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FAJE Departamento de Filosofia


Disciplina: Antropologia Filosófica II-Parte Sistemática
Professor: Carlos Roberto Drawin

Introdução: a problemática da Antropologia Filosófica

Contexto Intelectual

A Antropologia Filosófica considerada num sentido escolar como uma das


disciplinas do universo intelectual da Filosofia, pode ser concebida simplesmente
como herdeira da antiga Psychologia Rationalis, uma
disciplina que se propunha
como o estudo da alma humana ou da essência racional-inteligivel do Homem.
No entanto, podemos dizer que, muito distante dessa
serenidade "escolástica",
O nascimento contemporâneo da disciplina Antropologia Filosófica ocorreu no
contexto dramático de uma crise da civilização, e foi uma espécie de resposta
filosófica a esta crise que, até hoje, não cessou de recrudescer. A crise da
modernidade pode ser esquematicamente diagnosticada em dois níveis:

1o. No Nivel Prático: A dissolução das comunidades tradicionais e de sua


expressão simbólica nas antigas cosmovisões religiosas levou a uma profunda
transformação cultural. Assim, o homem da modernidade ou do que poderiamos
designar como "modernidade tardia", mergulhado na dispersão e no pluralismo
das sociedades contemporâneas, ter-se-ia tornado desprovido de uma auto-
imagem consistente. Enredado numa trama social cada vez mais complexa e
arrastado pelas contingências do individualismo, o ser humano teria sido lançado
numa grave desorientação moral. Tal diagnóstico levou muitos pensadores a
considerá-lo como ameaçado de perder-se num comportamento anômico e
numa consciência nilista. Esta seria, para eles, a crise ética da sociedade tardo-
moderna.

20. No Nível Teórico: A fragmentação do saber numa especializaçào


crescente, que se associou ao advento e êxito das "ciências da natureza" e das
"ciências humanas", levou muitos pensadores a um radical questionamento da
pretensão de fundamentação e totalidade da filosofia. Assim, a imagem unitaria
do "Homem" transformou-se em objeto formal de diversas disciplinas -como a
Etnologia, a Psicologia, a Sociologia, a Psicanálise, a Politologia, a Linguistica,
etc.-que irão abordá-lo segundo um método abstrato e analitico. Esta seria a
crise epistemológica da época tecnocientifica.

Em consequência, teriam emergido dois problemas cruciais ou dois tipos


de cisão que, no entanto, se entrelaçam intimamente: em primeiro lugar, no
registro da epistemologia, a cisão entre a compreensão espontânea que os seres
humanos possuem de sua unidade enquanto individuos empíricos e a
possibilidade de elevá-la ao plano rigoroso da formulação cientifica ou da
reflexao filosófica e, em segundo lugar, a cisão entre a objetividade metodológica
da racionalidade instrumental e a dimensão axiológica da ação moral. Em
sintese, segundo tal perspectiva, abriu-se um abismo entre a vida e o
pensamento e foi a consciência dessa problemática que alimentou, em grande
parte, o interesse contemporâneo pela reflexão ética e antropológica e a
protunda vinculação entre essas duas disciplinas filosóficas.
O projeto da Antropologia Filosófica:

Para alguns pensadores da primeira metade do século XX, seria


necessário criar uma nova disciplina, que seria justamente a Antropologia
Filosófica, ou seja, um tipo de saber capaz de enfrentar o grande desafio
intelectual imposto pela crise moderna da civilização ocidental. Tratar-se-ia de
uma "antropologia" como ciêência
integradora de amplo alcance filosófico, pois
após a "viragem antropocêntrica" operada pelo pensamento moderno, somente
uma "filosofia antropológica" poderia ocupar um lugar conceptual estratégico na
reconstrução do edificio filosófico. Nesse sentido, o questionamento radical da
Antropologia Filosófica, em sua pretensão de propor um discurso abrangente e
unitário sobre o ser humano atingiria não apenas uma disciplina ou área
especifica, mas o conjunto da visão tradicional da filosofia. Pode-se mesmo dizer
que a contestação de sua legitimidade reflete a tend ncia contemporånea de
impugnar uma concepção "forte" da Filosofia, seja enquanto saber sistemático,
seja enquanto saber fundante, seja enquanto saber capaz de apreender algum
tipo de inteligibilidade intrínseca ao real. Na verdade, para tai_ criticos da
de uma Antropologia Filosófica, tal idela
projeto não seria mais do que uma estratégia
para resgatar a "antiga" metafisica numa época que já teria ultrapassado o
pensamento metafisico ou seria apenas uma nova versão do humanismo
moderno e, em ambos os casos, seria mais uma forma de resistência ao avanço
do processo de modernização. Näo obstante, ainda que
possa parecer
paradoxal, é no âmbito da antropologia que convergem tais questionamentos
metafilosóficos.

Apesar disso, numa perspectiva sistemática, na medida em que se propõe


pensar o ser humano como devir e realização de um fim ou cumprimento de um
dever, dotados de valor e sentido a Antropologia Filosófica articula-se
intimamente com a Etica e se desdobra no domínio da razo prática e na medida
em que se propõe pensar o ser humano como expressão de uma essência ou
realização de uma existência, irredutivel ao conjunto dos outros entes, a
Antropologia Filosófica articula-se intimamente com a Metafisica e se insere no
dominio da razão teórica. Portanto, a Antropologia, a Etica e a Metafisica
poderiam ser consideradas, em sua intima articulação, como disciplinas ou áreas
estruturantes do sistema filosófico, como uma espécie de núcleo conceptual da
filosoffa, considerada em sentido torte", isto 6, enquanto saber de "primeira
ordem" e não apenas como um simples esforço de elucidação da ciência e outros
saberes, muito menos, como um conjunto de textos pertencentes, de alguma
forma, ao canone clássico da tradição filosófica e que deveriam ser submetidos,
por si mesmos, ao empenho do trabalho exegético.

Se, por um lado, essa concepção tradicional de filosofia foi submetida à


uma
intensa critica pelo pensamento contemporâneo, por outro, é preciso
reconhecer, que o campo da reflexão filosófica-antropológica, por sua funçãoo
mediadora, converteu-se num espaço privilegiado de interlocução "entre" e
"com" os diversos saberes sobre o "Homem'. Pois, se a presença das "Ciências
da Natureza" por seu
igor formal, por sua consistência metodológica e por seu
alcance técnico, motiva um permanente questionamento da ideia de uma
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Apesar de todas essas dificuldades a simples renúncia à busca de uma
ética filosófica ou, ao menos, de uma
elucidação filosófica dos problemas
envolvidos, não passaria de uma soluçäo fácil, uma atitude demissionária que,
sob a aparência da tolerância, mal oculta a
preguiça intelectual, com0dismo
individualista e o cinismo neoconservador. Ora,
o

se adote, creio
qualquer que seja a posição que
que seja possivel partirmos da ideia de que é na filosofia
que
podem ser encontrados os melhores recursos intelectuais
critica do pensamento ético. As ciências para a formação
podem contribuir muito, mas por
principio, näo podem abordar a base normativa que é o que caracteriza e
diferencia o saber ético dos outros saberes. Ainda
ao projeto de uma ética
que acabemos por renunciar
filosófica, é com os recursos da tradição filosófica que
esta opção poderia ser esclarecida e
assumida de modo mais ou menos
consisternte. Por isso mesmo, para muitos
pensadores, busca de uma
a
fundamentação filosófica da Ëtica seria inseparável da constituição de um saber
filosófico sobre o ser humano, a
acerca do "bem viver", do
Antropologia Filosófica, uma vez que a questä0
"fim", da "justiça" e do "dever" (Etica) não pode se
desvincular da questão acerca da vida
especificidade do "ser" a que o "bem", o "fim" propriamente humana ou da
ou o "dever" se referem
(Antropologia).
Horizonte ideal da Antropologia Filosófica

Pelas razões
expostas acima, ainda que de modo sumário, fica evidente
que Antropologia Filosófica, em seu sentido mais amplo, é atravessada por um
a

vigoroso impulso mediador e sistemático, o que a torna uma disciplina de grande


abrangência e complexidade. Nessa perspectiva a Antropologia - como a Etica
que a ela se articula de alguma forma - deveria ser estruturada idealmente em
três partes:

1a. Parte. A abordagem histórica: seria constituída pela exposição


rememorativa de alguns momentos constitutivos da autocompreensão reflexa do
"homem ocidental". No entanto, seria necessário fazer dois esclarecimentos. Em
primeiro lugar, o "ocidental" refere-se å tradição de um pensamento que se define
como filosófico, pois a Filosofia é, stricto
sensu, uma criação do ocidente. Em
segundo lugar, trata-se de uma "recordação interiorizada" (Erinnerung), que não
se pretende como uma
descrição exaustiva das diferentes concepções
antropológicas dos filósofos ocidentais, algo mais próprio ao registro da
historiografia filosófica, mas de um esforço de compreensão e reconstrução
filosóficas do pensamento antropológico à luz da problemática
contemporånea.
Haveria, portanto, um elemento reflexivo ou especulativo nesse projeto de
reapropriação do passado.

2a. Parte. A abordagem epistemológica: seria constituida pela


investigação das condições de possibilidade de um discurso filosófico unitário
sobre o "Homem" em confronto com os discursos especializados das diversas
ciências que abordam o fenômeno humano, não apenas as "Ciências Humanas,
mas também as "Ciências da Vida". Para que se evidenciem a possibilidade ea
necessidade desse registro filosófico é imprescindíivel estabelecer um dialogo
Constante com essas ciências e um
esforço permanente de incorporação de seus
aados, resultados e teorias. Ora, uma vez
estabelecida a possibilidade e a
necessidade da Antropologia Filosófica, ou seja, o seu estatuto
epistemológico
autonomo, dever-se-ia determinar a sua ordenação metodológica e a sua
estruturação interna. Do mesmo modo, a elucidação epistemológica visaria
mostrar que a Etica não apenas ultrapassa o dominio das ciências positivas, mas
Tambem exige algum tipo de justificação racional e não se reduz a um fenômeno
sociocultural historicamente contingente.

3a. Parte. A abordagem sistemática: seria constituida pelo programa de


desenvolver, a partir de uma adequada determinação metodológica, o sistema
categorial da Antropologia Filosófica em sua articulação interna e recíproca. O
ser humano, para além do plano de suas manifestações contingentes, seria
concebido, numa perspectiva ontológica, como um ser em sua diferença
especitica, porém, não apenas como um fenômeno que se distingue de outros
fenômenos, mas como uma essência, como uma realidade dotada de
inteligibilidade própria. Por outro lado, o ser do humano não se esgota na
definição de uma essência, mas possui um caráter existencial e a existência é
abertura, inacabamento e ilimitação. Essa especificidade do humano deve
traduzir-se num conjunto de categorias irredutiveis o corpo, o psiquismo, a
-

linguagem, a sociabilidade, a liberdade - que se articulam de um modo dinâmico


e unitário. Somente o estabelecimento desse sistema categorial pemitiria
construir um discurso suficientemente amplo e consistente capaz de apreender,
numa síntese dialética, a abertura transcendental e a unidade fundamental do
ser humano. No entanto, a realização de tal projeto exigiria o enfrentamento de
duas dificuldades que se vinculam: em primeiro lugar, a adoção de alguns
pressupostos como, por exemplo, a irredutibilidade da dimensão espiritual do
homem à sua dimensäão psiquica e desta ao corpo; e, em segundo lugar, a
superação das barreiras terminológicas, conceituaise teóricas entre as
diferentes disciplinas, num contínuo empenho de construção transdisciplinar.

E para um único individuo, aventurar-se num projeto de tão grande


impossivel,
amplitude. Para muitos, aliás, este projeto seria, de qualquer forma, inviável No
entanto, a Antropologia Filosófica, apreendida em toda sua abrangência e
tomada como referência fundamental para uma Etica filosófica, poderia ser
Proposta como um programa de pesquisa transdisciplinar e de longaduração.
Um programa que pudesse não apenas contribuir como um marco teórico e
Suscitar hipóteses a serem investigadas em campos especificos, mas tambem
atestar o valor heuristico do sistema categorial adotado e essa seria a
perspectiva ampla e de longo alcance de um programa de pesquisa orientado
por uma ideia regulativa. A antropologia filosófica proposta por Lima Vaz vai
nesta direção e a tomamos como nossa referência filosófica.

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