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Ser pensante

Mas que dizer agora, desde que suponho um certo enganador poderosíssimo e, se me é
permitido dizer, maligno, que se empenhou em me enganar em tudo quanto pôde? Posso
ainda afirmar que possuo o mínimo, mesmo, daquilo tudo que atrás já disse que pertencia
à natureza do corpo? Presto toda a atenção, penso, passo e repasso tudo isso no
espírito, e não encontro nada; e fico fatigado de repetir inutilmente o mesmo. Que se
passa com aquilo que atribuía à alma, o alimentar-se ou o andar? Uma vez que já não
tenho corpo, estes atributos não são mais do que ficções. Sentir? Todavia, isto também
não se verifica sem corpo, e em sonhos eu julgava sentir muitas coisas que depois
verifiquei que não sentira. Pensar? Aqui descubro: o pensamento é; apenas este atributo
não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo, isto é certo. Mas por quanto tempo?
Certamente enquanto penso, porque pode porventura acontecer que se eu cessasse
totalmente de pensar deixaria, desde logo, inteiramente de ser. Agora não admito nada
que não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu sou, por precisão, apenas uma
coisa pensante, isto é, um espírito, ou uma alma, ou um intelecto, ou uma razão, termos
cujas significações ignorava antes. Porém, sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente
existente. Mas que espécie de coisa? Já o disse, uma coisa pensante.
E que mais, além disso? Exercitarei a minha imaginação: não sou aquele agregado de
membros a que se chama corpo humano; também não sou um certo ar ténue infuso
naqueles membros, nem vento, nem fogo, nem vapor, nem sopro, nem qualquer outra
coisa que me imagine, porque foi meu pressuposto que tudo isto é nada. O pressuposto
permanece, mas não obstante sou qualquer coisa. Mas dar-se-á que as próprias coisas
que suponho serem nada não existem, porque as desconheço, e, no entanto, na verdade,
não difiram daquele eu que conheço? Não sei, sobre isto já não discuto: só posso fazer
um juízo sobre as coisas que conheço. Conheço que existo. (…)
Mas que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma
coisa que duvida, que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que
também imagina, e que sente.

R. Descartes, Meditações Sobre a Filosofia Primeira (Segunda Meditação),


Almedina, 1985, pp. 122-124.

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