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Seminário Autismo e Psicose Infantil – da clínica à política e retorno

Coordenação : Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP)

Data : 10 de julho de 2021

Extrair a voz
Carolina Koretzky (ECF/AMP)
Da metáfora paterna à introdução do gozo

Nos anos 50, Lacan pensou a estrutura familiar a partir do matema da metáfora paterna.
Remeto aos desenvolvimentos de Lacan no Seminário V, capítulo IX, onde ele mostrará as
dificuldades com as quais nos confrontamos quando tratamos de pensar o Édipo a partir dos
elementos da realidade. Na época, falava-se muito da carência paterna e das possíveis
consequências psíquicas para a criança devido a presença ou a ausência do pai. Pensar no Édipo
em termos de estrutura e significantes já nos permite distanciarmo-nos das narrativas familiares
e das contradições que delas decorrem. Estas contradições resultam desta tentativa de definir a
neurose a partir do pai da realidade: o pai submisso, o pai aleijado, o pai cego, o pai fraco ou
terrível, etc.

A metáfora paterna consiste essencialmente numa operação de substituição tendo como


correlato o desaparecimento de um dos termos que compõem a metáfora. Para esclarecer: o
significante do Nome do Pai 1 (pai é reduzido a um nome) subtitui o desejo da mãe (a mãe é
um desejo), e esse desejo é reduzido a apenas um X (chich) A introdução do NP tem como
consequência o fato de que o desejo da mãe é um enigma para o sujeito. Este último não tem a
resposta sobre o que ela deseja, porém um enigma que lhe permitirá a se colocar a questão
inerente o desejo: o que quer o Outro? Como ele me quer? O significado das idas e vindas da
mãe é o falo.

No primeiro ensino de Lacan, a família é pensada a partir desta estrutura eminentemente


simbólica. Contudo se lermos o que Lacan dirá dez anos depois a perspectiva será outra, ele
escreverá um texto publicado nos “Outros Escritos” sob o título “Alocução sobre psicoses da
criança” no quadro das Jornadas de 1967, organizados por Maud Mannoni, sobre esse mesmo

1
Nome do Pai será referido como NP no restante do texto.
tema. Lacan concluirá salientando que durante estes dois dias de apresentações por parte dos
maiores especialistas em psicanálise da criança, ninguém tinha jamais pronunciado a palavra
“gozo”. Assim, destacará um esquecimento fundamental: entre pais e filhos embora se trate do
ideal, da circulação de desejos, do falo, mas se trata igualmente duma questão de gozo. Não
estamos unicamente do lado do significante, mas também do lado do objeto. A criança, um
pequeno ser que ocupa naturalmente o lugar do objeto, pode encarnar na sua subjetividade um
objeto de satisfação para o Outro.
A criança ocupa sempre o lugar do objeto para a mãe. Vocês se lembram provavelmente
do excelente trabalho do grande psiquiatra e psicanalista René Spitz, que estudou os sintomas
do hospitalismo e a quem devemos a descrição do quadro da depressão anaclítica observada em
bebês lactentes que mesmo tendo recebido cuidados, ainda assim sofreram de uma deficiência
afetiva grave. A criança está sempre na posição de objeto para a mãe, desde o início é o objeto
dos seus cuidados, da sua fala, para o melhor ou para o pior. O problema nunca é ser o objeto
da mãe, mas sim qual o tipo de objeto e como ele se separará ? Lacan salientará que a questão
não é que ele seja o objeto, mas que ele seja um objeto condensador de gozo para o Outro, que
ele venha encarnar um objeto de satisfação que por vezes faça com que o Outro se agarre à sua
existência. Destaca também que essa separação é difícil de operar quando nao ha uma mediação.

Caso Clínico Omar

Escolhi falar sobre um caso clínico que me ensinou muito sobre esta última perspectiva
e sobre a importância fundamental de trabalhar com a mãe quando a criança ocupa este lugar

Omar foi um dos meus pacientes mais novos, tinha dois anos e meio quando a sua mãe
o trouxe (trousse) a uma consulta. Foram encaminhados por um departamento hospitalar onde
Omar tinha sido visto apenas uma vez. A pessoa que o encaminhou para mim disse que era uma
criança autista. Porquê? Porque ele era mudo e portanto autista (Erro! Há crianças autistas que
falam e crianças mudas que não são autistas, como neste caso). A mãe está muito preocupada
com o fato de o seu filho não falar.
Durante a primeira entrevista, a mãe explicou que tinha acabado de sair de casa após a
separação do pai dos filhos. Foi ela que partiu com Omar e a sua irmã mais nova, sem residencia
fixa, vagou de um lugar para outro: algumas noites durmiu em hotéis, outras na casa da sua mãe
ou das suas irmãs e até mesmo na casa de amigos.
Depois de algum tempo, ela já não suportava a vida com o seu companheiro. Ela diz que
a separação ocorreu após um acidente de motocicleta, e que o pai de Omar acabou por comprar
uma nova motocicleta com o reembolso do seguro. Para ela, isto foi inadmissível, "ele estava
casado com a sua motocicleta". Veja só, esta foi a explicação que ela se/nos deu sobre o motivo
que a levou a deixar a casa.
Fico sozinha com Omar. Logo ele pega dois personagens, um homem e uma mulher, faz
com que se beijem, depois separa-os e conduz um carro entre eles. Eu lhe disse que ele tinha
compreendido completamente o que a sua mãe tinha acabado de me contar.
Esse estilo de vida errante que ela impôs a seus filhos, é algo que ela mesma
experimentou quando era muito jovem, pois para a sua própria mãe era impossível viver com a
sua filha. Quando era pequenina, a mãe de Omar foi enviada para viver com as suas tias no
estrangeiro, e depois passou por várias casas e famílias de acolhimento. Na altura em que a
recebi no consultório com Omar, ela estava envolvida na grande reinvindicação: apresentar-se
todos os dias na prefeitura do seu município com os seus dois filhos e lá permanecer imóvel até
ser recebida pelo prefeito; ela queria, exigia e lutava para obter uma habitação social. Estarei
muito presente com ela durante toda a sua busca e pedirei todas as semanas que ela me informe
sobre o seu progresso, pois considero que esta vida errante deva parar.
Omar vem às sessões sem nenhum problema. Ele vai desenrolar e diversificar este
"carro" inicial construindo circuitos cada vez mais complexos e incluindo outros meios de
transporte. Descarto muito rapidamente o diagnóstico de autismo pois ele apresenta certamente
um sintoma de mutismo, mas, de modo algum rejeita o Outro, ele sempre esteve muito presente
através do seu olhar em cada uma das minhas intervenções.
Receber a sua mãe diariamente criou uma ligação transferencial que permitiu esta
mulher a me confiar o seu filho. Por vezes eu saia com Omar.
Ela apressava-se a perguntar: "O que é que ele fez? Ele disse alguma coisa? ".
Eu respondia: "Mas como a senhora é curiosa! "Quer estar em todos os lugares! ".
Ao que ela replicava: "Oh sim, eu vou descobrir tudo!
E eu respondia: “Não sou eu que vai contraria-la”
E riamos juntas.

Uma sessão foi crucial e ocorreu um pouco antes das férias de Verão. Eu acompanho
Omar para encontrar sua mãe para irem embora. A mãe tenta fazer que o seu filho me diga
"tchau".
Ela insiste muito: "Diga adeus à senhora, diga adeus, diga adeus ".
Omar vira-se, olha para a sua mãe e diz: “NÃO !!!!”
Eu fiquei muito surpresa disse a ele: "E genial Omar! Finalmente você o disse!”

Não vi Omar por dois meses devido às férias de verão2. No retorno das férias, fui buscá-
lo na sala de espera.
Disse o meu habitual: "Bom dia".
Omar respondeu: "Bom dia senhora".
Pela primeira vez, ouço a voz dessa criança.
A mãe dele olhou para mim com um grande sorriso: "Ouviu isto? Ele fala! "

O que aconteceu? É difícil responder com certeza, certamente a nossa última sessão
antes das férias foi crucial, e ainda a família finalmente conseguiu um alojamento, a errancia
cessou. O objeto-criança arrastado de um lugar para outro finalmente encontrou um lugar fixo.
Omar começou subitamente a falar. Ele não passou pelas fases habituais de aprendizagem da
língua articulada: sílabas dobradas (dada, dodo, baba, etc.) ou os pequenos fonemas, não. Omar
já sabia falar, ele estava na língua. Ele pode, a um determinado momento, dar voz ao seu
discurso.
"A voz como objeto pulsional não é a sonoridade do discurso, mas aquilo que carrega a
presença do sujeito no seu dizer" (Maleval J.C. “O autista e sua voz.” Editora: Blucher. 2017)
No entanto, para Omar ainda resta um sintoma em sua pronúncia, ele fala apretando o
maxilar e serrando os dentes. Quanto à sua mãe, ela lutou por um apartamento e conseguiu-o
(u), o seu filho fala e acaba de entrar na escola. Tudo indicaria que ela finalmente estaria bem,
mas não, tudo passou a correr mal para esta mulher lutadora. Ela apresentou alguns problemas
de saúde, uma perda de peso notável e um quadro depressivo.
A mulher com a voz incessante já não podia fazer funcionar o circuito pulsional criado
até então, ela já não tinha mais que gritar pela injustiça do mundo e assim fazer ouvir a sua voz
incessante diante do prefeito, também já não tinha como fazer falar esta voz incessante que o
mutismo do filho lhe permitiu produzir. (c.f.: "diga adeus, diga adeus, etc.").
A criança se move deste lugar, cede algo de seu próprio gozo ao encarnar o objeto-voz
da mãe (objeto como causa). No entanto, o Outro materno começa a dar errado. Era
absolutamente necessário trabalhar com esta mulher para que uma solução duradoura pudesse
se inscrever.

2
Na França as férias de Verão têm duração de 2 meses, Julho e Agosto.
No momento em que seus filhos passaram ir para a escola, ela começou planejar a
obtenção de um diploma para poder trabalhar nos centros de lazer. Eu encorajei muito esta
iniciativa. Decidi receber essa mulher semanalmente em sessões individuais. Foi então que
percebi que desde algum tempo ela havia encontrado um hobby, ela escreve, mas não escreve
qualquer coisa, ela escreve “slams”. Nos finais de semana, quando o pai pega as crianças, ela
corre para os cafés onde os jovens se encontram para "fazer slam", ou seja, para recitar estes
poemas urbanos, sao poésias faladas. Ela está visivelmente melhor, eu lhe peço os poemas, ela
os traz para uma sessão; ela é de fato muito talentosa. Conseguiu conciliar seu novo trabalho e
sua nova paixão, ela irá animar oficinas de “slam” para crianças no centro de lazer onde
trabalha. Ela encontrou sua incessante VOZ separada do corpo da criança que anterioremente
encarnava.

Este caso ensinou-me muita coisa. Pude compreender porque é que Lacan nos convida
a pensar a clínica não a partir da premissa da criança tomada apenas como um ideal, mas a partir
da premissa da criança tomada na circulação de objeto de gozo, seu e dos seus pais. Nós estamos
diante de um sintoma que, como diz Lacan, não vem como representante da verdade do casal
parental, mas vem diretamente da subjetividade da mãe. A criança revelará encarnando o objeto
verdadeiramente, realizando-o em seu próprio corpo. Foi assim que consegui compreender
porque é que Lacan diz que: "[...] Ela (a criança) se torna o “objeto” da mãe e não mais tem
outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. A criança realiza a presença do que
Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia.”3 Ele é assim um "condensador para o
gozo"4. A criança serve, como visto neste caso, como um suporte próprio que permite à mãe
barrar todo o acesso à sua própria verdade. O problema para Omar é que quando ele deslizou
desta posição, foi necessário trabalhar com a mãe para a qual não havia mais um lugar de
encarnação de sua verdade, lugar esse que ela não podia de forma alguma subjetivar.

O desejo do analista no trabalho com os pais.

Diferentemente da clínica psicanalítica com um sujeito adulto, a criança é trazida por


um Outro perturbado pelo que é sintomático nesta criança. No próprio tratamento, e ao contrário
do adulto, a criança não pode concluir um dito por um ato. O que isso significa? Como A.

3
Jacques Lacan, “Nota sobre a criança”, Outros escritos, Zahar, 2003, p. 370.
4
Jacques Lacan, “Alocução sobre a psicose da criança”, Outros escritos, Zahar, 2003, p. 366.
Stevens tão corretamente assinalou 5: a criança não pode decidir separar-se de seus pais como
se separa de um cônjuge. Daí a necessidade, em certos casos, de trabalhar com os pais.
Penso que, neste ponto, a questão do desejo do analista é fundamental. É muito
importante poder distinguir onde e como o analista exerce seu desejo; não se trata de corrigir
os “defeitos” do pai ou da mãe. De modo algum a posição do analista é a de corrigir “defeitos”,
mas sim a de interrogar os fundamentos dos sintomas. Quando a escuta analítica dos pais é feita
em termos de "defeitos" ou "qualidades", o ideal toma o lugar da escuta singular. Denunciar a
inadequação dos pais confina a criança ao lugar de objeto, porque ao fazer existir um ideal,
confrontamos a criança com a ferocidade que este mesmo ideal engendra.
E. Laurent disse em um artigo publicado em La Cause freudienne n°65 que "A posição
psicanalítica consiste em manter o sujeito à distância do ideal e em questionar o real em jogo
no nascimento da criança, ou seja, o desejo ou o gozo do qual ele é o produto" 6. Foi o próprio
Lacan que, em 1964, durante o Seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, lembrou que " ao se distinguir da hipnose que a análise se instituiu "pois " a mola
fundamental da operação analítica é a manutenção da distância entre o I e o a "7. O analista não
se identifica com o lugar do Ideal onde ele é esperado (porque ele é procurado como sujeto
suposto saber, mas, faz emergir em sua operação o objeto da pulsão.
Olhemos novamente para o pequeno Omar e seu "não". Mas este "não" seria dirigido à
mãe? Podemos pensar que é também um "não" relativo o objeto- voz que ele estava destinado
a encarnar? Minha ideia é que Omar não conseguiria fazê-lo sozinho. Pois ele precisava saber
que um analista estaria lá para evitar uma descompensaçao da mãe no momento em que ele
pudesse se permitir tal separação com o objeto que a fazia se aguentar.

5
Tradução livre do texto em francês de: Alexandre Stevens, « Ce qui s’oppose à la psychanalyse des enfants » in
Quarto, n°39, mai 1990.
6
Tradução livre do original em francês: Ibid., p. 52.
7
Jacques Lacan, O seminário, Livro XI, « Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise», ZAHAR, 1985, p.
258.

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