Você está na página 1de 92

Márcio Thamos & Giovanna Longo

(ed.)

Reedição da

ENEIDA
de Virgílio
Traduzida por

João Gualberto Ferreira Santos Reis

conforme publicada na Bahia


entre 1845 e 1846

CANTO I
eda

ASTERISCO

ENEIDA DE VIRGÍLIO
traduzida por
João Gualberto Ferreira Santos Reis

CANTO I
Reeditado por
Márcio Thamos & Giovanna Longo

Edição © Asterisco
Araraquara - SP
2021

ISBN
978-65-00-32873-8

Este livro está disponível para download no site


2coqueiros & Asterisco – edições livres
Márcio Thamos & Giovanna Longo
(editores)

Reedição da

ENEIDA
de Virgílio
Traduzida por

João Gualberto Ferreira Santos Reis

conforme publicada na Bahia


entre 1845 e 1846

CANTO I
Os três tomos da Eneida na edição
traduzida por João Gualberto Ferreira Santos Reis
Sumário

Apresentação vii

Nota biográfica sobre o tradutor ix

Canto I da Eneida xi
Folha de rosto da edição da Eneida (tomo I: Cantos I-IV)
traduzida por João Gualberto Ferreira Santos Reis
Apresentação

A Eneida de Virgílio “traduzida em verso


português” por João Gualberto Ferreira Santos Reis,
“Lente jubilado de Língua Latina, e natural da Bahia”, é a
primeira tradução brasileira da célebre epopeia romana.
A obra completa, dedicada “Ao Senhor D. Pedro
II, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do
Brasil”, foi impressa na Bahia entre 1845 e 1846, tendo
sido editada em três tomos.
O tomo I, formado pelos Cantos I a IV, saiu, em
1845, “Da Typographia de Galdino José Bizerra e
Companhia”, situada à “Rua do Saldanha, Casa nº 16”, no
“Beco do Tira Chapéo”. O tomo II, incluindo os Cantos V
a VIII, e o tomo III, constituído pelos Cantos IX a XII,
vieram a lume em 1846, compostos pela “Typographia do
Correio Mercantil de Reis Lessa e C.ª”, na “Rua
D’Alfandega, Casa nº 35”.
A tradução se apresenta acompanhada do texto
em língua latina (a edição dispõe, nas páginas ímpares, os
versos em português e, nas pares, os versos latinos). Os
hexâmetros virgilianos são vertidos em decassílabos
brancos.
Dado o interesse literário, histórico e documental
da obra – e devido à sua raridade, mesmo na época em
que foi impressa –, reproduzimos aqui, inicialmente, a
edição do Canto I, de acordo com a publicação de 1845, na
intenção de completar em sequência a reedição dos três
volumes, mantendo a grafia original, a acentuação e a
pontuação (inclusive as características tipográficas) tanto
da tradução quanto do texto latino que a acompanha.

Páginas originais do Canto I da Eneida


na edição de 1845

viii
Nota biográfica sobre o tradutor

João Gualberto Ferreira dos Santos Reis nasceu em


Santo Amaro da Purificação, na Bahia, em 12 de julho de
1787. Foi poeta, tradutor, filólogo e professor de latim. São
escassas as informações sobre sua vida. Sabe-se que era
filho do advogado Manuel Ferreira dos Santos Reis e
irmão mais velho de Antônio Ferreira dos Santos Reis e
Ladislau do Espírito Santo Mello (que, animados pelo
ideal da Independência, como era comum entre os jovens
naquele período, adotaram novos nomes, a fim de exaltar
seu orgulho nacionalista: Antonio Ferreira dos Santos
Capirunga e Ladislau dos Santos Titara). Em alguns de
seus poemas, João Gualberto menciona, com bom humor,
a difícil situação em que vivia para manter uma numerosa
família, composta pela esposa e quinze filhos.
Registra-se que recebeu condecoração por serviços
prestados em sua província durante a guerra da
Independência. De acordo com o relato de um amigo seu,
o Dr. Melo Morais, João Gualberto Ferreira dos Santos
Reis faleceu “ignorado e pobre na cidade da Bahia”, no
ano de 1861.
Fontes dos dados biográficos

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico


Brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1883. 7 v.

COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Enciclopédia de literatura


brasileira. 2ª. ed. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional/Academia Brasileira de Letras, 2001. 2 v.

SILVA, Regina Pirajá da. João Gualberto Ferreira dos Santos Reis. In:
AMARAL, Prudêncio do; MELO, José Rodrigues de. Geórgicas brasileiras
(Cantos sobre coisas rústicas do Brasil, 1781). Trad. João Gualberto Ferreira
dos Santos Reis (Biografias e notas Regina Pirajá da Silva). Rio de Janeiro:
Academia Brasileira, 1941, p. XXI-XLIX.

Páginas de abertura do Canto I da Eneida na edição


traduzida por João Gualberto Ferreira Santos Reis

x
CANTO I

da ENEIDA de Virgílio
traduzida em verso português por
João Gualberto Ferreira Santos Reis*

* A numeração das páginas (latim/português)


aqui reproduzidas é a da edição original.
”Dei o que pude: se mais não dou, é porque não posso;
excedendo o desejo às posses minhas”.

(O tradutor)
ENEIDA DE VIRGILIO.

ARGUMENTO DO CANTO PRIMEIRO.

Depois da proposiçaŏ e invocaçaō, começa a


narraçaō desde o anno 7.o da expediçaō de Enéas ; no qual
tempo Juno, conciliando à si a Eólo, excita huma tempestade
contra os Troianos, que soltavāo da Sicilia para a Italia.
Neptuno aplaca a tempestade. Sete náos de Enéas se
recolhem ao porto da Africa, dispersas por outros lugares as
outras. Venus se queixa perante Jove da calamidade do filho.
Jupiter a consola, expondo-lhe a futura felicidade de Enéas, e
da sua posteridade. He mandado Mercurio, que torne
mansos os animos dos Carthaginezes para com os Troianos.
Venus em trajos de caçadôra sàe ao encontro á Enéas, que,
acompanhado de Achates, explorava aquella regiaŏ ; e,
indicada a condiçaō de Dido, e d’aquelle paiz, cingidos de
nebuloso véo, os deixa ir a ambos á Carthago. Alli entrando
Enéas no templo, encontra primeiramente as pinturas da
guerra de Troia ; depois a Dido, e a os socios, que julgava
opprimidos das ondas, supplicando a Dido. O mesmo Enéas
se dá á vêr. He benignamente recebido pela Rainha. Vai
Achates chamar a Ascanio, em cujo lugar, por dólo de
Venus, he substituido Cupido, para que inspire á Dido o
amôr de Enéas. D’alli vaō todos a banquetear-se ao Palacio.

[13]
P. VIRGILII MARONIS

ÆNEIDOS.

LIBER PRIMUS.

ARma, virumque cano, Trojæ qui primus ab oris


Italiam, fato profugus, Lavinaque venit
Littora : multùm ille et terris jactatus et alto,
Vi superum, sævæ memorem Junonis ob iram.
Multa quoque et bello passus, dum conderet urbem,
Inferretque Deos Latio : genus unde Latinum,
Albanique patres, atque altæ mœnia Romæ.

Musa, mihi causas memora : quo numine læso,


Quidve dolens regina Deûm, tot volvere casus
Insignem pietate virum, tot adire labores
Impulerit. Tantæne animis cœlestibus iræ ?

[14]
ENEIDA
DE

P. VIRGILIO MARĀO.

CANTO PRIMEIRO.

AS armas, e o Varāo canto, que á Italia,


Pelos rigôres prófugo do Fado,
Das Troianas regiōes primeiro veio,
E ás praias de Lavino ; aquelle mesmo,
Que por fôrça dos Deoses, e guardada
Ira da cruel Juno, perseguido
Mais que muito se vio por mar e terra ;
Que males mil sofrêo tambem na guerra,
Té-que a Cidade edificasse, e ao Lacio
Os errantes Penates induzisse :
D’onde a Gente Latina, e Albanos Padres,
E os muros procedêrāo d’alta Roma.

Musa, as causas me lembra : por que Nume


Offendido, ou de que pungente affronta
A Rainha dos Deoses resentida,
A hum Varăo tal, insigne em piedade,
Tantas desgraças percorrer fizéra,
E obrigára á sofrer trabalhos tantos.
Rancôr tamanho em ánimos celestes ?

[15]
ENEIDA.

Urbs antiqua fuit, Tyrii tenuere coloni,


Carthago, Italiam contra, Tiberinaque longe
Ostia ; dives opum, studiisque asperrima belli :
Quam Juno fertur terris magis omnibus unam
Posthabita coluisse Samo. Hic illius arma,
Hic currus fuit : hoc regnum Dea gentibus esse,
Si quà fata sinant, jam tum tenditque fovetque.
Progeniem sed enim Trojano à sanguine duci
Audierat, Tyrias olim quæ vesteret arces.
Hinc populum latè regem belloque superbum,
Venturum excidio Libiæ, sic volvere Parcas.
Id metuens, veterisque memor Saturnia belli,
Prima quod ad Trojam pro caris gesserat Argis :
Necdum etiam causæ irarum, sævique dolores
Exciderant animo. Manet alta mente repostum
Judicium Paridis, spretæque injuria formæ,
Et genus invisum, et rapti Ganimedis honores.
His accensa super, jactatos æquore toto
Troas, relliquias Danaûm atque immitis Achillei,
Arcebat longè Latio ; multosque per annos

16
CANTO I.O

Houve antiga Cidade, Tirios Povos


A habitárāo, Carthago ; com a Italia,
E do Tibre co’a fóz confronta ao longe :
Opulenta em riquezas, e nas artes
Asperrima da guerra. Conta a fama
Que mais que as terras todas, desdenhada
Té mesmo a sua Samos, a amou Juno.
Suas armas aqui outr’ora teve,
Aqui sua carroça : este o que aos povos
Ja d’esde entăo, se os Fados o consintāo,
A Deosa e tenta e quer que seja o imperio.
Porém ouvíra que do Teucro sangue
Brotaría a progénie valerosa,
Que hum dia os Tirios muros derrubasse :
E que d’ahi, arruinada a Libia,
Viria o pôvo, que regesse o Mundo,
E o primeiro na guerra ; e taes successos
As tristes Parcas decretado haviāo.
Temendo isto Saturnia, e inda lembrada
Da, que pelos seus Gregos, guerra antiga,
Contra os Teucros primeira suscitára ;
Nem tendo-lhe do peito inda escapado
As causas do rancôr, e o sévo aggravo ;
Dentro da alma guardando ainda viva
A sentença de Pàris, e gravada
A injuria atroz da desdenhada fórma,
E a raça aborrecida, e as altas honras
Do arrebatado Ganimédes ; tudo
Da vingança inflammando-lhe os ardores :
Os Troicos, pelo mar todo agitados,
Restos dos Gregos, e do féro Achilles,
Longe arredava do buscado Lacio ;
Esses mesmos, que já por longos annos,

17
ENEIDA.

Errabant acti fatis maria omnia circum.


Tantæ molis erat Romanam condere gentem !

Vix é conspectu Siculæ telluris in altum


Vela dabant læti, et spumas salis ære ruebant ;
Cùm Juno æternum servans sub pectore vulnus,
Hæc secum : Mene incepto desistere victam ?
Nec posse Italiâ Teucrorum avertere regem ?
Quippe vetor fatis. Pallasne exurere classem
Argivûm, atque ipsos potuit submergere ponto,
Unius ob noxam et furias Ajacis Oïlei ?
Ipsa, Jovis rapidum jaculata é nubibus ignem,
Disjecitque rates, evertitque æquora ventis :
Illum expirantem tranfixo pectore flammas
Turbine corripuit, scopuloque infixit acuto.
Ast ego, quæ Divûm incedo regina, Jovisque
Et soror et conjux, unâ cum gente tot annos
Bella gero : et quisquam numen Junonis adoret
Prætereà, aut supplex aris imponat honorem ?

Talia flammato secum Dea corde volutans,

18
CANTO I.O

Perseguidos dos fados, errabundos


A vastidăo das ondas rodeavāo.
Tāo ardua a fundaçāo era de Roma !

Mal-que das vistas da Sicilia ledos


As vélas para o alto mar soltavăo,
E sob a ahénea prôa, que as fendia,
As espumas do mar grossas roncavăo ;
Dentro ainda do peito conservando
A eterna chaga, assim comsigo Juno —
– Que do encetado mal cesse vencida ?
– Nem possivel me seja o Rei dos Teucros
– Torcer da Italia ? Claro está que os Fados
– M’o prohibem. Nāo pôde por ventura
– Pallas a Armada incendiar dos Gregos,
– E os mesmos Gregos submergir nas ondas ?
– Pela culpa de hum só, só pelas furias
– De Ajax Oilêo ? Das nuvens arrojando
– De Jupiter o raio rápido, ella
– As quilhas destroçou, e aos duros sôpros
– De improbos Notos revolvêo os mares :
– E ao mesmo, que do peito atravessado
– As mortíferas chammas exhalava,
– Em veloz turbilhāo arrebatado
– Nas pontas o pregou de aspera rocha.
– E eu, que dos Deoses sou a Soberana,
– Que Irmán de Jove sou, e Espôsa sua,
– Contra hum unico povo ha longos annos
– Movo guerra : e haverá quem inda o nume
– De Juno adore, e respeitosas honras
– Nos seus altares supplice lhe imponha ?

Táes pensamentos no inflammado peito

19
ENEIDA.

Nimborum in patriam, loca fæta furentibus Austris,


Æoliam venit. Hìc vasto rex Æolus antro
Luctantes ventos, tempestatesque sonoras
Imperio premit, ac vinclis et carcere frænat.
Illi indignantes magno cum murmure montis,
Circum claustra fremunt. Celsâ sedet Æolus arce,
Sceptra tenens : mollitque animos, et temperat iras.
Ni faciat, maria ac terras cœlumque profundum
Quippe ferant rapidi secum, verrantque per auras.
Sed pater omnipotens speluncis abdidit atris,
Hoc metuens : molemque et montes insuper altos
Imposuit : regemque dedit, qui fœdere certo
Et premere, et laxas sciret dare jussus habenas.
Ad quem tum Juno supplex his vocibus usa est :
Æole, (namque tibi Divûm pater atque hominum rex
Et mulcere dedit fluctus, et tollere vento : )
Gens inimica mihi Tyrrhenum navigat æquor,
llium in Italiam portans, victosque Penates.
Incute vim ventis, submersasque obrue puppes ;
Aut age diversas, et disjice corpora ponto.
Sunt mihi bis septem præstanti corpore Nymphæ :
Quarum, quæ forma pulcherrima, Deïopeiam

20
CANTO I.O

Revolvendo comsigo a Deosa, á Eólia,


Patria dos Nimbos, vem, mansōes fecundas
De furibundos Austros. Em longo antro
Com seu poder aqui o Rei Eólo
Reprime as tempestades roncadôras,
E os reluctantes ventos, e agrilhoados
Em carcere robusto os aferrolha.
Elles entre o fragôr atroz do monte,
Rodeando os claustros, indignados fremem.
Sentado Eólo na eminente rocha,
C’o sceptro em punho, os ánimos lhe amaina,
E tempéra o furôr. Se o nāo fizera,
Turbulentos comsigo arrebatando
Mares, Terras, e o mesmo Céo profundo,
Pelos vazios ares os varrêrāo.
D’isto porém o Padre omnipotente
Receioso, os prendeo em negras covas,
A mole sobrepôz de excelsos montes,
E Rei lhes deo, que com preceito certo,
Sempre-que lhe ordenado fosse, as rédeas
Ora tomar-lhe, ora afroxar soubesse.
Juno entāo supplicante assim se exprime —
– Eólo ! já-que o Pae te deo dos Deoses,
– E dos Homens o Rei poder e mando
– De aplanar, e c’o vento alçar as ondas,
– Gente minha inimiga o mar Thyrrheno
– Navega, Ilio á Italia transportando,
– E os vencidos Penates ; fôrça aos Euros
– Incute, e dá, que o pego as náos lhe engula ;
– Ou desvairados pelo mar immenso,
– Por aqui, por alli lhe espalhe os corpos.
– Ninfas quatorze bem-talhadas tenho :
– De todas a mais linda, Deiopéa

21
ENEIDA.

Connubio jungam stabili, propriamque dicabo :


Omnes ut tecum meritis pro talibus annos
Exigat, et pulchrâ faciat te prole parentem.
Æolus hæc contra : Tuus, ô regina, quid optes,
Explorare labor : mihi jussa capessere fas est.
Tu mihi quodcunque hoc regni, tu sceptra, Jovemque
Concilias : tu das epulis accumbere Divûm,
Nimborumque facis tempestatumque potentem.
Hæc ubi dicta, cavum conversa cuspide montem
Impulit in latus : ac venti, velut agmine facto,
Quâ data porta, ruunt, et terras turbine perflant.
Incubuere mari, totumque à sedibus imis
Unà Eurusque Notusque ruunt, creberque procellis
Africus : et vastos volvunt ad litora fluctus.
Insequitur clamorque virûm, stridorque rudentum :
Eripiunt subito nubes cœlumque, diemque
Teucrorum ex oculis : ponto nox incubat atra.
Intonuere poli, et crebris micat ignibus æther :
Præsentemque viris intentant omnia mortem.
Extemplò Æneæ solvuntur frigore membra.
Ingemit, et duplices tendens ad sidera palmas,
Talia voce refert : O terque quaterque beati,

22
CANTO I.O

– Em uniăo conjugal dar-te-hei perpétua ;


– E, por méritos teus, comtigo sempre
– Vida passando de prazeres cheia,
– Pàe feliz te farà de linda prole.
Diz ; e d’esta arte lhe responde Eólo —
„ Explorar o que intentes, ó Rainha,
„ Eis o trabalho teu : á mim compete
„ Cumprir te as ordens. Tu isto de reino,
„ Qualquer que seja elle, tu o sceptro
„ Concilias me, e a Jove : tu nas mesas
„ Dás que me eu sente dos supremos Numes ;
„ E fazes que dos nimbos, das procellas
„ Potente Domadôr me reconheçāo.
Diz : e co’ a ponta do voltado sceptro
A’ hum lado arreda o cavernoso monte :
E logo os ventos, como em densas turmas,
Por onde achāo saída, rûem ; e as terras
Soprando văo em turbilhāo violento :
Sobre o mar se alastrárāo, e todo elle
D’esde as fundas cavernas o Euro, e o Noto,
E o tormentoso Africo o revolvem ;
E as ondas, que em montanhas văo rolando,
Humas sobre outras contra as praias quebrāo.
Dos Nautas o clamôr jà se levanta,
Jà os cabos rangem c’o tufāo, que zune.
Aos olhos dos Troianos de-repente
Nubloso véo esconde o céo e o dia :
A treva ennoita o mar : os polos trôāo ;
Em crebros fogos pestaneja o éther ;
E tudo á todos prompta morte ameáça.
Subito á Enéas gelăo se-lhe os membros :
Geme ; e as măos ambas levantando aos astros,
Táes vozes sólta — O’ tres, e quatro vezes

23
ENEIDA.

Queis ante ora patrum, Trojæ sub mœnibus altis,


Contigit oppetere ! ó Danaûm fortissime gentis
Tydyde, mene Iliacis occumbere campis
Non potuisse ? tuâque animam hanc effundere dextrâ ?
Sævus ubi Æacidæ telo jacet Hector, ubi ingens
Sarpedon : ubi tot Simoïs correpta sub undis
Scuta virûm, galeasque, et fortia corpora volvit.

Talia jactanti stridens Aquilone procella


Velum adversa ferit, fluctusque ad sydera tollit.
Franguntur remi : tum prora avertit, et undis
Dat latus : insequitur cumulo præruptus aquæ mons,
Hi summo in fluctu pendent, his unda dehiscens
Terram inter fluctus aperit : furit æstus arenis.
Tres Notus abreptas in saxa latentia torquet :
Saxa vocant Itali mediis quæ in fluctibus Aras,
Dorsum immane mari summo. Tres Eurus ab alto
In brevia et syrtes urget, miserabile visu ;
Illiditque vadis, atque aggere cingit arenæ.
Unam, quæ Lycios fidumque vehebat Oronthem,
Ipsius ante oculos ingens à vertice pontus

24
CANTO I.O

„ Ditosos vós, á quem junto dos muros


„ De Troia excelsa, ante os paternos olhos,
„ Coube em sorte morrer ! Da Grega Gente
„ O’ tu, Tidídes, o varāo mais forte !
„ Por que invejoso me năo dêo o Fado
„ Nos Tróicos campos exhalar o alento,
„ E esta vida perder á dextra tua ?
„ Lá onde aos golpes do fatal Achilles
„ Jaz o valente Heitor, onde Sarpédon ;
„ Onde nas ondas volve o Simöente
„ Escudos, morriōes, e os fortes corpos
„ De innûmeros varōes, que arrebatára ? „

Assim fallando, a horrísona procella


Fere de encontro a véla, e aos arduos astros
Os mares sóbe : os remos se espedaçāo :
Volta-se a prộa, e dá o lado ás ondas ;
Vem logo apoz ingente monte d’agua.
Estes no cimo pendem d’alta onda ;
A’ aquelles, esconçando-se profunda,
Entre as vagas lhe mostra o terreo abismo :
Fervem os mares co’ a arrancada arêa.
Quilhas três, que das outras distrahíra,
A’ occultas rochas leva á força o Noto ;
Rochas, que, por que estāo nas médias ondas,
Aras chamāo os Italos, immerso
Dorso, que sáe na superficie equórea.
Três, ó desgraça ! do alto mar ás Sirtes
Urge, persegue desabrido o Euro ;
Aos váos as chega, e de arenoso muro
As entrincheira em roda. Hŭa, que aos Licios,
E que ao fiel Orontes conduzia,
De prôa á pôpa vio feril-a Enéas

25
ENEIDA.

In puppim ferit : excutitur pronusque magister


Volvitur in caput : ast illam ter fluctus ibidem
Torquet agens circum, et rapidus vorat æquore vortex.
Apparent rari nantes in gurgite vasto :
Arma virûm, tabulæque et Troïa gaza per undas.
Jam validam Ilionei navem, jam fortis Achatæ ;
Et quâ vectus Abas, et quâ grandævus Alethes,
Vicit hyems : laxis laterum compagibus omnes
Accipiunt inimicum imbrem, rimisque fatiscunt.

Interea magno misceri murmure pontum,


Emissamque hyemem sensit Neptunus, et imis
Stagna refusa vadis : graviter commotus, et alto
Prospiciens, summâ placidum caput extulit undâ.
Disjectam Æneæ toto videt æquore classem,
Fluctibus oppressos Troas, coelique ruinâ.
Nec latuere doli fratrem Junonis, et iræ :
Eurum ad se Zephyrumque vocat : dehinc talia fatur :
Tantane vos generis tenuit fiducia vestri ?
Jam cœlum terramque, meo sine numine, venti,
Miscere, et tantas audetis tollere moles ?
Quos ego.... Sed motos præstat componere fluctus.

26
CANTO I.O

Onda desmesurada, e sacudido


Ao mar caír precipitado o Mestre.
Trez vezes em redór torcendo-a a onda,
Em hum mesmo lugar violenta a volve,
E vortice veloz n’agua a devóra.
Raros no vasto pego a nadar víras,
Víras as armas dos Varōes, as táboas,
E as Troianas riquezas pelas aguas.
Ora de Ilionêo cede á procella
A náo possante, e a do valente Achates ;
Ora, a em que Abante, e a, em que ia o velho Alethes.
Afrôxāo-se dos lados as juncturas,
E todas văo por ellas a agua imiga
Bebendo, e fendas vāo se abrindo todas.

Neptuno emtanto pelo grande ronco


Turbar-se o ponto sente, e a tempestade ;
E d’esde os fundos váos revôlta e inquiéta
A equòrea vastidāo : e enfurecido,
Próvido ao Reino seu, sobre a alta onda
A plácida cabeça levantando,
Dispersa vê por todo o mar a Armada
De Enéas, e opprimidos pelas vagas
E pelo horror da tempestade os Teucros.
Nem occulta ao Irmăo a fraude fôra,
E os furôres de Juno. A’ si convoca
O Euro, o Zéfiro, e assim com elles parte :
– Que tanto vos cégasse a ván fiducia
– Da origem vossa ? ! Ja o Céo, e a Terra
– Confundir, e mover tamanhas ondas,
– Sem minha permissāo, ousais, ó ventos ?
– A quem eu.... Mas primeiro os bravos mares
– Pacificar compete : os crimes vossos

27
ENEIDA.

Post mihi non simili pœnâ commissa luetis.


Maturate fugam, regique hæc dicite vestro :
Non illi imperium pelagi sævumque tridentem ;
Sed mihi sorte datum : tenet ille immania saxa,
Vestras, Eure, domos : illa se jactet in aula
Æolus, et clauso ventorum carcere regnet.
Sic ait, et dicto citius tumida æquora placat,
Collectasque fugat nubes, Solemque reducit.
Cymothoë simul, et Triton adnixus, acuto
Detrudunt naves scopulo : levat ipse tridenti ;
Et vastas aperit syrtes ; et temperat æquor,
Atque rotis summas levibus perlabitur undas.
Ac veluti magno in populo cum sæpe coorta est
Seditio, sævitque animis ignobile vulgus ;
Jamque faces et saxa volant, furor arma ministrat :
Tum, pietate gravem ac meritis si forte virum quem
Conspexere, silent, arrectisque auribus astant :
Ille regit dictis animos, et pectora mulcet.
Sic cunctus pelagi cecidit fragor : æquora postquam
Prospiciens genitor, cœloque invectus aperto,
Flectit equos, curruque volans dat lora secundo.

28
CANTO I.O

− Pagar-m’os-heis depois com outra pena.


− Dai-vos pressa em fugir ; e estas palavras
− Dizei do Deos do mar ao Rei dos ventos.
− Que nāo á elle, mas á mim foi dado
− O tridente empunhar, reger as ondas.
− A’ elle governar as róchas cabe,
− Mansŏes vossas, ó Euro : co’ esses Paços
− Jacte-se Eólo, e no fechado carcer
− Reine dos ventos. — Diz : e mais ligeiro
Que o dicto, os mares tûmidos aplana,
Dissipa as nuvens, reconduz o dia.
Simóthoe com Trităo do agudo escôlho,
Com unido vigor, as náos empurrāo.
O mesmo * c’o tridente as desempede,
E as vastas Sirtes abre : o mar tempera ;
E pela plana superficie d’agua
Sobre a rapida roda se escorrega.
Como entre grande povo, quando ás vezes
Irado se amotina o vulgo ignobil,
Voăo pedras e páos, dá-lhe armas a ira ;
Se algum varăo de méritos subidos,
Grave em piedade, acaso lhe apparece,
Calāo-se todos á escuta-lo attentos ;
Com razōes elle os ánimos regendo,
Os agitados peitos amacía :
Assim todo o fragôr cessou do pégo,
Depois-que o equóreo Padre, olhando as ondas,
E pelas livres auras conduzido
Torce os marinhos brutos, e voando,
Ao côche obediente as rédeas sólta.

* Neptuno.

29
ENEIDA.

Defessi Æneadæ, quæ proxima, litora cursu


Contendunt petere, et Libyæ vertuntur ad oras.
Est in secessu longo locus : insula portum
Efficit objectu laterum ; quibus omnis ab alto
Frangitur, inque sinus scindit sese unda reductos.
Hinc atque hinc vastæ rupes, geminique minantur
In cœlum scopuli : quorum sub vertice late
Æquora tuta silente : tum sylvis scena coruscis
Desuper, horrentique atrum nemus imminet umbrâ.
Fronte sub adversa scopulis pendentibus antrum :
Intus aquæ dulces, vivoque sedilia saxo ;
Nympharum domus : hic fessas non vincula naves
Ulla tenent, unco non alligat anchora morsu.
Huc septem Æneas, collectis navibus omni
Ex numero subit : ac magno telluris amore
Egressi, optatâ potiuntur Troës arenâ,
Et sale tabentes artus in litore ponunt.
Ac primum silici scintillam excudit Achates,
Suscepitque ignem foliis, atque arida circum
Nutrimenta dedit, rapuitque in fomite flammam.

30
CANTO I.O

Cançados os Troianos, á porfia


A’s, que proximas ficăo, praias correm,
E as prôas ás regiōes voltāo da Libia.
Ha em longo retiro hum lugar, onde
Com o objecto dos lados porto fórma
Huma Ilha : toda a onda, que rolando
Do vasto pégo vem, alli se quebra,
E em curvos seios se renova, e rasga.
D’aqui, d’alli rochedos estendidos,
E dois cachópos contra o Céo se arrojăo ;
Sob cuja altura em năo pequeno espaço
Em placido silencio os mares dormem.
Sombra formosa de arvores brilhantes
Do alto reflecte na onda, e negro bosque
De horrida noite na eminencia avulta.
Nos pendentes cachópos socavada
Fronteira gruta está, em cujo centro
Doces aguas borbulhāo : viva pedra
Alli gratos assentos offerece,
Habitaçăo das Ninfas. N’este asilo
Nenhŭa amarra prende as náos cançadas,
Nem ancora as detem c’o morso adunco.
Juntas de toda a Armada quilhas sete,
Alli entrou Enéas ; e os Troianos
Säudosos da terra desembarcăo.
Da arêa gozāo desejada, e os corpos,
Q’ inda as salgadas ondas escorriāo,
Pela praia depŏe. Primeiro Achates
Ferío de rija pedra ígnea centelha ;
Em folhas recebeo o lume ; e logo
D’ arido pasto circumdando-o, experto
Da lignea congestāo levanta a chamma.
Depois assim de contratempos tantos,

31
ENEIDA.

Tum Cererem corruptam undis, Cerealiaque arma


Expediunt fessi rerum : frugesque receptas
Et torrere parant flammis, et frangere saxo.
Æneas scopulum interea conscendit, et omnem
Prospectum late pelago petit, Anthea si quà
Jactatum vento videat, Phrygiasque biremes,
Aut Capyn, aut celsis in puppibus arma Caïci.
Navem in conspectu nullam, tres litore cervos
Prospicit errantes : hos tota armenta sequuntur
A tergo, et longum per valles pascitur agmen.
Constitit hic, arcumque manu celeresque sagittas
Corripuit, fidus quæ tela gerebat Achates.
Ductoresque ipsos primum, capita alta ferentes
Cornibus arboreis, sternit : tum vulgus, et omnem
Miscet agens telis nemora inter frondea turbam.
Nec prius absistit, quam septem ingentia victor
Corpora fundat humi, et numerum cum navibus æquet.
Hinc portum petit, et socios partitur in omnes.
Vina bonus quæ deinde cadis onerarat Acestes
Litore Trinacrio, dederatque abeuntibus heros,
Dividit, et dictis mœrentia pectora mulcet :

32
CANTO I.O

Ao ar expōe os Teucros a que as ondas


Ceres sofrêra, e os cereáes aprestos :
E ora nas chammas văo torrando o trigo,
Ora em pedra voraz o vāo moendo.

Emtanto sóbe Enéas o rochedo,


E para o vasto mar estende os olhos,
Por vêr, se, arremessado pelo vento,
De alguma parte a Anthêo descobrir possa,
E as Troianas biremes, ou a Capys,
Ou n’alta pôpa de Cäíco as armas.
Nenhŭa náo avista, e só na praia
Errantes cervos três : todo o armentio
Apóz seguindo-os vai, e pelos valles
A longa multidăo se leva, e pasce.
Alli parou : e com a prompta dextra,
Armas, que conduzia o fido Achates,
O arco, e as rápidas settas arrebata.
Primeiro os proprios guias, que as cabeças
Altas traziăo c’os ramosos cornos,
No chāo derruba, e logo perseguindo
O demais vulgo, e toda a fera turba,
No frondeo bosque a confusāo estende.
Nem primeiro cessou, que victorioso
Em terra prostre ingentes corpos sete,
Que as sete náos em numero igualassem.
D’aqui ao pôrto volta, e a vasta prêsa
Vai por todos os sócios repartindo.
Depois os vinhos, que o bisarro Acestes
Lá na Sicula praia entonelára,
E lhes, ao despedir-se, dera, entre elles
Tambem divide ; e os coraçōes afflictos
Com estas meigas vozes lhes consola —

33
ENEIDA.

O socii, (neque enim ignari sumus ante malorum)


O passi graviora : dabit Deus his quoque finem.
Vos et Scyllæam rabiem, penitusque sonantes
Accestis scopulos ; vos et Cyclopea saxa
Experti : revocate animos, mœstumque timorem
Mittite : forsan et hæc olim meminisse juvabit.
Per varios casus, per tot discrimina rerum,
Tendimus in Latium ; sedes ubi fata quietas
Ostendunt : illic fas regna resurgere Trojæ.
Durate, et vosmet rebus servate secundis.
Talia voce refert : curisque ingentibus æger,
Spem vultu simulat, premit altum corde dolorem.
Illi se prædæ accingunt dapibusque futuris :
Tergora diripiunt costis, et viscera nudant.
Pars in frusta secant, verubusque trementia figunt.
Litore ahena locant alii, flammasque ministrant.
Tum victu revocant vires : fusique per herbam,
Implentur veteris Bacchi, pinguisque ferinæ.

Postquam exempta fames epulis, mensæque remotæ :

34
CANTO I.O

„ O’ sócios, (nem dos males precedentes


„ Esquecidos estamos) ó vós, que outros
„ Mais graves soportastes ! estes trances
„ Dia virá tambem que hum Deos os finde.
„ Vós a Scyla nāo só raivosa vistes,
„ E dentro ouvistes as ladrantes rochas,
„ Mas dos Ciclópes as medonhas penhas
„ Com varonil denôdo exp’rimentastes.
„ Revocai o valôr : tristeza e susto
„ Despí de vós : talvez ainda venha
„ Tempo, em que estas memorias vos deleitem.
„ Por tāo diversos casos, e por lances
„ Tāo p’rigosos o Lacio procuramos,
„ Onde quiéta mansāo nos mostra o Fado,
„ E os Reinos cumpre renovar de Troia.
„ Constancia ! e scenas cruéis sofrer sabendo,
„ Para prósperas scenas conservai-vos.
Diz : e, d’atros cuidados opprimido,
Finge nas faces a esperança, e affoga
Dentro do coraçāo a dôr, que o rala.
A’ prêsa elles se dăo, e se promettem
Ao futuro banquete : a hirsuta pelle
Já promptos despem das ferinas costas,
E as nûas carnes apresentăo : parte
Em pedaços as cortāo, e trementes
Em ferreas pontas accõmódāo : outros
Na praia ahéneos vasos amanhando,
Chammas lhe sotopōe. Depois as forças
Revocāo c’o alimento, e derramados
No relvoso colchāo, de velho Baccho,
E de ferina carne se saciāo.

Extincta a fome, e retirada a mêsa,

35
ENEIDA.

Amissos longo socios sermone requirunt,


Spemque metumque inter dubii : seu vivere credant,
Sive extrema pati, nec jam exaudire vocatos.
Præcipuè pius Æneas, nunc acris Orontei,
Nunc Amyci casum gemit, et crudelia secum
Fata Lyci, fortemque Gyan, fortemque Cloanthum.
Et jam finis erat : cum Jupiter æthere summo
Despiciens mare velivolum, terrasque jacentes,
Litoraque, et latos populos ; sic vertice cœli
Constitit, et Libyæ defixit lumina regnis.
Atque illum tales jactantem pectore curas,
Tristior, et lacrymis oculos suffusa nitentes,
Alloquitur Venus : O, qui res hominumque Deûmque
Æternis regis imperiis, et fulmine terres :
Quid meus Æneas in te committere tantum,
Quid Troës potuere ? quibus tot funera passis
Cunctus ob Italiam terrarum clauditur orbis ?
Certe hinc Romanos olim volventibus annis
Hinc fore ductores, revocato à sanguine Teucri,
Qui mare, qui terras omni ditione tenerent,

36
CANTO I.O

Em miûda e longa pratica reflectem


Sobre os perdidos sócios, duvidosos,
Entre esperança e mêdo, se acreditem
Que vivos sejāo, ou que soportado
Tendo os fados extremos, ja nāo oiçāo
Os chamados dos seus. Mormente Enéas
Ora comsigo a desventura geme
Do generoso Orontes, e de Amico,
Ora a de Licio despiedosa sorte,
E o forte Gias, e Cloantho forte.
E ja findado haviăo, quando Jove
Do éther o mar velívolo observando,
E as rasas terras, e as sinuosas praias,
E os povos, que por tudo se derramāo,
No mais alto do Céo parou ; e os olhos
Nas ardentes regiōes fixou da Libia.
E quando táes cuidados revolvia,
Venus mais triste, e de mimoso pranto
Rasos os olhos, lhe fallou d’esta arte —
– O’ tú, que com dominio sempiterno
– Dos Mortáes, e Immortáes reges a sorte,
– E co’a fulmínea setta os amedrontas ;
– Que crime tăo atroz o meu Enéas,
– Que crime os Teucros contra ti ousárāo ?
– Que tantos males já sofrido tendo,
– Só por causa da Italia se lhe feche
– O orbe todo das terras ? Com promessa,
– Que nāo sabe illudir, tu me affiançaste
– Que os Romanos d’aqui, volvendo os annos,
– Hum dia nasceriăo : que, instaurado
– De Teucro o egrégio sangue, os Soberanos
– Brotariāo d’aqui, que o Mar e as Terras
− Com inteiro poder senhoreassem.

37
ENEIDA.

Pollicitus : quæ te, genitor, sententia vertit ?


Hoc equidem occasum Trojæ tristesque ruinas
Solabar, fatis contraria fata rependens.
Nunc eadem fortuna viros tot casibus actos
Insequitur : quem das finem, rex magne, laborum ?
Antenor potuit, mediis elapsos Achivis,
Illyricos penetrare sinus, atque intima tutus
Regna Liburnorum et fontem superare Timavi :
Unde per ora novem vasto cum murmure montis
It mare proruptum, et pelago premit arva sonanti.
Hic tamen ille urbem Patavi sedesque locavit
Teucrorum, et genti nomen dedit, armaque fixit
Troïa : nunc placidâ compostus pace quiescit.
Nos, tua progenies, cœli quibus annuis arcem,
Navibus (infandum) amissis unius ob iram
Prodimur, atque Italis longè disjungimur oris.
Hic pietatis honos ? Sic nos in sceptra reponis ?
Olli subridens hominum sator atque Deorum,
Vultu, quo cœlum tempestatesque serenat,
Oscula libavit natæ : dehinc talia fatur :
Párce metu Citheréa : manent immota tuorum
Fata tibi : cernes urbem et promissa Lavini

38
CANTO I.O

– Que opposta idéa, ó Páe, te muda agora ?


– Promessas taes a quéda me adoçavăo
– E as desventuras da arruinada Troia,
– Co’estes vingando-a dos adversos fados.
– Já por desgraças tantas perseguidos,
– Inda agita aos Varŏes a mesma sorte.
– Qual, ó maximo Rei, fim lhes prescreves ?
– Do meio dos Argivos escapando-se,
– Pôde os seios Illiricos seguro
– Penetrar Antenôr, e os da Liburnia
– Intimos Reinos ; e seguindo affoito,
– Além passar da origem do Timavo :
– D’onde, qual vasto mar, por bocas nove
– Rompe com ronco horrísono da serra,
– E com rouca torrente arrasa os campos.
– Elle comtudo aqui collocou Padua,
– E as sédes Teucras, e deo nome ao Povo,
– E as Troianas fixou briosas armas :
– Agora quiéta paz manso desfruta.
– E nós, progénie tua, á quem franquêas
– O palacio do Céo, sómente de hŭa,
– (Oh vergonha !) só pelo furôr de hŭa,
– Destroçadas as náos, trahidos somos,
– E longe esparsos das regiōes da Italia.
– Esta a prova do amôr, da estima tua ?
– Assim no sceptro nos repŏes ? — Sorrindo-lhe o
Dos Deoses, e dos Homens Páe, co’ a face,
Com que o Céo pacifica, e as tempestades ;
Libou da Filha os osculos, e logo
D’estas consolaçŏes lhe inunda o peito —
„ Perde os receios, Citheréa : immóveis
„ Os destinos dos teus te permanecem.
„ A Cidade verás, e de Lavino

39
ENEIDA.

Mœnia, sublimemque feres ad sidera cœli


Magnanimum Æneam, neque me sententia vertit
Hic (tibi fabor enim, quando hæc te cura remordet ;
Longius et volvens fatorum arcana movebo)
Bellum ingens geret Italiâ, populosque feroces
Contundet, moresque viris et mœnia ponet,
Tertia dum Latio regnantem viderit æstas,
Ternaque transierint Rutulis hyberna subactis.
At puer Ascanius, cui nunc cognomen lülo
Additur, (Ilus erat, dum res stetit Ilia regno)
Triginta magnos volvendis mensibus orbes
Imperio explebit, regnumque ab sede Lavini
Transferet, et longam multâ vi muniet Albam.
Hic jam tercentum totos regnabitur annos
Gente sub Hectoreâ : donec regina sacerdos
Marte gravis, geminam partu dabit Ilia prolem.
Inde lupæ fulvo nutricis tegmine lætus
Romulus excipiet gentem, et Mavortia condet
Mœnia, Romanosque suo de nomine dicet.
His ego nec metas rerum, nec tempora pono :
Imperium sine fine dedi. Quin aspera Juno,
Quæ mare nunc terrasque metu cœlumque fatigat,
Concilia in melius referet ; mecumque fovebit

40
CANTO I.O

„ Os promettidos muros ; e sublime


„ O magnánimo Enéas ás estrellas
„ Levantarás do Céo : firme estou n’isto.
„ Elle (praz-me dizer-t’o, já que o peito
„ Te inquiéta este cuidado ; e mais de longe
„ Os arcanos dos Fados revolvendo,
„ A’s claras t’os porei) ingente guerra
„ Na Italia moverá ; feróces povos
„ Supplantará glorioso ; e leis aos homens
„ E Cidades dará, té-que o terceiro
„ Estío dominar no Lacio o veja ;
„ E, domados os Rûtulos, se escôëm
„ Invernos três. Mas o menino Ascanio,
„ Chamado agora por cognome Iulo,
„ (Ilo era, emtanto-que Ilio reino fôra)
„ Por annos trinta imperará completos,
„ E o reino mudará do chăo Lavino ;
„ E com muito de fôrças a Alba-longa
„ Defenderá. Depois aqui inteiros
„ Reinará sec’los três a Hectórea Gente ;
„ Té-que régia Vestal, Ilia famosa,
„ Filhos dois á Mavorte dê de hum parto.
„ D’ahi, folgando com a fulva pelle
„ Da lôba, que o nutrio, Rómulo ovante
„ No cuidado entrará da heróica Gente :
„ Mavorcios muros alçará ; e os povos,
„ Do nome seu, chamal-os-ha Romanos.
„ Aos seus dominios, á existencia d’elles
„ Nem limites, nem tempos lhe prescrevo :
„ Dei-lhe imperio sem fim. A mesma Juno,
„ Que, áspera agora, o mar, o Céo, e as terras
„ Com receios commove, o ánimo infenso
„ Mudará favoravel, e os Romanos

41
ENEIDA.

Romanos rerum dominos, gentemque togatam.


Sic placitum. Veniet lustris labentibus ætas,
Cum domus Assaraci Phthiam clarasque Mycenas
Servitio premet, ac victis dominatibur Argis.
Nascetur pulchrâ Trojanus origine Cæsar,
Imperium Oceano, famam qui terminet astris,
Julius, à magno demissum nomen Iülo.
Hunc tu olim cœlo, spoliis Orientis onustum,
Accipies secura : vocabitur hic quoque votis.
Aspera tum positis mitescent sæcula bellis.
Cana Fides, et Vesta, Remo cum fratre Quirinus,
Jura dabunt : diræ ferro et compagibus arctis
Claudentur belli portæ : Furor impius intus
Sæva sedens super arma, et centum vinctus ahenis
Post tergum nodis, fremet horridus ore cruento.
Hæc ait, et Majâ genitum demittit ab alto :
Ut terræ, utque novæ pateant Carthaginis arces
Hospitio Teucris : ne fati nescia Dido
Finibus arceret. Volat ille per aëra Magnum
Remigio alarum, ac Libyæ citus astitit oris :
Et jam jussa facit : ponuntque ferocia Pœni

42
CANTO I.O

„ Do Orbe senhores, e a togada gente


„ Protegerá commigo. Assim me agrada.
„ Tempo virá, com o correr dos lustros,
„ Em que de Assáraco a familia ao jugo
„ Trará Pthias, e a célebre Mycenas,
„ E terá em dominio Argos vencida,
„ D'alta origem virá o Troiano Cesar,
„ Que o imperio c'o Oceáno, e co'as estrellas
„ Termine a fama ; Jûlio, egrégio nome
„ Do grande Iülo derivado. A este,
„ De orientáes despojos carregado,
„ O dia chegará, em que no Empíreo
„ O recebas segura ; e junto aos Deoses
„ Será tambem por votos invocado.
„ Terminadas entāo as tristes guerras,
„ Brandos se tornaráō os sec'los duros ;
„ Vesta, e a Fé pura, e Rómulo com Remo
„ Leis saudaveis daráō : da crua guerra
„ As portas trancaráō rijos ferrôlhos.
„ Sobre as armas mortíferas sentado,
„ E de cem bronzeos nós ligado todo,
„ O ímpio Furôr bramidos horrorosos
„ Emvāo troará pela sanguenta bôca.
Diz : e do alto baixou de Maia o Filho,
Por que aos Troianos em hospicio as terras,
E a recente Carthago se franquêe ;
E, certa do querer divino, Dido
Nos seus dominios próspera os accôlha.
Com o remo das azas ja Cyllenio
Sulca os campos aérios, e ligeiro
Nas Líbycas regiŏes chegando, pára :
O mando cumpre. Os Penos, amaciados
Pelas ordens do Deos, o furôr despem ;

43
ENEIDA.

Corda, volente Deo : imprimis Regina quietum


Accipit in Teucros animum mentemque benignam.

At pius Æneas per noctem plurima volvens,


Ut primum lux alma data est, exire, locosque
Explorare novos ; quas vento accesserit oras,
Qui teneant (nam inculta videt) hominesne, feræne,
Quærere constituit, sociisque exacta referre.
Classem in convexo nemorum sub rupe cavata,
Arboribus clausam circum atque horrentibus umbris,
Occulit : ipse uno graditur comitatus Achate,
Bina manu lato crispans hastilia ferro.
Cui mater mediâ sese tulit obvia sylvâ,
Virginis os habitumque gerens, et virginis arma
Spartanæ : vel qualis equos Threïssa fatigat
Harpalyce, volucremque fugâ prævertitur Hebrum.
Namque humeris de more habilem suspenderat arcum
Venatrix, dederatque comam diffundere ventis :
Nuda genu, nodoque sinus collecta fluentes.
Ac prior : heus, inquit, juvenes, monstrate mearum
Vidistis si quam hic errantem forte sororum,
Succinctam pharetrâ et maculosæ tegmine lyncis,
Aut spumantis apri cursum clamore prementem.

44
CANTO I.O

E mais que todos intençōes benignas


No quiéto coraçāo, em prol dos Teucros,
A Rainha magnánima revolve.

Mas Enéas, emquanto dura a noite,


Em diversos cuidados embebido,
Mal-que a Aurora luzio, sair decreta,
E os novos sitios explorar : que climas
Aquelles erăo, á que os trouxe o vento :
Quem os habita, se homens, ou se feras ;
(Por que incultos lugares observava)
E aos sócios referir quanto indagára.
Debaixo de cavada rocha a Armada
No convexo dos bosques guarda, em torno
De horrendas sombras e arvores fechada.
E de Achátes somente acompanhado,
Na dextra dardos dois de largo ferro,
Parte. Ao encontro no meio do silvêdo
Sahe-lhe a divina Măe, em face e trajos
De virge, e de Spartana virge as armas ;
Ou qual a Thrácia Harpálice fatiga
Os fumantes ginetes, e na fuga
A alada rapidez excede do Hebro.
Pende-lhe do hombro, ao venatorio rito,
Arco opportuno, e dá que as leves auras
Co’ as tranças, que lhe espalhăo, ledas brinquem :
Nûa até os joelhos, do vestido
Lhe apanha usado nó os fluentes seios ;
E diz primeira — O’ lá, jovens, mostrai-m’a,
– Se alguma aqui das companheiras minhas
– Vagando acaso vistes, preparada
– De aljava, e pelle de manchado lince,
– Ou a carreira com clamôr urgindo

45
ENEIDA.

Sic Venus : at Veneris contra sic filius orsus :


Nulla tuarum audita mihi, neque visa sororum,
O (quam te memorem !) Virgo : namque haud tibi vultus.
Mortalis, nec vox hominem sonat. O Dea, certe :
An Phœbi soror, an Nympharum sanguinis una ?
Sis felix, nostrumque leves quæcunque laborem :
Et quo sub cœlo tandem, quibus orbis in oris
Jactemur, doceas : ignari hominumque locorumque
Erramus, vento huc et vastis fluctibus acti.
Multa tibi ante aras nostrâ cadet hostia dextrâ.
Tunc Venus : haud equidem tali me dignor honore.
Virginibus Tyriis mos est gestare pharetram,
Purpureoque alte suras vincire cothurno.
Punica regna vides, Tyrios, et Agenoris urbem :
Sed fines Libyci, genus intractabile bello,
Imperium Dido Tyriâ regit urbe profecta,
Germanum fugiens : longa est injuria, longæ
Ambages : sed summa sequar fastigia rerum.
Huic conjux Sichæus erat, ditissimus agri
Phœnicum, et magno miseræ dilectus amore :
Cui pater intactam dederat, primisque jugarat

46
CANTO I.O

– De javali spumante. Assim diz Venus :


E de Venus o Filho assim responde.
„ Nenhuma ouví, nem ví das sócias tuas,
„ O’, qual convém que te recorde, virgem !
„ Que nem vulto mortal, nem voz humana
„ Em ti se ouve, e se vê. O’ certa Deosa !
„ Irmàn de Febo és por ventura, ou Ninfa ?
„ Feliz nos sejas ! e, quem quer que fores,
„ Nossos trabalhos allivía, e ensina
„ Debaixo de que Céo, e em quaes do Globo
„ Climas estamos ; que desconhecendo
„ Os lugares, e os homens, que os habităo,
„ Erramos, e agitados pelas ondas
„ E pelo vento aqui parar viemos.
„ Em honra tua pela dextra minha
„ Ante as aras cahiráō victimas cento.
Entāo Venus — De obsequios tāo subidos
– Credôra me nāo julgo. A’s virgens Tirias
– Uso he trazer aljava, e por calçado
– Purpúreos borzeguins á curva prêsos.
– Vês os Púnicos Reinos, vês os Tirios,
– E a Cidade Agenória : mas da Libya
– He esta a regiăo, gente intractavel,
– E terrivel em guerra. Fugitiva
– Aos furôres do Irmāo, deixando Tiro,
– Rege Dido este Imperio : longa he a injuria,
– Sāo longos os rodeios : mas a origem
– E os principios direi do caso infando.
– Seu Espôso Siquêo, opulentissimo
– De campo entre os Fenícios, adorado
– Com extremoso amôr era da Triste.
– Intacta o Páe lh’a dera, e Hymén os laços
– C’os primeiros agoiros lhe apertára.

47
ENEIDA.

Ominibus ; sed regna Tyri germanus habebat


Pygmalion, scelere ante alios immanior omnes.
Quos inter medius venit furor : ille Sichæum,
Impius ante aras, atque auri cæcus amore,
Clam ferro incautum superat, securus amorum
Germanæ : factumque diu celavit ; et ægram,
Multa malus simulans, vanâ spe lusit amantem.
Ipsa sed in somnis inhumati venit imago
Conjugis, ora modis attollens pallĭda miris :
Crudeles aras, trajectaque pectora ferro
Nudavit ; cœcumque domus scelus omne retexit.
Tum celerare fugam, patriâque excedere suadet ;
Auxiliumque viæ veteres tellure recludit
Thesauros, ignotum argenti pondus et auri.
His commota, fugam Dido sociosque parabat.
Conveniunt, quibus aut odium crudele tyranni,
Aut metus acer erat : naves, quæ forte paratæ,
Corripiunt, onerantque auro : portantur avari
Pygmalionis opes pelago : dux fœmina facti.
Devenere locos, ubi nunc ingentia cernes
Mœnia, surgentemque novæ Carthaginis arcem :
Mercatique solum, facti de nomine Byrsam,

48
CANTO I.O

– Porém Pigmalión, Irmăo de Dido,


– Bárbaro mais que todos em maldade,
– De Tiro os reinos possuia. Entre elles
– Furiosa desavença apparecêra :
– Cégo o malvado da cobiça do oiro,
– Sacrílego ante as aras colhe incauto
– A Sichêo, e, da Irmán surdo aos amôres,
– A’ occultas lhe cravou ferro homicida.
– Largo tempo escondeo a acçāo horrenda ;
– E fecundo em fingir, a triste amante
– Com esperanças vans manhoso illude.
– Mas do Espôso insepulto a propria imagem
– Em sonhos lhe apparece, levantando
– Por maneira espantosa a exangue fronte.
– Mostra as aras cruéis, desnuda o peito,
– Que o ferro atravessára, e da ímpia casa
– Todo o crime escondido lhe descobre.
– Depois a exhorta que a fugir se apresse,
– E a patria deixe ; e, auxilio da jornada,
– Velhos thesoiros sob a terra lhe abre,
– Ignota somma de oiro e prata. Dido
– D’estas noticias abalada, a fuga
– E consocios fiéis dispunha. Aquelles,
– Que ou mêdo do Tiranno, ou odio tinhāo,
– Promptos concorrem : lançăo māo das quilhas,
– Que preparadas por ventura estavāo ;
– Do oiro as carregāo. Ja pelo alto pego
– Os teus thesoiros, Pigmalión avaro,
– Văo-se : fraca mulher do feito he authôra.
– Aos lugares chegárāo, onde agora
– Ingentes muros vês, e levantar-se
– Da recente Carthago os arduos Paços :
– E campo aqui comprárāo (Byrsa he o nome,

49
ENEIDA.

Taurino quantum possent circundare tergo.


Sed vos qui tandem ? quibus aut venistis ab oris ?
Quove tenetis iter ? Quærenti talibus ille
Suspirans, imoque trahens à pectore vocem :
O Dea, si prima repetens ab origine pergam,
Et vacet annales nostrorum audire laborum :
Ante diem clauso componet Vesper Olympo.
Nos Trojâ antiquâ (si vestras forte per aures
Trojæ nomen iit) diversa per æquora vectos,
Forte suâ Libycis tempestas appulit oris.
Sum pius Æneas, raptos qui ex hoste Penates
Classe veho mecum : famâ super æthera notus.
Italiam quæro patriam, et genus ab Jove summo.
Bis denis Phrygium conscendi navibus æquor,
Matre deâ monstrante viam, data fata secutus :
Vix septem convulsæ undis Euroque supersunt.
Ipse ignotus, egens, Libyæ deserta peragro,
Europâ atque Asiâ pulsus. Nec plura querentem
Passa Venus : medio sic interfata dolore est :
Quisquis es, haud (credo) invisus cœlestibus auras
Vitales carpis, Tyriam qui adveneris urbem.

50
CANTO I.O

– Com que do astuto feito o appellidárāo)


– Quanto possa abranger taurina pelle.
– Mas emfim quem sois vós, ou d’onde vindes ?
– Ou para onde soltais ao vento as vélas ?
A’ estas perguntas elle suspirando,
E do peito arrancando a voz — O’Deosa !
„ Se d’esde a origem prima revolvendo-a,
„ Proseguir a narrar dos transes nossos
„ A historia infausta, e folga tens de ouvi-la,
„ Primeiro ás māos de Vespero tardía
„ Verás no Olimpo sepultar-se o dia.
„ Da antiga Troia somos ; (se de Troia
„ O nome ouviste ja) e por diversos
„ Mares vagando, ás regiōes da Líbya
„ Nos trouxe, ao uso seu, feroz procella.
„ Eu sou o pio Enéas, que, arrancados
„ De măos imigas os fiéis Penates,
„ Commigo os trago : conhecido em fama
„ Além astros. A Italia patria busco,
„ E os meus, que do alto Jove o ser derivāo.
„ Aos dispostos destinos obediente,
„ Pela materna Deosa dirigido,
„ Em náos vinte avancei aos Frigios mares.
„ D’ellas apenas sete ora me restāo,
„ Das ondas, e dos Euros combatidas.
„ Desconhecido agora, e pobre, e errante,
„ Dos limites da Europa e Asia expellido,
„ A deserta aridez corro da Líbya....
Não podendo sofrer mais queixas, Venus
No meio assim o interrompeo da mágoa —
– Quem quer que és tu, da vida as doces auras
– Protegido dos Numes, creio, gozas,
– Que á Cidade dos Tirios aportaste.

51
ENEIDA.

Perge modo, atque hinc te Reginæ ad limina perfer,


Namque tibi reduces socios classemque relatam
Nuntio, et in tutum versis Aquilonibus actam :
Ni frustra augurium vani docuere parentes.
Aspice bis senos lætantes agmine cycnos,
Æthereâ quos lapsa plagâ Jovis ales aperto
Turbabat cœlo : nunc terras ordine longo
Aut capere, aut captas jam despectare videntur.
Ut reduces illi ludunt stridentibus alis,
Et cœtu cinxere polum, cantusque dedere ;
Haud aliter puppesque tuæ, pubesque tuorum,
Aut portum tenet, aut pleno subit ostia velo.
Perge modo, et quà te ducit via, dirige gressum.

Dixit : et avertens roseâ сervice refulsit,


Ambrosiæque comæ divinum vertice odorem
Spiravere : pedes vestis defluxit ad imos,
Et vera incessu patuit Dea. Ille ubi matrem
Agnovit, tali fugientem est voce secutus :
Quid natum toties, crudelis tu quoque, falsis
Ludis imaginibus ? cur dextræ jungere dextram
Non datur, ac veras audire et reddere voces :

52
CANTO I.O

– Segue pois, e d’aqui leva-te aos Paços


– Da régia Dido ; e ja desde ora sabe
– (Que t’o predigo eu) que as náos, que os socios
– Salvos te voltāo, e á lugar seguro
– Mansos os Aquilōes leval-os forāo ;
– Se emvăo năo foi que no sombrío agoiro
– Mentirosos os Páes me illuminárăo.
– Cisnes doze năo vês em ledo bando,
– A quem, baixando das regiŏes do raio
– A Ave de Jove, nos abertos ares
– Ha pouco perseguia ? Agora as terras,
– Em que repousem, ou tomar parecem
– Em ordem longa, ou ja tomadas vêl-as
– Pela turba dos seus. Como tornados
– Brincando estāo co’ as estridentes azas,
– Cingem co’ a turba o polo, e o canto soltāo ;
– Assim os jovens teus, e as tuas quilhas,
– Ou ja seguro o tem , ou n’elle entrando
– A’ panno cheio, vāo gozar do porto.
– Prosegue pois, e para onde a sorte
– Propicia te conduz, os passos guia.

Disse : e voltando, da cerviz rosada


Raios dardeja, e as aureas lindas tranças
Cheiro divino de ambrosía exhalăo.
Té aos infimos pés as vestes descem-lhe,
E o andar, e o porte a verificăo Deosa.
Mal-que a Māe conheceo, que lhe fugia,
Com vozes taes a foi seguindo Enéas.
„ Porque, tambem cruél, por vezes tantas
„ Sob apparencias váns teu filho enganas ?
„ Porque dextra com dextra unir me negas,
„ E dizer, e escutar nāo-falsas vozes ?

53
ENEIDA.

Talibus incusat, gressumque ad mœnia tendit.


At Venus obscuro gradientes aëre sepsit,
Et multo nebulæ circum Dea fudit amictu :
Cernere ne quis eos, neu quis contingere posset,
Molirive moram, aut veniendi poscere causas.
Ipsa Paphum sublimis abit, sedesque revisit
Læta suas : ubi templum illi, centumque Sabæo
Ture calent aræ, sertisque recentibus halant.

Corripuere viam interea, quà semita monstrat.


Jamque ascendebant collem, qui plurimus urbi
Imminet, adversasque aspectat desuper arces.
Miratur molem Æneas, magalia quondam :
Miratur portas, strepitumque, et strata viarum.
Instant ardentes Tyrii ; pars ducere muros,
Molirique arcem, et manibus subvolvere saxa ;
Pars optare locum tecto, et concludere sulco.
Jura magistratusque legunt, sanctumque senatum.
Hic portus alii effodiunt : hic alta theatris
Fundamenta locant alii, immanesque columnas
Rupibus excidunt, scenis decora alta futuris.
Qualis apes æstate nova per florea rura

54
CANTO I.O

Tal a accusa, e á Cidade estende os passos,


Venus porém, cingindo-os de ar obscuro,
Envolve os caminhantes, e sobr’elles
Nubloso espêsso véo derrama a Deosa ;
Porque ninguem os veja, ou toque, ou tente
Traças de os demorar, ou curioso
Da vinda sua as causas lhes inquira.
E logo sobre as auras vôa á Paphos,
E leda vê de novo as mansōes gratas,
Onde aras cento com Sabêo perfume
Em templo sumptuoso assíduas fervem
Em honra sua, e de viçosas flores
Em grinaldas gentís o aroma exhalāo.

Emtanto os dois, por onde os guia o trilho,


Seguindo vāo : e ja prestes subiāo
Collina, que alta, aos muros sobranceira,
Oppostos vê de cima os edificios ;
Quando Enéas admira a ampla Cidade,
Que campestres tugûrios fôra outr’ora :
Admira as portas, o boliço, as ruas.
Lidăo os Tirios com fervôr ; quaes longos
Muros estendem, torreōes levantāo,
E co’as robustas măos as pedras rodāo ;
Quaes para os tectos o lugar escolhem,
E de fossas o fechāo. Magistrados,
E leis elegem, e Senado augusto.
Aqui huns cavāo portos : alli outros
Para theatros fundamentos plantāo :
Rijas columnas dos rochedos cortāo,
Ornato e brilho de futuras scenas.
Assim, entrando o estío, a diurna lida
Nos flóreos campos as abelhas move,

55
ENEIDA.

Exercet sub Sole labor, cum gentis adultos


Educunt fœtus, aut cum liquentia mella
Stipant, et dulci distendunt nectare cellas,
Aut onera accipiunt venientum, aut agmine facto
Ignavum fucos pecus à præsepibus arcent.
Fervet opus, redolentque thymo fragrantia mella.
O fortunati, quorum jam mœnia surgunt !
Æneas ait, et fastigia suspicit urbis.
Infert se septus nebulâ, mirabile dictu,
Per medios, miscetque viris : neque cernitur ulli.
Lucus in urbe fuit mediâ, lætissimus umbrâ ;
Quo primum jactati undis et turbine Pœni
Effodere loco signum, quod regia Juno
Monstrarat, caput acris equi : sic nam fore bello
Egregiam, et facilem victu per sæcula gentem.
Hic templum Junoni ingens Sidonia Dido
Condebat, donis opulentum et numine Divæ :
Ærea cui gradibus surgebant limina, nexæque
Ære trabes, foribus cardo stridebat ahenis.

56
CANTO I.O

Quando os adultos filhos apresentăo ;


Ou quando o mel mais liquido condensāo,
E as cellas enchem de suave nectar ;
Ou tomăo das que vem o pêso agreste ;
Ou em disposto batalhāo a ignava
Turba dos Zangāos dos cortiços correm.
Ferve em todas a obra, e do tomilho
Soltāo dôce fragrancia os melleos favos.
„ O’ felices de vós, exclama Enéas,
„ Cujos muros ao ar ja se levantāo !
E ás torres da Cidade as vistas lança ;
E cercado de névoa (ó maravilha !)
Pelo meio se leva, e se mistura
Entre os varŏes, e ninguem ha que o veja.
No meio da Cidade houvera bosque
De sombra deleitavel, onde os Penos,
Das ondas arrojados, e dos ventos,
Pela primeira vez cavando acháraŏ
Signal, que lhe mostrára a Real Juno,
A cabeça de bellico Ginête ;
Vaticinando assim que egrégio em guerra,
E facil de eternar-se em brilho e fama (*)
Seria aquelle Povo. Aqui á Juno
Templo ingente erigía a Tyria Dido,
Opulento de dons, e veneravel
Pela imagem da Deosa : magestosos
Surgiāo-lhe em degráos bronzeos limiares ;
Robusto lhe cosia o bronze as traves,
E rangía a couceira em bronzeas portas.

__________________________________________

(*) No fim do presente Canto lêa-se esta nota.

57
ENEIDA.

Hoc primùm in luco nova res oblata timorem


Leniit : hìc primùm Æneas sperare salutem
Ausus, et afflictis meliùs confidere rebus.
Namque, sub ingenti lustrat dum singula templo,
Reginam opperiens ; dum, quæ fortuna sit urbi,
Artificumque manus inter se operumque laborem
Miratur : videt Iliacas ex ordine pugnas,
Bellaque jam famâ totum vulgata per orbem ;
Atriden, Priamumque, et sævum ambobus Achillem
Constitit, et lacrymans : Quis jam locus, inquit, Achate,
Quæ regio in terris nostri non plena laboris ?
En Priamus : sunt hìc etiam sua præmia laudi,
Sunt lacrymæ rerum, et mentem mortalia tangunt.
Solve metus : feret hæc aliquam tibi fama salutem.
Sic ait : atque animum picturâ pascit inani,
Multa gemens, largoque humectat flumine vultum.
Namque videbat, uti bellantes Pergama circum
Hàc fugerent Graii, premeret Trojana juventus ;
Hàc Phryges, instaret curru cristatus Achilles.
Nec procul hinc Rhesi niveis tentoria velis.

58
CANTO I.O

Primeiro n’esta selva objecto novo,


Que aos olhos se lh’off’rece, obsta os receios :
Aqui a salvaçāo ousou primeiro
Enéas esperar, e em seus trabalhos
Melhor fortuna prometter-se affoito :
Porque, emquanto, aguardando a Régia Dido,
Objecto por objecto vai no Templo
Curioso notando ; e emquanto admira
Qual a fortuna seja da cidade,
E as dextras dos artifices, e as obras,
Cujos trabalhos entre si repartem ;
As Troianas pelejas vệ por ordem,
E as guerras, ja por fama divulgadas
Por todo o Orbe ; vê Príamo, e o Atrída, (I)
E, aos dois pernicioso, o fero Achilles.
Parou : e “Que lugar, pranteando exclama,
„ Que regiăo, Achátes, ha nas terras,
„ Que as desventuras nossas desconheça ?
„ Eis Príamo ! A’ virtude aqui seus prémios
„ Tambem se dão, e lágrimas aos Tristes ;
„ E os males dos Mortáes os peitos tocăo !
„ Despe-te, pois, do mêdo ; que esta fama
„ Alguma salvaçāo trazer te afiança.
Diz : e na ván pintura o ánimo pasce,
Entre gemidos, e de largo rio
Alaga, meditando, as tristes faces :
Que via em torno dos Troianos muros
Como os Gregos, nos bellicos attaques,
Aqui fogem dos Teucros, que os perseguem ;
Como os Teucros alli dos Gregos fogem,
No carro instando-os o cristado Achilles.
Nem d’aqui longe, suspirando, attenta
De Rheso os pavilhōes de brancas velas,

59
ENEIDA.

Agnoscit lacrymans : primo quæ prodita somno


Tydides multâ vastabat cæde cruentus :
Ardentesque avertit equos in castra, priusquam
Pabula gustassent Trojæ, Xanthumque bibissent.
Parte aliâ fugiens amissis Troïlus armis,
Infelix puer, atque impar congressus Achilli,
Fertur equis, curruque hæret resupinus inani,
Lora tenens tamen : huic cervixque comæque trahuntur
Per terram, et versâ pulvis inscribitur hastâ.
Interea ad templum non æquæ Palladis ibant
Crinibus Iliades passis, peplumque ferebant
Suppliciter tristes, et tunsæ pectora palmis.
Diva solo fixos oculos aversa tenebat.
Ter circum Iliacos raptaverat Hectora muros,
Exanimumque auro corpus vendebat Achilles.
Tum vero ingentem gemitum dat pectore ab imo,
Ut spolia, ut currus, utque ipsum corpus amici,
Tendentemque manus Priamum conspexit inermes.
Se quoque principibus permixtum agnovit Achivis,
Eoasque acies, et nigri Memnonis arma.
Ducit Amazonidum lunatis agmina peltis

60
CANTO I.O

Que, atraiçoados no primeiro somno,


Tidídes devastava, ensanguentado
Da carnagem immensa ; e ás Gregas tendas
Os fogosos corséis soltou ligeiro,
Antes-que os pastos Tróïcos gostassem,
E bebessem o Xanto. Em outra parte
Tróilo, moço infeliz, que ousára incauto,
E ímpar á Achilles pelejar com elle,
Ja perdidas as armas, e fugindo,
Pelos bíjugos brutos arrastado,
Da vasia carroça resupino
Pende, e ainda comtudo as rédeas prende.
Co’as comas, co’a cerviz o chăo varria ;
E co’a voltada lança, que o atravessa,
Sulcos tortuosos na poeira abria.
Ao Templo emtanto da impropicia Pallas,
Sôltas as tranças, iăo as Troianas ;
E supplices e tristes com as palmas
Ferindo os tenros, melindrosos peitos,
Votado manto á Deosa conduziăo,
Que no chăo rancorosa os olhos crava.
Em roda vezes três dos Teucros muros
Levando a Heitor de rastos, o ímpio Achilles
Por oiro o corpo exánime vendia.
Entăo do fundo peito arranca Enéas
Gemido ingente, logo-que os despojos,
E o côche, e o proprio corpo vê do amigo,
E a Príamo estendendo as māos inermes.
C’os principáes dos Gregos misturado
Se conheceo tambem, e a gente Eóa,
E do negro Memnón as armas. Guia
Os Amasónios batalhŏes, cingidos
De lunados escudos, a animosa

61
ENEIDA.

Penthesiléa furens, mediisque in millibus ardet,


Aurea subnectens exertæ cingula mammæ
Bellatrix, audetque viris concurrere virgo.

Hæc dum Dardanio Æneæ miranda videntur,


Dum stupet, obtutuque hæret defixus in uno ;
Regina ad templum formâ pulcherrima Dido
Incessit, magnâ juvenum stipante catervâ.
Qualis in Eurotæ ripis, aut per juga Cynthi
Exercet Diana choros, quam mille secutæ
Hinc atque hinc glomerantur Oreades : illa pharetram
Fert humero, gradiensque Deas supereminet omnes :
Latonæ tacitum pertentant gaudia pectus.
Talis erat Dido ; talem se læta ferebat
Per medios, instans operi regnisque futuris.
Tum foribus Divæ, mediâ testudine templi,
Septa armis solioque alte subnixa, resedit.
Jura dabat legesque viris, operumque laborem
Partibus æquabat justis, aut sorte trahebat :
Cùm subitò Æneas concursu accedere magno
Anthea Sergestumque videt, fortemque Cloanthum,
Teucrorumque alios : ater quos æquore turbo
Dispulerat, penitùsque alias advexerat oras.
Obstupuit simul ipse, simul perculsus Achates

62
CANTO I.O

Penthesiléa, que entre amplos milhares


Arde furiosa, e sob a núa mamma
Cíngulo de oiro bellicosa atando,
Virgem contra varŏes pugnar se attreve.

Emquanto os olhos pasce o Heróe Troiano


Em maravilhas táes, e pasma ao vê-las,
E attento e fixo está só n’este quadro ;
A lindissima Dido, cortejada
De juvenil caterva, o Templo busca.
Qual nas margens do Eurótas, ou do Cintho
Nos íngremes cabêços, as coréas
Exercita Diana, a quem seguindo
Mil rápidas Oréades, a cingem
D’um, d’outro lado ; ao hombro a aljava leva,
E andando sobrepuja as Ninfas todas ;
Enche o gosto a Latóna os seios d’alma :
Tal era Dido, tal risonha e grave
Pelo meio das turbas se levava,
A obra instando dos futuros Reinos.
Junto ás portas entāo da Deosa, e média
Na abobada do Templo, circumdada
De armada juventude, em alto sólio
Sentou-se. Alli aos seus leis e direitos
Poderosa dictava ; e em partes justas
O trabalho das obras igualava,
Ou por sorte o dispunha. Eis de improviso,
Acompanhados de concurso ingente,
Enéas vê chegar a Anthêo, Sergesto,
O valente Cloantho, e outros dos Teucros,
A quem a atra procella no alto pégo
Terrivel desvairára, e á tăo diversas
Regiŏes levára. Pasma o mesmo Enéas ;

63
ENEIDA.

Lætitiâque metuque, avidi conjungere dextras


Ardebant : sed res animos incognita turbat.
Dissimulant, et nube cavâ speculantur amicti,
Quæ fortuna viris, classem quo litore linquant,
Quid veniant : cunctis nam lecti navibus ibant
Orantes veniam, et templum clamore petebant.
Postquam introgressi, et coram data copia fandi,
Maximus Ilioneus placido sic pectore cœpit :
O regina, novam cui condere Juppiter urbem,
Justitiâque dedit gentes frænare superbas :
Troës te miseri, ventis maria omnia vecti,
Oramus : prohibe infandos à navibus ignes,
Parce pio generi, et propiùs res aspice nostras.
Non nos aut ferro Libycos populare Penates
Venimus, aut raptas ad litora vertere prædas.
Non ea vis animo, nec tanta superbia victis.
Est locus, Hesperiam Graji cognomine dicunt :
Terra antiqua, potens armis atque ubere glebæ :
Œnotrii coluere viri ; nunc fama, minores

64
CANTO I.O

Tambem Achátes pasma, possuidos


De alegria e temôr ; e ávidos ambos
Amigas dextras apertar almejāo.
Mas o ánimo lhes turba o incerto caso.
Disfarçăo ; e no cóncavo da nuvem
Encobertos observăo qual a sorte
Dos sócios, em que praia a Armada deixem,
A´ que venhāo. De cada náo seguiāo
Escolhidos varōes, vénia implorando,
E ao Templo, com clamôr, se encaminhavāo.
Depois-que entrárāo, e ante a Soberana
Permissāo de fallar se lhes concede,
Ilionêo, d’entre todos o mais grado,
Plácido, e esperançoso assim começa —
„ O´ Rainha, a quem Jupiter propicio
„ Fundar nova Cidade concedêra,
„ E justa refrear soberbos povos,
„ De nós, tristes Troianos, que dos ventos,
„ Por mares tantos o rigôr sofremos,
„ Estas preces escuta. Infensos fogos
„ Das nossas náos prohíbe ; generosa
„ Perdôa a hum povo pio ; e compassivos
„ Olhos estende aos infortunios nossos :
„ Que nem viemos com o ferro em punho
„ Aqui roubar-te os Líbycos Penates,
„ Nem ás praias levar prêsas e roubos.
„ Nem tal violencia nos occupa a mente,
„ Nem á vencidos tal fiducia cabe.
„ Ha hum lugar, Hésperia os Gregos chamăo,
„ Paiz antigo, em armas poderoso,
„ E no fértil torrāo. Varŏes Enótrios
„ Habitárāo-n’o outr’ora : he porém fama
„ Que de I´talo, seu chefe, a aquella gente

65
ENEIDA.

Italiam dixisse, ducis de nomine, gentem.


Huc cursus fuit :
Cùm subitò assurgens fluctu nimbosus Orion
In vada cæca tulit, penitusque procacibus Austris
Perque undas, superante salo, perque invia saxa
Dispulit : huc pauci vestris adnavimus oris.
Quod genus hoc hominum ? quæve hunc tam barbara morem
Permittit patria ? hospitio prohibemur arenæ :
Bella cient, primâque vetant consistere terrâ.
Si genus humanum et mortalia temnitis arma ;
At sperate Deos memores fandi atque nefandi.
Rex erat Æneas nobis, quo justior alter
Nec pietate fuit, nec bello major et armis,
Quem si fata virum servant, si vescitur aurâ
Æthereâ, neque adhuc crudelibus occubat umbris ;
Non metus, officio nec te certasse priorem
Pœniteat. Sunt et Siculis regionibus urbes,
Armaque, Trojanoque à sanguine clarus Acestes.
Quassatam ventis liceat subducere classem,
Et sylvis aptare trabes, et stringere remos.
Si datur Italiam, sociis et rege recepto,

66
CANTO I.O

„ Os modernos agora Italia chamāo.


„ Alli buscamos : quando de improviso
„ Surge das ondas o nimboso Oríon,
„ Aos cegos váos nos leva, e pelas vagas,
„ Por violencia dos Austros reluctantes,
„ E do mar, que nos vence, desvairados,
„ Poucos emfim aqui ás praias vossas
„ Chegar podemos. Que Nação he esta,
„ Ou que Patria tăo barbara consente
„ Este feroz costume ? Aqui o hospicio
„ Da propria arêa nûa se nos nega.
„ Guerras nos movem, e mansāo nos vedăo
„ Na, em que a sorte nos poz, primeira terra.
„ Se a humana especie despresais, e altivos
„ Das vinganças mortáes nāo fazeis caso,
„ Certos aomenos esperai que os Deoses
„ Dos feitos máos, e bons nunca se esquecem.
„ Era Enéas Rei nosso, que em piedade,
„ Em justiça á nenhum cedia a palma ;
„ Nem houve algum maiór em guerra, em armas :
„ Varāo, que, se inda os Fados o conservāo,
„ Se a aura ainda feliz bebe da vida,
„ E entre as sombras cruéis nāo jaz ainda,
„ Nenhum temôr em nós ; nem disputar-lhe
„ Te pesarás em dons a primasia.
„ Tambem cidades na Sicilia temos,
„ E temos armas, e o famoso Acestes,
„ Ramo preclaro de Troianos troncos.
„ Dê-se-nos achegar á terra a Armada
„ Dos ventos aluida, e accommodar-lhe
„ Selvosas traves, e cortar-lhe remos :
„ Por que, se amigos Fados inda á Italia
„ Nos dăo que a navegar continuemos,

67
ENEIDA.

Tendere ; ut Italiam læti Latiumque petamus :


Sin absumpta salus, et te, pater optime Teucrûm,
Pontus habet Libyæ, nec spes jam restat Iüli ;
At freta Sicaniæ saltem sedesque paratas,
Unde huc advecti, regemque petamus Acesten.
Talibus Ilioneus : cuncti simul ore fremebant
Dardanidæ.
Tum breviter Dido, vultum demissa, profatur :
Solvite corde metum, Teucri ; secludite curas.
Res dura, et regni novitas me talia cogunt
Moliri, et latè fines custode tueri.
Quis genus Æneadûm, quis Trojæ nesciat urbem,
Virtutesque, virosque, et tanti incendia belli ?
Non obtusa adeo gestamus pectora Pœni :
Nec tam aversus equos Tyriâ Sol jungit ab urbe.
Seu vos Hesperiam magnam, Saturniaque arva ;
Sive Erycis fines, regemque optatis Acesten ;
Auxilio tutos dimittam, opibusque juvabo.
Vultis et his mecum pariter considere regnis ?
Urbem quam statuo, vestra est : subducite naves ;
Tros Tyriusque mihi nullo discrimine agetur.
Atque utinam rex ipse Noto compulsus eodem

68
CANTO I.O

„ Recebidos o Rei, e os companheiros,


„ Ledos a Italia, e o Lacio procuremos :
„ Se porém salvaçāo ja nos năo resta,
„ E á ti, optimo Páe da Teucra Gente,
„ Possúe o mar da Líbya, e nem de Iülo
„ A fagueira esperança inda nos vive,
„ Aomenos da Sicania o mar, aomenos
„ As dispostas mansōes, d’onde sahimos,
„ Nos caiba procurar, e o Rei Acestes.
Assim Ilionêo ; e entre os Troianos
Sussurro approvadôr lavrára em todos.
Entăo Dido, abaixando a linda face,
Breve responde — Longe o mêdo, ó Teucros !
– Longe os cuidados. Tormentosa crise,
– E do nascente Reino a novidade
– Cautellas tantas inventar me obrigāo,
– E estes limites defender com guardas.
– Quem a gente de Enéas, quem de Troia
– A cidade, os varōes, suas virtudes,
– E os incendios de guerra tanta ignora ?
– Tāo encruado o coraçāo năo temos
– Nós os Carthaginezes, nem de Tyro
– Tăo desviado o Sol rege os Ethontes.
– Se á grande Hespéria, e aos campos de Saturno,
– Ou se aos limites ir desejais d’Erix,
– E ao Rei Acestes ; com seguro auxilio
– Vos deixarei partir, e com riquezas.
– Ou antes escolheis aqui commigo
– N’estes Reinos ficar ? A, que edifico,
– Cidade, he vossa : as náos trazei ao porto.
– O Teucro, o Tyrio, sem algum descrime,
– Será por mim tratado ; e oh ! se dos Notos
– Compellido tambem aqui se achasse

69
ENEIDA.

Afforet Æneas ! Equidem per litora certos


Dimittam, et Libyæ lustrare extrema jubebo :
Si quibus ejectus sylvis aut urbibus errat.

His animum arrecti dictis, et fortis Achates,


Et pater Æneas, jamdudum erumpere nubem
Ardebant : prior Æneam compellat Achates :
Nate Deâ, quæ nunc animo sententia surgit ?
Omnia tuta vides, classem, sociosque receptos.
Unus abest, medio in fluctu quem vidimus ipsi
Submersum : dictis respondent cætera matris.
Vix ea fatus erat, cùm circumfusa repentè
Scindit se nubes, et in æthera purgat apertum.
Restitit Æneas, clarâque in luce refulsit,
Os, humerosque Deo similis : namque ipsa decoram
Cæsariem nato genitrix, lumenque juventæ
Purpureum, et lætos oculis afflârat honores.
Quale manus addunt ebori decus, aut ubi flavo
Argentum Pariusve lapis circumdatur auro.
Tum sic Reginam alloquitur, cunctisque repentè
Improvisus ait : coram, quem quæritis, adsum

70
CANTO I.O

– O proprio Rei Enéas ! Fiéis pesquisas


– Eu mesma espalharei por estas praias,
– E explorar mandarei a Líbya extrema,
– Se por alguns silvêdos, ou cidades
– Incerto, e errante, e náufrago vaguêe.

Co’ estas doces palavras animados,


Achátes valeroso, e o Padre Enéas
Ha muito ardião dissipar a nuvem.
Primeiro á Enéas assim falla Achátes —
„ Filho de Venus, que partido agora
„ Te sóbe á mente ? Tudo vệs seguro,
„ Recebidos os socios, salva a Armada ;
„ Só hum nos falta, que nós mesmos vimos
„ Entre as ondas fatáes ficar submerso.
„ E tudo o mais, na ordem dos successos,
„ A’s predicçōes maternas corresponde.
Apenas se calou, que de improviso
Rasga-se em roda a nuve, e se desmancha,
Em ar aberto e puro. Logo Enéas
Apparece ; e na luz patente e clara
Brilhou, qual Divindade, em face, em hombros :
Que ao Filho a propria Măe graça inspirára
Nas tranças, e rosada juventude,
Luz e viveza nos alegres olhos.
Assim de habil Artista a măo sabida
Bellezas no marfim abre e levanta ;
Ou quando com o fulvo oiro, que a cinge,
A prata ri-se, e o marmore de Paros.
Entāo por estes termos á Rainha,
E á todos, que de o ver sûbito pasmāo,
Insperado se exprime — “Aos vossos olhos
„ Eis-me, a quem procurais, o Teucro Enéas,

71
ENEIDA.

Troïus Æneas, Libycis ereptus ab undis.


O sola infandos Trojæ miserata labores !
Quæ nos, relliquias Danaûm, terræque marisque
Omnibus exhaustos jam casibus, omnium egenos,
Urbe, domo socias. Grates persolvere dignas
Non opis est nostræ, Dido : nec quicquid ubique est
Gentis Dardaniæ, magnum quæ sparsa per orbem.
Dii tibi ( si qua pios respectant numina, si quid
Usquam justitiæ est ) et mens sibi conscia recti,
Præmia digna ferant. Quæ te tam læta tulerunt
Sæcula ? qui tanti talem genuere parentes ?
In freta dum fluvii current, dum montibus umbræ
Lustrabunt convexa, polus dum sidera pascet :
Semper honos, nomenque tuum, laudesque manebunt,
Quæ me cunque vocant terræ. Sic fatus, amicum
Ilionea petit dextrâ, levâque Serestum :
Post, alios, fortemque Gyan, fortemque Cloanthum.
Obstupuit primo aspectu Sidonia Dido,
Casu deinde viri tanto : et sic ore locuta est :
Quis te, nate Deâ, per tanta pericula casus
Insequitur ? quæ vis immanibus applicat oris ?
Tunc ille Æneas, quem Dardanio Anchisæ

72
CANTO I.O

„ Dos Africanos mares arrancado.


„ O’ tu, que das Ilíacas desgraças
„ Unica te apiedaste ; que os Troianos,
„ Reliquias tristes dos dolosos Gregos,
„ Gastos ja de sofrer trabalhos tantos
„ E da terra e do mar, pobres de tudo,
„ Nos lares teus e na cidade tua
„ Acolhes, e benévola assocías :
„ Render por tantos bens as dignas graças
„ Nāo cabe em nós, ó Dido ; nem á tudo
„ Quanto espalhado da Troiana Gente
„ Ha pelo vasto Mundo. Os altos Deoses
„ (Se alguns os olhos sobre os pios lançāo,
„ Se inda ha quem cultos á Justiça renda)
„ E a mente conscia da virtude própria
„ Por nós te paguem o devído prémio.
„ Que sec’los tāo ditosos te trouxerāo ?
„ Que tāo virtuosos Páes tal te gerárāo ?
„ Emquanto os rios para o mar correrem,
„ E aos valles debruçarem sombra os montes ;
„ Emquanto o pólo apascentar os astros,
„ Teu nome, a gloria tua, os teus louvores,
„ Onde quer que eu viver, viveráŏ sempre.
Assim fallando a Ilionêo amigo,
E a Seresto co’a dextra, e a esquerda busca :
Depois aos outros, e ao valente Gias,
E a Cloantho valente. A Tyria Dido
Primeiro se admirou de o vêr, e logo
D’os casos do Varăo ; e assim lhe falla —
„ Filho de Venus, e que desventura
„ Te segue pertinaz por p’rigos tantos ?
„ Que violencia te arrasta á imigas terras ?
„ Nāo és tu por ventura aquelle Enéas,

73
ENEIDA.

Alma Venus Phrygii genuit Simoëntis ad undam ?


Atque equidem Teucrum memini Sidona venire,
Finibus expulsum patriis, nova regna petentem
Auxilio Beli. Genitor tum Belus opiman
Vastabat Cyprum, et victor ditione tenebat.
Tempore jam ex illo casus mihi cognitus urbis
Trojanæ, nomenque tuum, regesque Pelasgi.
Ipse hostis Teucros insigni laude ferebat,
Seque ortum antiquâ Teucrorum à stirpe volebat.
Quare agite, ô tectis, juvenes, succedite nostris !
Me quoque per multos similis fortuna labores
Jactatam, hâc demum voluit consistere terrâ.
Non ignara mali, miseris sucurrere disco.

Sic memorat, simul Ænean in regia ducit


Tecta ; simul Divûm templis indicit honorem.
Nec minus interea sociis ad litora mittit
Viginti tauros, magnorun horrentia centum
Terga suum, pingues centum cum matribus agnos :
Munera, lætitiamque Dei.
At domus interior regali splendida luxu
Instruitur, mediisque parant convivia tectis.

74
CANTO I.O

„ A quem perto do Frygio Simöente,


„ Deo a alma Venus ao Dardánio Anchises ?
„ Bem me recordo que, expellido Teucro
„ Das patrias terras, á Sidonia veio,
„ Novos reinos buscando, auxiliado
„ Por Belo : Belo entāo, de quem descendo,
„ A opíma Chipre devastava, e a Chipre
„ Glorioso vencedôr predominava.
„ D’esde esse tempo já que eu conhecia
„ As desgraças Troianas, e o teu nome,
„ E os Reis Pelasgos. Mesmo o vosso Imigo
„ Os Teucros com louvôres sublimava ;
„ E altivo blasonava a origem sua
„ Da antiga geraçăo trazer dos Teucros.
„ Eia pois, ó Mancebos ! nossos tectos
„ Entrai affoitos. Por trabalhos cento
„ Tambem a mim fortuna semelhante
„ Agitada me trouxe, até-que dado
„ Me foi n’este Paiz fazer assento.
„ Nos males próprios a liçăo aprendo
„ De soccorrer piedosa aos desgraçados.

Tal memorando, logo ao pio Enéas


Aos régios Paços guia ; e manda logo
Honras nos Templos celebrar dos Deoses.
Tambem emtanto ás praias toiros vinte
Do Heróe aos sócios enviou bisarra,
Cem gordas costas de animáes cerdosos,
E com ovelhas cem cem pingues anhos :
Nem do alegre Lenêo os mimos falhăo.
Mas com luxo real se instrûem, se aprestāo
Splendidas salas no int’rior do Paço,
E no meio os convivios se prepárāo.

75
ENEIDA.

Arte laboratæ vestes, ostroque superbo :


Ingens argentum mensis, celataque in auro
Fortia facta patrum, series longissima rerum
Per tot ducta viros antiquæ ab origine gentis.
Æneas (neque enim patrius consistere mentem
Passus amor) rapidum ad naves præmittit Achaten :
Ascanio ferat hæc, ipsumque ad mœnia ducat.
Omnis in Ascanio cari stat cura parentis.
Munera præterea, Iliacis erepta ruinis,
Ferre jubet, pallam signis auroque rigentem,
Et circumtextum croceo velamen acantho :
Ornatus Argivæ Helenæ, quos illa Mycenis,
Pergama cum peteret, inconcessosque Hymenæos,
Extulerat : matris Ledæ mirabile donum.
Præterea sceptrum, Ilione quod gesserat olim
Maxima natarum Priami, colloque monile
Baccatum, et duplicem gemmis auroque coronam.
Hæc celerans, iter ad naves tendebat Achates.

At Cytherea novas artes, nova pectore versat


Consilia : ut faciem mutatus et ora Cupido

76
CANTO I.O

Vestes com arte e púrpura lidadas


Apparecem alli ; e sobre as mesas
Riqueza ingente em argentinos vasos,
E abertas ao buril no oiro lavrado
As inclitas façanhas dos Maiores,
Série estendida, que lá d’esde a origem
Da antiga gente deduzida veio
Por varōes tantos, e de tanto nome.
Enéas (que nāo sofre o amôr paterno
Que se detenha mais) ligeiro a Achátes
Manda primeiro ás náos, por que estes factos
Conte a Ascanio, e á cidade o guie prestes :
Todo em Ascanio está o seu cuidado.
Ordena mais que lhe conduza os mimos,
Que ás ruinas Ilíacas salvára,
Capa, em que de relêvo estăo bordadas
Figuras de oiro ; e véo mimoso e fino,
Que o cróceo acantho tem tecido em roda ;
Da Argiva Helena ornatos preciosos
Trazidos de Micenas, quando a Troia,
E as nupcias criminosas procurava ;
Dons admiraveis da materna Leda.
Sceptro ajunta, que Ilíone, das Filhas
A primeira de Príamo, trouxéra ;
Lindo collar de pérolas custosas ;
E corôa, que de oiro e finas pedras
Trabalhados primôres ostentava.
Achátes, para o mando encher de Enéas,
A’s conhecidas náos rápido parte.

Citheréa porém conselhos novos,


Novas artes na mente revolvia ;
Que, mudando Cupido a face e o gesto,

77
ENEIDA.

Pro dulci Ascanio veniat, donisque furentem


Incendat Reginam, atque ossibus implicet ignem.
Quippe domum timet ambiguam, Tyriosque bilingues :
Urit atrox Juno, et sub noctem cura recursat.
Ergo his aligerum dictis affatur Amorem :
Nate, meæ vires, mea magna potentia ; solus,
Nate, Patris summi qui tela Typhoëa temnis :
Ad te confugio, et supplex tua numina posco.
Frater ut Æneas pelago tuus omnia circum
Litora jactetur, odiis Junonis iniquæ,
Nota tibi : et nostro doluisti sæpe dolore.
Hunc Phœnissa tenet Dido, blandisque moratur
Vocibus : et vereor, quo se Junonia vertant
Hospitia ; haud tanto cessabit cardine rerum.
Quocirca capere ante dolis et cingere flammâ
Reginam meditor : ne quo se numine mutet ;
Sed magno Æneæ mecum teneatur amore.
Quà facere id possis, nostram nunc accipe mentem.
Regius, accitu cari genitoris, ad urbem
Sidoniam puer ire parat, mea maxima cura,
Dona ferens pelago et flammis restantia Trojæ.
Hunc ego sopitum somno, super alta Cythera,
Aut super Idalium sacratâ sede recondam :

78
CANTO I.O

Venha em lugar de Ascanio, e co’as offertas


Accenda a amante Dido, e pelos ossos
O amorôso fervôr lhe atêe e cale :
A ambigua casa teme, e os falsos Tyrios.
Juno atroz a inquiéta ; e este cuidado
Inteira a noite lhe nāo sáe do peito :
Té-que ao alado Amôr assim se exprime —
„ O’ Filho, meu poder, e minhas fôrças !
„ Filho, que só as armas do Supremo
„ Jove despresas, que a Tifêo prostrárāo !
„ A’ ti recorro, e supplice depréco
„ O nume teu, que os numes todos vence.
„ Estranho te nāo he que pelos ódios
„ Da iniqua Juno, soportando os mares,
„ Enéas, Irmāo teu, rodeou errante
„ As praias todas ; e da mágoa nossa
„ Tambem vezes năo poucas te doêste.
„ Tem-n’o a Fenissa Dido, e carinhosa
„ Com doces fallas o demora, o encanta.
„ D’este Junónio hospicio o exito temo.
„ Nem fugir deixará ensejo tanto
„ De exercitar seus odios. Cumpre agora
„ Com dólos entreter, cingir de chammas
„ A amorosa Rainha, antes que a mude
„ Algum infausto Nume ; mas a Enéas,
„ Qual extremosa o amo, ame-o extremosa.
„ Como isto fazer possas, ouve, e aprende.
„ Do caro Páe chamado o Régio Môço,
„ Meu maximo cuidado, ir se prepara
„ A’ Sidonia cidade, os dons levando,
„ Que escapárāo do mar, e Teucras chammas.
„ Sopíto em somno no alto do Cithéra
„ Ou sobre o Idálio eu mesma em sacra sede

79
ENEIDA.

Ne quà scire dolos, mediusve occurrere possit.


Tu faciem illius, noctem non amplius unam,
Falle dolo : et notos pueri puer indue vultus :
Ut, cum te gremio accipiet lætissima Dido,
Regales inter mensas laticemque Lyæum,
Cum dabit amplexus, atque oscula dulcia figet ;
Occultum inspires ignem, fallasque veneno.
Paret Amor dictis caræ genitricis, et alas
Exuit, et gressu gaudens incedit Iüli.
At Venus Ascanio placidam per membra quietem
Irrigat : et fotum gremio Dea tollit in altos
Idaliæ lucos, ubi mollis amaracus illum
Floribus et dulci aspirans complectitur umbrâ.
Jamque ibat dicto parens, et dona Cupido
Regia portabat Tyriis, duce lætus Achate.
Cum venit, aulæis jam se Regina superbis
Aureâ composuit spondâ, mediamque locavit.
Jam pater Æneas et jam Trojana juventus
Conveniunt, stratoque super discumbitur ostro.
Dant famuli manibus lymphas, Cereremque canistris
Expediunt, tonsisque ferunt mantilia villis.
Quinquaginta intus famulæ, quibus ordine longo

80
CANTO I.O

„ Emtanto o occultarei, porque năo possa


„ As fraudes conhecer, que ora preparo ;
„ Ou, mediando, estorval-as. Disfarçado
„ Tu o porte, e a presença lhe arreméda
„ Nāo mais que huma só noite ; e do menino
„ Menino veste as conhecidas faces :
„ A’ fim que, quando Dido em seu regaço
„ Ternissima acolher-te, entre o regalo
„ Das régias mêsas, e licôr de Baccho ;
„ Quando em abraços te apertar fagueira,
„ E de mimosos osculos cobrir-te ;
„ Lhe inspires chamma occulta, e nas medullas
„ O veneno fallaz de amôr lhe embebas.
A’ voz da cara Māe obedecendo
Despe as azas Amôr, e ufano, e ledo
De Ascanio os passos, caminhando, finge.
Venus porém pacífico repouso
Pelos membros á Ascanio côa ; e meiga
No regaço o levou da Idalia aos bosques,
Onde, entre flores respirando aromas,
O abraça, e ensombra a molle Mangerona.
Já, por cumprir os maternáes preceitos,
Seguia o falso Ascanio, e os régios mimos,
Guiando-o Achátes, conduzia aos Tyrios.
Chega emfim; e a Rainha em aureo leito
Sobre alfombras magníficas se amanha,
E média se colloca : o Padre Enéas
E os Mancebos Troianos já se ajuntāo,
E em alastrada púrpura se assentāo.
Dāo linfa ás māos os famulos : a Ceres
Em bem-tecidos vimes appresentăo,
E finos linhos de tosqueados vêllos.
Em ordem longa famulas cincoenta.

81
ENEIDA.

Cura penum struere, et flammis adolere Penates.


Centum aliæ, totidemque pares ætate ministri,
Qui dapibus mensas onerent, et pocula ponant.
Necnon et Tyrii per limina læta frequentes
Convenere, toris jussi discumbere pictis.
Mirantur dona Æneæ, mirantur Iülum,
Flagrantesque Dei voltus, simulataque verba :
Pallamquè, et pictum croceo velamen acantho.
Præcipue infelix, pesti devota faturæ,
Expleri mentem nequit, ardescitque tuendo
Phœnissa : et puero pariter donisque movetur.
Ille, ubi complexu Æneæ colloque pependit,
Et magnum falsi implevit genitoris amorem,
Reginam petit : hæc oculis, hæc pectore toto
Hæret, et interdum gremio fovet : inscia Dido
Insideat quantus miseræ Deus : at memor ille
Matris Acidaliæ, paulatim abolere Sichæum
Incipit, et vivo tentat prævertere amore
Jampridem resides animos desuetaque corda.

Postquam prima quies epulis, mensæque remotæ ;

82
CANTO I.O

Dos manjares lá dentro se atarefăo,


E com perfumes os Penates honrăo.
A’ cem outras ainda, e iguaes na idade
A’ outros tantos serventes, cabe as mesas
De iguarias variar, e pôr os copos.
Pelas festivas portas apinhoados
Chegăo tambem os Tyrios, e mandados
Văo-se em pintados leitos assentando.
Pasmāo de ver os dons de Enéas ; pasmăo
De ver a Ascanio, e as abrasadas faces
Do Deos, e as fallas, que ardiloso finge ;
E a capa, e o véo, que pinta o cróceo acantho.
Mormente a infeliz Dido, destinada
D’agros amôres á futura peste,
Nāo se farta de ver ; vendo, se abrasa :
E do Menino, e dons render se deixa.
Elle, mal-que do abraço, e terno collo
Pendeo do falso Pae, vôa á Rainha,
Que d’elle os olhos arredar nāo póde,
E o coraçāo inteiro : vezes muitas
No seio o affaga. Miseranda Dido !
Ah ! que năo sabes quanto Deos te pésa
Nos melindrosos braços ! Elle, certo
Das ordens maternáes, com que Acidália
Astuta o previníra, manso e manso
Da memoria da Triste principia
A apagar a Sichêo ; e tenta, e lida
Fazer em viva chamma arder de-novo
Aquelle coraçăo, que frio ha tanto
Os desejos de amôr desaprendêra.

Cessado o uso das primeiras mesas,


E retiradas ellas, se appresentăo

83
ENEIDA.

Crateras magnos statuunt, et vina coronant.


Fit strepitus tectis, vocemque per ampla volutant
Atria : dependent lychni laquearibus aureis
Incensi : et noctem flammis funalia vincunt.
Hic Regina gravem gemmis auroque poposcit,
Implevitque mero pateram ; quam Belus et omnes
A Belo soliti. Tum facta silentia tectis ;
Juppiter (hospitibus nam te dare jura loquuntur)
Hunc lætum Tyriisque diem Trojâque profectis
Esse velis, nostrosque hujus meminisse minores.
Adsit lætitiæ Bacchus dator, et bona Juno :
Et vos ô cœtum Tyrii celebrate faventes,
Dixit et in mensa laticum libavit honorem :
Primaque libato, summo tenus attigit ore.
Tum Bitiæ dedit increpitans : ille impiger hausit
Spumantem pateram, et pleno se proluit auro :
Post alii proceres. Citharâ crinitus Iopas
Personat auratâ, docuit quæ maximus Atlas.
Hic canit errantem Lunam, Solisque labores :
Unde hominum genus, et pecudes : unde imber et ignes :
Arcturum, pluviasque Hyadas, geminosque Triones :
Quid tantum Oceano properent se tingere soles

84
CANTO I.O

Grandes copos, de puro Brómio rasos.


Sôa nos tectos a alegria, e os brados
Vāo pelos amplos atrios rimbombando.
Dos aureos artesōes com luzes cento
Pendem lustres esplendidos, e a noite
Céreos archotes com as flammas vencem.
Entāo a Régia Dido taça pede
Pesada de oiro, e pedras preciosas :
De vinho a arrasa ; taça, de que Belo,
E de Belo a progénie usar sohiāo.
Logo muda attençăo a todos prende.
„ Maximo Jove, diz a Soberana,
„ Pois que he fama, que as leis dás dos hospicios,
„ Faze que ledo aos Tyrios, e aos Troianos
„ Seja este dia ; e que a memoria d’elle
„ Perdure sempre nos vindoiros nossos.
„ O Nume da alegria, o intonso Baccho
„ Com a propicia Juno nos assistāo.
„ E vós, ó Tyrios, celebrai concordes
„ Este ledo festim. „ Diz : e na mésa
A honra dos licores gotejando,
C’os summos labios o tocou primeira ;
Depois o deo a Bithias, advertindo-o.
Elle a taça espumante esgota, e logo
Com o oiro repleto se borrifa :
O mesmo seguem os demais Magnatas.
Canta na cithara o criníto Iópas
Os versos, que aprendeo do grande Atlante,
Os trabalhos do Sol, e a errante Lua ;
Dos homens e animáes qual o principio ;
Qual das chuvas, e raios : canta a Arcturo,
Os dois Triŏes, e as Hiades chorosas :
Por que tanto se apressăo no Oceáno

85
ENEIDA.

Hyberni, vel quæ tardis mora noctibus obstet.


Ingeminant plausum Tyrii, Troësque sequuntur.
Necnon et vario noctem sermone trahebat
Infelix Dido, longumque bibebat amorem ;
Multa super Priamo rogitans, super Hectore multa :
Nunc, quibus Auroræ venisset filius armis :
Nunc, quales Diomedis equi : nunc, quantus Achilles.
Immo age, et à prima dic, hospes, origine nobis
Insidias, inquit, Danaûm ; casusque tuorum,
Erroresque tuos : nam te jam septima portat
Omnibus errantem terris et fluctibus æstas.

86
CANTO I.O

Banhar-se os sóes do inverno, ou que demora


Tanta lhe estenda as enfadonhas noites.
Applauso repetido dāo os Tyrios,
Dăo os Troianos repetido applauso.
Em variada conversa a infeliz Dido
Tambem gastava a noite, e á longos tragos
Os venenos de amôr nescia bebia.
Muito á cerca de Príamo pergunta,
Muito á cerca de Heitôr : ora pesquisa
Com que armas foi da Aurora o Filho á Troia,
Ora quaes de Diomédes os cavallos,
E quanto fôra o tăo-fallado Achilles.
„ Ou antes ( continûa ) dize-me, Hospede,
„ D’esde a origem primeira os torpes dolos
„ Dos Gregos refalsados ; a ruína
„ E as desgraças dos teus, tua derrota :
„ Que ha estios sete ja que pelas terras,
„ E pelos mares perseguido vagas.

FIM DO PRIMEIRO CANTO.

87
ENEIDA.

NOTA.

PAGINA 57. — VERSO 22.

E facil de eternar-se em brilho e fama. (*)

(*) Por várias maneiras interpretárăo os Criticos a expressāo


de Virgilio – Et facilem victu per sœcula gentem – Mas o sentido,
em que a traduzi, he d’entre todos o mais adoptado, e o que
parece melhor se accommóda ao que pertendeo dizer o Poéta
original. Eis o que escrevêo, e notou Ruêo – Explicant
interpretes communiter – quœ sit fertilis frugibus, et commoda ad
victum ; ita ut victu sit supinum à vivo. Ego eodem supino usus,
victu á vivo interpretor de fama et gloria gentis, quæ florere
eternùm debeat : hoc enim est propriè : vivere per sœcula.

88
Os editores

Márcio Thamos
Professor de Língua e Literatura Latina do Departamento de
Linguística, Literatura e Letras Clássicas da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP, Araraquara; credenciado no Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da mesma Instituição. A tradução de
poesia e a análise semiológica de textos clássicos, bem como o estudo
das relações entre palavra e imagem, formam uma base constante de
seus interesses como docente e pesquisador. Publicou O umbigo do rei
(Escrituras), As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida
(Edusp), e prepara a segunda edição dos poemas d’O homem horizontal
(2Coqueiros). [Site pessoal: https://sites.google.com/site/marciothamos].

Giovanna Longo
Docente da Área de Língua e Literatura Latinas do Departamento de
Linguística, Literatura e Letras Clássicas da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP, Araraquara; credenciada no Programa de Mestrado
Profissional em Letras (Profletras–CAPES), linha de pesquisa “Teorias
da Linguagem e Ensino”. Doutora pelo Programa de Pós-graduação
em Linguística e Língua Portuguesa da FCLAr-UNESP, com a tese
“Ensino de Latim: reflexão e método” (2011); mestre pelo mesmo
Programa com a dissertação “Ensino de Latim: problemas linguísticos
e uso de dicionário” (2006). Pesquisadora do Grupo LINCEU – “Visões
da Antiguidade Clássica”. Desenvolve pesquisa nas áreas de Semiótica
aplicada à leitura e tradução de textos latinos, Linguística aplicada ao
ensino de latim e formação de professores.
Título Reedição da Eneida de Virgílio traduzida por
João Gualberto Ferreira Santos Reis
conforme publicada na Bahia
entre 1845 e 1846: CANTO I

Autor Públio Virgílio Marão (70-19 a.C.)

Tradução João Gualberto Ferreira Santos Reis (1787-1861)

Editores Márcio Thamos & Giovanna Longo

Projeto gráfico Márcio Thamos

Preparação de OCR Giovanna Longo

Revisão Giovanna Longo e Márcio Thamos

Formato 14 x 21 cm

Fonte Palatino Linotype, 11

Número de páginas 90

A QUEM INTERESSAR POSSA, ADVERTE-SE QUE ESTE LIVRO FOI COMPOSTO PELA GRÁFICA ARTESANIA
PARA A EDITORA 2COQUEIROS & ASTERISCO, AMBAS CODINOMES DA “EDITORA DO AUTOR”,
EM JULHO DE 2021, DURANTE A PANDEMIA.
A Eneida de Virgílio “traduzida em verso
português” por João Gualberto Ferreira
Santos Reis, “Lente jubilado de Língua
Latina, e natural da Bahia”, é a primeira
tradução brasileira da célebre epopeia
romana.
A obra completa, dedicada “Ao Senhor
D. Pedro II, Imperador Constitucional e
Defensor Perpétuo do Brasil”, foi impressa
na Bahia entre 1845 e 1846, tendo sido
editada em três tomos.
Reproduzimos aqui a edição do Canto I,
mantendo a grafia original, a acentuação e
a pontuação (inclusive as características
tipográficas) tanto da tradução quanto do
texto latino que a acompanha.

Você também pode gostar