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TRÊS FOLHAS AO VENTO: TRÊS LÁGRIMAS POR UMA RAPARIGA

LOURA

Giovana Reis LUNARDI1

“A atitude de prazer, que a arte provoca e possibilita, é a experiência estética primordial.


Ela não pode ser suprimida; pelo contrário, deve voltar a ser objeto da reflexão teórica,
quando se trata hoje de defender a função social da arte e da ciência.”
(Hans
Robert Jauss)

Este modesto ensaio visa à análise da narrativa de um conto do escritor Eça de


Queirós, Singularidade de uma rapariga, sob a perspectiva de Gancho (1991), de modo
a perceber como estão estruturados os elementos da narrativa. Temos como premissa
que se trata de um conto marcado pelo número três; é seu carimbo, seu fado e sua cruz.
Detalharemos esses três aspectos pelos quais descrevemos o conto, partindo dos cinco
elementos sob os quais se estrutura toda narrativa, quais sejam: fatos, personagens,
tempo, lugar e narrador.
O personagem principal é um jovem chamado Macário. “O que não contas à tua
mulher, o que não contas ao teu amigo, contá-lo a um estranho, na estalagem”. Assim,
Macário contará o que sucedeu em sua vida, para um estranho em uma estalagem; no
quarto de número três. Fatos que ocorreram em 1823 ou 33, quando cabelos claros cor
de trigo o encantaram. Principia o conto Singularidade de Uma Rapariga Loura, do
escritor Eça de Queirós; grande nome na literatura portuguesa. Segundo Sales (1989, p.
6-7):

[...] foi o primeiro trabalho literário que Eça de Queirós publicou depois de haver
escrito, com Ramalho Ortigão os célebres folhetins de O Mistério da Estrada de
Sintra, que de julho a setembro de 1870 deras á publicação no Diário de Notícias
(Lisboa). (...) Singularidades de uma Rapariga Loura é a página que inaugura não
apenas – e a rigor – o realismo na literatura portuguesa, (...) mas também representa
o instante primeiro de ruptura de Eça com a prosa ortodoxamente lusa que se
escrevia no seu país.

1
Pós-graduanda em Literaturas do Cone Sul pela Universidade Federal Fronteira Sul
(UFFS/Chapecó/SC); Especialista em Produção e Revisão de Textos pela Unochapecó e graduada em
Letras Português/Espanhol pela Unoesc (Xanxerê/SC); e-mail: gio-reislunardi@hotmail.com

1
E tamanha era a inovação estética desse conto que as pessoas habituadas à
cadência pesada da prosa portuguesa da época o tinham como estrangeiro. Realmente é
um conto singular, de enredo e de desfecho singular; em que o leitor se surpreende com
o inesperado, pleonasmo necessário já que a partida para a província (decisão de
Macário) é de abandono (ele deixa a rapariga) e de alívio (ele pára de “sofrer”). A
paixão pungente está presente no conto, os encantos da rapariga, chamada Luísa,
atordoam Macário.
Segundo Gancho (1991, p. 5-6),

[...] toda narrativa se estrutura sob cinco elementos: fatos, personanges,


tempo, lugar e narrador; sendo que o narrador é o elemento de ligação entre
toda a estrutura da narrativa, o leitor e o todos contam-escrevem ou ouvem-
lêem toda espécie de narrativa: histórias de fadas, casos, piadas, mentiras,
romances, contos, novelas… (…) Narrar é uma manifestação que acompanha
o homem desde sua origem. As gravações em pedra (…) os mitos (…) a
Bíblia (…). Modernamente, poderíamos citar um sem-número de narrativas:
novela de TV, filme de cinema, peça de teatro, notícia de jornal, gibi,
desenho animado… Muitas são as possibilidades de narrar, oralmente ou por
escrito, em prosa ou em verso, usando imagens ou não.

É a partir desses elementos definidos por Gancho (1991) que estabelecemos a


análise/percepção da maneira como se apresentam no conto referido. Para definir
narrativa, seguimos conforme D’onofrio (1995, p. 53), como sendo um “discurso que
apresenta uma história imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade
de personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço
determinados”.
Primeiramente mencionando, conforme o próprio narrador chama a atenção, ao
referir-se ao quarto de número três, que o número três é/e uma singularidade. Numeral
e substantivo, o número três é o eco que se ouve na leitura do referido conto de Eça.
Segundo Samael Aun Weor, fundador e mestre da Gnose 2, o número três é denominado
de Arcano modelador. E é por meio do verbo que se modela tudo na criação, na
natureza. O Arcano 3 significa êxito, é produção tanto material quanto espiritual, sendo
a realização de nossos anelos, idéias, aspirações. Sabemos que Macário realizou o anelo
da conquista da mão da rapariga. O número três corresponde à constelação zodiacal de
Gêmeos e ao planeta Júpiter. Estamos no ano de Júpiter, então é um ano de buscar
harmonia. A nota musical do número 3 é Mi e a cor é vermelha, o metal é estanho e os
plexos são do baço e o hepático (fígado). O axioma transcendente é: "Tecendo está teu
2
Doutrina místico-religiosa, síntese de várias religiões; acredita em carma/dharma; reencarnação, reciprocidade, etc.

2
tear, tela para teu uso e telas que não irás usar". Nisso vê-se a tessitura das atitudes de
Macário e da rapariga; o rapaz tece sua vida financeira para usá-la com a rapariga. O
que tece a rapariga? O desfilamento do número três (também algo singular) no conto
fortalece algumas propostas de análise; já que ele é modelador e: Macário esforça-se
com o trabalho para ter dinheiro para casar-se com a rapariga loura enquanto ela rouba o
leque (supomos pelos indícios que apresentaremos a seguir), a caixa de lenços e a pedra
de ouro; sendo assim, o exemplo dele poderia modelar o caráter da rapariga enquanto
sua noiva. Não é o que acontece.
Quanto ao singular, o narrado diz que as singularidades da rapariga, são fortes;
sua fresca beleza contrasta com seu mau caráter, o que oferece ao conto uma
personagem que a princípio é secundária, mas está nos moldes de ser a mocinha, a musa
inspiradora. É singular que o tio de Macário não aceite seu casamento, já que não há
motivos aparentes para tal, apenas a possibilidade dele desconfiar da moça loura e
pensar não será creditado caso contasse.
As personalidades das personagens do conto são repletas de singularidades,
tomando a definição de serem características distintas. Já a idéia de ser singular e não
plural toma-se como o conjunto dessas idéias de caráter. Uma vez que, transpondo-nos
para a sociedade atual, quanto mais conhecimentos dominarmos, mais valor (respeito)
teremos. Ser plural é que seria o ideal e não singularmente bom em algo apenas.
Segundo o Ximenes (2001), singular é: “Adj. 1. Pertencente a um; único, particular. 2.
Especial, extraordinário. 3. Excêntrico. 4. Distinto, notável 5. Gram. Número que indica
uma só coisa ou pessoa.”
Em verdade, o surgimento do número três como proposta de desdobramento
com o conto surgiu-nos antes de lê-lo; como algo de presságio ou previsão (pré-visão)
daquilo que o enredo nos mostraria. Assim surgiu-nos esse número no conto em análise,
quiçá mais forte do que esperávamos. Para desvendar a trama do número três com o
conto propomos a descoberta/desvendamento de três singularidades que serão
conseqüência para três lágrimas. Marca forte de desfecho da narrativa dada pelo
narrador como elemento de ligação com o leitor, já que Macário sofre com três
acontecimentos e a rapariga por três vezes rouba e por três vezes é mandada embora.

1. A primeira singularidade: uma folha ao vento

3
As singularidades são uma lista de boas excentricidades; de características
únicas em se de tratando de objeto ou pessoa. A singularidade da rapariga loura é tão
singular que se trata de algo negativo; fora dos costumes e morais ideais. Não deixando
de ser uma característica única. Por ora o leitor poderia descobrir a índole da moça; de
repente sendo a intenção do autor em deixar suspeitas ou indagações. São pistas sutis,
portanto singularidades, que surgem na leitura do conto. “Macário, aos vinte e dois
anos, ainda não tinha – como lhe dizia uma velha tia (...), sentido Vênus”. Então ele
amava. Depois de ver a rapariga na janela, amava-a. Macário chorou três vezes; por três
vezes ele chorou. Desgosto amoroso aparente como traço do romantismo.
Macário trabalhava com seu tio Francisco em um armazém de panos como
guarda-livros, parece-nos que uma profissão semelhante à de um contador. Era um
rapaz muitíssimo concentrado; “Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras
merendas no campo, um apuro saliente no fato e de roupas brancas, era todo o
interesse da sua vida”. Eis o caráter de Macário... Ele estava apaixonado deveras,
deixando sua seriedade para distrair-se com os emaranhados dos cabelos da rapariga.
Apresentamos a primeira singularidade (p.6):

Andava distraído, abstrato, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado,
sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mas reparou no seu
ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas, e não deu bem as recomendações
do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento dum pacote de
lenços da Índia.3

Temos, sutilíssima ao leitor, concentrado na escrita de Eça, nossa primeira


singularidade. Entendamos o significado daquilo que some de onde não poderia e que
alguém por ali passou. Notemos a riqueza descritiva deste trecho, característica da
escrita de Eça:

Macário de casaca azul, calça de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de
cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, a Sra. Maria da Graça, pessoa
seca e aguçada, com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco, uma enorme
luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da
sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura,
vestida de branco, simples, fresca, com seu ar de gravura colorida (SALES, 1989, p.
07).

2. A segunda singularidade: outra folha ao vento

3
Grifo nosso.

4
A representação da sociedade de uma época é tema iniciador do Realismo em
Portugal, o renomado documentarista realista e satírico, o destroçador da burguesia
lisboeta, balizada por preconceitos e hipocrisias, assim é denominado Eça de Queirós
(SALES, 1989, p.13).
Em nosso objeto de análise percebemos a marca boêmia dos saraus da época.
Eram assim as reuniões sociais da burguesia em Portugal (SALES, 1989, p. 9):

E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes,


serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhas, cheias de
perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. (...) E a noite ia assim
correndo, literária, pachorrenta, erudita, requintada e toda cheia de musas.

Ocorre num desses saraus o surgimento da segunda singularidade, quando a


peça de ouro com a qual Luísa brincara, some (p.10):

Mas, de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do regaço de
Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu ruído metálico. (...)
Macário afastou a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou
com um castiçal, e Luísa ergueu-se e sacudiu com pequequenina pancada o seu
vestido de cassa. A peça não apareceu. (...) Uma peça não se perde assim.

Isso denota a idéia de tempo perdido para conquistar a rapariga, que não
mereceria deveras, devido à sua índole. Quanto ao caráter de Luísa:

Segundo me disse Macário – era muito singular o temperamento de Luísa. Tinha o


caráter louro como o cabelo – se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada:
falava pouco, sorria sempre com seus brancos dentinhos, dizia a tudo,pois sim: era
muito simples, quase indiferente, cheia de transigências (SALES, 1989, p.12).

Assim entende também o amor da rapariga, que, segundo o narrador (presente


em alguns comentários), é tal qual o caráter: aguado! Mas isso não soubera Macário até
que as singularidades da rapariga atingissem o número três.

3. A terceira folha ao vento: a terceira singularidade

Toda trama tem um desfeche/desferir/disparo, todo mistério uma resolução; eis o


nosso último acorde para entender o conto, quando Macário, já de mãos dadas com a
rapariga passeia:

5
Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando
vagarosamente a mão pela cara. (...) - O senhor não pagou... (...) – Tens razão. Era
distração... Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, senhor,
evidentemente... (SALES, 1989, p.17):

Arrematamos escrevendo que as singularidades da rapariga loura são os três


roubos cometidos por ela, portanto ela é singular por ser uma ladra; uma belíssima e
fresca ladra. Na voz de Macário (SALES, 1989, p.19): “E chegando-se para ela disse: -
És uma ladra!” E realmente ela é única dentre tantas, pois única tão bela rapariga a
roubar.
Notamos que se trata de um Narrador Onisciente Intruso, Narrador em 3ª
pessoa. O discurso é indireto e o narrador desloca-se à vontade: para cima, para dentro,
para fora. Predominam as impressões, palavras, percepções do narrador: intrusões,
comentários, conceitos feitos por ele. Ele revela a mente da personagem, e distante,
porque só é apresentado o que o narrador seleciona.
Algumas circunstâncias tristes são lembradas com este conto; o ser humano a
roubar dos vizinhos, dos irmãos, dos outros, e a roubar de sim mesmo (a vida, a alegria,
a saúde). Duas lágrimas pelo desgosto existencial da natureza triste que nos cerca, da
poluição, da falta de água e do roubo de tudo isso.
No poço das três lágrimas, avistada a banalização da moral, das boas atitudes e a
impureza da rapariga, sua beleza superficial e a validez dessa mesma beleza em nossa
sociedade “contemporânea”. O fim; e a sensação do inacabado. Porque das folhas algo
pode ser lido, o restante apagou-se molhado das lágrimas.

REFERÊNCIAS

D’ONOFRIO, Salvatore. Elementos estruturais da narrativa. In:_____. Teoria do texto 1


– Prolegômenos da Teoria Narrativa. São Paulo : Ática, 1995, p. 53.

GANCHO. Cândida Vialres. Como Analisar Narrativas. São Paulo: Ática, 1991.

WEOR, Samael Aun. Tarot y Cábala: El Sendero Iniciático en los Arcanos. São
Paulo: Sol Nascente, 1996.

SALES, Herberto, Os melhores contos de Eça de Queirós. 3 ed. São Paulo: Global
Editoras, 1989.

XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. São Paulo: Ediouro,


2001.

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