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Pessoas/personagens: a construção da personagem no complexo

universo dos muitos eus e tantos outros

Annie Piagetti Müller1

1 Introdução

Se viver é uma peregrinação pela nossa própria identidade, escrever seria uma jornada, de
extrema resiliência, pela compreensão do viver. O primeiro, matéria do segundo. Os dois, partes
coexistentes, assim como o seu protagonista: um só, o ser-humano. O presente ensaio é parte da
pesquisa para a dissertação de Mestrado em Escrita Criativa da PUCRS. O seu desafio é explorar a
construção da personagem ficcional no contexto contemporâneo e levanta questões acerca de
identidade, que se apresenta cada vez mais plural nos dias de hoje, e de alteridade, através do
exercício da empatia, do entendimento do próximo.
Junto à discussão sobre como retratar os diferentes eus (do autor, da personagem, das
pessoas) está a reflexão sobre as novas formas de contar a saga do herói, formas de linguagem que
acompanham o estado de fragmentação das pessoas/personagens. Dentro disso, conteúdo e forma
nascem interligados, complementares, contribuindo mutuamente para a contação da história.
História, esta, que levará o tradicional nome de romance, mas cuja estética seguirá uma linha menos
linear e mais inventiva, ou, pelo menos, moderna, no sentido de atual. Exemplo disso é que a
narrativa será contada em pequenos parágrafos ao invés de longos capítulos, e não necessariamente
numa ordem cronológica, acompanhando o fluxo de pensamento do personagem, confuso nas
próprias indagações a respeito da sua jornada.
Em paralelo, ocorrerá a análise das tentativas da presente autora, como ser desvendante (o
ser que cita Jean-Paul Sartre em “Que é literatura”), de desvendar os caminhos para a elaboração do
complexo mundo interior do seu ou dos seus protagonistas. A saga da escritora, por sua vez, ocorre
por meio da exploração das suas referências, fruto da bagagem que leva enquanto pessoa, e das
observações atentas do ser-humano, enquanto artista. Ser-humano, este, o objeto central do estudo.

1 Mestranda em Escrita Criativa, PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: annie.muller@acad.pucrs.br.

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Para tanto, conteúdos provenientes das disciplinas da filosofia e da psicologia serão fundamentais
para guiar a obra de ficção e a abordagem teórica da mesma.
Neste ensaio, no entanto, concentro o estudo da personagem, escolhido pela autora como o
ponto de partida para a elaboração do romance.

2 Pessoa/personagem

Sabe-se que a personagem é parte essencial da construção de uma narrativa. Neste trabalho,
portanto, busco entender a sua formação e como ela é fundamentalmente humana. No livro A
personagem de ficção, Candido (p. 28) explica a importância do objeto anterior à criação, o próprio
homem: “o homem, afinal, só pelo homem se interessa e só com ele pode identificar-se realmente”.
Enquanto leitora, antes mesmo de escritora, entendo que as leituras pelas quais mais me
apaixono, aquelas que mais me provocam, são fundamentadas nos valores, nas nuances do
comportamento do homem. Carl Gustav Jung, o psiquiatra, foi o primeiro a designar a existência de
arquétipos, a elencá-los como tipos existentes em todo lugar, a qualquer tempo. No estudo de Jung,
existiriam valores, fatores-chaves comuns na formação da identidade dos homens. Nos dias de hoje,
dias em que se estuda a fragmentação do sujeito como ente único, imutável, contesta-se a conclusão
de Jung. Para o meu projeto de dissertação, que deverá abordar a construção da identidade de
personagens, serão revistos com atenção tais estudos, os antigos e os novos, da psicologia e
filosofia, sobre identidade. Passemos a nos deter na construção de personagem e na sua correlação
com o humano. Diz Candido (p. 21): “É geralmente com o surgimento de um ser humano que se
declara o caráter fictício (ou não fictício) do texto (...)”. A afirmação é clara: o homem é objeto da
criação literária. Ele continua, reforçando tal ideia, que é uma ideia introdutória à construção da
personagem (p. 21): “É a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a
camada imaginária se adensa e se cristaliza”. É, de fato, com a personagem que nos aproximamos
dos textos, que nos deixamos envolver, provocar, transportar para a história narrada. A ficção que
fascina é a ficção que envolve e a personagem é um dos primeiros fatores para a causa de tal
envolvimento, junto com a trama, quase indissociável, praticamente dependente da presença da
personagem. “Assim, a personagem de um romance é sempre uma configuração esquemática, tanto

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no sentido físico como psíquico, embora seja projetada como um indivíduo ‘real’, totalmente
determinado”. (CANDIDO, 1970, p. 33)
Ao longo do seu escrito, Candido preocupa-se em definir a importância da personagem. Em
uma de suas frases mais relevantes, resume: “em todas as artes literárias e nas que exprimem,
narram ou representam um estado ou estória, a personagem realmente constitui a ficção”
(CANDIDO, 1970, p. 31). Não concebemos pensar em obras como Orgulho e preconceito, de
Austen, ou Crime e castigo, de Dostoievski, sem pensar suas personagens. Historicamente,
precisamos delas. Historicamente elas nos atraem e revelam-se prioridade nas narrativas que
integram. Tentemos entender sua lógica em relação ao objeto humano que a compõe, conforme
aponta o autor:

A personagem é um ser fictício – expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode
uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa
sobre esse paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta
possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunicar
a impressão da mais lídima verdade existencial. (...) O romance se baseia, antes de mais
nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da
personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 1970, p. 55)

A lógica da personagem, se houver, talvez more neste espaço vazio entre o ser-humano e o
ser-criado, na tentativa de entender ambos, ou de entender a sua correlação. Vejamos outro trecho
de Candido quando se refere à verossimilhança de Aristóteles como forma de conceituar claramente
o termo:

A verossimilhança é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu,


mas àquilo que poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo
imaginário das personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda – de ordem
filosófica, psicológica ou sociológica – da realidade. (CANDIDO, 1970, p. 18)

O personagem é, então, aquilo que poderia ter acontecido, o homem que poderia se tornar
aquele que é2 de fato, ou que gostaríamos, nós, seus criadores, e nós, seus leitores, que nós mesmos
nos tornássemos.
Gosto de pensar a personagem enquanto aquilo que mora no meio entre o ser real e o ser

2O homem de Nietzsche sob os dizeres eternizados “conhece-te a ti mesmo e torna-te quem tu és”. A jornada da
personagem é, portanto, a jornada programada de um ser-humano que, enquanto tal.

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idealizado. O estado de se estar no meio explica, também, as suas diferenças, sobre as quais o autor
discorre: “Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir
certa unidade à sua diversificação social, à sucessão de seus modos de ser. No romance, o escritor
estabelece algo mais coeso, que é a lógica da personagem.” (CANDIDO, 1970, p. 58s.)
A lógica da personagem à qual Candido se refere trata, justamente, do fato de a personagem
não ser um produto pronto, ou um ser natural, este ser de Sartre 3. Ao contrário, ela consiste da
criação, da imaginação, da produção literária que possui um sentido anterior à sua existência, pois
foi criada com uma intenção, formatada para parecer como tal aos olhos de seu criador. Explica
Candido:

As personagens reais, assim como os objetos reais, são totalmente determinados,


apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma infinidade de predicados, dos
quais somente alguns podem ser “colhidos” e “retirados” por meio de operações
cognoscitivas especiais. Tais operações são sempre finitas, não podendo por isso nunca
esgotar a multiplicidade infinita das determinações do ser real, individual, que é “inefável”.
Isso se refere naturalmente em particular a seres humanos, seres psicofísicos, seres
espirituais, que se desenvolvem e atuam. A nossa visão da realidade em geral, e em
particular dos seres humanos individuais, é extremamente fragmentária e limitada.
(CANDIDO, 1970, p. 32)

A lógica da personagem consistiria, assim, em ser estruturada de forma mais complexa do


que o próprio homem, enquanto é pensada em cada detalhe durante a sua elaboração. A personagem
contemplaria um número maior de aspectos sutis, de aspectos identitários, compondo como
consequência um mosaico mais completo de comportamentos humanos, como representante do
homem. “A força das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua
complexidade é o máximo (...). Daí podemos dizer que a personagem é mais lógica, embora não
mais simples, do que o ser vivo” (CANDIDO, 1970, p. 59). É por meio da leitura de sua forma
complexa, talvez até amorfa, pelo menos até o leitor se identificar com ela ou identificá-la enquanto
algo potencialmente real, mesmo que na prática isso não lhe seja possível.

Antes de tudo, porém, a ficção é o único lugar – em termos epistemológicos – em que os


seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, por se tratar de seres puramente
intencionais sem referência a seres autônomos; de seres totalmente projetados por orações.

3Jean-Paul Sartre, na sua teoria flosófca do existencialismo, entende que a natureza, a existência do homem enquanto
tal, precede a sua essência, ou seja, ele primeiro existe, depois signifca algo além do que se apresenta.

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E isso a tal ponto que os autores, levando a ficção ficcionalmente às suas últimas
consequências, refazem o mistério do ser humano, através da apresentação de aspectos que
produzem certa opalização e iridescência, e reconstituem, em certa medida, a opacidade da
pessoa real. (CANDIDO, 1970, p. 35)

A construção da personagem pode ser vista de forma plural e complexa a partir da leitura de
Candido e da relação com leituras filosóficas de Sartre e psicológicas de Jung (uma relação aqui
feita de maneira muito resumida, experimental). Tem outra passagem muito importante no texto de
Candido (p. 34) sobre essa elaboração: “as personagens adquirem um cunho definido e definitivo
que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio com elas, dificilmente nos pode
proporcionar a tal ponto”.

A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e


contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna
transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro,
vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo
e de objetivar a própria situação. (CANDIDO, 1970, p. 48)

Neste último parágrafo, conseguimos entender o quanto a personagem de ficção se torna um


meio (através da obra, do livro escrito) para responder a um fim: a reflexão do homem real sobre o
homem criado. E, mesmo que a literatura não se proponha a responder questões de nível existencial,
ela passa a provocá-las, à medida que o seu objeto de trabalho, o núcleo de sua célula, é ele próprio,
o homem. O homem, um espelho a ser refletido.
Para o projeto de dissertação a ser desenvolvido, tais questões acerca de personagem,
personalidade e identidade serão amplamente estudadas e profundamente analisadas.

Referências

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970.


JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 2005.

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