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A FORMAÇÃO DO ATOR: UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA A PARTIR DO

PENSAMENTO DE NIETZSCHE

Diante da idéia moderna de método na formação de atores, contrapomos uma


reflexão filosófica a partir do pensamento nietzscheano.
Nossa questão: como se forma o bom ator no pensamento de Nietzsche?

Exercitar a fabulação, a decisão, a apropriação, a compreensão, a atribuição de


sentido e relações de sentido e, ao mesmo tempo, o não ser, o não saber, o esvaziar-se, o
colocar-se no lugar do outro, o experimentar esse lugar no corpo, enfim, o lançar-se no
espaço vazio da falta e das demandas do
próprio jogo cênico, são modos de se pensar essa dupla essência do trabalho
imaginativo do ator em busca do tornar-se outro, ou seja, a personagem.
Este trabalho tem como um dos objetivos centrais de análise realizar uma
reflexão acerca da idéia moderna de método, presente na formação de atores. A partir
dessa noção, o estudo divide-se em dois eixos temáticos de investigação.

A primeira parte, procura romper com a ficção inerente ao método moderno, sob
as críticas de um pensamento nietzscheano, mais precisamente na análise de seus
pressupostos: sujeito, objeto, e realidade.
No consagrado modelo russo de capacitação e estudo (Stanislawki), o ator é tido como
sujeito do conhecimento, e sua personagem, o seu objeto, o qual deve se adaptar às
formas subjetivas, a priori da relação, numa realidade também pré-concebida como
dada e efetivamente existente em si mesma.
Nesse primeiro momento do trabalho, temos o objetivo de "desmascarar", ou fazer a
crítica, da idéia de método difundida pela modernidade na formação de atores, através
de seus pressupostos de uma “teoria do conhecimento em geral”. Para isso nos
apoiaremos em passagens do livro “Além do Bem e do Mal” de Nietzsche, como por
exemplo:

“Por que não poderia o mundo que nos concerne – ser uma ficção? E a
quem faz a pergunta: ‘mas a ficção não requer um autor?’ – não se
poderia replicar: Por quê? Esse ‘requer’ não pertenceria também à
ficção? Não é permitido usar de alguma ironia em relação ao sujeito,
como em relação ao predicado e objeto? O filósofo não poderia se erguer
acima da credulidade na gramática?(...)”1.
A partir daí, tentaremos traçar os aspectos relevantes suscitados por um
pensamento que põe em cheque toda compreensão mais comum que se possa ter da
percepção moderna da realidade das coisas e suas relações, sua concepção usual da
relação entre causa e efeito: “como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto
puro e nu, como ‘coisa em si’, e nem de parte do sujeito nem de parte do objeto
ocorresse uma falsificação.”2

Se o método moderno não explica suficientemente a formação do ator, e, no


entanto, o bom ator  existe, então cabe a questão: como é que ele  se forma?
Numa segunda parte, pretendemos mostrar fenomenologicamente, entendendo a
concepção de perspectiva de Nietzsche como jogo de aparecimento, as relações de
formação do ator na lida mais imediata do seu trabalho: a criação do personagem e a
atuação – tendo em vista as concepções e reflexões de Nietzsche em sua crítica à
estrutura “sujeito-objeto” e suas considerações sobre a atividade artística.
Atuação é interpretação, gerar de perspectiva, que se dá já no criar deste aspecto
na personagem. Ou seja, é a partir da sua relação com a criação do papel, que o ator, em
seu vir a ser, faz-se como um outro - “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de
si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro
de vós.”3. Por isso é preciso investigar esse devir, esse vir a ser e tornar-se do ator que,
ao vir a ser ator, realizando-se, torna-se outro, personagem. Esse devir criador de nova
perspectiva é também superação. É o apropriar-se daquilo que é e transformá-lo:
“Devir como inventar, querer, negar a si mesmo, superar a si mesmo:
nenhum sujeito, mas sim um criador fazer e estabelecer, ‘causas e
efeitos’ nenhuns.
Arte como vontade de superação do devir, como ‘eternizar’(...)” 4.
Mas isso que se transforma no ator é um “caos”, é um corpo pleno de pulsões
que se configuram enquanto perspectivas. Diante desse caos faz-se o bom artista,
realiza-se o bom ator na superação de si para o advir de um outro:
“O que o artista trágico comunica de si? Não é precisamente o estado sem
medo diante do temível e problemático que ele mostra? – Este estado
mesmo é uma alta desejabilidade; quem o conhece, honra-o com as mais

1
Nietzsche, F. W.. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, Além do Bem e do Mal, aforismo 34, pág. 41-42.
2
Ibidem. aforismo 16, pág. 21-22.
3
Idem. Assim Falou Zaratustra, In: _____. Prólogo, 5, p. 41.
4
Nietzsche, F.. A Vontade de Poder, n. 617.
altas honras. Ele o comunica, tem de comunicá-lo, pressuposto que é um
artista, um gênio da comunicação. (...)”5.
Esse artista da superação é pensado por Nietzsche sempre como um artista
trágico, que diante de um caos da própria existência busca eternizar sua criação. O ator
trágico seria aquele que reuniria todos os seus instintos e impulsos mais íntimos e os
configuraria no seu papel e interpretação, geração de perspectiva: “Abrem-se aqui,
diante de mim, todas as palavras e o escrínio de palavras do ser: todo o ser quer
tornar-se, aqui, palavra, todo o devir quer que eu lhe ensine a falar.” 6. Nesse gerar
ele percebe a si mesmo diluído na existência do mundo e fazendo parte de seu próprio
devir ao criar. O acontecimento da encenação é então vir-a-ser de todos os impulsos de
configuração da vida no corpo do ator. Por isso devemos investigar, para elucidar a
relação do ator com a existência, além de discursos como: “Do superar a si mesmo” e
“Do caminho do criador” do livro “Assim Falou Zaratustra”, algumas passagens como
a que se segue de “O Nascimento da Tragédia”:
“Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se
funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito
da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se,
miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de
revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo
sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador.”7.

5
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, §24.
6
Idem, Assim Falou Zaratustra, In: _____. Terceira parte, O Regresso. p. 221.
7
Idem, O Nascimento da Tragédia, §5, pág. 48.

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