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A Pessoa de Cristo

Como Jesus pode ser plenamente Deus e plenamente homem, e ainda


assim uma pessoa?

Explicação e base bíblica


Podemos resumir da seguinte maneira o ensino bíblico acerca da pessoa de Cristo:
Jesus Cristo foi plenamente Deus e plenamente homem em uma só pessoa e assim o será para
sempre. O material bíblico que sustenta essa definição é extenso. Discutiremos primeiro a
humanidade de Cristo, depois sua divindade e, em seguida, tentaremos mostrar
como a divindade e a humanidade de Jesus unem-se na única pessoa de Cristo.

A. A HUMANIDADE DE CRISTO
1. O nascimento virginal . Quando falamos na humanidade de Cristo , convém
iniciar com uma consideração do nascimento virginal de Cristo. As Escrituras afirmam
claramente que Jesus foi concebido no ventre de sua mãe, Maria, por obra miraculosa do
Espírito Santo e sem um pai humano.
“Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com
José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito Santo" ( Mt 1.18).
Logo depois, um anjo do Senhor disse a José, que havia desposado Maria: “ José, filho de
Davi , não temas receber Maria , tua mulher , porque o que nela foi gerado é do Espírito
Santo" (Mt 1.20). Então, lemos que José “fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu
sua mulher . Contudo , não a conheceu , enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o
nome de Jesus” (Mt 1.24-25).
O mesmo fato é afirmado no evangelho de Lucas, onde lemos sobre a aparição do
anjo Gabriel a Maria. Depois que o anjo disse a ela que teria um filho, Maria perguntou:
“Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?” O anjo respondeu:
Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a
sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus.
(Lc 1.35; cf. 3.23).
As Doutrinas de Cristo

A importância doutrinária do nascimento virginal é vista em pelo menos três áreas.


1. Mostra que a salvação em última análise deve vir do Senhor. Exatamente como
Deus havia prometido que a “semente” da mulher (Gn 3.15) acabaria por destruir a
serpente, Deus torna isso em realidade pelo seu poder, não por meros esforços humanos.
O nascimento virginal de Cristo é um lembrete inequívoco de que a salvação jamais pode
vir por meio do esforço humano, mas deve ser obra do próprio Deus. Nossa salvação
deve-se apenas à obra sobrenatural de Deus e isso ficou evidente bem no início da vida
dejesus, quando “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar
os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (G1 4.4-5).
2. O nascimento virginal possibilitou a união da plena divindade e da plena huma­
nidade em uma só pessoa. Esse foi o meio empregado por Deus para enviar seu Filho (Jo
3.16; G1 4.4) ao mundo como homem. Se pensarmos por um momento em outros meios
possíveis pelos quais Cristo poderia ter vindo ao mundo, nenhum deles uniria com
tamanha clareza a humanidade e a divindade em uma pessoa. E provável que Deus
pudesse criar Jesus no céu como um ser completamente humano e enviá-lo para que
descesse do céu à terra sem o benefício de nenhum genitor humano. Mas nesse caso ser-
nos-ia muito difícil ver como Jesus poderia ser plenamente humano como somos, e ele
não faria parte da raça humana que descende fisicamente de Adão. Por outro lado, é
provável que fosse bem possível para Deus fazer Jesus entrar no mundo por meio de dois
genitores humanos, pai e mãe, e com sua plena natureza divina miraculosamente unida
à sua natureza humana em algum momento no início de sua vida. Mas então ser-nos-ia
difícil compreender como Jesus seria plenamente Deus, uma vez que sua origem seria
como a nossa em todos os sentidos. Quando pensamos nessas duas outras possibilidades,
isso nos ajuda a compreender como Deus, em sua sabedoria, ordenou uma combinação
de influência humana e divina no nascimento de Cristo, de modo que sua plena huma­
nidade nos seria evidente pelo seu nascimento humano comum por meio de uma mulher,
e sua plena divindade seria evidente por sua concepção no ventre de Maria pela obra
poderosa do Espírito Santo.1
3. O nascimento virginal também torna possível a verdadeira humanidade de Cristo
sem a herança do pecado. Como observamos no capítulo 24, todos os seres humanos
herdaram a culpa legal e uma natureza moral corrupta do primeiro ancestral, Adão (ao que
às vezes dá-se o nome de “pecado herdado” ou “pecado original”). Mas o fato dejesus não
ter tido um pai humano significa que a linha de descendência de Adão é parcialmente
interrompida. Jesus não descendeu de Adão da maneira exata pela qual todos os outros seres
humanos descendem de Adão. E isso nos ajuda a compreender por que a culpa legal e a
corrupção moral que pertencem a todos os outros seres humanos não pertencem a Cristo.
Essa idéia parece estar implícita na declaração do anjo Gabriel a Maria, em que ele
lhe diz:
O Espírito Santo virá sobre você,
e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra.
Assim, aquele que nascer será chamado santo,
Filho de Deus (Lc 1.35 nvi).
Porque o Espírito realizou a concepção de Jesus no ventre de Maria, o
menino devia ser chamado “santo”. Tal conclusão não deve ser tomada
como indicação de que
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transmissão do pecado só se faz por meio do pai, pois as Escrituras jamais fazem essa
afirmação. Para nós basta dizer que nesse caso a linha contínua de descendência de Adão
foi interrompida, sendo Jesus concebido pelo poder do Espírito Santo. Lucas 1.35 liga essa
concepção pelo Espírito Santo com a santidade ou pureza moral de Cristo, e a reflexão
sobre esse fato nos permite compreender que, pela ausência de um pai humano, Jesus não
era de todo descendente de Adão, e essa interrupção na linha de descendência foi o
método empregado por Deus para fazer com que Jesus fosse plenamente humano e,
mesmo assim, não partilhasse do pecado herdado de Adão.
Mas por que Jesus não herdou uma natureza pecaminosa de Maria? A Igreja Católica
Romana responde a essa pergunta dizendo que a própria Maria era isenta de pecado, mas
as Escrituras não ensinam isso em parte alguma, e de qualquer maneira isso não resolveria
o problema (pois como, então, Maria não herdou o pecado da mãe?). Solução melhor é dizer
que a obra do Espírito Santo em Maria deve ter evitado não só a transmissão do pecado de José
(pois Jesus não teve pai humano ), mas também , de maneira miraculosa , a transmissão do
pecado de Maria: “Descerá sobre ti o Espírito Santo [...] por isso, também o ente santo que há
de nascer será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35).
Entre os que não aceitam a completa fidedignidade das Escrituras, pelo menos nas
gerações anteriores, é comum a negação da doutrina do nascimento virginal de Cristo.
Mas se nossas crenças devem ser pautadas pelas declarações das Escrituras, com certeza
não negaremos esse ensino. Podendo ou não discernir alguns aspectos de importância
doutrinária nesse ensino, devemos crer, em primeiro lugar, simplesmente porque as
Escrituras o afirmam. Com certeza, tal milagre não é tão difícil para o Deus que criou o
universo e tudo o que nele há — qualquer um que confesse que o nascimento virginal é
“impossível” só está confessando a própria incredulidade no Deus da Bíblia. E, com­
plementando o fato de que as Escrituras ensinam o nascimento virginal, podemos ver que
ele é doutrinariamente importante, e para compreendermos de modo correto o ensino
bíblico sobre a pessoa de Cristo, é essencial começar com a afirmação dessa doutrina.

2. Fraquezas e Limitações Humanas


a. Jesus possuía um corpo humano . O fato de que Jesus possuía um corpo humano
exatamente como o nosso é visto em muitas passagens das Escrituras. Ele nasceu assim como
nascem todos os bebês humanos (Lc 2.7). Ele passou da infância para a maturidade assim
como crescem todas as outras crianças : “Crescia o menino e se fortalecia , enchendo - se de
sabedoria ; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2.40). Além disso , Lucas nos diz que “
crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52).
Jesus ficava cansado exatamente como nós, pois lemos que '‘"Cansado da viagem,
assentara-se Jesus junto à fonte, por volta da hora sexta” em Samaria (Jo 4.6). Ele tinha
sede, pois quando estava na cruz disse: “Tenho sede" (Jo 19.28). Depois de jejuar por quarenta
dias no deserto , lemos que “teve fome " (Mt 4.2). As vezes ficava fisicamente fraco , pois
durante sua tentação no deserto jejuou quarenta dias (o ponto em que a força física humana
esvai -se quase totalmente , além do qual ocorrem danos físicos irreparáveis , caso o jejum
prossiga ). Naquele momento “vieram anjos e o serviram ” (Mt 4.11), aparentemente para
cuidar dele e lhe fornecer alimento até que recuperasse força suficiente para sair do deserto .
Quando Jesus estava caminhando para a crucificação , os soldados forçaram Simão Cireneu a
carregar sua cruz (Lc 23.26), mais provavelmente porque Jesus
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estava tão fraco depois dos açoites que havia recebido, que não tinha forças suficientes
para carregá-la por si. O auge das limitações de Jesus quanto ao seu corpo humano é visto
quando ele morreu sobre a cruz (Lc 23.46). Seu corpo humano deixou de conter a vida
e parou de funcionar, assim como acontece com o nosso quando morremos.
Jesus também ressuscitou dos mortos num corpo humano, físico, ainda que aper­
feiçoado e já não sujeito à fraqueza, enfermidade ou morte. Ele demonstra várias vezes
aos discípulos que possui de fato um corpo real. Ele diz: “Vede as minhas mãos e os meus
pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem carne nem ossos,
como vedes que eu tenho” (Lc 24.39). Ele lhes mostra e ensina que era “carne e ossos” e não
só um “espírito” sem corpo. Outro indício desse fato é que “lhe apresentaram um pedaço de
peixe assado. E ele comeu na presença deles” (Lc 24.42; cf. v. 30; Jo 20.17, 20, 27; 21.9, 13).
Nesse mesmo corpo humano (ainda que ressurreto e tornado perfeito), Jesus também
ascendeu ao céu. Ele disse antes de partir: “Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo
o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28; cf. 17.11). A maneira pela qual Jesus ascendeu ao
céu foi planejada para demonstrar a continuidade entre sua existência num corpo físico
aqui sobre a terra e sua existência contínua no céu nesse corpo. Poucos versículos depois
de dizer-lhes: “... um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Lc
24.39), lemos no evangelho de Lucas que Jesus “os levou para Betânia e, erguendo as
mãos, os abençoou. Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo
elevado para o céu” (Lc 24.50-51). De modo semelhante, lemos em Atos: “... foi Jesus
elevado às alturas, à vista deles, e uma nuvem o encobriu dos seus olhos” (At 1.9).
Todos esses versículos juntos mostram que, no que diz respeito ao corpo humano,
Jesus era como nós em todos os aspectos antes da ressurreição, e após a ressurreição ainda
era um corpo humano com “carne e ossos”, mas tornado perfeito, o tipo de corpo que
teremos quando Cristo voltar e formos também ressuscitados.4 Jesus continua existindo
nesse corpo humano no céu, conforme a ascensão tem o propósito de ensinar.

b. Jesus possuía uma mente humana. O fato de Jesus ter crescido em sabedoria
(Lc 2.52) significa que ele passou por um processo de aprendizado assim como acontece
com todas as outras crianças - ele aprendeu a comer, a falar, a ler e a escrever, e a ser
obediente a seus pais (veja Hb 5.8). Esse processo normal de aprendizado fazia parte da
genuína humanidade de Cristo.
Também vemos que Jesus possuía uma mente humana como a nossa quando ele
fala do dia em que retornará à terra: “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém
sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai” (Mc 13.32).

c. Jesus possuía alma humana e emoções humanas. Vemos várias indicações de


que Jesus possuía alma humana (ou espírito). Logo antes de sua crucificação, ele disse:
“Agora, está angustiada a minha alma” (Jo 12.27). João escreve um pouco depois: “Ditas
estas coisas, angustiou-se em espírito” (Jo 13.21). Em ambos os versículos a palavra
angustiar representa o termo grego tarassõ, palavra muitas vezes empregada em referência
a pessoas ansiosas ou que de repente são surpreendidas por um perigo.
Além disso, antes da crucificação, percebendo o sofrimento que enfrentaria, Jesus disse:
“A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38), tamanha a aflição que
sentia, a ponto de parecer que, caso se intensificasse um pouco mais, lhe roubaria a vida.
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Jesus experimentou toda uma sucessão de emoções humanas. Ele “admirou-se” com
a fé demonstrada pelo centurião (Mt 8.10). Chorou de tristeza com a morte de Lázaro (Jo
11.35). E orou com o coração repleto de emoção, pois ofereceu “com forte clamor e
lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte” e foi “ouvido por causa da
sua piedade” (Hb 5.7).
Além disso, o autor nos diz: “... embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas
coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tomou-se o Autor da salvação eterna para
todos os que lhe obedecem” (Hb 5.8-9). Mas se Jesus jamais pecou, como poderia “apren­
der a obediência”? Ao que parece, à medida que crescia rumo à maturidade, Jesus, como
todas as outras crianças humanas, pôde ir assumindo mais e mais responsabilidades.
Quanto mais velho ficava, tanto mais seus pais podiam exigir dele obediência, e tanto
mais seu Pai celestial podia-lhe atribuir tarefas na força de sua natureza humana. Com
cada tarefa cada vez mais difícil, mesmo quando implicava algum sofrimento (como
especifica Hb 5.8), aumentava a habilidade moral de Jesus, sua capacidade de obedecer
sob circunstâncias cada vez mais difíceis. Podemos dizer que essa “espinha moral” foi
fortalecida por exercícios cada vez mais difíceis. Mas em tudo isso ele jamais pecou.
A completa ausência de pecado na vida de Jesus é ainda mais notável pelas tentações
severas que enfrentou, não só no deserto, mas durante toda a vida. O autor de Hebreus
afirma que Jesus foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb
4.15). O fato de ter enfrentado tentações significa que possuía natureza genuinamente
humana que podia ser tentada, pois as Escrituras são claras em nos dizer que “Deus não
pode ser tentado pelo mal” (Tg 1.13).

d. As pessoas próximas de Jesus consideravam-no apenas humano. Mateus


registra um incidente assombroso no meio do ministério de Jesus . Ainda que Jesus tivesse
ensinado por toda a Galiléia, “curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo”, de
modo que “numerosas multidões o seguiam” (Mt 4.23-25), quando chegou à própria cidade de
Nazaré, o povo que o conhecia havia muitos anos não o recebeu:

Tendo Jesus proferido estas parábolas, retirou-se dali. E, chegando à sua terra,
ensinava-os na sinagoga, de tal sorte que se maravilhavam e diziam: Donde lhe vêm
• esta sabedoria e estes poderes miraculosos? Não é este o filho do carpinteiro? Não se
chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago,José, Simão e Judas? Não vivem entre
nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem, pois, tudo isto? E escandalizavam-se nele.
[...] E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles (Mt 13.53-58).

Essa passagem indica que aqueles que mais conheciam Jesus, os vizinhos com quem
vivera e trabalhara por trinta anos, consideravam-no não mais que homem comum — bom
homem, sem dúvida, justo, bondoso e confiável, mas certamente não o próprio Deus
encarnado. Vamos ver nas próximas seções como Jesus era plenamente divino em todos
os sentidos - ele era verdadeiramente Deus e homem em uma única pessoa — mas ainda
precisamos reconhecer o sentido pleno de uma passagem como essa. Pois nos primeiros
trinta anos de sua vida, Jesus levou uma vida humana tão normal, que as pessoas de
Nazaré que o conheciam melhor ficaram surpresas com o fato de conseguir ensinar com
autoridade e realizar milagres. Eles o conheciam. Jesus era um deles. Jesus era “o filho do
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carpinteiro” (Mt 13.55), e ele próprio era “carpinteiro” (Mc 6.3), tão comum, que podiam
perguntar: “Donde lhe vem, pois, tudo isto?” (Mt 13.56). E João nos diz: “... nem mesmo
os seus irmãos criam nele” (Jo 7.5).
Era Jesus plenamente humano ? Ele era tão plenamente humano que mesmo os que
viveram e trabalharam com ele por trinta anos, mesmo os irmãos que cresceram na casa dele,
não percebiam que era um tanto superior a outros seres humanos muito bons. Ao que parece,
não tinham idéia de que fosse Deus vindo em carne.

3. Impecabilidade. Ainda que o Novo Testamento seja claro em afirmar que Jesus
era plenamente humano exatamente como nós, também afirma que Jesus era diferente
em um aspecto importante: ele era isento de pecado e jamais cometeu um pecado durante
sua vida. Alguns objetam que se Jesus não pecou, então não era verdadeiramente humano,
pois todos os humanos pecam. Mas os que fazem tal objeção simplesmente não percebem
que os seres humanos estão agora numa situação anormal. Deus não nos criou peca­
minosos, mas santos e justos. Adão e Eva no jardim do Eden eram verdadeiramente hu­
manos antes de pecar, e nós agora, apesar de humanos, não nos conformamos ao padrão
que Deus deseja que preenchamos quando nossa humanidade plena, impecável, for
restaurada.
A impecabilidade de Jesus é ensinada com frequência no Novo Testamento . Vemos
indicações disso no início da vida dele quando encheu -se de sabedoria e quando “a graça de
Deus estava sobre ele” (Lc 2.40). Depois vemos que Satanás foi incapaz de obter sucesso ao
tentar Jesus, não conseguindo, após quarenta dias, convencê-lo a pecar: “Passadas que foram as
tentações de toda sorte, apartou -se dele o diabo, até momento oportuno ” (Lc 4.13). Também
não vemos nos evangelhos sinóticos (Mateus , Marcos e Lucas ) nenhum indício de erros da
parte de Jesus. Para os judeus que se opunham a ele, Jesus perguntou : “Quem dentre vós me
convence de pecado?” (Jo 8.46) e não recebeu resposta.
As declarações a respeito da impecabilidade de Jesus são mais explícitas no evangelho
de João. Jesus fez a surpreendente proclamação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12). Se
compreendermos que a luz representa tanto a fidedignidade como a pureza moral, então
aqui Jesus está alegando ser a fonte da verdade e a fonte da pureza moral e da santidade
no mundo — uma alegação estarrecedora que poderia ser feita só por alguém isento de
pecado. Além disso, com respeito à obediência a seu Pai no céu, ele disse: “eu faço sempre
o que lhe agrada” (Jo 8.29; o tempo presente dá o sentido de atividade contínua: "estou
sempre fazendo o que lhe agrada”). Ao final da vida, Jesus pôde dizer: “... eu tenho guardado
os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço” (Jo 15.10). É significativo que
quando Jesus foi julgado diante de Pilatos, apesar das acusações dos judeus, Pilatos só pôde
concluir: “Eu não acho nele crime algum” (Jo 18.38).
No livro de Atos, muitas vezes Jesus é chamado “o Santo”, “o Justo” ou alguma
expressão semelhante (veja At 2.27; 3.14; 4.30; 7.52; 13.35). Quando Paulo fala de Jesus
vivendo como homem, tem o cuidado de não dizer que ele assumiu “carne pecaminosa”,
mas, antes, que Deus enviou o próprio filho "em semelhança de carne pecaminosa e no
tocante ao pecado” (Rm 8.3). E ele se refere a Jesus como “aquele que não conheceu pecado” (
2 Co 5.21).
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O autor de Hebreus afirma que Jesus foi tentado mas, ao mesmo tempo, insiste que ele
não pecou: Jesus foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.
15). Ele é um sumo sacerdote “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito
mais alto do que os céus” (Hb 7.26). Pedro fala de esus como “cordeiro sem defeito e sem
mácula” (IPe 1.19), empregando figuras do Antigo Testamento para afirmar sua isençáo de
qualquer mácula moral. Pedro declara diretamente que ele “não cometeu pecado, nem dolo
algum se achou em sua boca” (IPe 2.22). Quando Jesus morreu, foi “o justo pelos injustos”,
para nos conduzir a Deus (IPe 3.18). E Joáo, na primeira epístola, chama-o ‘Jesus Cristo, o
Justo”, e diz que “nele náo existe pecado” (ljo 3.5). É difícil negar, portanto, que a impe­
cabilidade de Cristo é ensinada de maneira clara em todas as seções importantes do Novo
Testamento. Ele era realmente humano, mas sem pecado.
Juntamente com a impecabilidade de Jesus , devemos notar de modo mais detalhado a
natureza de suas tentações no deserto (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13; Lc 4.1-13). A essência dessas
tentações era uma tentativa de convencer Jesus a escapar da dura trilha da obediência e do
sofrimento que lhe fora designada como o Messias . Jesus “foi guiado pelo [...] Espírito , no
deserto , durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo ” (Lc 4.1-2). Em muitos aspectos , essa
tentação forma um paralelo com a tentação enfrentada por Adão e Eva no jardim do Éden, mas foi
muito mais difícil . Adão e Eva tinham comunhão com Deus e um com o outro e abundância de
todos os tipos de comida , pois receberam ordens só de não comer de uma árvore . Contrastando
com isso , Jesus não tinha comunhão com seres humanos nem comida com que se alimentar e,
depois de jejuar quarenta dias, estava a ponto de morrer fisicamente. Em ambos os casos, o que se
exigia não era uma obediência a um princípio moral eterno arraigado no caráter de Deus, mas um
teste de obediência pura a uma instrução específica de Deus . A Adão e Eva, Deus ordenou que
não comessem da árvore do conhecimento do bem e do mal , e a questão era se obedeceríam
simplesmente por Deus lhes ter falado . No caso de Jesus, “guiado pelo Espírito ” por quarenta
dias no deserto , ao que parece , ele compreendeu que era vontade do Pai que nada comesse
durante aqueles dias e simplesmente permanecesse ali até que o Pai, pela direção do Espírito
Santo, lhe dissesse que a tentação estava encerrada e que ele podia partir.
Podemos compreender , portanto, o significado da tentação: “Se és o Filho de Deus, manda
que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4.3). É claro que Jesus era o Filho de Deus, e é claro que
ele tinha o poder para transformar instantaneamente qualquer pedra em pão . A tentação era
intensificada pelo fato de parecer que perderia a vida, caso não comesse logo. Mas ele viera para
obedecer perfeitamente a Deus, em nosso lugar, e deveria fazê-lo como homem. Isso significava
que tinha de obedecer só em seu poder humano . Se tivesse recorrido a seus poderes divinos para
tornar mais fácil para si a tentação , não teria obedecido plenamente a Deus como homem . A
tentação era empregar seu poder divino para “fraudar” o cumprimento das exigências, tomando a
obediência um pouco mais fácil. Mas Jesus, em contraste com Adão e Eva, recusou-se a comer o
que parecia bom e necessário para si, optando por obedecer à ordem de seu Pai celestial.
A tentação de curvar -se e cultuar Satanás por um momento e depois receber autoridade
sobre “todos os reinos do mundo” (Lc 4.5) era a tentação de receber o poder não pelo caminho da
obediência vitalícia a seu Pai celestial, mas pela submissão ilícita ao Prín­
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cipe das Trevas. De novo, Jesus rejeitou o caminho aparentemente fácil e escolheu o
caminho da obediência que levava à cruz.
De modo semelhante, a tentação de jogar-se do pináculo do templo (Lc 4.9-11) era
a tentação de “forçar” Deus a realizar um milagre e resgatá-lo de maneira espetacular,
atraindo assim grande séquito dentre o povo, sem prosseguir no duro caminho que tinha
à frente, o caminho que incluía três anos ministrando às necessidades das pessoas,
ensinando com autoridade e exemplificando a santidade absoluta de vida em meio a dura
oposição. Mas, de novo, Jesus resistiu a esse “caminho fácil” para cumprimento de seus
alvos como o Messias (de novo, uma rota que de fato não cumpriria, de maneira alguma,
aqueles alvos).
Essas tentações eram de fato a culminação de um processo vitalício de fortalecimento
e amadurecimento moral que ocorreu durante toda a infância e início da vida adulta de
Jesus, enquanto ele “crescia [...] em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus” (Lc 2.52)
e quando “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5.8). Nessas tentações no
deserto e nas várias tentações que enfrentou durante os trinta e três anos de sua vida,
Cristo obedeceu a Deus em nosso lugar e como nosso representante, obtendo dessa forma
sucesso onde Adão falhou, onde o povo de Israel no deserto falhou e onde nós falhamos
(veja Rm 5.18-19).
Por mais difícil que nos seja compreender, as Escrituras afirmam que nessas
tentações Jesus tornou-se capaz de nos compreender e de nos ajudar em nossas tentações.
“Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são
tentados” (Hb 2.18). O autor prossegue e liga a capacidade de Jesus em entender nossas
fraquezas ao fato de ter sido tentado como nós somos:

Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas
fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem
pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim
de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna
(Hb 4.15-16).

Isso tem uma aplicação prática para nós: em toda situação em que estivermos lutando
contra uma tentação, devemos refletir sobre a vida de Cristo e perguntar se não houve
situações semelhantes enfrentadas por ele. Em geral, depois de refletir por alguns
instantes, seremos capazes de perceber alguns casos na vida de Cristo em que ele
enfrentou tentações que, embora não iguais em todos os aspectos, foram bem parecidas
com as situações que enfrentamos todos os dias.

4. Jesus poderia ter pecado? As vezes levanta-se esta questão: “Cristo podia ter
pecado?” Alguns defendem a impecabilidade de Cristo, entendendo por impecável “não
sujeito a pecar”. Outros objetam que se Jesus não fosse capaz de pecar, suas tentações não
teriam sido reais, pois como uma tentação seria real, se a pessoa que estivesse sendo
tentada não fosse mesmo capaz de pecar?
Para responder a essa pergunta, precisamos distinguir, por um lado, o que as Escri­
turas afirmam claramente e, por outro lado, o que é mais uma inferência de nossa parte.
(1) As Escrituras afirmam claramente que Cristo jamais pecou de fato (veja acima). Não
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deve haver nenhuma dúvida a esse respeito em nossa mente . (2) Elas também afirmam
que Jesus foi tentado e que as tentações foram reais (Lc 4.2). Se cremos na Bíblia,
precisamos insistir que Cristo foi “ tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem
pecado” (Hb 4.15). Se nossa especulação sobre essa questão de Cristo poder ou não ter
pecado leva-nos a dizer que ele não foi verdadeiramente tentado, então chegamos a uma
conclusão errada, a uma conclusão que contradiz afirmações claras das Escrituras.
(3) Também precisamos afirmar com as Escrituras que “Deus não pode ser tentado
pelo mal” (Tg 1.13). Mas aqui a questão torna-se difícil: se Jesus era plenamente Deus e
também plenamente humano (e vamos argumentar adiante que as Escrituras ensinam isso
várias vezes e de maneira clara), então não somos obrigados também a afirmar que (em
algum sentido) Jesus também “não pode ser tentado pelo mal”?
Isso é tudo o que podemos dizer pelas afirmações claras e explícitas das Escrituras.
Nesse ponto ficamos diante de um dilema semelhante a uma série de outros dilemas
doutrinários em que as Escrituras parecem ensinar coisas que, se não são diretamente
contraditórias, são pelos menos muito difíceis de harmonizar em nosso entendimento. Por
exemplo, com respeito à doutrina da Trindade, afirmamos que Deus existe em três pessoas
e que cada uma é plenamente Deus e que existe um Deus . Ainda que essas afirmações não
sejam contraditórias , é difícil compreendê -las em ligação uma com a outra e, ainda que
possamos obter avanços na compreensão de como se ligam, pelo menos nesta vida temos de
admitir que não pode haver compreensão plena de nossa parte. As Escrituras não nos dizem
que ‘Jesus foi tentado” e que ‘Jesus não foi tentado” (uma contradição, caso ‘Jesus” e “tentado
” sejam empregados exatamente no mesmo sentido em ambas as frases). A Bíblia nos diz que “
Jesus foi tentado”, que “Jesus era plenamente homem”, que “Jesus era plenamente Deus” e que
“Deus não pode ser tentado ”. Essa combinação de ensinos da Bíblia nos deixa aberta a
possibilidade de que quando compreendermos como a natureza humana e divina de Jesus
agem em conjunto, poderemos compreender melhor como ele podia ser tentado em um sentido
e, ainda assim, não ser tentado em outro sentido. (Essa possibilidade será discutida adiante.)
Nesse ponto, portanto, vamos além das afirmações claras da Bíblia e tentamos
apresentar uma solução para o problema de Cristo poder ou não cometer pecado? Mas
é importante reconhecer que a seguinte solução é por natureza mais um jeito de combinar
vários ensinos bíblicos, não sendo diretamente sustentada por declarações explícitas das
Escrituras . Tendo isso em mente, é adequado dizer: (1) Se a natureza humana tivesse existido
por si só, independentemente de sua natureza divina, teria sido a mesma natureza humana que
Deus deu a Adão e a Eva. Estaria isenta de pecado, mas mesmo assim seria capaz de pecar. Por
conseguinte , se a natureza humana de Jesus tivesse existido por si, haveria a possibilidade
abstrata ou teórica de Jesus ter pecado, assim como a natureza humana de Adão e Eva era capaz
de pecar. (2) Mas a natureza humana jamais existiu à parte da união com sua natureza divina.
Desde o momento de sua concepção , ele existiu como verdadeiro Deus e também verdadeiro
homem. Tanto sua natureza humana como sua natureza divina existiram unidas em uma pessoa
. (3) Embora Jesus tivesse experimentado algumas coisas (tais como fome, sede ou fraqueza) só
em sua natureza humana e não em sua natureza divina (veja abaixo), um ato pecaminoso seria
um ato moral que, aparentemente , teria envolvido toda a pessoa de Cristo . Assim , se tivesse
pecado, isso teria envolvido sua natureza divina bem como a humana. (4) Mas se Jesus como
As Doutrinas de Cristo

pessoa tivesse pecado, implicando tanto a natureza humana como a divina no pecado, então
o próprio Deus teria pecado e teria deixado de ser Deus. Mas é claro que isso é impossível
por causa da santidade infinita da natureza de Deus. (5) Assim, se perguntarmos se de fato
era possível Jesus pecar, parece que precisamos concluir que isso não era possível. A união
de sua natureza humana e divina em uma pessoa o impedia de pecar.
Mas a pergunta continua de pé: “Como, então, as tentações de Jesus podiam ser
reais?” O exemplo da tentação de transformar pedras em pães é útil nesse sentido. Por
causa de sua natureza divina, Jesus tinha a capacidade de realizar esse milagre, mas, se
o fizesse, já não estaria obedecendo só na força de sua natureza humana, teria fracassado
na prova em que Adão também fracassou e não teria conquistado para nós a salvação.
Assim, Jesus recusou-se a recorrer à sua natureza divina para tomar a obediência mais fácil para
si. De modo semelhante , parece certo concluir que Jesus enfrentou cada tentação do pecado ,
não por seu poder divino, mas só na força de sua natureza humana (embora, é claro, não fosse “
só”, porque Jesus, ao exercer o tipo de fé que os homens devem exercer, dependia de Deus
Pai e do Espírito Santo em todos os momentos). A força moral de sua natureza divina estava ali
como um tipo de “barreira ” que , em todo caso , o impediria de pecar (e, por conseguinte ,
podemos dizer que ele não podia pecar ), mas ele não podia fiar-se na força de sua natureza
divina para enfrentar as tentações com maior facilidade, e sua recusa em transformar pedras em
pão no início de seu ministério é uma clara indicação disso.
Nesse caso, as tentações eram reais? Muitos teólogos destacam que só aquele que
consegue resistir à tentação até o fim sente plenamente a força da tentação. Assim como
um campeão de halterofilismo que consegue levantar e manter sobre a cabeça o maior
peso na prova sente mais plenamente a carga do que a pessoa que tenta levantá-lo, mas
o derruba, assim também qualquer cristão que consegue enfrentar a tentação até o fim
sabe que isso é muito mais difícil do que logo dar lugar a ela. E o que ocorre com Jesus:
cada tentação que enfrentou, enfrentou-a até o fim e a venceu. As tentações eram reais,
ainda que não cedesse a elas. De fato, foram mais reais porque ele não cedeu a elas.
Que diremos, então, do fato de que “Deus não pode ser tentado pelo mal” (Tg 1.13)?
Parece que isso faz parte de uma série de afirmações que precisamos fazer a respeito da
natureza divina de Jesus, mas não de sua natureza humana. Essa natureza divina não
podia ser tentada pelo mal, mas sua natureza humana podia, e é claro que foi tentada.
Como essas duas naturezas uniam-se em uma pessoa ao enfrentar tentações? A Bíblia não
nos explica de maneira clara. Mas essa distinção entre o que se aplica a uma natureza e
o que se aplica a outra é um exemplo de uma séria de declarações semelhantes que a
Bíblia exige que façamos (veja mais sobre essa distinção abaixo, quando discutirmos como
Jesus podia ser Deus e homem em uma só pessoa).

5. Por que era necessário que Jesus fosse plenamente humano? Quando João
escreveu sua primeira epístola, circulava na igreja um ensino herético, segundo o qual
Jesus não era homem. Essa heresia tornou-se conhecida como docetismo? Essa negação
da verdade acerca de Cristo era tão séria que João podia dizer que se tratava de uma
doutrina do anticristo: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa
que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede
de Deus ; pelo contrário , este é o espírito do anticristo ” (l Jo 4.2-3). O apóstolo João entendia
que negar a verdadeira humanidade de Jesus era negar um fato bem central
A Pessoa de Cristo

do cristianismo, de modo que ninguém que negasse que Jesus veio em carne era
enviado por Deus.
Quando examinamos o Novo Testamento, vemos vários motivos pelos quais Jesus
tinha de ser plenamente humano para ser o Messias e obter nossa salvação. Podemos
alistar aqui sete razões:

a. Para possibilitar uma obediência representativa. Conforme observamos no


capítulo acima sobre as alianças entre Deus e o homem , Jesus era nosso representante e
obedeceu em nosso lugar naquilo que Adão falhou e desobedeceu . Vemos isso nos paralelos
entre a tentação de Jesus (Lc 4.1-13) e a ocasião da prova de Adão e Eva no jardim (Gn 2.15-3.7
). Também reflete-se claramente na discussão de Paulo sobre os paralelos entre Adão e Cristo,
na desobediência de Adão e na obediência de Cristo:

Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para
condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os
homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência de um
só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de
um só, muitos se tomarão justos (Rm 5.18-19).

E esse o motivo pelo qual Paulo chama Cristo “o último Adão” (ICo 15.45) e pode
chamar Adão “o primeiro homem”, e Cristo, “o segundo homem” (ICo 15.47). Jesus tinha de
ser homem para ser nosso representante e obedecer em nosso lugar.

b. Para ser um sacrifício substitutivo. Se Jesus não tivesse sido homem, não
poderia ter morrido em nosso lugar e pago a penalidade que nos cabia. O autor de
Hebreus nos diz: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência
de Abraão. Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos
irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para
fazer propiciação pelos pecados do povo” (Hb 2.16-17; cf. v. 14). Jesus tinha de se tornar
homem, não um anjo, porque Deus estava interessado em salvar homens, não anjos. Mas
para isso “convinha” que fosse como nós em todos os sentidos, de modo que pudesse ser
a “propiciação” para nós, o sacrifício substitutivo aceitável em nosso lugar. Ainda que essa
idéia seja discutida com mais pormenores no capítulo 27, sobre expiação, é importante
aqui perceber que a menos que Cristo fosse plenamente homem, ele não poderia ter
morrido para pagar a pena dos pecados do homem. Ele não poderia ter sido um sacrifício
substitutivo por nós.

c. Para ser o único mediador entre Deus e os homens. Porque estávamos


alienados de Deus por causa do pecado, necessitávamos de alguém que se colocasse entre
Deus e nós e nos levasse de volta a ele. Precisávamos de um mediador que pudesse
representar-nos diante de Deus e que pudesse representar Deus para nós. Só há uma
pessoa que preencheu esse requisito: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre
Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (lTm 2.5). Para cumprir essa função de
mediador, Jesus tinha de ser plenamente homem e plenamente Deus.
As Doutrinas de Cristo

d. Para cumprir o propósito original do homem de dominar a criação. Como


vimos em nossa discussão sobre o propósito para o qual Deus criou o homem, Deus colocou o
ser humano sobre a terra para subjugá-la e dominá-la como representante divino. Mas o homem
não cumpriu esse propósito , pois caiu em pecado . O autor de Hebreus percebe que Deus
pretendia que tudo fosse sujeitado ao homem, mas reconhece: “Agora, porém, ainda não vemos
todas as coisas a ele sujeitas ” (Hb 2.8). Então , quando Jesus veio como homem , foi capaz de
obedecer a Deus e, assim , teve o direito de dominar a criação como homem , cumprindo o
propósito original de Deus ao colocar o homem sobre a terra. Hebreus reconhece isso quando
diz que agora “vemos [...] Jesus” em posição de autoridade sobre o universo, “coroado de glória
e de honra” (Hb 2.9; cf. a mesma frase no v. 7). Jesus de fato recebeu “toda a autoridade [...] no
céu e na terra” (Mt 28.18), e Deus lhe “pôs todas as coisas debaixo dos pés, e para ser o cabeça
sobre todas as coisas, o deu à igreja” (Ef 1.22). Aliás, um dia reinaremos com ele em seu trono (
Ap 3.21 ) e expe ­ rimentaremos , em sujeição a Cristo nosso Senhor , o cumprimento do
propósito de Deus de reinarmos sobre a terra (cf. Lc 19.17, 19; ICo 6.3). Jesus tinha de ser
homem para cumprir o propósito original de Deus de que o homem dominasse sobre sua
criação.

e. Para ser nosso exemplo e padrão na vida. João nos diz: “... aquele que diz que
permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (I Jo 2.6), e nos lembra que “
quando ele se manifestar , seremos semelhantes a ele ” e que essa esperança de futura
conformidade com o caráter de Cristo confere mesmo agora pureza moral cada vez maior à
nossa vida (I Jo 3.2-3). Paulo nos diz que estamos continuamente sendo “transformados [...] na
sua própria imagem ” (2Co 3.18), avançando , assim, para o alvo para o qual Deus nos salvou:
sermos “conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29). Pedro nos diz que, especialmente no
sofrimento , temos de considerar o exemplo de Cristo : “pois que também Cristo sofreu em
vosso lugar, deixando -vos exemplo para seguirdes os seus passos” (I Pe 2.21). Em toda nossa
vida cristã, devemos correr a carreira colocada diante de nós “olhando firmemente para o Autor
e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.2). Se ficarmos desanimados com a hostilidade e a oposição
dos pecadores , devemos considerar “atentamente [...] aquele que suportou tamanha oposição
dos pecadores contra si mesmo” (Hb 12.3). Jesus é também nosso exemplo na morte. O alvo de
Paulo é conformar -se “com ele na sua morte” (Fp 3.10; cf. IPe 3.17-18 com 4.1). Nosso alvo
deve ser a conformidade com Cristo em nossos dias , até à morte , e morrer com obediência
inabalável a Deus , com forte confiança nele e com amor e perdão aos outros . Jesus tinha de
tornar-se homem como nós para viver como nosso exemplo e padrão na vida.

f. Para ser o padrão de nosso corpo redimido. Paulo nos diz que quando Jesus
ressuscitou dos mortos, ressuscitou num novo corpo “na incorrupção [...] ressuscita em
glória [...] ressuscita em poder [...] ressuscita corpo espiritual ” (I Co 15.42-44). Esse novo
corpo ressurreto que Jesus possuía quando ressurgiu dos mortos é o padrão do que será nosso
corpo quando formos ressuscitados dos mortos, porque Cristo é “as primícias ” (I Co 15.23) -
uma metáfora agrícola que compara Cristo à primeira amostra da colheita , que demonstra
como será o outro fruto daquela colheita. Temos agora um corpo físico como o de Adão, mas
teremos um como o de Cristo: “... assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos
trazer também a imagem do celestial” (I Co 15.49). Jesus tinha de
A Pessoa de Cristo

ser ressuscitado como homem para ser “o primogênito de entre os mortos” (Cl 1.18), o
padrão para o corpo que teremos mais tarde.

g. Para compadecer -se como sumo sacerdote. O autor de Hebreus lembra-nos de que “
naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados
” (Hb 2.18; cf. 4.15-16). Se Jesus não tivesse existido na condição de homem , não teria sido
capaz de conhecer por experiência o que sofremos em nossas tentações e lutas nesta vida. Mas
porque viveu como homem, ele é capaz de compadecer- se mais plenamente de nós em nossas
experiências.

6. Jesus será um homem para sempre. Jesus não abandonou a natureza terrena
após sua morte e ressurreição, pois apareceu aos discípulos como homem após a res­
surreição, até com as cicatrizes dos cravos nas mãos (Jo 20.25-27). Ele possuía carne e
ossos (Lc 24.39) e comia (Lc 24.41-42). Posteriormente, quando conversava com os
discípulos, foi levado ao céu, ainda em seu corpo humano ressurreto, e dois anjos
prometeram que ele voltaria do mesmo modo: “Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu
virá do modo como o vistes subir” (At 1.11). Ainda mais tarde, Estêvão vislumbrou o céu e viu
Jesus como “o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (At 7.56). Jesus também apareceu a
Saulo na estrada de Damasco , dizendo : “Eu sou Jesus , a quem tu persegues ” (At 9.5) —
manifestação que Saulo (Paulo) depois equiparou às aparições do Jesus ressurreto aos outros (
ICo 9.1; 15.8). Na visão de João em Apocalipse , Jesus ainda aparece como “um semelhante a
filho de homem” (Ap 1.13), ainda que repleto de grande glória e poder e sua manifestação faça
com que João caia de medo a seus pés (Ap 1.13 -17 ). Ele promete um dia beber vinho
novamente com seus discípulos no reino do Pai (Mt 26.29) e nos convida para uma grande ceia
de casamento no céu (Ap 19.9). Além disso, Jesus permanecerá para sempre em seus ofícios
como profeta, sacerdote e rei, todos atribuídos a ele pelo fato de ser para sempre tanto Deus
quanto homem.
Todos esses textos indicam que Jesus não se tomou temporariamente homem, mas que
sua natureza divina foi permanentemente unida à sua natureza humana, e ele vive para
sempre não só como o Filho eterno de Deus, a segunda pessoa da Trindade, mas também
como Jesus, o homem que nasceu de Maria, e como Cristo, o Messias e Salvador de seu
povo. Jesus permanecerá para sempre plenamente Deus e plenamente homem, e ainda
uma só pessoa.

B. A DIVINDADE DE CRISTO
Para completar o ensino bíblico acerca de Jesus Cristo, precisamos declarar não só
que ele era plenamente humano, mas também plenamente divino. Embora a palavra não
ocorra de maneira explícita na Bíblia, a igreja tem empregado o termo encarnação para
referir-se ao fato de que Jesus era Deus em carne humana. A encarnação foi o ato pelo qual
Deus Filho assumiu a natureza humana. A comprovação bíblica da divindade de Cristo
é bem ampla no Novo Testamento. Vamos examiná-la sob várias categorias.

1. Alegações bíblicas diretas. Nesta seção, examinamos declarações diretas da


Bíblia de que Jesus é Deus ou de que é divino.
As Doutrinas de Cristo

a. A palavra Deus (theos) atribuída a Cristo. Apesar de a palavra theos, “Deus”, ser em
geral reservada no Novo Testamento para Deus Pai, há algumas passagens em que é também
empregada em referência a Jesus Cristo . Em todos esses trechos , a palavra “Deus ” é
empregada com um sentido denso em referência àquele que é Criador do céu e da terra , o
governante de tudo . Entre essas passagens encontram -se João 1.1; 1.18; 20.28; Romanos 9.5;
Tito 2.13; Hebreus 1.8 (citando SI 45.6) e 2 Pedro 1.1. Basta observar que há pelo menos essas
sete passagens no Novo Testamento que se referem explicitamente a Jesus como Deus.
Um exemplo veterotestamentário do nome Deus aplicado a Cristo encontra-se numa
passagem messiânica bem conhecida: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos
deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro,
Deus Forte...” (Is 9.6).

b. A palavra Senhor (kyrios) atribuída a Cristo. Às vezes a palavra Senhor (gr.


kyríos) é empregada simplesmente como tratamento respeitoso dispensado a um superior
(veja Mt 13.27; 21.30; 27.63; Jo 4.11). Às vezes pode simplesmente significar “patrão” de
um servo ou escravo (Mt 6.24; 21.40). Ainda assim, a mesma palavra é também em­
pregada na Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento, de uso comum na época
de Cristo) como uma tradução do hebraico yhwh, “Javé”, ou (conforme traduzido com
freqüência) “o Senhor” ou “Jeová”. A palavra kyrios é empregada para traduzir o nome
do Senhor 6 814 vezes no Antigo Testamento grego. Assim, qualquer leitor grego da época
do Novo Testamento que conhecesse um pouco o Antigo Testamento grego reconheceria
que, nos contextos apropriados, a palavra “Senhor” era o nome do Criador e Mantenedor
do céu e da terra, o Deus onipotente.
Ora, há muitos casos no Novo Testamento em que “Senhor” é empregado em refe­
rência a Cristo e só pode ser compreendido nesse sentido veterotestamentário denso: “o
Senhor” que é Javé ou o próprio Deus. Esse emprego da palavra “Senhor” é bem contundente
na palavra do anjo aos pastores de Belém: “... hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador,
que é Cristo , o Senhor ”(Lc 2.11). Embora essas palavras nos sejam familiares pela leitura
freqüente da história de Natal, precisamos perceber como seria surpreendente para qualquer
judeu do primeiro século ouvir que algum recém -nascido era o “Cristo ” (ou “Messias ”) e,
além disso , que esse Messias era também “o Senhor ” - ou seja , o próprio Senhor Deus ! O
significado surpreendente da declaração do anjo , que os pastores tiveram dificuldade em
acreditar , equivalia , em essência , a dizer: “Hoje em Belém , nasceu uma criança que é vosso
Salvador e vosso Messias, e também é o próprio Deus”. Não é de estranhar que “todos os que
ouviram se admiraram das coisas referidas pelos pastores” (Lc 2.18).
Quando Maria chega para visitar Isabel alguns meses antes do nascimento de Jesus,
Isabel diz: “E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lc 1.43).
Uma vez que Jesus nem havia nascido, Isabel não podia estar empregando a palavra
“Senhor” com algum sentido de “senhor” humano. Antes, estava empregando-a no sen­
tido veterotestamentário mais denso, dando um significado admirável à frase: “Por que
me é concedido que a mãe do próprio Senhor Deus venha a mim?”. Ainda que seja uma
A Pessoa de Cristo

declaração muito vigorosa, é difícil compreender nesse contexto a palavra “Senhor” em


algum sentido menos profundo.
Vemos outro exemplo quando Mateus diz que João Batista é o que clama no deserto:
“Preparai o caminho do Senhor , endireitai as suas veredas ” (Mt 3.3). Ao fazê-lo, João está
citando Isaías 40.3, que fala do próprio Senhor Deus chegando para o meio de seu povo. Mas o
contexto aplica essa passagem ao papel de João na preparação do caminho para a vinda de
Jesus. A implicação é que quanto Jesus vier, o próprio Senhor virá.
Jesus também identifica-se como o Senhor soberano do Antigo Testamento quando
pergunta aos fariseus acerca de Salmos 110.1: “Disse o Senhor ao meu Senhor. Assenta-te
à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés” (Mt 22.44). O
significado dessa frase é que “Deus Pai disse a Deus Filho [o Senhor de Davi]: Assenta-
te à minha direita...” Os fariseus sabem que ele está falando de si mesmo e se identificando
como alguém digno do título veterotestamentário kyrios, “Senhor”.
Tal uso é visto com freqüência nas epístolas, onde “o Senhor” é nome comumente
empregado em referência a Cristo. Paulo diz: “... há um só Deus, o Pai, de quem são todas
as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as
coisas, e nós também, por ele” (ICo 8.6; cf. 12.3 e muitas outras passagens nas epístolas
paulinas).
Uma passagem especialmente clara encontra-se em Hebreus 1, em que o autor cita
o salmo 102, que fala sobre a obra do Senhor na criação e a aplica a Cristo:
No princípio, Senhor, lançaste os fundamentos da terra,
e os céus são obra das tuas mãos;
eles perecerão; tu, porém, permaneces;
sim, todos eles envelhecerão qual veste;
também, qual manto, os enrolarás,
e, como vestes, serão igualmente mudados;
tu, porém, és o mesmo,
e os teus anos jamais terão fim (Hb 1.10-12).
Cristo é aqui mencionado explicitamente como o Senhor eterno do céu e da terra que
criou todas as coisas e permanecerá imutável para sempre. Tal emprego específico do
termo “Senhor” em referência a Cristo culmina em Apocalipse 19.16, onde vemos Cristo
retornar como Rei vencedor, tendo “no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: Rei
dos Reis e Senhor dos Senhores”.

c. Outras fortes alegações de divindade. Além dos usos da palavra Deus e Senhor
em referência a Cristo, temos outras passagens que defendem com vigor a divindade de
Cristo. Quando Jesus disse a seus opositores judeus que Abraão vira seu dia (o dia de
Cristo), eles o contestaram: “Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão?” (Jo 8.57).
Aqui uma resposta suficiente para provar a eternidade de Jesus teria sido: “Antes que
Abraão fosse, eu era”. Mas não foi isso que Jesus disse. Antes, ele fez uma declaração
muito mais estarrecedora: “Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão
existisse, eu sou” (Jo 8.58). Jesus combinou duas declarações cuja seqüência parecia não
fazer sentido: “Antes de ocorrer algo no passado [Abraão existisse], ocorreu algo no
presente [eu sou]”. Os líderes judaicos reconheceram de imediato que ele não estava
As Doutrinas de Cristo

falando por enigmas nem pronunciando insensatez: quando disse “eu sou”, estava
repetindo as palavras que o próprio Deus empregou quando se identificou a Moisés como
“eu sou o que sou” (Êx 3.14). Jesus estava atribuindo a si o título “eu sou”, pelo qual
Deus designa-se como o que existe etemamente, o Deus que é a fonte da existência dele
próprio e que sempre foi e sempre será. Quando os judeus ouviram essa declaração
solene, enfática, incomum, sabiam que ele estava alegando ser Deus. “Então, pegaram
em pedras para atirarem nele; mas Jesus se ocultou e saiu do templo” (Jo 8.59).
Outra forte alegação de divindade é a declaração de Jesus no final de Apocalipse : “Eu
sou o Alfa e o Omega, o Primeiro e o Ultimo, o Princípio e o Fim” (Ap 22.13). Quando isso é
combinado com a declaração de Deus Pai em Apocalipse 1.8, “Eu sou o Alfa e Omega ”,
também constitui uma forte alegação de divindade equivalente à de Deus Pai. Soberano sobre
toda a história e sobre toda a criação, Jesus é o princípio e o fim.
Em João 1.1, o autor não só chama Jesus de “Deus”, como também se refere a ele como “
o Verbo ” (gr . logos ). Os leitores de João reconheciam nesse termo logos uma dupla
referência tanto à Palavra de Deus poderosa e criadora do Antigo Testamento , pela qual os
céus e a terra foram criados (SI 33.6), como ao princípio organizador ou unificador do
universo, dando-lhe conjunto e sentido dentro do pensamento grego. João está identificando
Jesus com essas duas ideias , dizendo que ele não é só a Palavra de Deus poderosa, criadora, e
a força que organiza e unifica o universo, mas também que se tomou homem: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como
do unigênito do Pai” (Jo 1. 14). Eis outra forte alegação de divindade , juntamente com uma
declaração explícita de que Jesus também se tornou homem e andou entre nós como homem.
E possível encontrar outras evidências de alegações de divindade no fato de Jesus
denominar-se “o Filho do homem”. Esse título é empregado oitenta e quatro vezes nos quatro
evangelhos, mas somente por Jesus e somente para falar de si próprio (observe, e.g., Mt 16.13
e Lc 9.18). No restante do Novo Testamento , a frase “o Filho do homem ” (com o artigo
definido “o”) é empregado somente uma vez, em Atos 7.56, onde Estêvão refere-se a Cristo
como o Filho do Homem . Essa expressão singular possui como pano de fundo a visão de
Daniel 7, segundo a qual Daniel viu um como um “Filho do Homem ” que se dirigiu “ao
Ancião de Dias” e recebeu “domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens
de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará” (Dn 7.13-
14). E notável que esse “filho do homem” veio “com as nuvens do céu” (Dn 7.13).
Essa passagem fala claramente de alguém que teve origem celestial e recebeu domín|o
eterno sobre todo o mundo. Os sumos sacerdotes não perderam de vista o centro dessa
passagem quando Jesus disse: “... desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita
do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64). A referência a Daniel 7.13-14
era indubitável, e o sumo sacerdote e seu conselho sabiam que Jesus estava alegando ser
o governante eterno do mundo, aquele de origem celestial mencionado na visão de Daniel.
De imediato , disseram : “Blasfemou ! [...] É réu de morte ” (Mt 26 .65 -66 ). Aqui Jesus
finalmente explicita as fortes reivindicações de que o governo eterno do mundo , antes só
insinuado em seu freqüente uso do título “Filho do homem”, aplicam-se a ele próprio.
Ainda que o título “Filho de Deus ” possa às vezes ser simplesmente empregado em
referência a Israel (Mt 2.15 ), ou ao homem criado por Deus (Lc 2.38 ), ou ao homem
regenerado em geral (Rm 8.14, 19, 23), há, entretanto, casos em que a frase “Filho de
A Pessoa de Cristo

Deus” refere-se a Jesus como o Filho celestial eterno igual ao próprio Deus (veja Mt 11.25-
30; 17.5; ICo 15.28; Hb 1.1-3, 5, 8). Isso ocorre especialmente no evangelho de João, em
que Jesus é visto como um Filho singular do Pai (Jo 1.14, 18,34,49) que revela plenamente
o Pai (Jo 8.19; 14.9). Como Filho, ele é tão magnífico que podemos confiar nele para obter
a vida eterna (algo que não se poderia dizer de nenhum ser criado: Jo 3.16, 36; 20.31). Ele
é também aquele que possui toda a autoridade proveniente do Pai para dar vida, pro­
nunciar julgamento eterno e governar sobre tudo (Jo 3.36; 5.20-22, 25; 10.17; 16.15).
Como Filho, ele foi enviado pelo Pai e, portanto, existia antes de vir ao mundo (Jo 3.37;
5.23; 10.36).
Os primeiros três versículos de Hebreus são enfáticos ao dizer que o Filho é aquele
a quem Deus “constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo”
(Hb 1.2). Esse Filho, diz o autor, “é o resplendor da glória e a expressão exata [lit., é a
‘duplicata exata’, gr. charaktêrj do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do
seu poder” (Hb 1.3). Jesus é a duplicata exata da “natureza” (ou ser, gr. hypostasis) de Deus,
que o torna exatamente igual a Deus em todos os atributos. Além disso, ele mantém
continuamente o universo “pela palavra do seu poder”, algo que só Deus podia fazer.
Essas passagens combinam-se para indicar que o título “Filho de Deus”, quando
aplicado a Cristo, declara com firmeza sua divindade como o Filho eterno na Trindade,
alguém igual ao Pai em todos os seus atributos.

2. Sinais de que Jesus possuía atributos de divindade. Além das afirmações


específicas da divindade de Jesus vistas nas muitas passagens citadas acima, vemos muitos
exemplos de atos na vida de Jesus que indicam seu caráter divino.
Jesus demonstrou sua onipotência quando acalmou a tempestade no mar com uma
palavra (Mt 8.26-27), multiplicou os pães e peixes (Mt 14.19) e transformou a água em
vinho (Jo 2.1-11). Alguns podem objetar, dizendo que esses milagres só mostraram o
poder do Espírito Santo agindo por intermédio dele, assim como o Espírito Santo poderia
agir por meio de qualquer outro ser humano e, assim, isso não comprova a divindade de
Jesus. Mas as explicações contextuais desses eventos muitas vezes destacam não o que
demonstram do poder do Espírito Santo, mas o que demonstram do próprio Jesus. Por
exemplo , depois que Jesus transformou água em vinho , João nos diz: “Com este, deu Jesus
princípio a seus sinais em Caná da Galiléia ; manifestou a sua glória , e os seus discípulos
creram nele” (Jo 2.11). O que se manifestou não foi a glória do Espírito Santo, mas a glória do
próprio Jesus , quando seu poder divino atuou para transformar a água em vinho . De modo
semelhante , depois que Jesus acalmou a tempestade no mar da Galiléia , os discípulos não
disseram : “Como é grande o poder do Espírito Santo que age por intermédio deste profeta ”,
mas: “Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem ?” (Mt 8.27). Era a autoridade do
próprio Jesus a que o vento e as ondas estavam sujeitos , e isso só podia ser a autoridade de
Deus que domina sobre os mares e tem poder para acalmar as ondas (Cf. SI 65.7; 89.9; 107.29).
Jesus afirma sua eternidade quando diz: “... antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58,
veja discussão acima), ou, “Eu sou o Alfa e o Ômega” (Ap 22.13).
A onisciência de Jesus é demonstrada no fato de conhecer os pensamentos das pessoas
(Mc 2.8), de ver , de muito longe , Natanael sob a figueira (Jo 1.48), de conhecer “desde o
princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair” (Jo 6.64). É claro que a
As Doutrinas de Cristo

revelação de eventos ou fatos particulares e específicos era algo que Deus podia dar a
qualquer um que tivesse o dom de profetizar no Antigo ou no Novo Testamento. Mas o
conhecimento de Jesus era muito mais extenso. Ele sabia “quais eram os que não criam”,
implicando com isso que distinguia a fé ou a incredulidade que estava no coração de todos
os homens. De fato, João diz explicitamente que Jesus “não precisava de que alguém lhe
desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza
humana” (Jo 2.25). Os discípulos mais tarde puderam dizer-lhe: “Agora, vemos que sabes
todas as coisa? (Jo 16.30). Essas declarações dizem muito mais do que se poderia dizer de
qualquer grande profeta ou apóstolo do Antigo ou do Novo Testamento, pois implicam
onisciência da parte de Jesus.
Por fim, depois de ressuscitar, quando perguntou a Pedro se o amava, este respondeu:
“Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo” (Jo 21.17). O que Pedro está
dizendo aqui não é só que Jesus conhece seu coração e sabe que ele o ama; é muito mais.
Ele está, antes, fazendo uma declaração geral (“tu sabes todas as coisas”) e, a partir disso,
chega a uma conclusão específica (“tu sabes que eu te amo”). Pedro está convicto de que
Jesus conhece o que está no coração de cada pessoa e, portanto, tem certeza de que Jesus
conhece o coração dele.
O atributo divino da onipresença de Jesus durante seu ministério terreno não é afirmado
diretamente. Entretanto, ao olhar para o futuro, quando a igreja seria estabelecida, Jesus
podia dizer: “... onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio
deles” (Mt 18.20). Além disso, antes de deixar a terra, disse aos discípulos: “E eis que estou
convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20).
Vê-se que Jesus possuía soberania divina, um tipo de autoridade exclusiva de Deus,
no fato de que ele podia perdoar pecados (Mc 2.5-7). Diferente dos profetas do Antigo
Testamento que declaravam “Assim diz o Senhor”, ele podia introduzir suas declarações
com a frase: “Em, porém, vos digo” (Mt 5.22, 28, 32, 34, 39, 44) - uma alegação sur­
preendente da própria autoridade. Ele podia falar com a autoridade do próprio Deus
porque ele mesmo era plenamente Deus. O Pai tinha-lhe dado “todas as coisas”, bem
como a autoridade para revelar o Pai a quem desejasse (Mt 11.25-27). Sua autoridade é
tal, que o futuro estado eterno de cada um no universo depende do fato de crer nele ou
rejeitá-lo (Jo 3.36).
Jesus também possuía o atributo divino de imortalidade, a incapacidade de morrer.
Vemos isso indicado no início do evangelho de João, quando Jesus fala aos judeus:
“Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei” (Jo 2.19). João explica que não estava
falando do templo feito com pedras em Jerusalém, “porém, se referia ao santuário do seu
corpo. Quando, pois, Jesus ressuscitou dentre os mortos, lembraram-se os seus discípulos
de que ele dissera isto; e creram na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2.21-22). Preci­
samos insistir, é claro, que Jesus realmente morreu: a própria passagem fala de quando
ele “ressuscitou dentre os mortos ”. Mas é também significativo que Jesus prediz que terá
função ativa na própria ressurreição: “o reconstruirei ”. Ainda que outras passagens digam que
Deus Pai atuou na ressurreição de Cristo, aqui ele diz que ele mesmo atuará em sua ressurreição
Em outra passagem do evangelho de João , Jesus alega ter poder para entregar a vida e
reassumi-la: “Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a
tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade
A Pessoa de Cristo

para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai” (Jo 10.17-18).
Aqui Jesus fala de um poder que nenhum outro ser humano teve — o poder de entregar
a vida e o poder de retomá-la. Mais uma vez, isso é uma indicação de que Jesus possuía
o atributo divino da imortalidade . De modo semelhante , o autor de Hebreus diz que Jesus é
sacerdote “constituído não conforme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida
indissolúvel” (Hb 7.16). (O fato de a imortalidade ser uma característica singular exclusiva de
Deus é visto em lTm 6.16, que fala de Deus como “o único que possui imortalidade”.)
Outra confirmação clara da divindade de Cristo é o fato de ele ser considerado digno
de culto, algo que não pode ser dito de nenhuma outra criatura, inclusive anjos (veja Ap
19.10), mas só de Deus. A Bíblia ainda diz de Cristo: “Deus o exaltou sobremaneira e lhe
deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse quejesus Cristo é
Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.9-11). De modo semelhante, Deus ordena que os
anjos adorem a Cristo, pois lemos: “E todos os anjos de Deus o adorem” (Hb 1.6).
João tem permissão de vislumbrar o culto que ocorre no céu, pelo que vê milhares e
milhares de anjos e criaturas celestes em torno do trono de Deus dizendo: “Digno é o
Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e
glória, e louvor” (Ap 5.12). Então ele ouve “toda criatura que há no céu e sobre a terra,
debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está
sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos
séculos dos séculos” (Ap 5.13). Cristo é aqui chamado “o Cordeiro que foi morto”, sendo-
lhe concedido o culto universal oferecido a Deus Pai, demonstrando-se assim claramente
sua equivalência em divindade.

3. Teria Jesus desistido de algum atributo enquanto estava na terra (a teoria


da kenosis)? Paulo escreve aos filipenses:

Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele,
subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus;
antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em
semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana... (Fp 2.5-7).

Partindo desse texto, alguns teólogos da Alemanha (a partir de 1860-1880) e da


Inglaterra (a partir de 1890-1910) passaram a defender uma idéia de encarnação que
jamais fora defendida na história da igreja. Essa nova idéia foi chamada “teoria da
kenosis”, e a posição geral representada por ela foi chamada “teologia kenótica”. A teoria
da kenosis defende que Cristo abriu mão de alguns atributos divinos enquanto estava sobre
a terra como homem. (A palavra kenosis é tomada do verbo grego kenoõ, cujo significado
geral é “esvaziar”, sendo traduzida por “esvaziou-se” em Fp 2.7.) De acordo com a teoria,
Cristo “esvaziou-se” de alguns atributos divinos, tais como a onisciência, onipresença e
onipotência, enquanto estava sobre a terra como homem. Isso era visto como uma
autolimitação voluntária da parte de Cristo, feita para cumprir sua obra de redenção.
Mas será que Filipenses 2.7 ensina que Cristo esvaziou-se de alguns de seus atributos
divinos? E será que o restante do Novo Testamento confirma isso? A evidência das Escri­
As Doutrinas de Cristo

turas aponta para uma resposta negativa para as duas perguntas. Primeiro precisamos
entender que nenhum mestre reconhecido dos primeiros 1800 anos da história da igreja,
incluindo os que falavam grego desde o nascimento, pensava que “esvaziou-se” em
Filipenses 2.7 significava que o Filho de Deus abandonara alguns atributos divinos. Em
segundo lugar, precisamos reconhecer que o texto não diz que Cristo “esvaziou-se de
alguns poderes” ou “esvaziou-se de atributos divinos” ou algo parecido. Em terceiro lugar,
o texto descreve o que Jesus fez nesse “esvaziamento”: ele não o fez deixando algum de seus
atributos, mas, antes, “assumindo a forma de servo”, ou seja, passando a viver como
homem, e “tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,
a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.8).
Assim, o próprio contexto interpreta esse “esvaziar-se” como equivalente de “humilhar-
se” e assumir condição e posição inferior. Assim, a niv, em vez de traduzir a frase “a si
mesmo se esvaziou", traduz: “mas se tornou nada" (Fp 2.7 niv). Nesse contexto, o esva­
ziamento inclui mudança de função e condição, não de atributos essenciais.
Um quarto motivo para essa interpretação encontra-se no propósito de Paulo nesse
contexto. Seu propósito é convencer os filipenses: “Nada façais por partidarismo ou
vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo”
(Fp 2.3). Ele continua: “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão
também cada qual o que é dos outros” (Fp 2.4). Para convencê-los a ser humildes e a
colocar os interesses dos outros em primeiro lugar, ele então levanta o exemplo de Cristo:
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele,
subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a
si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo...” (Fp 2.5-7).
Agora, ao levantar Cristo como exemplo, ele quer que os filipenses imitem Cristo.
Mas com certeza ele não está pedindo que os cristãos filipenses “abandonem” ou
“coloquem de lado” algum de seus atributos ou habilidades essenciais! Ele não lhes está
pedindo que “abandonem” sua inteligência, ou força ou capacidade, tornando-se uma
versão inferior do que são. Antes, está pedindo que coloquem os interesses dos outros em
primeiro lugar: “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também
cada qual o que é dos outros” (Fp 2.4). E porque esse é o objetivo, pelo contexto é coerente
compreender que ele está empregando Cristo como o exemplo supremo de alguém que
fez exatamente isso: colocou os interesses dos outros em primeiro lugar e dispôs-se a abrir
mão de alguns de seus privilégios e de sua condição como Deus.
Assim, a melhor compreensão dessa passagem é que ela fala de Jesus deixando a
condição e o privilégio que possuía no céu: ele “não julgou como usurpação o ser igual a
Deus” (“não se apegou às vantagens pessoais”), mas “esvaziou-se” ou “humilhou-se” por
nós e passou a viver como homem. Jesus fala em outro lugar da “glória” que possuía com
o Pai “antes que houvesse mundo” (Jo 17.5), glória que deixou e receberia de volta quando
voltasse ao céu. E Paulo podia falar de Cristo que “sendo rico, se fez pobre” (2Co 8.9),
de novo aludindo ao privilégio e honra que merecia, mas que deixara temporariamente
por nós.
O quinto e último motivo pelo qual a “teoria da kenosis” em Filipenses 2.7 deve ser
rejeitada é o contexto mais amplo do ensino no Novo Testamento e o ensino doutrinário
de toda a Bíblia. Se fosse verdade que ocorreu um fato tão importante como esse - que
o Filho eterno de Deus abandonou, por um momento, todos os atributos de Deus,
A Pessoa de Cristo

deixando, por um momento, de ser onisciente, onipotente e onipresente, por exemplo


- então, seria de esperar que tal fato incrível fosse ensinado repetidas vezes e de forma
clara no Novo Testamento, em vez de se encontrar na interpretação muito duvidosa de
uma palavra de uma epístola. Mas vemos o oposto disso: não encontramos declarado em
nenhum outro lugar que o Filho de Deus deixou de possuir algum dos atributos de Deus
que possuía desde a eternidade. De fato, se a teoria da kenosis fosse verdadeira (e esta é
uma objeção fundamental contra ela), já não poderíamos afirmar que Jesus era plena­
mente Deus enquanto estava aqui na terra. A teoria da kenosis em última análise nega a plena divindade
de Jesus Cristo e o torna menor que Deus pleno . S. M . Smith admite : “Todas as formas de ortodoxia
clássica ou rejeitam explicitamente ou rejeitam em princípio a teologia kenótica”.
E importante compreender que o principal motivo que levou as pessoas a aceitar a
teoria kenótica não era a descoberta de uma compreensão melhor de Filipenses 2.7 ou
de alguma outra passagem do Novo Testamento, mas o crescente desconforto que sentiam
diante das formulações da doutrina de Cristo na ortodoxia histórica clássica. Parecia por
demais incrível para pessoas racionais e “científicas” crer que Jesus Cristo podia ser
verdadeiramente humano e plena e absolutamente Deus ao mesmo tempo. A teoria da kenosis passou a
ser um jeito cada vez mais aceitável de dizer que (de algum modo) Jesus era Deus, mas um tipo de Deus
que havia deixado , por algum tempo , algumas de suas qualidades divinas , aquelas qualidades que as
pessoas tinham mais dificuldade em aceitar no mundo moderno.

4. Conclusão: Cristo é plenamente divino. O Novo Testamento, em centenas de


versículos explícitos que chamam Jesus de “Deus” e “Senhor” e empregam alguns outros
títulos de divindade em referência a ele, e em muitas passagens que lhe atribuem ações
ou palavras aplicáveis somente ao próprio Deus, declara repetidas vezes a divindade plena
e absoluta de jesus Cristo. “Aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude (Cl 1.19) e “nele, habita,
corporalmente, toda a plenitude da Divindade” (Cl 2.9). Numa seção anterior argumentamos que Jesus é
plena e verdadeiramente homem . Agora concluímos que ele é também plena e verdadeiramente Deus.
Ele é corretamente chamado “Ema­ nuel”, ou seja, “Deus conosco” (Mt 1.23).

5. Seria a doutrina da encarnação “compreensível” hoje? Ao longo de toda a


história levantam-se objeções ao ensino neotestamentário da plena divindade de Cristo.
Um ataque recente a essa doutrina merece menção aqui por ter criado grande con­
trovérsia, pois os que contribuíram para o texto eram todos líderes eclesiásticos de renome
na Inglaterra. O livro era chamado TheMith of GodIncarnate [o mito do Deus encarnado],
editado por John Hick (London: SCM, 1977). O título apresenta a tese do livro: a idéia
de que Jesus era “Deus encarnado” ou “Deus vindo em carne” é um “mito” - uma história
que talvez se adequasse à fé das gerações anteriores, mas que não merece crédito hoje.
O argumento do livro começa com algumas pressuposições básicas: (1) a Bíblia não
possui autoridade divina absoluta para nós hoje (p. i), e (2) o cristianismo, como toda a
vida e o pensamento humano, está evoluindo e mudando com o tempo (p. ii). As
alegações básicas do livro são apresentadas nos primeiros dois capítulos. No capítulo 1,
Maurice Wiles alega que é possível haver cristianismo sem a doutrina da encarnação.
As Doutrinas de Cristo

A igreja desistiu de doutrinas anteriores, tais como a “presença real” de Cristo na Ceia do Senhor, a
inerrância das Escrituras e o nascimento virginal; assim, é possível também deixar a doutrina tradicional
da encarnação e ainda manter a fé cristã . Além disso , a doutrina da encarnação não é apresentada de
maneira direta na Bíblia, mas surgiu num ambiente em que a fé no sobrenatural era verossímil; entretanto,
isso jamais foi uma doutrina coerente e compreendida ao longo da história da igreja.
A respeito do ensino do Novo Testamento, Francis Young, no capítulo 2, alega que
o Novo Testamento contém os escritos de testemunhas diversas que relatam o enten­
dimento que elas mesmas têm de Cristo, mas que não é possível obter de todo o Novo
Testamento uma perspectiva única ou unificada; o entendimento da igreja primitiva sobre
a pessoa de Cristo desenvolveu-se, com o tempo, em várias direções. Young conclui que
a situação hoje é parecida: dentro da igreja cristã muitas reações pessoais diversas à história
de Jesus Cristo são também aceitáveis para nós, e isso com certeza incluiria a reação que vê Cristo como
um homem em quem Deus agia de maneira singular, mas não, de maneira alguma, um homem que fosse
também plenamente Deus.
De acordo com a teologia evangélica, é significativo observar que essa rejeição direta
da divindade de Jesus só poderia ser defendida sobre uma pressuposição de que o Novo Testamento não
deve ser aceito como autoridade divina absoluta para nós , algo fidedigno em todos os pontos . Essa
questão de autoridade é, em muitos casos , a grande linha divisória nas conclusões sobre a pessoa de
Cristo. Em segundo lugar, boa parte da crítica contra a doutrina da encarnação está centrada na alegação
de que ela não era “coerente” ou “compreensível”. Mas no fundo, isso é uma simples indicação de que os
autores não estão dispostos a aceitar nada que não pareça adaptar-se à cosmovisão “científica” em que o
universo natural é um sistema fechado não sujeito a intervenções divinas como milagres e encarnação. A
afirmação de que “Jesus era plenamente Deus e plenamente homem em uma só pessoa”, ainda que não
seja uma contradição, é um paradoxo que não podemos compreender por completo nesta era e, talvez, em
toda a eternidade , mas isso não nos dá o direito de rotulá -la de “incoerente ” ou “incompreensível ”. A
doutrina da encarnação compreendida pela igreja através da história tem sido de fato coerente e
inteligível , embora ninguém sustente que ela nos forneça uma explicação completa de como Jesus é
plenamente Deus e plenamente homem. Nossa resposta devida é não rejeitar o ensino claro e importante
da Bíblia acerca da encarnação , mas simplesmente reconhecer que ele continuará como um paradoxo ,
que isso é tudo o que Deus optou por revelar a nós a respeito do assunto e que isso é verdade . Se nos
submetermos a Deus e às suas palavras nas Escrituras, então precisamos crer nela.
6. Por que é necessária a divindade de Jesus ? Na seção anterior alistamos alguns motivos
pelos quais era necessário que jesus fosse plenamente humano para obter nossa redenção . Aqui cabe
reconhecer que é também crucialmente importante insistir na plena divindade de Cristo , não só porque
ela é ensinada de maneira clara nas Escrituras, mas também porque (1) só alguém que fosse Deus infinito
poderia arcar com toda a pena de todos os pecados de todos os que cressem nele - qualquer criatura finita
não seria capaz de arcar com tal pena; (2) a salvação vem do Senhor (Jn 2.9 arc), e toda a mensagem das
Escrituras é moldada para mostrar que nenhum ser humano, nenhuma criatura, jamais conseguiria salvar
o homem — só Deus mesmo poderia; e (3) só alguém que fosse
A Pessoa de Cristo

verdadeira e plenamente Deus poderia ser o mediador entre Deus e homem (lTm 2.5),
tanto para nos levar de volta a Deus como também para revelar Deus de maneira mais
completa a nós (Jo 14.9).
Assim, se Jesus não é plenamente Deus, não temos salvação e, por fim, nenhum
cristianismo. Não é por acaso que ao longo da história os grupos que abandonaram a
crença na plena divindade de Cristo não têm permanecido muito tempo na fé cristã,
desviando-se logo para um tipo de religião representada pelo unitarismo nos Estados
Unidos e em outros lugares. “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não
permanece não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai como o
Filho” (2 Jo 9).

C. A encarnação: divindade e humanidade na única pessoa de Cristo


O ensino bíblico sobre a plena divindade e plena humanidade de Cristo é tão amplo
que se vem crendo em ambos desde os primeiros tempos da história da igreja. Mas um
entendimento preciso de como a plena divindade e a plena humanidade poderiam ser
combinadas em uma pessoa só foi formulado gradualmente na igreja e não chegou à
forma final antes da Definição de Calcedônia em 451 d.C. Antes disso, algumas con­
cepções inadequadas da pessoa de Cristo foram propostas e depois rejeitadas. Uma con­
cepção, ariana, que sustentava que Jesus não era plenamente divino, foi discutida acima
no capítulo sobre a doutrina da Trindade . Mas três outras concepções por fim rejeitadas como heresia
devem ser aqui mencionadas.

1. Três concepções inadequadas da pessoa de Cristo


a. O apolinarismo. Apolinário, que se tomou bispo em Laodicéia em cerca de 361
a.C., ensinava que a pessoa única de Cristo possuía um corpo humano, mas não uma
mente ou um espírito humano, e que a mente e o espírito de Cristo provinham da
natureza divina do Filho de Deus. Essa concepção pode ser representada pela figura.

APOLINARISMO
As Doutrinas de Cristo

Mas as idéias de Apolinário foram rejeitadas pelos líderes da igreja na época. Eles
perceberam que não era só o nosso corpo humano que necessitava de salvação e ser
representado por Cristo na sua obra redentora, mas também nossa mente e espírito (ou
alma) humano: Cristo tinha de ser plena e verdadeiramente humano para nos salvar (Hb
2.17). O apolinarismo foi rejeitado por alguns concílios eclesiásticos desde o Concílio de
Alexandria em 362 d.C. até o Concílio de Constantinopla em 381 d.C.

b. O nestorianismo. O nestorianismo é a doutrina de que havia duas pessoas


distintas em Cristo, uma pessoa humana e outra divina, ensino diferente da idéia bíblica
que vê Jesus como uma só pessoa. O nestorianismo é representado pela figura.

NESTORIANISMO

Nestório era um pregador famoso em Antioquia e, desde 428 d.C., bispo de Cons­
tantinopla. Embora o próprio Nestório talvez nunca tivesse ensinado a concepção herética
que leva seu nome (a ideia de que Cristo era duas pessoas em um corpo , não uma pessoa ), por uma
combinação de alguns conflitos pessoais e boa dose de política eclesiástica , foi afastado de seu ofício,
tendo seus ensinos condenados.
E importante compreender por que a igreja não podia aceitar a ideia de que Cristo era duas pessoas
distintas . Não temos , em parte alguma da Bíblia , indicação de que a natureza humana de Cristo , por
exemplo, seja uma pessoa independente , que decide fazer algo contrário à natureza divina de Cristo. Em
parte alguma temos indicação da natureza humana conversando com a natureza divina ou lutando dentro
de Cristo, ou algo parecido. Antes, temos um quadro coerente de uma única pessoa agindo em integridade
e unidade. Jesus sempre fala “eu”, não “nós”, apesar de referir-se a si próprio e ao Pai como “nós” (Jo 14.
23). A Bíblia sempre trata Jesus por “ele” não por “eles”. E, ainda que às vezes possamos distinguir ações
de sua natureza divina e ações de sua natureza humana , para nos facilitar a compreensão de algumas
declarações e ações registradas nas Escrituras , a própria Bíblia não diz “a natureza humana de Jesus fez
isso” ou “a natureza divina de Jesus fez aquilo”, como se houvesse pessoas distintas, mas sempre fala do
que a pessoa de Cristo fez. Assim, a igreja continuou insistindo que Jesus era uma só pessoa , ainda que
possuísse natureza humana e natureza divina.

c. O monofisismo (eutíquianismo). Uma terceira concepção inadequada é chamada


monofisismo, a idéia de que Cristo possuía só uma natureza (gr. monos, “um”, e physis,
“natureza”). O primeiro defensor dessa idéia na igreja primitiva foi Eutico (c. 378-454
d.C.), líder de um mosteiro em Constantinopla. Eutico ensinava o erro oposto do nesto­
rianismo, pois negava que as naturezas humana e divina em Cristo permanecessem
A Pessoa de Cristo

plenamente humana e plenamente divina. Ele defendia, antes, que a natureza humana
de Cristo fora tomada e absorvida pela divina, de modo que ambas as naturezas haviam-
se modificado um pouco , dando lugar a um terceiro tipo de natureza ? Pode -se ver uma analogia do
eutiquianismo quando colocamos uma gota de tinta num copo de água: a mistura resultante não é nem
tinta pura nem água pura, mas algum tipo de terceira substância , uma mistura das duas em que ambas ,
tinta e água , sofrem mudanças . De modo semelhante , Eutico ensinava que Jesus era uma mistura de
elementos divinos e humanos
em que ambos foram um tanto modificados para formar uma nova natureza. Isso é
representado pela figura.

EUTIQUIANISMO

O monofisismo também causou grande e justa preocupação na igreja porque, por essa
doutrina, Cristo não era nem verdadeiramente Deus nem verdadeiramente homem. E,
nesse caso, não podia representar-nos verdadeiramente como homem nem podia ser
verdadeiro Deus, capaz de obter nossa salvação.

2. A solução da controvérsia: a Definição de Calcedônia em 451 d.C. Para tentar


resolver os problemas levantados pelas controvérsias em torno da pessoa de Cristo,
convocou-se um amplo concílio eclesiástico na cidade de Calcedônia, perto de Cons­
tantinopla (atual Istambul), realizado de 8 de outubro a l.° de novembro de 451. A
declaração resultante, chamada Definição de Calcedônia, previne contra o apolinarismo,
o nestorianismo e o eutiquianismo. Ela tem sido tomada desde então como a definição
padrão, ortodoxa, do ensino bíblico sobre a pessoa de Cristo igualmente pelos ramos
católicos, protestantes e ortodoxos do cristianismo.
A declaração não é longa, e podemos citá-la por inteiro:

Fiéis aos Santos Pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve
confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à
divindade, e perfeito quanto à humanidade; verdadeiramente Deus e verda­
deiramente homem, constando de alma racional e de corpo, consubstanciai com
o Pai, segundo a divindade, e consubstanciai a nós, segundo a humanidade; em
tudo semelhante a nós, excetuando o pecado; gerado segundo a divindade pelo Pai
antes de todos os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por nós e
para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de Deus; um e só mesmo
As Doutrinas de Cristo

Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, que se deve confessar, em duas naturezas,


inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas de
modo algum é anulada pela união, antes é preservada a propriedade de cada
natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em uma subsistência; não
separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigénito,
Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio
acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos ensinou, e o Credo dos
Santos Pais nos transmitiu.

Contra a idéia de Apolinário de que Cristo não possuía mente ou alma humana,
temos a declaração de que ele era “verdadeiramente homem, constando de alma racional e
de corpo [...] consubstanciai a nós, segundo a humanidade-, em todas as coisas semelhante a
nós”. (A palavra consubstanciai significa “ter a mesma natureza ou substância”.)
Em oposição à idéia nestoriana de que Cristo era duas pessoas unidas em um corpo,
temos as palavras “inseparáveis e indivisíveis [...] concorrendo para formar uma só pessoa e
subsistência; não separado nem dividido em duas pessoas”.
Contra a ideia monofisista de que Cristo possuía só uma natureza e que sua natureza humana perdera
-se na união com a natureza divina , temos as palavras : “que se deve confessar , em duas naturezas ,
inconfundíveis , imutáveis [...] A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união , antes é
preservada a propriedade de cada natureza ”. As naturezas humana e divina não se confundiram nem
foram modificadas quando Cristo tornou -se homem , mas a natureza humana permaneceu
verdadeiramente humana, e a natureza divina, verdadeiramente divina.
A figura pode ser útil para mostrar isso, em contraste com os diagramas anteriores. Ela indica que o
Filho eterno de Deus assumiu uma natureza verdadeiramente humana e que as naturezas divina e humana
permanecem distintas e mantêm suas propriedades, mas são unidas eterna e inseparavelmente em uma só
pessoa.
Alguns dizem que a Definição de Calcedônia realmente não nos define de algum
modo afirmativo o que a pessoa de Cristo de fato é, mas simplesmente nos diz algumas
coisas que não é. Desse modo, alguns dizem que não se trata de uma definição muito útil.
Mas tal acusação é enganosa e imprecisa. A definição de fato nos é de grande ajuda na
compreensão correta do ensino bíblico. Ela ensina que Cristo possui indiscutivelmente
duas naturezas, uma natureza humana e uma divina. Ela declara que sua natureza divina

A CRISTOLOGIA DE CALCEDÔNIA
A Pessoa de Cristo

é exatamente a mesma de seu Pai (“consubstanciai ao Pai, segundo a divindade”). E


sustenta que a natureza humana é exatamente como nossa natureza humana, ainda que
sem pecado (“consubstanciai a nós, segundo a humanidade-, ‘em todas as coisas semelhante a
nós, excetuando o pecado’”). Além disso, ela afirma que na pessoa de Cristo a natureza
humana mantém suas características distintas, e a natureza divina mantém suas carac­
terísticas distintas (“A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, antes
é preservada a propriedade de cada natureza”). Por fim, afirma que, quer o compreendamos,
quer não, essas duas naturezas estão unidas na única pessoa de Cristo.
Quando a Definição de Calcedônia diz que as duas naturezas de Cristo ocorrem
juntas em “uma só pessoa e subsistência”, a palavra grega traduzida por “subsistência” é
hypostasis, “ser”. Assim, a união das naturezas humana e divina de Cristo em uma pessoa
é às vezes chamada união hipostática. Essa frase simplesmente indica a união das naturezas
humana e divina de Cristo em um ser.

3. Agrupamento de textos bíblicos específicos sobre a divindade e a huma­


nidade de Cristo. Quando examinamos o Novo Testamento, conforme fizemos acima
nas seções sobre a humanidade e a divindade de Jesus, há algumas passagens que parecem
difíceis de encaixar. (Como Jesus podia ser onipotente e ainda assim fraco? Como podia
deixar o mundo e ainda estar presente em todos os lugares? Como podia aprender coisas
e ainda ser onisciente?) Quando a igreja lutava para compreender esses ensinos,
finalmente chegou à Definição de Calcedônia, que fala das duas naturezas distintas em
Cristo que mantêm cada qual as suas propriedades, mas permanecem juntas em uma
pessoa. Essa distinção que nos ajuda em nosso entendimento das passagens bíblicas já
mencionadas também parece ser exigida por tais passagens.

a. Uma natureza faz algumas coisas que a outra não faz. Teólogos evangélicos
de gerações anteriores não hesitaram em fazer distinção entre coisas feitas pela natureza
humana de Cristo, mas não pela natureza divina, ou pela natureza divina, mas não pela
humana. Parece que temos de fazer isso se quisermos reafirmar a declaração de
Calcedônia de que “é preservada a propriedade de cada natureza . Mas poucos teólogos recentes
dispõem-se a fazer tal distinção, talvez por causa de uma hesitação em afirmar algo que não conseguimos
compreender.
Quando falamos da natureza humana de Jesus, podemos dizer que ele subiu ao céu
e já não está no mundo (Jo 16.28; 17.11; At 1.9-11). Mas com respeito à sua natureza divina , podemos
dizer que Jesus está presente em toda parte : “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome , ali
estou no meio deles” (Mt 18.20); “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século” (Mt
28.20); “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos
nele morada ” (Jo 14.23). Assim , podemos dizer que duas coisas são verdade a respeito da pessoa de
Cristo - ele voltou para o céu, e ele também está presente conosco.
De modo semelhante, podemos dizer que Jesus tinha cerca de trinta anos (Lc 3.23),
se estivermos falando a respeito de sua natureza humana, mas podemos dizer que ele
existiu etemamente (Jo 1.1-2; 8.58), se estivermos falando de sua natureza divina.
Em sua natureza humana, Jesus experimentava fraqueza e se cansava (Mt 4.2; 8.24;
Mc 15.21; Jo 4.6), mas sua natureza divina era onipotente (Mt 8.26-27; Cl 1.17; Hb 1.3).
As Doutrinas de Cristo

E particularmente notável a cena no mar da Galiléia, quando Jesus dormia na popa do


barco, por cansaço, presume-se (Mt 8.24). Mas ele foi capaz de acordar do sono e acalmar
o vento e o mar com uma palavra (Mt 8.26-27)! Cansado, ainda que onipotente! Aqui a
frágil natureza humana de Jesus escondeu por completo sua onipotência até ele irromper
numa palavra soberana do Senhor do céu e da terra.
Se alguém perguntar se Jesus, enquanto dormia no barco, estava também “susten­
tando continuamente todas as coisas pela sua palavra de poder” (Hb 1.3. tradução do
autor), e se todas as coisas no universo estavam sendo sustentadas por ele naquela hora
(veja Cl 1.17), a resposta deve ser sim, pois aquelas atividades sempre foram e sempre
serão responsabilidade particular da segunda pessoa da Trindade, o Filho eterno de Deus.
Os que consideram “inconcebível” a doutrina da encarnação perguntam às vezes se Jesus,
quando recém-nascido na manjedoura em Belém, estava também “sustentando o
universo”. Para essa pergunta a resposta deve também ser sim: Jesus não era só poten­
cialmente Deus ou alguém em quem Deus agia de maneira única, mas verdadeira e
plenamente Deus, com todos os atributos de Deus. Ele era “o Salvador, que é Cristo, o
Senhor0 (Lc 2.11). Os que rejeitam isso, considerando-o impossível, simplesmente
sustentam uma definição de “possível” diferente da de Deus, conforme revelada nas
Escrituras.37 Dizer que não conseguimos compreender isso é humildade adequada. Mas
dizer que não é possível parece mais arrogância intelectual.
De modo semelhante, podemos compreender que em sua natureza humana, Jesus
morreu (Lc 23.46; ICo 15.3). Porém, com respeito à sua natureza divina, ele não morreu,
mas foi capaz de ressurgir dos mortos (Jo 2.19; 10.17-18; Hb 7.16). Mas aqui precisamos
fazer uma observação de cautela: é verdade que quando Jesus morreu, seu corpo físico
morreu e sua alma humana (ou espírito) foi separada de seu corpo e passou à presença
de Deus Pai no céu (Lc 23.43,46). Desse modo, ele experimentou uma morte como a que
nós, crentes, experimentaremos, caso morramos antes da volta de Cristo. E não é correto
dizer que a natureza divina de Jesus morreu ou poderia morrer, se “morrer” significa
interrupção de atividade, interrupção de consciência ou diminuição de poder. Entretanto,
pela união com a natureza humana de Jesus, sua natureza divina provou de alguma
maneira o que deveria passar na morte. A pessoa de Cristo experimentou a morte. Além
disso, parece difícil compreender como só a natureza humana de Jesus podia ter sofrido
a ira de Deus contra os pecados de milhões de pessoas. Parece que, de alguma maneira,
a natureza divina de Deus teve de participar do ato de sofrer a ira contra o pecado que
nos cabia (ainda que as Escrituras não afirmem isso explicitamente em parte alguma).
Assim, ainda que a natureza divina de Jesus não tenha morrido de fato, Jesus passou pela
experiência da morte como pessoa inteira, e ambas as naturezas, humana e divina,
participaram juntas dessa experiência. A Bíblia não nos permite dizer nada mais além
disso.
A distinção entre as naturezas humana e divina de Jesus também nos ajuda a com­
preender as tentações de Jesus. Com respeito à sua natureza humana, ele certamente foi
tentado de todas as maneiras como nós, mas sem pecar (Hb 4.15). Mas com respeito à sua
natureza divina, ele não foi tentado, porque Deus não pode ser tentado pelo mal (Tg 1.13).
Nesse ponto parece necessário dizer que Jesus tinha duas vontades distintas, uma
vontade humana e uma divina, e que as vontades pertenciam a duas naturezas distintas
de Cristo, não à pessoa. De fato, houve uma posição, chamada concepção monotelista, que
A Pessoa de Cristo

alegava que Jesus possuía “uma só vontade”, mas que certamente foi uma idéia minoritária
na igreja, rejeitada como heresia num concílio eclesiástico em Constantinopla em 681 d.C.
Desde então, a idéia de que Cristo possuía duas vontades (uma humana e uma divina) tem
sigo geral, mas não universalmente sustentada pela igreja. De fato, Charles Hodge diz:

A decisão contra Nestório, em que a unidade da pessoa de Cristo foi reafirmada;


aquela conta Eutico, afirmando a distinção das naturezas; e aquela contra os
monotelitas, declarando que a posse de uma natureza humana implica ne­
cessariamente a posse de uma vontade humana, foram recebidas como a
verdadeira fé pela Igreja universal, a grega, a latina e a protestante.

Hodge explica que a igreja pensava que “negar a vontade humana de Cristo era negar
que ele possuísse natureza humana ou que fosse verdadeiramente humano. Além disso,
excluía a possibilidade de ele ter sido tentado e, assim, contradizia as Escrituras, dis­
tanciando-o tanto de seu povo, que não podia compadecer-se com ele em suas ten­
tações ”. E mais, Hodge observa que junto com a idéia de que Cristo possuía duas vontades está a idéia
afim de que ele tinha dois centros de consciência ou inteligência : “Uma vez que há duas naturezas
distintas, humana e divina, há necessariamente duas inteligências e duas vontades, uma falível e finita,
e outra imutável e infinita”.
Essa distinção de duas vontades e dois centros de consciência nos ajuda a com­
preender como Jesus podia aprender e, mesmo assim, saber todas as coisas. Por um lado,
com respeito à sua natureza humana, ele possuía conhecimento limitado (Mc 13.32; Lc
2.52). Por outro lado, Jesus conhecia evidentemente todas as coisas (Jo 2.25; 16.30; 21.27).
Ora, isso só é compreensível se Jesus aprendeu coisas e possuía conhecimento limitado
no que diz respeito à sua natureza humana, mas estava sempre consciente no tocante à
sua natureza divina, sendo assim capaz de trazer à mente a qualquer momento qualquer
informação necessária para seu ministério. Desse modo, podemos compreender a
declaração de Jesus sobre o tempo da sua volta: “Mas a respeito daquele dia ou da hora
ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai” (Mc 13.32). Essa ignorância
do tempo de sua volta só dizia respeito à natureza humana e à consciência humana de
Jesus, pois em sua natureza divina certamente era onisciente e sabia o tempo em que
retomaria à terra.
Nesse ponto pode-se argumentar que se dissermos que Jesus possuía dois centros de
consciência e duas vontades, isso exige que fosse duas pessoas distintas, e de fato caímos
no erro do “nestorianismo”. Mas, em resposta, deve-se simplesmente afirmar que duas
vontades e dois centros de consciência não exigem que Jesus seja duas pessoas distintas.
E mera declaração sem provas dizer isso. Se alguém responde que não compreende como
Jesus podia ter dois centros de consciência e ainda ser uma pessoa, então esse fato pode
com certeza ser aceito por todos. Mas o fato de não conseguir compreender algo não
significa que isso seja impossível, apenas que nossa compreensão é limitada. A grande
maioria da igreja ao longo de sua história vem dizendo que Jesus possuía duas vontades
e dois centros de consciência, mas que ele permanecia uma pessoa. Tal formulação não
é impossível, só um mistério que não compreendemos por completo. Adotar qualquer
outra solução seria criar um problema muito maior, pois exigiria que desistíssemos ou da
plena divindade ou da plena humanidade de Cristo, e não podemos fazer isso.
As Doutrinas de Cristo

b. Tudo o que uma das naturezas faz, a pessoa de Cristo faz. Na seção anterior
mencionamos uma série de coisas feitas por uma natureza, mas não pela outra na pessoa
de Cristo. Agora precisamos afirmar que tudo o que diz respeito à natureza humana ou
divina de Cristo diz respeito à pessoa de Cristo. Assimjesus pode dizer: “antes que Abraão
existisse, EU sou” (Jo 8.58). Ele não diz: “Antes que Abraão existisse, minha natureza
humana existia”, porque ele é livre para falar de qualquer coisa feita só por sua natureza
divina ou só por sua natureza humana como algo feito por ele.
Na esfera humana, com certeza isso também é verdade em nossas conversas. Se digito
uma carta, ainda que minhas pernas e pés não tenham nenhuma relação com a digitação
da carta, não digo às pessoas: “Meus dedos digitaram uma carta e meus pés não têm nada
com isso” (ainda que seja verdade). Antes, digo: “Eu digitei uma carta”. Isso é verdade
porque tudo o que é feito por uma parte de mim é feito por mim.
Assim, “Cristo morreu pelos nossos pecados” (ICo 15.3). Mesmo que na realidade só
seu corpo humano tenha deixado de viver e de funcionar, ainda assim foi Cristo como
pessoa que morreu por nossos pecados. Isso é simplesmente um modo de afirmar que
tudo o que se possa dizer de uma natureza ou de outra pode ser dito da pessoa de Cristo.
Por isso é corretojesus dizer “deixo o mundo” (Jo 16.28) ou “já não estou no mundo”
(Jo 17.11), mas ao mesmo tempo dizer “estou convosco todos os dias” (Mt 28.20). Tudo
o que é feito por uma ou outra natureza é feito pela pessoa de Cristo.

c. Títulos que nos lembram de uma natureza podem ser empregados em


referência à pessoa, mesmo quando a ação é realizada pela outra natureza. Os
autores do Novo Testamento às vezes empregam títulos que nos lembram ou da natureza
humana ou da natureza divina para falar da pessoa de Cristo, ainda que a ação men­
cionada possa ter sido realizada apenas pela outra natureza e não pela que pareça estar
implicada no título. Por exemplo, Paulo diz que se os governantes deste mundo tivessem
compreendido a sabedoria de Deus , “jamais teriam crucificado o Senhor da glória ” (1Co 2.8). Ora ,
quando vemos a frase “o Senhor da glória”, ela nos lembra especificamente da natureza divina de Jesus.
Mas Paulo emprega esse título (provavelmente de modo inten ­ cional para mostrar o terrível mal da
crucificação ) para dizer que Jesus foi "crucificado ". Embora a natureza divina de Jesus não tivesse sido
crucificada, é verdade que Jesus como pessoa foi crucificado, e Paulo afirma isso a respeito dele, apesar
de empregar o título "o Senhor da glória".
De modo semelhante , quando Isabel chama Maria "a mãe do meu Senhor" (Lc 1.43), o nome “meu
Senhor” é um título que nos lembra a natureza divina de Cristo. Mas Maria, é claro, não é mãe da natureza
divina de Jesus , que sempre existiu . Maria é simplesmente a mãe da natureza humana de Cristo .
Entretanto , Isabel pode chamá -la “a mãe do meu Senhor ” por estar empregando o título “Senhor ” em
referência à pessoa de Cristo. Uma expressão semelhante ocorre em Lucas 2.11: "... hoje vos nasceu, na
cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor”.
Desse modo, podemos compreender Marcos 13.32, em que Jesus diz que ninguém conhece o tempo
de sua volta, “nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai”. Ainda que a expressão “o Filho” lembre-
nos especificamente da filiação celeste e eterna de Jesus a Deus Pai, aqui é na realidade empregada não
para falar especificamente de sua natureza divina, mas para falar dele de modo generalizado , como uma
pessoa, e para afirmar algo
A Pessoa de Cristo

que, de fato, diz respeito só à sua natureza humana. E é verdade que em um sentido importante (ou seja,
no que diz respeito à sua natureza humana), Jesus não sabia quando voltaria.

d. Uma breve frase de resumo. Às vezes no estudo da teologia sistemática, a


seguinte frase tem sido empregada para resumir a encarnação: “Permanecendo o que era,
tomou-se o que não era”. Em outras palavras, enquanto Jesus “permanecia” o que era (ou
seja, plenamente divino), ele também se tornou o que não fora antes (ou seja, também
plenamente humano) .Jesus não deixou nada de sua divindade quando se tomou homem,
mas assumiu a humanidade que antes não lhe pertencia.

e. A “comunicação” de atributos. Depois de decidirmos que Jesus era plenamente


homem e plenamente Deus, e que sua natureza humana permaneceu plenamente humana
e sua natureza divina permaneceu plenamente divina, podemos ainda perguntar se algumas
qualidades ou capacidades foram dadas (ou “comunicadas”) de uma natureza a outra.
Parece que a resposta é sim.

(1) Da natureza divina para a natureza humana


Ainda que a natureza humana de Jesus não tenha mudado em seu caráter essencial,
porque ela foi unida à natureza divina na pessoa única de Cristo, a natureza humana de
Jesus obteve (a) dignidade para ser cultuada e (b) incapacidade de pecar, elementos que
não pertencem, de outra maneira, aos seres humanos.

(2) Da natureza humana para a natureza divina


A natureza humana de Jesus lhe deu (a) a capacidade de experimentar o sofrimento
e a morte ; (b) a capacidade de ser nosso sacrifício substitutivo , o que Jesus , só como Deus , não poderia
ter feito.

f. Conclusão. Ao final desta longa discussão, pode-nos ser fácil perder de vista o que
de fato é ensinado nas Escrituras. Trata-se, de longe, do milagre mais maravilhoso de toda
a Bíblia - muito mais maravilhoso que a ressurreição e até que a criação do universo. O
fato de o Filho de Deus, infinito, onipresente e eterno tomar-se homem e unir-se para
sempre a uma natureza humana, de modo que o Deus infinito se tornasse uma só pessoa
com o homem finito, permanecerá pela eternidade como o mais profundo milagre e o
mais profundo mistério em todo o universo.

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