Você está na página 1de 4

Uma mente em ebulição em um caso a ser estudado

Certo dia me deparei com uma citação do escritor Nilton Mendonça “Quando a mente
estiver em ebulição medita, fica em silêncio, mas fica atento se cessaram as vozes do
interior”, a qual me fez relembrar um caso muito intrigante que me foi contado.
Revendo as estruturas psíquicas apresentadas pelo Dr. Sigmund Freud no fim do
século dezenove e início do século vinte, reporto-me em uma mente em ebulição
relatada por uma amiga há anos atrás. Com tantos percalços e acontecimentos reais,
subjetivos ou ilusórios, que nos sucedem desde o nascimento e durante toda nossa
infância e pré-adolescência, e como esses fatos nos marcam e nos levam a ter uma
vida pautada em comportamentos que podem nos tornar em seres normais ou
indivíduos com aberrações, neuroses e psicoses.
Que susto isso nos dá em pensarmos que fomos afetados de maneira significativa por
uma dessas estruturas psíquicas, neuroses, psicoses. Ou será que conseguimos passar
ilesos e de forma satisfatória pelas fases do desenvolvimento psicossexual propostas
por Freud?
As tais fases oral, anal, fálica, latência e genital parecem que ao estudá-las nos
deparamos com tantos problemas que essas fases podem nos causar, que talvez seria
melhor ignorá-las, poupando, assim, nossa pobre psique da descoberta de suas
mazelas.
Voltando ao caso que mencionei e me foi contado por uma amiga, a qual estou dando
o codinome de Kim, percebo que o seu problema poderia ser enquadrado, segundo as
fases de Freud, em regressão à fase oral, onde um trauma nesta ocasião pode gerar
um futuro adulto compulsivo, desamparado ou com baixa tolerância à frustração. No
caso da Kim foi desenvolvido a compulsão alimentar e o desamparo. Ela me relatava
que tinha sempre de estar com alguma coisa à boca: comida, mordendo tampas de
canetas ou algum outro objeto, o que é comum na regressão da fase oral. Embora não
sendo psiquiatra, psicanalista ou qualquer outra coisa afim, quando entrei em contato
com a teoria do Dr. Freud isso me veio à mente.
Kim contava que sua mãe dizia que ela havia sido alimentada com mamadeiras desde
o seu nascimento e só aquietava com chupetas, que aliás usou por muito tempo
durante sua infância. Será que esse fato contribuiu para um trauma na fase oral? Ou
como citou Green (1980) “O complexo da mãe morta”, não que a mãe tenha morrido,
mas onde há um desinteresse, um certo abandono da mãe pelo bebê, talvez por
problemas relativos a ela mesma, e assim ocasionando à Kim a fixação na fase oral, e o
seu futuro comportamento de compulsão e desamparo? Ou algum outro fato mais
traumático tenha contribuído para isso? Além disso, Kim me contou que, desde muito
pequena, sentia um distanciamento por parte de sua mãe, principalmente no que
tangesse ao toque como beijos e abraços. Parece que sua mãe era muito econômica
em matéria de expressar sentimentos. Kim era provida em suas necessidades básicas,
mas não nas suas necessidades emocionais.
Outro fato ocorrido na sua infância me deixou, posso dizer, um pouco perturbada.
Kim, então, com cinco anos cursava o jardim da infância. No fim do ano, a professora
iria fazer a formatura dos alunos que passariam para o primeiro ano, mas as crianças
com idade menor que seis anos deveriam refazer o jardim. Esse era o caso de Kim,
mas ela, não sei porque (isso suas palavras), não deu o recado para sua mãe. Ao
contrário, disse que ia se formar. Relatou-me que sentia ser sua culpa não passar para
o primeiro ano.
Sua mãe começou a fazer sua roupa para a ocasião. Kim observava e não conseguia
dizer a verdade. Segundo ela, o medo começou a se tornar em pânico com a chegada
do dia da formatura. Com esse relato de minha amiga, fiquei muito preocupada,
porque Kim não conseguia se desvencilhar daquela situação.
Aqui podemos perceber o despreparo dessa professora em conferir tal recado a uma
menininha de cinco anos e a ausência dessa mãe em não questionar na escola o que
realmente iria acontecer, deixando a pobre criança com o ônus dessa situação.
Como uma criança tão pequena podia se sentir dessa forma, com tanto sentimento
de culpa, tanto medo de sua própria mãe, sendo que nunca tinha sofrido agressões
físicas da mãe?
Na época, incentivei Kim a procurar um psicanalista, um psicólogo ou um psiquiatra,
alguém que, de alguma forma, pudesse ajudá-la. Ela então se consultou com um
psicólogo que também era hipnoterapeuta.
Em uma das sessões de hipnose, Kim se viu em uma cena do aniversário de seu pai, na
época com 3 ou 4 anos. Sua mãe havia feito um bolo e ela e seus irmãos estavam
esperando seu pai. Mas seu pai não chegou, só vindo de madrugada. Sua mãe, para
castigá-lo, não cortou o bolo e as crianças foram dormir sem comê-lo, muito
desapontadas. Neste relato podemos perceber a pouca atenção dada pela mãe de Kim
aos sentimentos das crianças.
O psicólogo chegou à conclusão que o fato relatado por Kim deve ter sido a causa da
compulsão alimentar, uma fixação às fases oral e anal e com uma consequente
regressão, causando esse comportamento compulsivo.
Mas como explicar o sentimento de culpa em uma criança com tão tenra idade, a levá-
la a omitir o fato ocorrido no jardim da infância?
Voltando às fases do desenvolvimento psicossexual de Freud, vemos que na fase oral
a boca recebe o investimento libidinal, onde a zona erógena é a boca, ocorrendo uma
identificação e incorporação do bebê ao meio externo e, entre outros ganhos, está a
saciedade da fome e a proteção. Um trauma nesta fase resultaria em uma fixação
nesta fase e uma regressão, podendo causar na vida adulta, como já mencionei, vários
transtornos, como compulsão e sensação de desamparo. Há de se pensar: qual teria
sido o trauma ocorrido nesta fase na vida de Kim e que ainda era o motivo de
tamanho sofrimento? Como ela poderia ser ajudada?
Kim acabou por abandonar o tratamento psicológico e seguiu com sua vida. Contava-
me, com certo desespero que me deixava muito penalizada, que tinha um sentimento
de não pertencimento no mundo, que sempre alguém iria culpá-la por algum motivo,
e, por vezes, qualquer barulho a assustava. Dizia que sua mente vez ou outra
fervilhava como se estivesse em ebulição pronta para explodir e que mesmo
meditando, as vozes não cessavam.
A lembrança desses relatos, até hoje, depois de passado tanto tempo, me faz pensar
que seria um caso a ser estudado e, quem sabe, se resolvido, aliviar a carga de
angústia vivenciada por Kim.

Você também pode gostar