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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA

HESÍODO E O PODER DE INFLUÊNCIA DAS MUSAS

Maria Reginalda da Silva ¹

RESUMO

No ensaio que se segue, será feita uma análise da relação entre o poeta
Hesíodo e as Musas, atentando, nesse sentido, para a construção de
uma reflexão que busca compreender como as deusas influenciam a
vida do poeta e os ensinamentos que dão a ele de presente. Encontram-
se algumas características dos escritos do autor, com foco
principalmente no Hino às Musas, que escreveu em homenagem às
deusas do olimpo. Ainda se faz um contexto histórico da produção do
poeta, mostrado parte de sua vida como pastor além de grande orador e
declamador. Percebe-se nitidamente o privilégio que foi dispensado ao
mesmo, o quanto era amado pelas filhas de Zeus, pois elas o ensinaram
a ser um bom orador, um exímio poeta e até mesmo a cantar para seu
deleite. Destaca-se a inquietação: será que Hesíodo seria o mesmo poeta
se não fosse a influência das Musas? Essa é uma indagação que não se
pode responder ao longo do texto, deixando para o leitor buscar suas
próprias respostas, chegando a conclusões afirmativas ou não.

PALAVRAS-CHAVE: Hesíodo. Musas. Teogonia. Deusas. Poder.

ABSTRACT

In the essay that follows, an analysis will be made of the relationship


between the poet Hesiod and the Muses, paying attention, in this sense,
to the construction of a reflection that seeks to understand how the
goddesses influence the poet's life and the teachings they give him gift.
There are some characteristics of the author's writings, focusing mainly
_____________________
¹ Mestra em Letras. Doutoranda em Literatura Comparada.

on the Hymn to the Muses, which he wrote in honor of the goddesses of


Olympus. There is also a historical context of the poet's production,
showing part of his life as a pastor, as well as a great orator and reciter.
One can clearly see the privilege that was given to him, how much he
was loved by the daughters of Zeus, because they taught him to be a
good orator, an excellent poet and even to sing for his delight. The
restlessness stands out: would Hesiod be the same poet if it weren't for
the influence of the Muses? This is a question that cannot be answered
throughout the text, leaving it to the reader to seek their own answers,
reaching affirmative or negative conclusions.

KEYWORDS: Hesiod. Muses. Teogonia. Gods. Power.

1. Os poemas de Hesíodo

É impossível dizer com precisão o momento exato em que Hesíodo


escreveu seus poemas, porém a historiografia apresenta que deve ter
sido no período em que a Grécia passou por um intenso processo de
organização sócio-política, especialmente quanto à organização das
polis e as cidades estados, em meados do século VIII e VII. Trata-se de
uma poesia que se destaca justamente por extraordinária melodia
simples e monótona, como uma toada. A métrica adotada por Hesíodo é
o hexâmetro datílico, a mesma de Homero.

Nessa época, ainda não havia uma ampla divulgação da palavra


escrita, assim, boa parte do que se aprendia, fosse relativo à religião,
tradições ou sobre ascensão social era através da oralidade, portanto,
ocorria a constante ação dos oradores, considerados detentores do
poder da palavra e do desvelo. A história, atualmente compreendida ora
como ciência, ora como literatura, certamente teve seu início a partir de
expressões proferidas pelos antigos oradores, responsáveis, entre outras
coisas, pela educação histórico-cultural da sociedade, de acordo com
Vernant (2001, p.16)
Mas, enquanto a cidade permaneceu viva, a atividade poética
continuou a exercer esse papel de espelho que devolvia ao
grupo humano sua própria imagem, permitindo-lhe apreender-
se em sua dependência em relação ao sagrado, definir-se ante
os Imortais, compreender-se sua duração, sua permanência
através do fluxo das gerações sucessivas (VERNANT, 2001, 16)

Dentre esses oradores, estavam os poetas gregos e a partir da


leitura das suas obras, encontramos uma capacidade empática
extraordinária capaz de falar praticamente sobre todas as coisas, desde
os deuses até os homens mais comuns. Hesíodo foi um desses poetas
que viveu nesse contexto, tendo nascido em Ascra e passado parte de
sua vida na Beócia, onde exercia o ofício de pastor de ovelhas. Acredita-
se que não tenha tido uma vida ligada a bens materiais, mesmo sendo
bem instruído, assinando seus poemas e apresentando-os com um
caráter autobiográfico. Consta ainda que o poeta teria vencido outros
poetas nos jogos fúnebres em honra a Anfídamas, na Eubeia, e
consagrou a trípode, um prêmio que ele dedicou às Musas do Hélicon,
para as quais criou um hino em forma de poesia conhecido até os dias
de hoje.

2. As Musas e o poeta

A Teogonia é um poema hexamétrico composto por Hesíodo


durante a Antiguidade grega, cuja forma poética apresentada traz
características típicas de uma longa tradição de poesia composta oral e
improvisadamente. No prólogo desse texto, o poeta inicia com a
representação do discurso das próprias Musas:

Elas [as Musas] certa vez, a Hesíodo, ensinaram belo canto,


Ovelhas ele apascentando sob o Hélicon divino.
E a mim, antes de tudo, as deusas estas palavras dirigiram,
As Musas olimpíades, filhas de Zeus que tem a égide:
Pastores agrestes, maus opróbios, ventres só,
Sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas
autênticas
E sabemos, quando queremos, verdades proclamar.
Aqui o poeta começa a contar um diálogo entre ele as Musas –
deusas filhas de Zeus, que viviam no Olimpo, apresentando-as como
seres que afirmam saberem proferir mentiras que parecem verdades e
quando as dizer. Também disseram que sabem proclamar, de acordo
com suas vontades, as próprias verdades. A essa fala, o pastor poeta
responde:

Dizei agora a mim, Musas que a olímpica morada tendes,


Pois vós sois deusas, presentes estais e tudo sabeis –
Enquanto nós a fama apenas ouvimos, nada sabemos –
Quem os chefes dos dânaos e seus condutores eram.

Hesíodo fala às Musas com humildade, reconhecendo o lugar de


destaque em que vivem as poderosas deusas e seu lugar de aprendiz,
desprovido de conhecimento, perguntando sobre a identidade de alguns
seres do Olimpo, também de muito destaque. O diáologo entre ambos
demonstra uma certa aproximação e simpatia mútua, o que pode ser
confirmado com a leitura dos versos 29 e 32 da Teogonia, que trazem
claramente aspectos que a evidenciam e demarcam uma experiência
amigável entre ambos, acompanhados de uma espécie de iniciação em
que Hesíodo recebe das próprias deusas o dom do belo canto.

Assim falaram as filhas palavra ajustada do grande Zeus,


E me deram cetro, galho vicejante de louro,
após o colher, admirável; sopraram-me voz
inspirada para eu glorificar o que será e foi,
(TEOGONIA. vv.29,32)

É importante conhecermos as musas de acordo com o próprio


Hesíodo, para melhor entender as nuances desta relação. Para o poeta,
elas são filhas de Zeus e Minemosine a (memória) o que deixa a
entender, de maneira simplista, que os domínios da Memória (a
tradição, o conhecimento, a História e a verdade) está intimamente
vinculada a um poder aristocrático, legislador e organizador do
universo. As musas, sendo filhas direta dessa expressão de poder,
resguardam em si boa parte dele, sendo impulsionadas a inspirarem
homens e deuses através de suas capacidades artísticas; nesse sentido,
são a definição exata da inspiração, com natureza desveladora, que
atropela quem quer que elas queiram e também, a quem quer que
desejam, trazem a capacidade de observar e relacionar- se com as
coisas, o que antes não seriam capazes.

De acordo com o que foi dito anteriormente, o autor ainda deixa


claro, em seus escritos, que quem era tocado pelas deusas, tornava-se
destaque entre os seus, revelando uma certa magnitude, como uma
inspiração emanando de si. Importante também destacar a justaposição
do lugar social do poeta igualmente salientado por Hesíodo nos versos
91 e 96 da Teogonia. Vejamos.

Ao se mover na praça, como um deus o propiciam


Com respeito amável, e destaca-se na multidão.
Tal é a sacra dádiva das Musas aos homens.
Pois as Musas, vê, e de Apolo acerta-alvo
Vêm os varões cantores sobre a terra e os citaredos.
e de Zeus, os reis (TEOGONIA. vv. 91,96).

Nesses versos, o poeta mostra como fica uma pessoa ao ser


agraciada pelas musas ou pelos deuses, obtendo respeito e notoriedade
em relação aos demais. Ainda exalta a piedade que elas têm para com
os humanos, sendo benevolentes em lhes dar benefícios divinos, com
isso melhorando a vida deles, assim como as bênçãos que são
distribuídas através do canto.

Snell defende que, quanto a Hesíodo, o acesso aos deuses torna-


se mais claro a partir do revelar-se deles aos homens mortais, inclusive
fazendo uma comparação com o modo de conceber o divino entre ele e
Homero.

É só quando Hesíodo descreve sua sagração de poeta e o


encontro com as Musas, que a aparição das divindades se
torna algo de verdadeiramente vivo também para nós. Já em
Homero, onde os deuses intervêm com frequência no curso da
narração, nós os vemos, por assim dizer, em sua atividade
natural, e seu agir justifica o que acontece (SNELL, 2012, 46).

Na leitura do trecho, fica em evidência a defesa do autor que em


relação a Hesíodo, uma vez que o mesmo compreende os deuses de uma
maneira mais sistêmica, a influência divina estaria intimamente
vinculada a uma experiência epifânica do poeta. Ou seja, para Hesíodo
o acesso aos deuses torna-se mais claro a partir da revelação que fazem
aos homens mortais.

Importante ainda trazer à discussão a relação entre Hesíodo e as


musas, filhas de Zeus, deusas que viviam no conforto e nobreza no
Olimpo. Essa relação também está ligada à questão da memória, tendo
como referência a origem das divindades. É assim que Hesíodo se refere
à deusa Memória no hino que serve de proêmio à Teogonia:

A elas, na Piéria, gerou, com o pai cronida unida,


Memória, que nas colinas do Eleutero reinava, para
Esquecimento dos males e pausa das preocupações.

Esses versos são de grande importância. Primeiramente, porque


não deixam margem para dúvidas em relação à paternidade entre Zeus
a as Musas. No entanto, referindo-se obliquamente a Zeus, não o põem
em primeiro plano, mas à Memória (Mnemosýne): foi ela que gerou as
Musas, unindo-se ao pai Cronida, ou seja, em outras palavras, o que se
lê nos versos ressalta que o produto dessa união, as Musas, é fruto
justamente de uma mescla da Memória com Zeus. Assim, é na filiação
da Memória que as Musas encontram sua identidade, não na Memória
pura, mas numa Memória mesclada (migeîsa) com Zeus.

Outro ensinamento que as Musas ofertam a Hesíodo é o canto.

Certa vez ensinaram a Hesíodo a arte bela de cantar,


enquanto sob o Hélicon divino ovelhas pastorava.
E esta história primeirissimamente as deusas me contaram,
estas filhas de Zeus, o porta-escudo, Musas olímpicas: [25]

Mais uma vez, encontramos deusas que privilegiam o pastor


poeta através de outro ensinamento, o de cantar. Essa ação é
intimamente ligada ao dom de declamar poemas, pois os dois têm
características bem próximas, como a rima, a métrica, formando a
melodiosa forma de apresentação.
3. Influências das musas na poesia de Hesíodo

Apresentamos através desse texto a relação de profunda


intimidade entre o poeta Hesíodo e as Musas do Olimpo, assim,
acreditando que a intenção dele seja declarar para o ouvinte que a sua
poesia advém do canto das Musas, mas não de seu próprio canto
comum (aquele em que elas sabem dizer mentiras semelhantes a fatos).
Por isso que se trata de uma composição única, especial, esplêndida,
um momento ímpar da atividade das deusas, o que se garante ao serem
elas apresentadas, falando em primeira pessoa, para afiançar que
querem sim proferir verdades. Pode-se concluir, a partir dessas
afirmações que as Musas ensinaram de algum modo as verdades a
Hesíodo que ele agora proclama, comum e naturalmente ensinando-o a
mentir, não propriamente, mas a dizer muitas mentiras semelhantes a
fatos.

Importante também realçar a importância de Hesíodo trazer para


a esfera das Musas o pseûdos (termo de origem grega, a partir de
pseudes / pseûdos, que significa literalmente “mentira” ou “falsidade”) o
que se mostra contra o que se considera presentemente uma
perspectiva contrária que emprestaria ao discurso das Musas, enquanto
deusas, uma verdade inerente. Os pastores agrestes, como Hesíodo, não
conseguiam discernir quando as Musas diziam pseúdea (semelhantes a
coisas autênticas) de quando anunciam alethéa (verdade suprema).

De acordo com tudo o que foi visto aqui, pode-se afirmar que
Hesíodo foi um ser abençoado pelas Musas, que sua intimidade com as
divindades lhe trouxe muitos benefícios, dentre eles, o dom da
oralidade, da criação de poemas e do cantar. Ainda ficou evidenciado
que o poeta aprendeu ainda com as deusas a usar mentiras como se
fossem verdades, algo que as filhas de Zeus sabiam fazer muito bem,
assim como dizer a verdade absoluta quando lhes era conveniente.
Referências

DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo:


Martins Fontes, 2013.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Hedra, 2013.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições
70, 1984.
SNELL, Bruno. A Cultura Grega e As Origens do Pensamento Europeu.
São Paulo: Perspectiva, 2012.

SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Lisboa: Guimarães Editora, 1984,

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