe ao legislador estabelecer situações que podem impactar os efeitos de uma decisão já anteriormente objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, sendo imprescin- dível, porém, que se identifiquem, cabalmente, as condições e limites deste efeito rescisório. Passemos, então, à análise do art. 535, §5º, do CPC/2015.
5. Do alcance interpretativo do art. 535, §5º, do CPC/2015:
impugnação de sentença com efeitos rescisórios
Em uma leitura apressada do art. 535, §5º, do CPC/2015,
poderíamos chegar à conclusão de que apenas decisões do STF que declarassem de alguma forma a inconstitucionalida- de de lei ou qualquer outro ato normativo poderiam ser opos- tas pelo Fisco para fins de rescisão do título executivo. Isto porque é esta a literalidade do preceito normativo. Este, inclusive, foi o entendimento contemplado pelo STJ no recurso representativo de controvérsia 1.189.619/PE, ao analisar o alcance do art. 741, parágrafo único, do CPC/73. Entendeu a Corte que por se estar diante de uma norma que excepciona o princípio da imutabilidade da coisa julgada, sua interpretação deve ser feita de forma restrita, abarcando, tão somente, as sentenças fundadas em norma inconstitucional, assim consideradas as que: (a) aplicaram norma declarada in- constitucional; (b) aplicaram norma em situação tida por in- constitucional; ou (c) aplicaram norma com um sentido tido por inconstitucional. Este posicionamento, porém, retira toda eficácia do dis- positivo e, inclusive, sua razão de existir. Em primeiro lugar, não podemos esquecer que estamos diante de uma norma cuja aplicação se restringe ao cum- primento de sentença de pagar quantia certa pela Fazenda Pública. Portanto, no mínimo, a interpretação de seu alcance deve se dar dentro deste contexto de devolução de valores in- devidamente pagos por aquele que buscou o reconhecimento da tutela jurisdicional. Se estamos diante de um título executivo que reconhece o direito do sujeito passivo da relação jurídica tributária em repetir valores concernentes a créditos tributários indevida- mente pagos, forçoso reconhecer que esta específica situação só ocorre uma vez que a decisão judicial de determinação do crédito baseou-se na impossibilidade de cobrança do tributo e, portanto, na eventual inconstitucionalidade da lei que ser- viu de fundamento para sua exigência. Um entendimento do STF que pudesse ser contraposto a tal decisão, deveria, a con- trario sensu, reconhecer que a lei que fulcra o crédito tributá- rio seria constitucional, daí porque devido seu recolhimento, sendo imprópria a determinação judicial que autorizasse sua repetição. Portanto, em repetição do indébito, pensamos que referi- do preceito deve ser interpretado de forma a considerar que o entendimento do STF deve ser contrário àquele sedimenta- do no título judicial, independentemente de assumir o viés da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, mas sim por re- fletir um título que se mostra incompatível com a orientação firmada pelo STF acerca do texto constitucional. Devemos levar em consideração que quando a Suprema Corte conclui que uma lei instituidora de um determinado tributo é constitucional está embutida, neste entendimen- to, a “outra face desta moeda” que é o reconhecimento do afastamento da inconstitucionalidade. Neste sentido, é que interpretamos este dispositivo, de forma a ser minimamen- te possível seguir o espírito da nova legislação processual, que é a de uniformizar os entendimentos jurisprudenciais, ainda mais quando digam respeito ao alcance de um preceito constitucional. O STF parece ter seguido esta linha na ADI referida, quando reconheceu que se há um vício qualificado de incons- titucionalidade no título, este deve ser rescindido. Assim, o título executivo se mostra passível de rescisão quando retrata a aplicação de norma jurídica cuja constitucionalidade da lei que o embasa vem a ser confirmada pela Suprema Corte. Do voto do Ministro Teori Zavascki pode-se retirar a se- guinte conclusão:
Considerando o atual sistema de controle de constitucionalida-
de e dos efeitos das sentenças do STF dele decorrentes, não há como negar que há outra situação, nele implícita, que autoriza a invocação da inexigibilidade da obrigação contida no título executivo judicial: é quando a sentença exequenda reconhe- ceu a inconstitucionalidade – ou, o que dá no mesmo (Súmula Vinculante 10/STF), simplesmente deixou de aplicar – norma que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional. Essa hipótese, embora não explicitada nos dispositivos processuais, decorre necessariamente de interpretação sistemática. Com efei- to, afirmar ou negar judicialmente a constitucionalidade de uma norma são duas faces da mesma moeda. É que a eficácia decla- rativa decorrente das sentenças opera com a mesma intensidade em sentido positivo ou negativo, produzindo, em qualquer caso e com idêntica marca da imutabilidade, coisa julgada material. Aliás, é inerente ao sistema de processo a natural eficácia dúpli- ce da sentença de mérito, que favorece a posição do demandante, quando afirma a existência da situação jurídica afirmada como base para o seu pedido, mas que, com intensidade semelhante e com a mesma eficácia de coisa julgada material, favorece a posi- ção do demandado, em caso de improcedência. Tratando-se de decisão do STF no âmbito do controle de constitucionalidade, essa eficácia dúplice está enfaticamente acentuada em texto nor- mativo (Lei 9.868/99, art. 23), justamente porque tal controle tem a finalidade de propiciar, a um tempo, a preservação do sistema normativo legitimamente estabelecido (o que enseja juízos posi- tivos de constitucionalidade) e a sua autopurificação em relação a normas inconstitucionais nele porventura incrustadas (o que enseja juízos negativos de validade). Em outras palavras: o que é relevante é a constatação da ofensa à supremacia do texto constitucional, consubstanciada em um título que não reflete o entendimento majoritário do STF e não a literalidade do texto ao se referir unicamente à palavra “inconstitucionalidade”. Desta feita, entendemos que se faz necessária a revi- são do entendimento até então prevalente no STJ sobre o tema (recurso representativo de controvérsia 1.189.619/PE). Sustentamos esta posição não apenas pelos argumentos acima expostos, mas, também, pela entrada em vigor do CPC/2015 que, além de ter promovido uma alteração profunda no re- gime de “execução” de sentença, no regime do CPC/73, ao eliminar o processo de execução contra a Fazenda Pública e prever o cumprimento de sentença (sincretização entre pro- cesso de conhecimento que reconhece a obrigação de pagar quantia certa e antigo processo executivo) – o que por si só já é suficiente a ensejar uma reinterpretação do dispositivo –, tem por diretriz garantir a uniformidade jurisprudencial, por meio da ideia do precedente vinculativo (é o princípio da isonomia sendo elevado à mais alta potência no âmbito in- fralegal, para dar efetividade ao direito do cidadão à isonomia perante a lei). E é justamente esta uniformidade, na aplicação da lei (isonomia material), que se busca com a possibilidade de feitos rescisórios à impugnação do Fisco em cumprimento de sentença. Importante aduzir, neste contexto, que o CPC/2015, no §7o de seu art. 535, especificou que o efeito rescisório da impug- nação estará presente apenas na hipótese da decisão do STF ter sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão ob- jeto de cumprimento. Ou seja, quando da formação do título executivo já deve existir posição do STF em sentido contrário àquele espelhado na decisão proferida na fase cognitiva. O passo a mais, dado pela nova legislação, consiste na pre- visão de rescisão dos efeitos do título executivo também na hi- pótese de alteração de entendimento da Suprema Corte, ocor- rido após trânsito em julgado da decisão de reconhecimento do indébito, por meio de ação própria, cujos delineamentos são imprescindíveis para que se evite ofensa à segurança jurídica.
6. Da nova hipótese de ação rescisória para fins de des-
constituição de título executivo em cumprimento de sentença
Como aduzido, caso o posicionamento do STF, contrário
àquele espelhado no título objeto de cumprimento, já exista à época do aperfeiçoamento do título, caberá ao isco alegar tal fato quando da apresentação da impugnação aos valores trazidos à apreciação do juízo. Na hipótese do entendimento do STF se formar após o trânsito em julgado da decisão que consubstancia o título exe- cutivo, deverá, a Fazenda Pública, se utilizar de ação rescisó- ria, nos termos do §8º do art. 535 do CPC/2015. Este dispositivo prescreve que “se a decisão referida no §5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”. A intenção do legislador, mais uma vez, parece se rela- cionar com a imprescindibilidade do respeito às posições do STF, ainda que estas tenham sido fixadas após a formação do título executivo. Este dispositivo, porém, dá abertura para discussões re- lativas à garantia da segurança jurídica do sistema como um todo. Isto porque estabelece o prazo inicial da nova hipótese de ação rescisória com o trânsito em julgado da decisão pro- ferida pelo STF e que vai de encontro com o entendimento materializado no título executivo. Uma interpretação literal do artigo pode levar à conclusão – diga-se precipitada – de que a mudança de entendimento do STF pode ensejar, a qualquer tempo, a possibilidade de pro- positura de ação rescisória com o objetivo de fazer prevalecer a posição da Corte Suprema, ainda que o direito garantido pelo título executivo já tenha sido objeto de satisfação. Isto levaria a uma sensação de insegurança enorme, sem qualquer dúvida. Pensamos, dentro da linha que vem sendo defendida neste artigo, que a interpretação do dispositivo deve ocorrer de forma sistemática e não literal. Se a norma está contemplada em capítulo que trata do cumprimento de sentença em face da Fazenda Pública, a eventual ação rescisó- ria será cabível caso haja uma mudança de entendimento do STF enquanto ainda não se perfez de forma definitiva o cum- primento do título. Em outras palavras: a posição do STF em sentido contrário àquela presente no título há de ser introdu- zida no mundo jurídico enquanto ainda se discutem os valo- res que devem ser devolvidos ao credor pela Fazenda Pública. Caso a obrigação de restituir já tenha ocorrido, não há que se falar em possibilidade de rescisão do título, sob pena de se conferir, à ação rescisória, um efeito eterno que não se coaduna com os demais princípios que regem o sistema. Relevante, porém, definir quando se considera satisfeita a obrigação. Ainda que seja possível que se alegue que a obri- gação só estará satisfeita com o efetivo pagamento dos valores devidos pela via do precatório e, sabemos, isto pode consu- mir anos a depender do ente estatal que é responsável pelo adimplemento, entendemos que a ação rescisória fundada na mudança de entendimento do STF poderá ser proposta até o momento em que forem fixados, em definitivo, os valores devidos, encerrando-se a discussão iniciada por meio da im- pugnação aos valores apresentados pelo credor. Com o trânsito em julgado da decisão que resolve a im- pugnação, já há a definição dos valores devidos, sendo confor- mada uma situação jurídica que agora só passa a depender de trâmites administrativos: a requisição do precatório e o efeti- vo pagamento. Pensamos que desta forma é possível garantir que o en- tendimento do STF prevaleça sem macular uma eventual si- tuação jurídica que já esteja consolidada.
7. Conclusões
Por todo o exposto, fica claro que o CPC/2015 imprimiu ao
capítulo que trata do cumprimento de sentença que reconhe- ça a obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública a mesma ideia que permeia toda a nova legislação: a necessida- de de se garantir julgamentos uniformes, fazendo prevalecer, especificamente na hipótese, posição do STF em controle di- fuso ou concentrado de constitucionalidade. Logicamente que os requisitos para que se imponha a posição da Suprema Corte necessitam estar muito bem de- limitados, pois se está diante de autorização legislativa para se rescindir a coisa julgada. E, neste ponto, concluímos pela possibilidade de tal rescisão se dar tanto pela (i) via da im- pugnação como da (ii) nova hipótese de ação rescisória, acres- centando que a posição do STF, em se tratando de controle difuso de constitucionalidade, necessita ter sido submetida à sistemática dos recursos extraordinários repetitivos. Quanto à nova hipótese de ação rescisória, o CPC/2015, neste particular, verdadeiramente inovou. Faz-se necessário, porém, imprimir limites a uma interpretação estrita e apres- sada do dispositivo. Se a possibilidade de ação rescisória em face de uma mudança de entendimento do STF vem ao encontro da necessária uniformidade dos posicionamentos jurisdicionais, só faz sentido que o título executivo seja des- constituído caso ainda se estiver em fase de determinação dos valores devidos. Se a obrigação do Fisco já foi quantificada definitivamen- te e, quiçá, já paga, eventual ação rescisória por mudança de entendimento da Corte Suprema geraria apenas insegurança, tudo o que o novo sistema processual procura afastar.