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Arthur Xavier Busin

N° USP: 14169147

1. Berkley define, no primeiro parágrafo, os cinco conjuntos possíveis de objetos


do conhecimento humano: (I) ideias efetivamente impressas nos sentidos,
percebidas com todas as variações de grau e número - como o tato de texturas
duras e macias, ou a visão de luminosidade e tonalidade de cores -; (II) ideias
percebidas quando prestamos atenção às paixões da mente, ocasionadas, sempre,
por outras ideias - como a percepção da raiva ou tristeza atreladas ao prazer ou
desprazer despertado pela coisa sensível -; (III) ideias percebidas quando
prestamos atenção à operação da mente - à exemplo do próprio livro de Berkeley, o
qual investiga os mecanismos e as regras pelo qual ela funciona, isto é, toma como
objeto os processos pelos quais se pensa e percebe ideias; (IV) ideias formadas
com o auxílio da imaginação, a qual pode decompor e recombinar as anteriormente
percebidas - como a fantasia e o sonho, que podem nos fornecem imagens jamais
sensivelmente experienciadas, por exemplo, uma sereia ou um unicórnio; e (V)
ideias formadas com o auxílio da memória - ou seja, representando as ideias
original e anteriormente percebidas dos modos supracitados, como lembranças de
tempos ou pensamentos passados.

2. Berkeley expõe, no primeiro parágrafo, os processos pelos quais os objetos


ganham nome. Apresentando-se simultaneamente enquanto conjunto durável e
diferenciável de ideias, podem ser nomeados, referenciados e, assim, considerados
coisa. Mas note-se que é mediante propriedades de ideias que o ato de nomeação
pode ocorrer, e não segundo o livre arbítrio da consciência, pois a identidade
nominal é determinada em função da constância da conjugação ideal; e o nome, um
meio de referir-se à aglutinação de ideias.

3. Segunda a definição esmiuçada no primeiro parágrafo, as paixões - como o


ódio, prazer, alegria ou tristeza - são causadas pelo agrado ou desagrado que a
percepção das coisas sensíveis suscita; isto é, conforme estas afetam a mente,
sentimentos são-lhe atribuídos. E apesar de tal acepção apresentada não ser
exclusiva, aponta somente para uma relação entre paixão e sensibilidade: sendo
perfeitamente razoável que outras ideias não sensíveis, como as da memória ou
imaginação, possam excitá-las, os trechos selecionados apontam apenas para o
caso acima trabalhado.

4. Tomado como referência o trecho selecionado, Berkeley insinua uma espécie


de relativismo: consistindo a existência mesma das ideias em serem percebidas, é
evidente que dependem intimamente daquele que as percebe. Contudo, seria este
ser ativo e perceptivo algo universal, que enlaça todos os outros como uma colônia,
ou algo particular e atomizado, que diz respeito a um sujeito enquanto sujeito
singular? Teriam “propriedades próprias” que independem da mente? Seriam
puramente subjetivas, ou teriam algum grau de objetividade? O quanto as ideias são
discerníveis da mente que as percebe e que as faz existir? A cognição teria uma
mesma estrutura sempre reaplicável, ou seria sempre determinada pela
subjetividade? Em síntese, sendo a percepção um ato criativo, seria possível
perceber uma mesma ideia?
Ora, ainda que tal espécie de subjetivismo evidencie-se com mais força -
afinal, existem minhas ideias e algo no qual e por qual elas existem, minha mente -,
não obstante, independentemente das variáveis supracitadas, é possível que dois
espíritos percebam a mesma ideia por alguma espécie de acaso: havendo, por
exemplo, um conjunto limitado e determinado de paixões perceptíveis - mesmo que,
ademais, também variem infinitamente em grau e número - e um espírito que
efetivamente as percebe, é sempre possível que duas almas intuam uma mesma
paixão de um mesmo modo; sempre é possível que desejem que ela cesse ou
intensifique-se e que se lembrem dela, em mesmo grau e número; e sempre é
possível que se utilizem somente delas em algum constructo da imaginação, em
mesmo grau e número. Cabe ressaltar que as paixões não são, por si mesmas,
ideias, mas apenas operações da mente - e sendo estas universalizáveis a todo e
qualquer espírito, a tese trabalhada é, no mínimo, razoável.
Caberia também melhor refletir o quanto as ideias são determinadas pela
mente singular que lhes confere existência, isto é, se o fato de uma mente diferente
as perceber, faz com que já sejam, só por isso, diferentes; e, portanto, se a mera
existência de uma ideia é discernível de suas qualidades.

5. O espírito é o ser ativo que percebe; a ideia, o ser passivo cuja condição de
existência é ser percebido. A ideia depende de um espírito que a percebe, mas o
espírito não necessariamente precisa perceber uma ideia para existir. Sua
realidade é substancial e causa os objetos do conhecimento humano, sem que seja
causada por estes. Ele é a condição primeira cuja existência é independente, o
incondicionado que possibilita ideias, ele é o meio no qual e pelo qual elas existem e
são percebidas.
Afinal, é possível que um ser ativo seja determinado pela potencialidade, e
não pela efetividade - isto é, que possa ser ativo, e não que constantemente o seja.
Mas como seria plausível esse ser que conhece e percebe sem nada perceber e
nada pensar, sem sobre nada operar? Ora, basta que se detenha ao que ocorreria a
um espírito que nunca teve nenhuma experiência sensível: não podendo ter
nenhuma idéia sobre coisas, por estas não poderia ser agradado ou desagradado e,
portanto, não poderia ter e tampouco poderia perceber paixões; não teria, assim,
nenhuma matéria prima sobre a qual a imaginação e memória poderiam trabalhar, e
com estas inertes, não poderia perceber qualquer operação da mente. Nada
conheceria; mas poderia algo conhecer, caso sua condição fosse outra ou caso sua
sensibilidade fosse milagrosamente restituída. Todavia, não fosse espírito, então o
que seria? De um lado, as suas propriedades conferiram-lhe substância; de outro,
irredutível à ideia, existiria sem ser percebido ou sem perceber. E como uma
existência independente que não é mente nem ideia encaixaria-se na arquitetura
desenhada nos primeiros parágrafos da obra, sobretudo quando o imaterialismo
berkeleyano já está postulado?
Se, de fato, nossa leitura está à contrapelo do que Berkeley tacitamente
assume pelos tempos verbais utilizados - a saber, que a mente é aquilo que pensa e
percebe, aquilo que age efetivamente, e não aquilo que pode pensar e pode
perceber, aquilo que pode potencialmente agir -, é porque acreditamos que tal
interpretação confere mais coerência e consistência a uma leitura inicial da obra.

6. Apesar de se refletir e pensar, a mente nunca pode ser tornada um objeto de


si mesma. Completamente diferente de uma ideia e que sob nenhuma prerrogativa
pode sê-la - e sendo tudo aquilo que é percebido ou pensado necessariamente uma
ideia -, a mente, ao refletir-se, é transformada em algo que já não é mais a si: ao
reduzir-se a ideia, já não pode mais ser mente. Não posso me tomar como objeto de
minha reflexão; posso apenas perceber ideias, as quais possivelmente logram ser
de minha mente, mas nunca a própria. Pois, como demonstrado, reflexão é sempre
sobre algo diferente da alma.

7. Uma ideia só existe quando percebida, e uma mente é algo totalmente


diferente de uma ideia, não podendo jamais sê-la. Se a mente torna-se objeto de si,
percebe uma ideia própria, e será, então, necessariamente duas - tanto a que
percebe quanto a que é percebida -, mas esta não é outra coisa senão uma ideia e,
assim, não é mais mente. Daí que ao tomar-me como objeto de reflexão, torno-me
dois, mas um dos dois já não é alma.

8. A questão da existência tacitamente se coloca nos capítulos iniciais da obra


de Berkeley, e é possível dali deduzir que todo o conhecimento humano consiste em
ideias percebidas e pensadas por diversos “mecanismos” da alma, existindo apenas
na e pela mente. Mas, mesmo incluída a experiência sensível, não é possível
postular, de modo necessário, o imaterialismo que posteriormente será defendido: o
realocamento, à alma, de todo conhecimento humano possível não implica, por si
mesmo, que objetos materiais e externos à consciência não existam - apenas há
objetos cuja existência se situa na mente . Segundo os dois capítulos iniciais, seria
razoável, por exemplo, especular que há uma congruência e coincidência divina
entre duas substâncias - a saber, mente e matéria. Entretanto, a ideia
necessariamente existe apenas para uma mente particular que a percebe ou a
percebeu.
Tomando como referência apenas os dois parágrafos iniciais, Gulliver -
produto da imaginação - só existiria para Berkeley se este conhecesse e
percebesse a ideia que o nome designa, afinal, minhas ideias existem apenas em
minha consciência; elas teriam apenas uma existência particular em uma mente
particular. A existência relativa de um personagem fictício dependeria do
conhecimento daquilo ao qual nome especifica ou genericamente se refere, mesmo
que ele não corresponda à intenção e concepção do autor - afinal, as ideias
existentes seriam apenas aquelas as quais eu, enquanto particular, percebo; e, se
atrelo-as ao mesmo nome, então conheço o que este designa. Tomando períodos
posteriores do livro, também caberia refletir se há algo “para alguém” ou se algo
simplesmente há, pois insinua-se que basta, para a existência de uma ideia, que
algo a perceba, seja de ordem divina ou não aquilo o qual a conhece.
Berkeley enquanto ideia apenas existirá para Berkeley enquanto mente se
este o perceber. Todavia, sendo uma ideia e portanto não existindo
substancialmente, aquele Berkeley seria efetivamente Berkeley? Ou o nome
designa objetos diferentes? Berkeley só pode existir para Berkeley em algum outro
sentido da pergunta, isto é, Berkeley nunca existirá efetivamente para Berkeley, na
medida em que a mente só percebe ideias e mente nunca é ideia. Posso ter uma
ideia de mim mesmo, mas essa ideia nunca será a mim; ou melhor, não existo
efetivamente para mim, pois não posso me perceber: quando o faço, já não é mais a
mim que percebo.
Posso não efetivamente o fazer, mas me asseguro que existo: tenho a ideia
de que ajo, e agindo, asseguro-me de que sou, em algum sentido, alma. Todavia,
minha existência não consiste em minha autopercepção: basta que pense e perceba
- não necessariamente sobre mim mesmo - ou que possa pensar e perceber, para
que eu seja substância, isto é, para que eu tenha existência independente, inclusive
de minha própria percepção.

9. Segundo o texto de Berkeley, minha imaginação não existe no mesmo


sentido em que existem as coisas que imagino: estas são ideias e, por conseguinte,
são agidas; aquela é parte da mente e, portanto, age. Estas são dependentes;
aquela, independente. Estas existem para a outra; aquela, em si mesma.
Ora, a imaginação é a faculdade pela qual as ideias originalmente percebidas
de outros modos se compõem, decompõem e recompõem; as coisas que imagino
são seu produto e sua matéria prima - são operadas e percebidas por esse domínio
da alma e, portanto, são ideias. Ideias e almas são munidas de tipos de existência
diferentes, e a imaginação é implicada pela alma, sendo um de seus operadores e
tendo suas propriedades substanciais: a imaginação não pode existir do mesmo
modo que as ideias.

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