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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Transcrições das Aulas Teóricas

Direito Administrativo II

Turma B

Regência: Dr. Vasco Pereira da Silva

2021/2022
DIREITO ADMINISTRATIVO II
transcrições feitas por turma B:

Adriana Azevedo 64642


Ana Louro 64670
Ana Luís 64525
Aradna Fernandes 62910
Clara Cymbron de Medeiros 64198
Clarisse Marques 63615
Diogo Santos 64440
Francisca Matos 64506
Iara Sequeira 64769
Índia Salvador 64609
Inês Silveira 64482
Joana Ferreira 64422
João Vilar de Carvalho 64795
Júlia Machado 65020
Lara Fernandes 63602
Patrícia Domingues 64671
Sara Alexandre 64560
Sara Barão 64700
Sara Borga 64734
Teresa Bettencourt 64446
MARÇO

14 de Março de 2022 - Índia Salvador 64609; Francisca Matos 64506

Ora, boa tarde!

Preparados para a culinária? Quem trouxe algum elemento de culinária? Um avental? Um


chapéu de cozinheiro? Uma coisa dessas? Desistiram já, antes de termos começado? Vá,
desistiram cedo. Então vamos. Trago aqui, como habitualmente, o meu avental siciliano que
comprei numa conferência em Catânia, que vai servir para esta nossa aula de culinária sobre
o poder discricionário. Como disse, a melhor forma de aprender o que é o poder
discricionário e como ele funciona, é fazer uma receita culinária.

E porquê? Porque a aplicação da lei é, em primeiro lugar, uma atividade que assenta na
interpretação, interpretação de norma ou, neste caso, interpretação de uma receita. E esta lei
vai ser convertida da realidade. Há uma tarefa de aplicação, em que o jurista, ao aplicar a lei,
vai fazer escolhas, escolhas que são balizadas, no caso do administrador, pela ordem jurídica,
escolhas que são balizadas pela receita, no caso do cozinheiro, e nos três momentos deste
procedimento de aplicação do direito, o momento da interpretação, o momento da apreciação
dos factos, e o momento da decisão, há sempre vínculos, vínculos que estabelecem regras
vinculadas, mas há também sempre elementos discricionários que implicam escolhas da
responsabilidade do aplicador de direito, no caso de se tratar da interpretação, da
responsabilidade do cozinheiro, se se tratar de uma receita de culinária, que é um processo
que tem uma lógica conciliar. Nós, teoricamente, podemos destacar algo que tinha dito na
aula passada, de acordo com a minha perspetiva acerca da discricionariedade, devemos
destacar o momento da interpretação, o momento da apreciação, o momento da decisão, eles
são procedimento em que os três momentos se misturam porque podemos ter que interpretar e
apreciar, interpretar para decidir, há uma lógica de ligação dos três momentos que, no
entanto, são logicamente sucessivos. Sucedem-se em termos práticos, mas misturam-se no
quadro dessa realidade.

E isto que vamos fazer corresponde a uma lógica culturalista, de entendimento de direito.
Cultura, vem de culturalista, vem de cultura. Porque, na minha perspetiva, o direito não é
uma ciência social, o direito é uma ciência cultural. A cultura é uma realidade imanente ao
direito, é uma realidade que se manifesta, que se expressa através da ordem jurídica e esta
dimensão cultural, foi de resto salientada por um grande autor do nosso século ainda, que está
vivo, que é um professor francês, mas o que é facto é que esta construção depois ganhou
adeptos, quer nos Estados Unidos, quer na Alemanha, quer nos Países Baixos, tem um
conjunto de adeptos que se consideram culturalistas e que utilizam a cultura para perceber
melhor as realidades jurídicas. E daí a lógica da receita.

As explicações culturalistas são muito diversas. Vão desde a ideia de que um jurista é como
um tradutor. Um tradutor que pega num livro, pega numa norma e a transpõe para outra
linguagem, para outra realidade que é uma língua de outro país, portanto uma tarefa criadora,
porque o tradutor cria algo ao fazer a tradução, noutra versão literal não funciona, está muito
literal. Vocês já utilizaram os mecanismos do Google, do DeepL, que é o melhor, e veem que
não funciona, porque traduzir não é apenas saber o que significa cada palavra e escolher
palavras que correspondam àquela realidade, mas implica interpretar e recriar. É por isso que
os grandes tradutores são também grandes escritores, ou grandes poetas, poetas, Vasco Graça
Moura era um escritor excecional e recriava a obra do Dante que ficava ainda mais bonita que
o original do Dante. E portanto, há uma tarefa de transpor uma linguagem noutra linguagem.

Esta foi a primeira explicação culturalista. Foi o senhor Boyd White. Os norte-americanos
introduziram essa explicação, de maneira que se transporta uma realidade do mundo de
direito para o mundo dos factos, é a mesma coisa que de uma língua para a outra. Mas em
rigor não é. E as melhores explicações são as que vieram a seguir. Designadamente aquelas
que são desenvolvidas por um senhor chamado Balkin, que é um professor norte-americano
da NYU, que agora mudou-se, mas durante muitos anos foi professor na NYU, que
comparava o Direito a uma arte cénica porque um jurista vai pegar numa norma, vai pegar
num texto, como um músico num palco vai pegar numa partitura, e vai interpretá-la em
público, e esta tarefa de interpretação, esta tarefa criadora - cada artista pode ter uma leitura
diferente da obra, que desde que caiba naquela partitura é a correta - e vai recriá-la em frente
a uma audiência. Isto é o que fazem os atores jurídicos num tribunal. Vão pegar numa norma,
aplicá-la de facto, interpretá-la em público, vão recriá-la e sujeitam-se a um escrutínio
público. O músico pode levar com tomates ou pode sair em braços quando o público fica
muito satisfeito, tal como uma sentença, produzida em público, na sala de audiência, pode
suscitar controvérsia ou aceitação, pode suscitar contestação ou, pelo contrário, a integração
no quadro da ordem jurídica. Portanto, aquilo que um jurista faz não é diferente do que faz
qualquer outra realidade, qualquer outra dimensão cultural da aplicação dos factos. É por isso
que eu aplico a psicanálise ao direito, já sabem, que eu aplico agora a culinária, que eu uso
metáforas de ordem cultural, porque essa dimensão cultural, é uma dimensão inerente ao
próprio direito. E portanto, essa explicação corresponde, da minha perspetiva, à fórmula
correta de entender os fenómenos jurídicos, neste caso, o fenómeno da aplicação do direito.

Mas já voltaremos a estas coisas. Eu, como vos disse, fui à procura do livro de receitas mas
infelizmente não tive tempo de preparar nada de novo e, portanto, vou usar a receita do ano
passado. Só há uma colega que eventualmente já podia conhecer esta receita, mas já não foi
no ano passado que ela fez a cadeira e, portanto, para os senhores e para as senhoras, é uma
receita nova. Esta receita que é mais que uma história. Não há ninguém que não seja capaz de
a fazer. Chama-se Omelete da Quinta. E é uma receita gourmet. Que está num texto delicioso
do Georges Simenon, do inspetor Maigret. Não sei se viram ou leram alguma das obras de
Georges Simenon, que são policiais muito bem escritos, muito bem conseguidos, que além da
história, integram também outras vertentes. O senhor Simenon era um bom garfo, um bom
copo, e a dimensão gastronómica está sempre muito presente nas suas histórias.

E esta história que vos leio, esta receita que vos leio, resulta de um livro que saiu em Portugal
há já algum tempo que se chama “As boas receitas de Simenon e Maigret”. Andaram a
recolher diferentes obras de Georges Simenon para fazer o livro das receitas mais
importantes.

Ora bem, a primeira coisa a fazer é ler para interpretar. Mas como vamos fazer, a seguir, em
conjunto, vou ler só a primeira parte e depois vou lendo à medida que aprecio os factos e
tomo as decisões em relação à realidade, os tais três momentos: interpretação, apreciação e
decisão. Os três momentos que correspondem à ideia da discricionariedade do poder, do
poder discricionário e o que é que ele impôs.

Como todas as receitas, diz-se que é para duas pessoas.

Então vamos lá:

Ingredientes: 6 ovos, 100 g de presunto, 30 g de manteiga, 1 fatia grossa de pão saloio, com
1,5 cm de espessura, Sal e pimenta”

A expressão “saloio” fala dum pão local, regional, dum pão de uma determinada realidade –
portanto é um pão que pode ser o pão alentejano, o pão de Mafra, pode ser qualquer pão que
tenha características que tenham a ver com esta realidade. Portanto, se eu fizer isto com pão
de forma, eu estou a fugir à receita, mas, se fizer com pão alentejano, o gosto será diferente,
mas sempre dentro da receita. Ou seja, discricionariedade e vinculação – eu não posso
escolher pão de forma, porque isso é algo vinculado, mas, tenho a possibilidade de escolher
pão alentejano, pão da padeira, etc... Fatias têm que ter 1,5 cm de espessura – e isto é
vinculado. É que se tiver 1,4 cm ou 1,6 cm não tem problema, já se tiver 1 cm ou 2 cm é que
fica diferente. Ou seja, mesmo aqui em que há vinculação, esta vinculação, apesar de tudo,
ainda permite uma certa margem de escolha, mesmo que a escolha esteja limitada. É uma
escolha que pode na prática não existir e ser limitada a zero.

A seguir, são os Ovos. São ovos de galinha, não posso fazer isto com ovos de codorniz ou
outra coisa do género. Agora se são ovos de galinha do campo, ou da cidade, ou das criadas
em aviário, ou criadas numa casa de família, é uma escolha. Eu não posso é utilizar ovos de
codorniz, se não estou a violar a receita. É a mesma coisa que a Administração perante uma
lei, tem a mesma margem de escolha e a mesma possibilidade: se eu usar ovos de codorniz eu
vou estragar a receita, se eu não cumprir essa regra vincula, eu estou a cometer uma
ilegalidade. Portanto, tenho margem de escolha em relação a todos os aspetos discricionários,
não tenho margem de escolha em relação aos aspetos que são vinculados.

30 gramas de manteiga, não serve margarina, , mas manteiga pode ser de vários tipos e vai
condicionar a escolha, pode ser a manteiga rançosa, dos Açores ou então podem ser aquelas
manteigas que não sabem a nada- O gosto vai ser diferente, mas isso cabe a mim a escolha, é
a minha criação enquanto intérprete de direito e aplicador da lei. Já se eu usar margarina eu
estou a violar a receita, se eu não cumprir a regra vinculada eu estou a desrespeitar a lei.

Há sempre uma margem de escolha, e aspetos vinculados, a escolha nunca é total e nunca é
livre, é uma escolha balizada pelas opções fornecidas pelo legislador, e uma escolha que tem
sempre aspetos vinculados, aspetos estes que nunca podem ser postos em causa ( decorrerem
de princípios constitucionais).

Aquilo que eu fiz foi uma interpretação, que agora vai ser necessária quando apreciar as
coisas com as quais vou fazer esta receita, decidindo em função da realidade concreta.

“Corte o presunto em pequenos cubos, deite-os na manteiga derretida, e deixe-os torrar


durante dois a três minutos.” Cortar o presunto em cubos, cubos é razoavelmente vinculada,
e portanto, se eu cortar em pedacinhos demasiado pequenos , eu estou a estragar a receita,
estou a fugir à vinculação. Se forem retângulos, não calculo que haja grande problema por
causa disso, até porque ninguém nos disse quantos centímetros têm os cubos, isto
corresponde à minha escolha, isto corresponde à minha discricionariedade ao fazer esta
receita.

“Deite-os na manteiga derretida” , tenho que derreter manteiga, e deixe-os torrar durante dois
a três minutos. O que é que é torrar? Torrar não é alourar, aí tenho um conceito indeterminado
que tenho de começar por interpretar. Não nos diz se o lume é branco ou se o lume é no
máximo, e isso vai ter consequências, até no modo de saber se são dois ou três minutos, e
portanto eu vou deixar aquele presunto na frigideira até que ele tenha uma cor castanhinha, se
é castanho mais claro ou castanho mais escuro, a opção é minha, se continua da cor do
presunto, vermelho vivo, ou se fica preto, a receita está estragada, e portanto a minha escolha
baliza-se entre estes dois aspetos vinculados, e a minha escolha existe dentro da possibilidade
do castanho escuro ou do castanho claro, o negro é ilegal e o vermelho é também ilegal.

“Corte quatro lascas de uma fatia de pão saloio e aloure-as na mesma frigideira. Barre um
prato côncavo para ir ao forno”. Barre, deve ser com manteiga, mas não dizem, será que pode
ser margarina, será que pode ser banha de porco, temos que interpretar? Ora bem, um prato
côncavo, se eu em vez de um prato concavo usar um pirex, não deve haver problema, aqui a
palavra-chave é ir ao forno, a forma do prato é relativamente discricionária, portanto é uma
matéria da minha responsabilidade.

“Disponha neste prato as fatias finas de pão, deite sal e pimenta.” Sal e pimenta? Quanta?
Não diz. Conceito indeterminado que gera um problema de interpretação, gera um problema
de apreciação e gera um problema de decisão, aqui temos pura e simplesmente, deite sal e
pimenta. Se eu não deitar sal e se não deitar pimenta estou a violar a regra. Se eu deitar a
mais estou a estragar o prato. São os dois limites da vinculação. Porque eu já sou um
cozinheiro experimentado e já é a segunda vez que faço esta receita, vou tomar ainda o
cuidado de não deitar muito sal, porque o presunto já tem sal. Isto não me é dito! Eu sei
porque fiz várias vezes, já experimentei e sei que isto tem consequências no prato. Se eu
deitar mais sal para além de presunto corro o risco de deitar sal a mais. E eu não quero deitar
sal demais. E temos aqui uma margem de discricionariedade que resulta da prática culinária,
resulta de eu já ter feito esta experiência no outro dia e ter chegado a essa conclusão.
Depois disso “Parta os ovos, separando as gemas das claras”. “Bata as claras em castelo
pouco firme.”. Pouco firme é um conceito totalmente indeterminado. Em 1º lugar, tem de ser
interpretado. Depois vai gerar uma margem de apreciação ao bater as claras. E uma margem
de decisão quanto a saber se está ou não de acordo com a receita. é algo que é da minha
responsabilidade no quadro da interpretação desta norma discricionária, sendo certo que é
preciso bater. Se não bater as claras em castelo, não tenho receita, estou a violar os poderes
que são determinados.

“Misture tudo e coloque sobre o pão.”. “Distribua por cima os cubos de presunto.”.

“Coza durante oito a dez.”. Oito a dez é uma coisa diferente. E não diz qual é a temperatura.
Devia

dizer qual é a temperatura. Era muito mais fácil se ele dissesse a temperatura. Como não diz
qual é a temperatura tenho de ser eu. Ora bem, aquilo que estivemos aqui a fazer é o que faz a
Administração perante qualquer problema. As escolhas são sempre limitadas e determinadas
pelas vinculações legais, nunca há liberdade de escolha. As escolhas são sempre marginadas
pelas opções do legislador e estas opções estabelecem responsabilidade é sempre possível
controlar os aspetos vinculados em todos os poderes. No fundo, os tribunais podem controlar
tudo, só que em relação às questões discricionárias o controle incide sobre os aspetos
vinculados no exercício do poder discricionário.

E temos a nossa receita. Agora, vamos comer e deliciarmo-nos, mas para terminar esta parte
culinária, o Senhor Simenon dá também indicações quanto à bebida adequada para
acompanhar esta receita. E, portanto, há uma sugestão de usar um bocado de Sauvignon. É
uma casta que já existe em Portugal e, portanto, eu vou seguir a receita. Vou ver em casa, vou
ver nas poucas garrafas de vinho que há lá em casa e vou verificar se há alguma que
corresponda a esta sugestão, mas aqui a discricionariedade é grande porque o Senhor
Simenon diz que só fica bem com um vinho do ano, com um vinho novo, e portanto, há duas
opções, dois vínculos que surgem em alternatividade. A alternativa entre o vinho novo, o
Beaujolais, o Esporão, o recente como o Alandra ou, o contrário, a alternativa de utilizar um
Cabernet Sauvignon, ou seja, um novo problema que tem a ver com a receita culinária e que
implica vinculações e discricionariedade. Ora bem, o que o jurista faz quando aplica o direito,
agora terminada a nossa parte culinária vamos para a dimensão jurídica em sentido restrito, é
olhar em primeiro lugar para a norma e interpretá-la. A interpretação obriga a escolhas, há
conceitos, vários e indeterminados, que são aqueles de mais difícil interpretação mas
qualquer norma tem momentos que tem que ser considerados e cuja interpretação é
necessária. Esta interpretação tem momentos vinculados, mas também obriga a escolhas
porque diferentemente do que entendiam os autores positivistas do século XIX, a
interpretação da lei é também uma escolha, a escolha da melhor interpretação, da
interpretação mais adequada para aquele caso. A escolha tem que ser balizada pelos
momentos da norma, mas os momentos da norma fazem com que duas pessoas com uma
visão diferente do ordenamento jurídico interpretem a norma de maneira diferente. Eu
disse-vos na aula passada que, de cadeira para cadeira, a interpretação do sentido da norma
pode mudar. E na mesma cadeira quando a interpretação é proposta pelo regente ou por
algum dos colaboradores, a interpretação pode ser diferente e todas elas são legítimas desde
que todas elas correspondam ao conteúdo da norma. Porque aplicar uma norma é recriá-la, é
reconstruí-la no mundo dos factos e, portanto, é preciso interpretar o texto da forma mais
completa, porque vimos também que a legalidade corresponde à juridicidade, à interpretação
do direito no seu conjunto e esta interpretação do direito no seu conjunto obriga a que as
escolhas comecem logo no momento da interpretação.

E é por isso que eu não concordo com o Professor Sérvulo Correia, nem com o Professor
Freitas do Amaral, nem com o Prof. Marcelo Caetano, nem todos os outros que dizem que
interpretar a lei é um poder vinculado. Não é. Tem momentos vinculados, aqueles que partem
dos momentos da norma que tem que ser considerada das outras normas, que tem que ser
consideradas, mas é um momento que tem liberdade, a a impossibilidade de escolha, que tem
uma dimensão discricionária e a primeira escolha que se faz é no momento da interpretação.
Depois de ter interpretado, eu tenho que apreciar os factos e enquadrar os factos na norma.
Isto pode ser mais ou menos complicado, pode ser aquilo a que se chamava da lógica
positivista, uma simples operação de subsunção de factos à norma, mas muitas vezes a
subsunção não chega. É preciso ir à procura dos factos, é preciso fazer com que os factos
encaixem na norma, para uma autorização de construção é preciso ver o terreno, é preciso
fazer uma vistoria ao terreno, é preciso balizá-lo, para saber, para tomar uma decisão que
implica determinação do custo do mercado, é preciso primeiro saber através de critérios
técnicos qual é o custo de mercado daquele bem para, em função disso, atribuir um subsidio
de montante X ou de montante Y. Portanto, a apreciação não é uma tarefa que vem nem é
uma tarefa morta e aquelas situações, de acordo com a orientação que eu sigo, é só uma clara
margem de apreciação, não digo apreciação como diz o Prof. Sérvulo Correia, mas uma
margem da discrição, essa margem pode obrigar o aplicador, pode obrigar a administração, a
fazer um esforço de determinação dos factos para encaixar os factos à norma. Não é? Porque
aqui não se resolve, é uma ironia jurista, não se resolve através do chicote! Às vezes parece
que usam um chicote! Querem pegar numa norma que não tem nada a ver com aquilo que a
que estão colados e usam o chicote e dizem “aplica-te”. E isso está errado. E, portanto, as
normas não encaixam no chicote. É preciso que haja uma realidade, um esforço de
apreciação, e de recondução desses factos ao mundo do direito. Isto implica juízos, juízos que
são determinados por interpretações, mas que têm também uma dose grande de
discricionariedade.

E por último, àquela manifestação, que era aquela a que tradicionalmente se chamava apenas
a discricionariedade, e a discricionariedade da decisão, essa existe no direito administrativo
desde sempre. O alargamento que vimos na aula passada da doutrina portuguesa foi
introduzido pelo Prof. Sérvulo Correia que à semelhança do direito alemão fala-se em
margem da apreciação, em margem de decisão. Acabamos de ver que efetivamente há uma
margem de apreciação e, de acordo com a minha perspetiva, também há uma margem de
interpretação.

E, por último, há a margem da decisão, ou da discricionariedade em sentido restrito. E isto


significa que no momento de tomar a decisão, que é o caso, cabe ao aplicador do direito, com
base nas vinculações que a norma estabelece, tomar escolhas. Escolhas que, cabendo nos
parâmetros da ordem jurídica, não do âmbito dos princípios são hipóteses legalmente
preferidas. Se viola os parâmetros, se viola um qualquer princípio, qualquer outro parâmetro
de ordem vinculada, essas escolhas são infundadas, e, portanto, no final, mesmo perante uma
norma que pareça ser integralmente vinculada, há escolhas que se podem fazer, ou que se têm
de fazer. Entre elas, a escolha do momento da decisão. A escolha do momento de decisão, em
regra, é uma escolha discricionária.

E, portanto, há que jogar com uma apreciação que parte da norma e a considera de uma forma
integral, que a interpreta à luz do ordenamento jurídico, que a aplica aos factos no quadro da
apreciação e que depois a aplica, depois toma a decisão final, que a aplica à decisão que vai
tomar. Em todos estes momentos, estas operações de interpretação, de apreciação e de
decisão são suscetíveis de serem controladas. E são controladas no respeito dos parâmetros,
dos vínculos, quer dos vínculos de natureza especial, que estão naquela norma que está a ser
aplicada, a competência, o fim, a regra de procedimento que a lei tenha estabelecido, os
vínculos gerais, os princípios gerais da proporcionalidade, da imparcialidade, da boa fé, da
boa administração, tudo isso são vínculos que tem que ser prosseguidos. Se não são
prosseguidos, a escolha não é legítima e a escolha é ilegal. Mas respeitando todos estes
vínculos, há várias soluções legalmente possíveis. Várias soluções de interpretação, várias
soluções de apreciação, várias soluções de decisão.

Portanto, este novo enquadramento do princípio da legalidade é de uma forma não só mais
adequada, mas uma forma que permite o controlo integral da atuação jurídica, e é por isso
que não faz sentido falar de reserva de apreciação. É um disparate. Porque em todos os
poderes há sempre o poder vinculado, e vinculações tanto podem ser vinculações daquele
caso concreto como vinculações genéricas dos princípios, e a violação de qualquer destas
regras, determina a ilegalidade daquela decisão.

Muito bem, ficamos por aqui.

India Salvador, 2º ano, Turma B, Subturma 13, nº 64609

21 de Março de 2022- Patrícia Domingues (64671); Inês Silveira (64482)

Muito bem… vamos então à nossa matéria e até à última aula estivemos a elaborar
uma receita. Nesse exercício de elaboração de uma receita, um exercício muito valioso para
compreendermos qual é a natureza da discricionariedade é, como é que ela funciona e deve
ser controlada no quadro da ordem jurídica.

A questão em causa é a passagem do mundo do direito para o mundo dos factos. Esta
passagem é feita pelo aplicador do direito que vai interpretar a norma fazendo escolhas no
quadro dessa interpretação e depois vai apreciar os factos e enquadrá-la no quadro daquela
norma, tendo aspetos vinculados e alguma norma de apreciação. E por último vai tomar uma
decisão final, uma decisão com alguma escolha, sempre com alguma margem de decisão.

O exemplo da culinária, podia ter sido outro, é um exemplo de uma escola filosófica
recente que tem desenvolvido os seus trabalhos. Esta escolha, chamada culturalista, utiliza a
cultura para explicar esta realidade do direito. Eu estive este fim de semana em Paris a
participar no congresso e um dos meus colegas lançou um livro, um livro para o qual eu
também participei. O professor Rosseau explicou que há 20 anos causou drama na França por
ter chamado um psicanalista para analisar o fenómeno jurídico. Eu brinquei… Bem há mais
de 40 anos que uso a psicanálise para explicar o fenómeno jurídico, mas entendo que possa
causar problemas.

Usar uma outra ciência ou uma usar outra realidade, é algo que permite entender bem
esse processo de aplicação nestes 3 momentos. Numa sala de espetáculo, tal como os juristas
numa sala de tribunal há várias interpretações jurídicas, vários sujeitos. Suponham que é um
concerto de camara, que há vários artistas ou danças de salão.

Claro, cada um deles, vai fazer uma interpretação daquela peça, escrita, vai
transformá-la em música e ao fazê-lo está a recriar o que está no texto e na norma. Se
pensarmos na lógica de uma orquestra de câmara, tem a necessidade de coordenação que
obriga a que haja elementos vinculados quanto ao modo de execução daquela peça. Portanto
há aqui este 1º momento de interpretação.

Depois há o 2º momento da apreciação que é feita no quadro daquela sala de


espetáculos ou uma sala de audiências e depois há uma decisão que é lida em público. Ou
seja, o que se passa na sala de espetáculos gera uma resposta favorável/desfavorável com o
apoio e das palmas, com os cartazes mais vigorosos. Mas há uma reação do público naquela
execução e esta reação também se dá no tribunal perante as pessoas que aceitam ou não
aquela sentença e perante a comunidade jurídica que aceita ou não aquela sentença.

E, portanto, isso obriga a considerar que a realidade jurídica é uma realidade plural em
que há uma pluralidade de interpretações e aplicações da norma, pluralidade que assenta na
lógica da comunidade aberta dos intérpretes do direito. Há uma comunidade aberta dos
intérpretes do aplicador do direito que vão criando a norma. É por isso é que se o mesmo caso
pode ter sentenças diferentes por parte de tribunais diferentes.

É por isso que os tribunais mudam de posições de repente que espalham o espanto,
mas que depois podem ser afastadas por outra por voto vencido. O voto vencido é tão
importante como o conteúdo da norma, pois o voto vencido pode ser a interpretação que se
procura no momento seguinte. E, portanto, há aqui uma realidade que é comum ao direito,
mas também é comum a estas realidades culturais e, portanto, só há a ganhar em interpretar e
aplicar o direito recorrendo a estes espectros que tanto podem ser culinárias, a psicanálise, a
história, a sociologia, a arquitetura e qualquer outra coisa.
E, portanto, é uma realidade que mostra também que o jurista tem uma tarefa especial,
mas essa tarefa é semelhante a outras tarefas sociais em que é preciso passar de um texto a
uma realidade e essa é uma tarefa que tem uma dimensão criadora, uma dimensão que
implica uma data de escolhas, mas que nunca é uma dimensão livre porque há sempre limites,
há sempre possibilidades de controlo e essas possibilidades de controlo aumentam cada vez
mais.

E aumentam cada vez mais, como vamos falar hoje, em resultado também de uma
nova lógica de enquadrar o direito como sendo norma, mas sendo também princípio. Estes
princípios, que são valores fundamentais para a norma jurídica, têm de ser aplicados tal como
as normas e se não forem aplicados, há uma ilegalidade no quadro desta atuação jurídica. E,
portanto, também aqui a ideia de que normas e princípios têm uma relação entre si, mas que
os princípios valem com um peso autónomo e esse peso significa a fixação de parâmetros, a
fixação de limites, para o exercício de poderes discricionários.

Parâmetros para o decisor, parâmetros da decisão que vai efetuar, mas também
parâmetros de controle por parte do juiz que vai apreciar essa decisão. E aqui há que
considerar que as transformações recentes também alargam incomensuravelmente o regime
das desvinculações, porque estamos a falar de vinculações genéricas. É claro que para além
das genéricas, há sempre as vinculações específicas e, portanto, a concreta lei determina logo
os momentos que são vinculantes, os momentos que são discricionários.

Mas há outros elementos genéricos que existem sempre que resultam a maior parte de
tais princípios da ordem jurídica, princípios esses que são diretamente aplicáveis e que
permitem critérios de decisão e critérios de conduta. E aí eu diria que a escola de Lisboa,
mesmo quando defendia posições mais restritivas, já tinha tido um papel importante a
salientar à luz destes critérios.

Ex: os imediatos, que levaram ao professor Marcello Caetano a caracterizar o poder


discricionário como um poder livre, mas já com algumas limitações. E, portanto, é uma
construção anacrónica que nós já não aceitamos nos dias de hoje, mas é preciso dizer, no
entanto, que o professor foi uma das pessoas que primeiro introduziu em Portugal esta ideia
de um controlo do poder discricionário limitado por dois vínculos: o vínculo da competência
e o vínculo do fim.
O vínculo da competência por trás de uma atuação administrativa tem de estar uma
norma de competência que permite ao órgão atuar. Se não há norma de competência, eu não
posso atuar. Há uma ilegalidade. E, portanto, o primeiro parâmetro que existe sempre no
quadro da ordem jurídica é o parâmetro da competência. E aqui o professor Marcello Caetano
introduziu uma distinção, clássica, que nós aprendemos a relativizar no 1º semestre, mas que
continua a ser possível de interpretação. É a distinção entre competência e atribuição.
Competência que tem a ver com uma lógica de competência relativa, competência que a lei
atribuiu a um órgão e que é diferente da lei que atribui competência a um órgão da mesma
pessoa coletiva. Portanto, quando falamos de incompetência relativa é competência dentro de
uma mesma pessoa coletiva. Uma incompetência relativa tem a ver com isso da pessoa
coletiva, mas não com todas as pessoas coletivas, mas as mais pequenas. Se quisermos, o
exemplo do presidente da câmara que pratica um ato da competência da assembleia
municipal e vice-versa. É uma incompetência relativa. É incompetência porque devia ser
exercida por outro órgão. No quadro daquela pessoa coletiva era distinta, embora no ramo das
mesmas atribuições. Esta é uma modalidade de competência. Mas há também a
incompetência absoluta, mais grave. Quando há uma competência fora das atribuições.

As atribuições de acordo com a lógica rígida do professor Marcello Caetano estavam


ligadas à pessoa coletiva. O que nós sabemos hoje é que não tem de ser assim porque no
quadro do estado ou pensando no governo, cada vez que tem competência similares, estão
todos na mesma pessoa coletiva estado. Também sabemos que pode haver órgãos
independentes que não estão integrados em nenhuma pessoa coletiva, mas têm competências.

E, portanto, aqui passamos para uma outra ilegalidade quando pratica um ato que
pratica competência de outro. Uma ilegalidade que na lógica do professor Marcello
Caetano-e que hoje continuamos a seguir, e bem corresponde a uma incompetência
absoluta/incompetência por falta de atribuições. Mas o professor ainda acrescentava que para
além deste vício da competência, havia um vício do fim da norma que estava em causa.
Porque cada norma de competência é atribuída para realizar um fim que tem a ver com as
atribuições daquela pessoa coletiva, mas que o órgão não pode deixar de produzir no quadro
daquele caso concreto.

E o professor Marcello Caetano qualificava esta ilegalidade como desvio de poder,


por motivo de interesse público ou por motivo de interesse privado. Eu não aceito, porque a
teoria dos vícios é uma realidade do passado que não faz sentido continuar a utilizar. O que
há é um vínculo de fim que gera uma ilegalidade. E esta ilegalidade, e aqui o professor
Marcello Caetano teve uma função importante do ponto de vista doutrinário.

Esta ilegalidade tanto se manifesta nos casos de vício de fim, por motivo de
prossecução de fim de interesse público diferente do legal, ou prossecução de um fim
maioritariamente privado e como tal, haver uma situação mais grave do ponto de vista
jurídico.

Eu lembro-me, e eu diria que a geração dos juristas mais antigos, como eu,
lembram-se de ter lido nas lições do professor Marcello Caetano, o celebre caso da Maria da
Conceição. Maria da Conceição que era uma enfermeira da maternidade Alfredo da Costa.
Ficou conhecida para todos os juristas da minha geração, porque era um dos casos utilizados
para caracterizar o vicio de desvio do poder por motivo de interesse público. Aquele que seria
menos grave, mas sendo menos grave não deixava de gerar a ilegalidade. A Maria da
Conceição não era lá muito boa enfermeira. Na relação de serviço, faltava, chegava tarde ao
trabalho, saia mais cedo, era respondona, tinha o seu feitio, nunca estava satisfeita. Era uma
funcionária que tinha uma atuação difícil que podia gerar problemas de natureza variada. E
era uma funcionária que de um dia para o outro, nos anos 70, é chamada porque tinha havido
um problema grave de troca de bebés. E perante o medo que se gerou na opinião publica,
porque na altura toda a gente queria nascer naquela maternidade. Eram casos que causavam
algum medo nas portuguesas e perturbação social. O direito da maternidade achou que o que
devia fazer era puni-la, alegando as ilegalidades que tinha cometido, mas aplicando a sanção
máxima da expulsão da função pública, de modo a demonstrar que ela era a responsável. É
um caso em que pela primeira vez, a sequência daquilo que tinha ensinado o professor
Marcello Caetano, o Supremo Tribunal, e depois recursos, vai dar razão à Maria da
Conceição, dizendo que o fim que estava em causa era um fim de interesse púbico. Dar
satisfação ao público também era um fim que o diretor da maternidade deu. Mas não poderia
prosseguir esse fim para o exercício da competência disciplinar, como a que houve conteúdo.
E se não havia nenhum nexo entre a Maria da Conceição e a troca de bebés, aquilo que a
Maria da Conceição tinha feito, eram faltas pequenas de serviço, apenas poderia dar origem a
sanções disciplinares mais leves, multa, repreensão por escrito, suspensão. Nunca poderia
levar, mesmo que se invocasse outro fim de interesse público, à expulsão da Maria da
Conceição porque o fim do ato não estava a ser prosseguido nos termos da sua dimensão real.
E, portanto, este caso, é um caso que pela primeira vez, um tribunal português vai dizer que
há uma ilegalidade. Aprenderemos adiante o que é uma anulabilidade. Há uma anulabilidade
por se ter prosseguido um fim diferente do que conste da lei, mesmo que esse fim pudesse ter
sido alegado se a situação fosse diferente. Mas para aquela situação, o fim que estava em
causa não permitiria aquela solução. Ela nunca poderia ter uma sanção de expulsão da função
pública.

Mas mais grave ainda do que, para usar a expressão de Marcello Caetano, desvio de
poder, por motivo de interesse público, é a situação de desvio de poder por motivo de
interesse privado. Ou seja, a situação de desvio de fim por razões de interesse privado, como,
da minha perspetiva, é preferível dizer e será o mais acertado. É que se um qualquer titular de
um poder público, utiliza uma competência para se aproveitar ou aproveitar alguém com
quem tem uma relação especial ou qualquer outra coisa do género, estamos perante uma
situação mais grave ainda do que se fosse desvio de poder por motivo de interesse público.
Freitas do Amaral chamava de corrupção quando em vez de se prosseguir um fim de interesse
público, se prossegue um fim de interesse privado, e, portanto, aqui a reação do ordenamento
jurídico é mais violenta, correspondendo a uma nulidade, tal como nos casos há da
incompetência.

A incompetência relativa corresponde à anulabilidade e a incompetência absoluta


corresponde à nulidade. Mas, por um lado, o professor Marcello Caetano não considerava só
estes casos. Desenvolveu e a doutrina portuguesa estava até a par ou ligeiramente mais
avançada do que a dos outros países, mas só em relação a estes dois aspetos, estes dois
vínculos. Mas ao mesmo tempo também, o professor Marcello Caetano trazia outra coisa que
hoje em dia não faz qualquer sentido. Dizia que o desvio de poder era o único vício que
poderia ser alegado no quadro das discricionariedades, porque todos os outros vícios eram
correspondentes a poderes vinculados/atos, vinculados.

Não só não faz sentido esta distinção, como no âmbito da discricionariedade todos os
vícios são possíveis. Aliás, este alargamento dos princípios fez com que estas vinculações
decorrentes dos princípios gerassem situações que correspondem a ilegalidades, ou para usar
a expressão, violações de lei. Ou seja, por um lado, admitir estas duas dimensões, mas só
elas, e por outro lado, limitar o desvio de Poder à discricionariedade.

Ora bem, como há sempre aspetos discricionários em qualquer poder, podem sempre
existir vícios de fim, quer se trate de um poder discricionário, quer se trate de um poder
vinculado. E, para além disso, mesmo no âmbito dos poderes discricionários, há aspetos que
são vinculados, como vimos na nossa receita, e aí geram-se problemas de ilegalidade material
e não faz sentido continuar a distinguir poderes discricionários de poderes vinculados e daí
que eu não aceite esta teoria dos vícios, que é uma realidade histórica, e que exprima como
surgiram as ilegalidades, que atualmente não constam de nenhuma lei em Portugal, mas já
constou. Entendo que o que há a destacar é que há ilegalidades correspondentes às diferentes
dimensões da atividade administrativa- competência, procedimento, forma e decisão.

E no quadro da ilegalidade material não faz sentido hoje em dia distinguir o desvio de
poder de ilegalidade de lei, pois ambas podem gerar ilegalidades materiais por contrariarem
as regras do ordenamento jurídico. Mas isto veremos a seu tempo, não faz mal que fiquem já
com esta dimensão. Mas depois surge-nos, e esse é o grande avanço introduzido por Freitas
do Amaral, a ideia de que os princípios também fornecem parâmetros de decisão obrigatórios
e parâmetros de controlo obrigatório da AP. Só que aqui o Professor Freitas do Amaral
naquela lógica compromissória não trata todos os princípios da mesma maneira.

Há uns que ele admite e há outros que ele não admite. Também aqui, um alargamento,
mas ainda uma lógica limitada. Estes princípios podem ser múltiplos e que podem existir na
ordem jurídica global, na ordem jurídica constitucional e também no CPA. Os mais amplos já
vimos quando estudámos o direito global, que há pelo menos 2 princípios da ordem global
que se aplicam diretamente no quadro das realidades administrativas. O princípio do
procedimento administrativo e o princípio da proporcionalidade, que corresponde a algo que
a ordem jurídica considera essencial e que deve ser utilizado todos os dias.

Depois temos a ordem europeia, nomeadamente a Carta dos Direitos Fundamentais


Europeia, que fala do princípio da boa administração. E, portanto, este é outro princípio que
dura e perdura que se aplica no quadro da ordem jurídica portuguesa, que só foi concretizado
recentemente com o CPA de 2015, mas que já antes disso, nos termos da carta, correspondia a
um princípio essencial diretamente vinculativo à atuação administrativa. Depois o legislador
também consagrou uma série de princípios constitucionais que são eles próprios diretamente
aplicáveis e que vinculam a atividade pública e privada, e, portanto, há na lógica
constitucional, um conjunto de regras que funcionam como limites à atuação do poder
administrativo. Os artigos 266º e 267º consagram alguns dos princípios fundamentais que a
Constituição estabelece e que têm que ser cumpridos no quadro da atuação administrativa.
Estes princípios também foram se alargando em cada revisão constitucional. Significa
que houve uma consciência maior daquilo que é a juridicidade dos nossos dias. Porque o
legislador constituinte foi alargando a lista destes princípios que começam no 266º/1 com o
princípio da prossecução do interesse público. A administração tem sempre de prosseguir o
interesse público, mas com respeito pelos direitos dos particulares. E aqui há uma dicotomia
essencial para a nossa ordem jurídica. Num estado de direito, nem a administração pode
deixar de realizar o interesse público- já sabemos que se não realizar o interesse público está
a desrespeitar o fim da atuação administrativa-, nem pode colocar em causa os direitos dos
particulares, e, portanto, tem de conciliar estes dois princípios.

É uma base essencial para o Direito, do Direito Administrativo. É este compromisso


entre a realização do interesse público e a satisfação dos interesses dos particulares. A
proteção dos direitos que constituem as bases de um Estado de Direito democrático. E no nº2
deste artigo 266º o legislador constituinte dá uma noção de princípio da legalidade que
também corresponde à máxima amplitude da lógica da garantia. Mas existem também mais
normas que regulam, quer a estrutura da administração, quer a atividade administrativa. E
estas regras, que o legislador aqui estabeleceu, são, enfim, as tais que permitem controlar a
atuação da administração.

Logo no nº2 do artigo 266º, ao lado princípio da legalidade em sentido amplo,


aparecem os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da
boa-fé. E depois no 267º aparecem os princípios de natureza organiza, de natureza
organizativa… O princípio da desburocratização, o princípio da participação, enfim, há aqui
uma série deles que vão surgir no quadro desta realidade e que se misturam com o 268º,
como outros princípios e poderes de natureza fundamental. E, portanto, foi a constituição que
vem chamar à atenção, alargando os princípios em cada uma das suas sucessivas revisões
constitucionais, para a necessidade de criar um conjunto de princípios vinculativos da
administração que impedissem que a administração, em vez de cumprir a lei, usasse a lei de
forma discricionária.

E o CPA, quer na versão de 90, quer depois na versão de 2015, alargou o número
destes princípios. Em 2015 surgiram algumas vozes críticas, que eu confesso que não sou
capaz de entender. Mas houve algumas vozes a dizer: «bem, são princípios a mais, não é
possível cumpri-los a todos». O que é uma negação da realidade. O problema não é serem a
mais ou menos. O problema é se estão ou não bem formulados. E há alguns que, da minha
perspetiva, não estão formulados de forma mais adequada e com maior desenvolvimento
como vamos ver agora, ao analisar cada um deles de forma detalhada. O primeiro que nos
aparece já é nosso conhecido, temos estado a falar sobre ele desde o início deste capítulo, é o
da legalidade, que aparece aqui no artigo 3º, com este sentido amplo, a subordinação à lei e
ao direito.

Há, no entanto, algo novo, neste nº2, que faz uma referência, que parece excessiva e
pouco excessiva, de estado de necessidade, porque aparece de outra forma. Fala-se aqui de
atos praticados em Estado de necessidade. Atos praticados por razões urgentes. Por exemplo,
terramoto, há incêndio e é preciso praticar um ato urgente, resolvendo aquela questão. E
portanto, enfim, o que aqui está em causa, não parece ser o Estado de emergência, tal como
está regulado na Constituição portuguesa, que permite existência de restrições aos direitos
dos particulares. E, portanto, são atos praticados em Estado de necessidade.

E depois o legislador diz esta coisa, «são válidos, desde que os seus resultados não
pudessem ter sido alcançados de outro modo». Como é que se pode saber se os resultados
podiam ou não ter sido alcançados de outro modo? Quando o modo como são estes
resultados, depende do cumprimento das normas. Se, suponham, há uma apreciação que faz a
análise da situação caso fizéssemos ou não essa atuação.

Portanto é uma expressão que o legislador utiliza mais adiante ao falar de legalidade,
que me deixa muitíssimo satisfeito e que faz com que eu entenda que interpretar este artigo
deve ser conjugado com o princípio de proporcionalidade, que corresponde à ideia de
necessidade, adequação e proporcionalidade. Embora o legislador diga que os lesados sejam
indemnizados nos termos gerais.

Era só o que faltava. Se há efetivamente uma intervenção que põe em causa os direitos
dos particulares, é claro que mesmo que ela seja necessária e proporcional, tenha de haver a
responsabilização da administração. Responsabilização por atos lícitos, que é algo que existe
e estudaremos também no quadro da ordem jurídica. E, portanto, eu diria que esta amplitude.
Os atos são válidos, aparentemente, no âmbito das regras de competência, no âmbito das
regras de procedimento e no âmbito das dimensões materiais.

Mas será possível que isso aconteça? Se relativamente a normas procedimentais se


criasse aqui uma exceção, isto poderia ser eventualmente proporcional em função das
circunstâncias que este Estado de Necessidade se verificasse. Agora dizer-se sem mais que os
atos são válidos em qualquer circunstância, desde que haja direito a indemnização.

Com todo o respeito, parece-me uma derrogação do princípio constitucional do


princípio da proporcionalidade que o legislador do CPA aqui incluiu. Este artigo vem desde
os anos 90. O nº1 manteve-se, ainda que com uma ligeira alteração. Eu tinha a divisão da
primeira parte e da segunda parte em 2 números, e não havia nenhuma referência a este
estado de necessidade.

A menos que se entenda que este tem a ver com o estado de emergência tal como ele
está consagrado constitucionalmente, e aí também não responde à lógica constitucional. E
também é desnecessário, pois não tem a ver com cada um dos atos. Tem a ver com uma
declaração que é feita em certas situações. Mas, depois, o legislador, estabelece ainda o
princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos dos particulares. A
prossecução do interesse público é um princípio essencial e a sua formulação aqui, tal como
na constituição, é uma formulação correta, porque prosseguir o interesse público, não
significa pôr em causa o interesse dos particulares. E daí que estes dois princípios andem
sempre juntos.

Isto é um elemento que sustenta a administração. O legislador resolveu concretizar a


norma dos direitos fundamentais da união europeia a seguir. Isto não é necessário, porque as
normas já eram obrigatórias, mas há vantagens em fazer essa concretização no quadro da
ordem jurídica portuguesa. Portanto, o legislador for, na minha perspetiva, excessivamente
limitador quando regula esta boa administração. O que se diz no 5º/1 é que a administração se
deve pautar por critério de eficiência, economicidade e celeridade. Só isto é muito pouco.

Eu sei que o legislador quando escreveu isto, estava com muito medo de abrir a porta
demasiado, porque aquela é a lógica que leva o Professor Freitas do Amaral a dizer que isto
não é um princípio jurídico, porque o que está em causa não é uma legalidade, mas sim a
eficiência da decisão. O problema é que os princípios, tomaram questões que antes eram de
mérito, em questões de legalidade. E, portanto, não é uma questão de mérito, é uma questão
também de legalidade. E o que é que diz a carta dos direitos fundamentais? Diz coisas que já
são garantidas na nossa ordem jurídica de outra forma. Estabelece direitos fundamentais,
como veremos está na Constituição. Estabelece o princípio da audiência prévia, que em
Portugal está também consagrado na Constituição, no princípio da participação e depois é
regulado no CPA e, portanto, enfim, parece que alguém já fez uma hipótese qualquer com o
Direito à Audiência. O direito à audiência é para mim um direito fundamental que resulta do
direito da participação, tal como está constitucionalmente estabelecido e, portanto, a sua
violação é algo manifestamente grave e que gera uma nulidade na ordem jurídica. Mas para
além desses aspetos que são regulados por outras normas, o que a carta estabelece é o
princípio do Due process of law.

O princípio de que o procedimento deve ser adequado à decisão tomada. Aquilo que
em Portugal tem sido visto como uma decisão equitativa. Mas é mais do que isso. É a ideia de
que se deve encontrar a norma procedimental e a realidade procedimental que tem a ver com
a correta decisão daquele caso. É um princípio proveniente do Direito Anglo-saxónico e que
tem uma dimensão material. Ora, se assim é, e no quadro da teoria dos níveis da ordem
jurídica que estão em causa, quando em Portugal se aplica o princípio da boa administração,
aplica-se o artigo 5º/1, mas o princípio na carta dos direitos fundamentais tem um conteúdo
mais amplo do que aquele que está aqui apresentado no CPA. Peço desculpa, roubei 2
minutos do vosso intervalo, foi para compensar a aula passada. Mas, continuaremos na
próxima quarta-feira. Até quarta-feira, boa semana.

Transcrição feita por Patrícia Domingues, Turma B, Subturma 17, Nº64671

23 de Março de 2022 - Sara Alexandre; Ana Louro


Estávamos na aula anterior, depois de termos falado do princípio da legalidade, das fontes da
legalidade, uma teoria do poder discricionário e do poder vinculado, estávamos a falar das
vinculações legais existentes no âmbito de qualquer poder discricionário.
E no quadro dessas vinculações, falámos na vinculação da competência, que é uma
vinculação genérica, admitida desde sempre, mesmo com outras visões acerca da
discricionariedade que não a minha; falámos da vinculação do fim, referi o facto de ter sido o
Professor Marcello Caetano, dos primeiros a introduzir essa dimensão no quadro do direito
português, designadamente no âmbito do desvio de poderes, como ele lhe chamava, do desvio
de fim por motivo de interesse público.
Veremos depois que eu não utilizo as expressões tradicionais da teoria dos vícios, vou
explicar porquê, mas isso ficará para mais tarde, e a ideia dos vícios, a ideia do fim, ainda é
um princípio de alguma maneira exterior ao ato administrativo e para o Professor Marcello
Caetano era o único vício típico do poder discricionário, o que por um lado, libertava o poder
discricionário do controle de outros vícios, por outro lado era uma construção que era
incompatível com a realidade e evolução do ordenamento jurídico.
Vimos depois que a situação evoluiu com o Professor Freitas do Amaral e depois com o
Professor Sérvulo Correia, com a admissibilidade de outros princípios de ordens genéricas e
estes princípios, nos termos da interpretação que fizemos, são princípios que vão do direito
global ao direito nacional, direito legal, passando pelo direito europeu e pelo direito
constitucional e estávamos quando a aula terminou, tanto quanto me lembro, a acompanhar as
disposições do Código de Procedimento Administrativo, em matéria de vícios.
Tanto quanto eu me lembro, tratámos do princípio da legalidade e do princípio da
prossecução do interesse público na proteção do direito dos particulares e ficámos de tratar o
princípio da boa administração.
O princípio da boa administração é um princípio que, do ponto de vista legal, é concretizado
pela primeira vez em 2015.
Foi a reforma do procedimento e do processo que ocorreu, que introduziu pela primeira vez
este princípio da boa administração.
No entanto, este princípio está consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia e como tal, já era um princípio aplicável na ordem jurídica portuguesa, portanto foi
tardia esta concretização legislativa.
E isto significa duas coisas diferentes:
1) que já antes de 2015 poderia haver atuações administrativas que violavam o princípio da
boa administração e que deveriam ser sancionadas pelo tribunal;
2) por outro lado, que hoje, em que o princípio já se encontra concretizado, uma vez que da
minha perspetiva a concretização dada pelo CPA é de uma dimensão inferior ao âmbito da
Carta dos Direitos Fundamentais, eu entendo que é preciso interpretar este princípio da boa
administração à luz das regras e dos princípios da Carta, e portanto, alargar o respetivo
âmbito.
Isto porque, no artigo 5.º, que estabelece o princípio da boa administração, no n.º 1 que é
onde trata esta questão; o n.º2 não tem nada a ver com isto, não sei porque é que está aqui,
porque o número 2 é o princípio de organização administrativa, a ideia de aproximar os
serviços das populações são princípios de organização, não são princípios da atividade
administrativa, é portanto uma má técnica legislativa, o legislador deveria ter primeiro tratado
dos vícios da atuação administrativa e depois tratar dos outros da organização administrativa,
mas aqui não o fez a título perfeito.
Aquilo que diz respeito à boa administração, para o legislador são os critérios da eficiência,
da economicidade e da celeridade.
Eu não tenho dúvidas que uma boa administração, é uma administração eficiente, uma
administração que funciona nos termos adequados e que toma as decisões no quadro de uma
lógica de um serviço público organizado exigirá para a tomada de decisões; não tenho
dúvidas que boa administração é também a economicidade: é preciso tomar as decisões mais
adequadas e essas decisões, também quando há alternativas, deve-se optar pelas mais
económicas, estou à vontade para fazer isso.
Como vos disse na aula passada, estive este fim de semana em Paris, e quando se tratou de
escolher os hotéis indicados pela agência de viagem, a minha escolha foi determinada pelos
critérios económicos. Os critérios de hotel, que fosse razoável, que estivesse instalado ao pé
da Universidade onde eu ia, e que fosse mais barato, e portanto foi um hotel de 3 estrelas,
razoável; se eu fosse à minha volta, iria para um hotel de 4 ou 5, porque também gosto e
tendo possibilidade também gosto de luxo, mas como ia ao serviço da administração pública,
optei por um hotel de 3 estrelas, e portanto, o critério económico; e escolhi o hotel mais
barato de todos os que estavam lá, porque a boa administração passa também pelo critério de
economicidade.
E depois temos também de ter em conta a celeridade: a boa administração não pode demorar
demasiado tempo a responder, tem um prazo máximo de resposta, como vamos ver (prazo
máximo de 90 dias), mas independentemente desses 90 dias deve-se tomar as decisões no
momento certo e dar respostas prontas aos particulares.
Estes princípios são efetivamente de boa administração, mas não são os únicos.
E são com uma amplitude menor do que aquela que está na Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia.
Estes princípios, de resto, são aqueles que, de alguma maneira, já estavam de alguma forma
consagrados na Constituição Portuguesa, direta ou implicitamente.
O Professor Sousa Franco já há algum tempo, nas Lições de Finanças Públicas, desde os
anos 80, defendia que estes eram princípios constitucionais implícitos em matéria de
Finanças Públicas e defendia-o com base na Constituição. Por isso aqui o que o legislador fez
foi transplantar os princípios e dar-lhes esse sentido.
Ora, boa administração é mais do que isso, em termos europeus.
É verdade que, boa administração, em termos europeus, significa também outras regras e
outros princípios que em Portugal são traduzidos através de princípios distintos, pelo que não
se afigura necessário repetir.
Mas para além dessas situações em que há essa desnecessidade de repetir, há efetivamente
algo que ficou de fora no quadro da concretização do direito administrativo e que também
deve integrar este artigo.
Senão vejamos: o direito constitucional europeu integra na boa administração, em primeiro, o
princípio da audiência e o da participação. - estes são princípios, efetivamente da boa
administração, mas que em Portugal estão concretizados, quer na Constituição, quer no
Código de Procedimento Administrativo, de forma autónoma, e portanto, há um princípio da
participação que está no artigo 267.º, n.º1 da Constituição- esse princípio implica, na minha
perspectiva, na sua dimensão constitucional, a lógica da audiência, e portanto é um princípio
que é um direito fundamental no quadro da lei portuguesa; e depois o CPA, como vamos ver,
estabeleceu regras que determinam a obrigatoriedade da audiência do particular em todas as
decisões que lhe digam respeito, e estabelece algumas exceções em casos especiais em que
pode ser ultrapassada essa exigência, mas é uma exigência genérica no quadro da ordem
jurídica portuguesa, e portanto, se eu já estava resolvido de outra forma, não era preciso
incluí-lo aqui na boa administração, e aí acho que o legislador do CPA fez bem; o mesmo se
diga do direito à informação que também está no quadro da União Europeia garantido no
quadro da boa administração.
Em Portugal também a Constituição garantiu o direito à informação à cerca de decisões que
respeitem aos cidadãos- todos têm o direito a ser informados, e esse direito, é um direito
autónomo, que de resto é conjugado, como vamos ver, com o princípio da administração
aberta ou do arquivo aberto, que permite também por razões objetivas sempre que não se trate
de dados de natureza pessoal ou de razões de segredo de Estado, se admite que qualquer
Entidade, designadamente os media, ou outra entidade, possa consultar os dados existentes na
administração pública, que são dados de interesse público, e portanto, também aqui, não valia
a pena deslocá-los da autonomia constitucional e integrá-los no âmbito da boa administração.
Isto vale ainda para o princípio da fundamentação: também aqui a União Europeia entendeu e
bem que uma boa administração tem de fundamentar as suas decisões, e esta fundamentação
é o elemento essencial de uma administração democrática, que é uma administração de
serviço, e portanto tem de explicar as razões que a levam a atuar. Isto é ainda relevante noutro
sentido porque quando a administração diz as razões pelo qual decidiu, também é mais fácil
determinar se a administração cumpriu ou não a lei: é através da fundamentação que,
nomeadamente, no exercício do poder discricionário os particulares sabem se a administração
cumpriu ou não os requisitos de conduta. -É também como dizia o Professor Rui Macedo,
uma medida de higiene administrativa, como lavar as mãos antes de ir para a mesa ou lavar as
mãos antes de deitar, é algo que a administração deve fazer porque é algo essencial para o
Estado democrático, mas também porque é uma medida de higiene que permite controlar se
se estão a cumprir ou não os critérios legais.
E portanto, tudo isto se percebe que não esteja aqui incluído.
Só que, a norma europeia, consagra um outro princípio que esse não está consagrado em mais
parte alguma, e que portanto, tem de integrar este princípio no quadro da ordem jurídica
portuguesa, e esse outro princípio é normalmente conhecido no quadro da tradição
portuguesa como o princípio da administração equitativa: que é uma expressão que fica
aquém da expressão inglesa: …
Não é apenas a da regularidade, da equidade do procedimento administrativo, é também a
ideia de que o procedimento deve ser adequado à decisão que está a ser tomada, e se isso não
acontecer, há uma ilegalidade material, uma ilegalidade intrínseca, ao próprio procedimento
administrativo. -É uma espécie de válvula de escape do sistema, que permite um controle
adicional, um controle acrescido. E isso é muito importante, e isso não está consagrado na
ordem jurídica portuguesa.
Portanto, para além de uma boa administração com este conteúdo, a boa administração deve
incluir a ideia do procedimento devido, que tem de ser realizado o procedimento devido, o
procedimento adequado àquela decisão que vai ser tomada.
De resto para mim, esta pressão do procedimento devido é melhor do que a simples ideia de
procedimento equitativo (equitativo significa que trata todos por igual, sendo que aqui é mais
que isso). -aqui a ideia é que o procedimento devido é o único que é adequado para aquela
situação e se não for adequado para os fins a que se destina, este procedimento é ilegal.
Mas este princípio da boa administração ainda é importante para travar ou fazer uma fronteira
entre aqueles que levam a sério a ideia de que o poder discricionário é um poder legal; e
aqueles que fazem compromissos que ficam a meio caminho.
E é preciso dizer que, por exemplo, em Portugal, quer o Professor Freitas do Amaral, quer
também o Professor Sérvulo Correia, incluem o princípio da boa administração entre o grupo
de princípios que não têm que ser cumpridos, não são regras jurídicas. Afirmam que os
mesmos são princípios de ordem orientadora, que devem obrigar a administração, mas que
não são devidos, no sentido em que não são obrigatórios.
Ora, isso da minha perspetiva, é inadmissível. Não há nenhum princípio que não seja
obrigatório, a ordem jurídica não é facultativa. Um princípio geral da ordem jurídica não é,
nem podia ser, um princípio de ordem facultativa. E precisamente toda a lógica de
alargamento da legalidade como parâmetro da administração e como controle da
administração, implica precisamente a consideração da juricidade de todos os princípios
fundamentais. E portanto, a boa administração é, na minha perspetiva, um princípio igual aos
outros, e enquanto princípio igual aos outros, deve ser cumprido e é suscetível de fiscalização
em termos jurisdicionais.
Mas o medo daqueles que não querem alargar alguns princípios é o medo de “lá vai o
Tribunal decidir questões de mérito”- e este é o grande papão. O papão que tem a ver com os
traumas da infância difícil, porque a lógica limitada do controle da administração que existia
no século XIX e no século XVIII e no quadro do sistema aparentemente liberal, mas
autoritário, que estava instalado, levava a que o controle de administração fosse apenas um
controle de legalidade. E como dizia o Professor Marcelo Caetano, era um controlo de mera
legalidade, isto é, ainda para reduzir para a mera legalidade e não a legalidade toda.
Esta ideia de mera legalidade deixava de fora tudo o que tivesse a ver com o mérito da
administração.
Ora, a separação rigorosa entre mérito e legalidade desapareceu, porque à medida que os
princípios aumentam e à medida que os princípios vão transformando em regras jurídicas,
regras que até aí eram regras de mérito, essas regras adquirem jurisdicidade e tornam-se
critério de atuação da administração, e permitem o controle mesmo dos aspetos internos do
exercício da discricionariedade. Lembro-me do Professor Marcelo Caetano mas também me
lembro do Doutor Rui Macedo dizer que estes vínculos eram meramente externos, não
permitiam controlar o interior do princípio da discricionariedade. Ora, isso não é verdade,
basta pensar no princípio da proporcionalidade, porque esse é um princípio que controla o
próprio critério da decisão. -o critério, o seu âmbito, é internamente controlado. E isto tem a
ver com a transformação que se deu quanto ao modo de entender o poder discricionário e
também ao modo de o enquadrar no quadro do ordenamento jurídico que temos vindo a falar
até aqui.
E portanto na minha perspetiva, este é um princípio igual aos outros, um princípio
obrigatório, e que deve ser interpretado com um âmbito maior e quando não é cumprido, gera
uma invalidade da decisão administrativa.
Depois temos o princípio da igualdade, que proíbe qualquer discriminação. O legislador faz
aqui a título indicativo uma série de discriminações em termos de sexo, em termos de
religião, em termos de pensamento político… enfim, a administração tem que tratar todos por
igual.
E a administração não pode discriminar.
E o dever de igualdade que cabe à administração é um dever que mais intenso do que aquele
que cabe a um particular.
Porque um particular, exceto os casos em que está em causa um valor fundamental da ordem
jurídica, pode ter comportamentos discriminatórios. -Nós podemos dizer que é um
comportamento imoral, irreligioso, mas se é um problema de um particular é possível.
Há uma história que eu costumo contar aos meus alunos quando estou em direitos
fundamentais, mas aproveito para contar aqui também, que é a história contada pelo grande
romancista W. Somerset Maugham, que é a história do Sacristão de St. Martin in the-Fields.
O sacristão de St. Martin in -the-Fields foi despedido da paróquia pelo Padre (o padre com
certeza que foi parar ao Inferno) apenas com a simples razão de que ele não sabia ler nem
escrever; e portanto o Padre dizia que o senhor não estava em condições de ser sacristão e
portanto, é imediatamente despedido. O sacristão afirma que sempre cumpriu as suas funções
e que o próprio Padre lhe disse que trabalhava bem, ao qual o Padre concordou que era um
trabalho fantástico, que lhe faria uma carta de recomendação, mas mesmo assim estava
despedido porque não sabe ler nem escrever.,-portanto, um motivo completamente
discriminatório.
Isto, é algo que se fosse uma Entidade Pública seria totalmente ilegal.
Do ponto de vista das relações entre pessoas, o que é que aconteceu: o sacristão despedido foi
passear pelas ruas de Londres para curtir a sua mágoa e andou, andou, andou, andou e sentiu
vontade de fumar e não encontrava nenhuma tabacaria… andou km e km até conseguir saciar
o seu vício. O senhor a partir de uma determinada altura resolveu pensar montar uma
tabacaria, já que o padre lhe tinha dado alguns tostões, pensou em investi-los nessa atividade.
E o negócio prosperou e ele ficou riquíssimo. E um dia ele entrou no banco, falou com o
gerente, e o gerente sem hesitar ofereceu todos os empréstimos que o senhor quisesse, sendo
que apenas tinha de assinar um papel. Mas ele respondeu que não sabia assinar, porque não
sabia nem ler nem escrever. O gerente achou inacreditável o senhor ser tão rico e não saber
ler nem escrever, sendo que ninguém imaginava o que ele seria se soubesse ler e escrever.
Nas relações pessoais, os tratamentos ilegais, desde que não ponham em causa valores
fundamentais da ordem jurídica podem ser reprováveis do ponto de vista ético ou religioso ou
outro mas são naturais. Por exemplo, a velhota que tem dois sobrinhos e gosta mais de um do
que outro porque, enfim, é do partido dela, é do clube de futebol… qualquer coisa
discriminatória. Mas no quadro da sua quota disponível, daquilo que são os bens que só ela
pode dispor, não há nenhum problema se ela atribuir o dinheiro só a um e não a outro, é
razoável, é humano.
Mas se isto é humano numa relação privada, isto é inadmissível no quadro de uma relação
jurídico-pública.
E para dar o seguinte exemplo: se eu compro o jornal todos os dias, e em frente à minha casa
há dois quiosques de jornais, eu não sou obrigado a tratá-los igualmente.
Não preciso de comprar às segundas, terças e quartas no quiosque da direita e quintas, sextas
e sábados no quiosque da esquerda e alternar para os meninos ficarem todos em condições de
igualdade. Eu posso escolher perfeitamente aquele que gosto mais porque é do meu partido,
da minha religião, qualquer outra razão mesmo que seja uma razão discriminatória.
Mas se for uma Entidade Pública não pode. E portanto, se for uma Entidade Pública ou
efetivamente compra a todos em termos iguais ou abre um concurso para ver quem é que
fornece o preço mais adequado e na sequência do concurso, em termos de igualdade, contrata
igualmente com todos os cidadãos. E portanto, a administração tem de tratar todos com
fundamento em igualdade, não podendo discriminar por razões de sexo, raça… seja que razão
for… seja partidos políticos, nada.
A administração tem que tratar de todo o processo com fundamento na igualdade; não pode
discriminar por razões de sexo, raça, seja por que razão for - partidos políticos -, e por aí
além. Portanto, o poder da administração é de facto um poder limitado.

Este é o controle, se quisermos recuperar os critérios do Professor Marcello Caetano e do


Doutor Rui Macedo, é um critério externo – não é o próprio controle da escolha que está a ser
determinada, controle indireto que condiciona a escolha.

A seguir vem o princípio da proporcionalidade, e este é um critério interno. Enquanto o outro


era externo, este aqui é totalmente interno, porque a proporcionalidade significa três coisas:
significa necessidade, significa adequação e significa ausência de excesso. A violação de
qualquer um destes critérios implica a ilegalidade da decisão administrativa.

A exemplo, vamos pensar no incêndio da Baixa, que teve grande volume e que causou
perturbação na via pública e, como é normal, houve várias pessoas a querer estar perto e a ver
o que se passava - os portugueses gostam muito de ver o que se passa – e o que é facto é que,
perante aquela tragédia que aconteceu na Baixa, foi necessário condicionar o acesso dos
peões e dos automóveis ao sítio onde estava a suceder o incêndio, de modo a permitir que os
bombeiros e as forças de segurança tivessem um acesso mais fácil e convenientemente
melhor à área. E, portanto, nesta situação extrema houve uma ordem imediata, em razão das
circunstâncias, segundo a qual ficava proibido o acesso à Baixa e à zona envolvente.

Se, perante este mesmo incêndio, a ordem do Presidente da Câmara fosse de


condicionamento do acesso da zona da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, isto
seria desnecessário, e se era desnecessário - era ilegal. E até o próprio critério da
discricionariedade – o órgão faz um juízo e decide qual é o âmbito de aplicação daquela
ordem, necessária na situação do Estado de Emergência, mas se desnecessária, esta ordem é
ilegal, porque o princípio da proporcionalidade permite controlar o próprio exercício da
escolha e o próprio critério da escolha.

Mas podia ser necessária e ser desadequada: se o Presidente da Câmara estivesse muito
preocupado com razões de ordens financeiras, e dissesse “Ai! Vamos evitar que as pessoas
fujam daqui e que haja problemas de capitais que ponham em causa o mercado de capitais! E,
portanto, vamos estabelecer uma regra de congelamento de todas as contas bancárias das
pessoas que moram em Lisboa, ou todas as pessoas que moram na zona da Baixa.”. Em que é
que a medida do condicionamento das contas tinha a ver com a luta contra o incêndio? Nada.
E, portanto, esta medida, não só era necessária como era desadequada – não era adequada
para resolver aquele problema – e ao ser desadequada, ela era ilegal.

Depois, não pode ser excessiva: se o Presidente da Câmara dissesse “Ordem de prisão para
todos os que saírem de casa da zona da Baixa. Devem-se manter nas suas casas e, portanto,
quem sair de suas casas deve sofrer com uma ordem de prisão.” Isto é excessivo, porque não
tem nada a ver com a realidade do incêndio e há uma limitação essencial dos direitos
fundamentais que em caso algum é admitido. Isto ajuda também a perceber o que eu disse na
semana passada acerca do art.3º n.º2 – aquelas situações de Estado de Necessidade. O Estado
de Necessidade só admite que haja limitações de ordem procedimental, e não de ordem
material, de competência ou qualquer outra ordem, porque isso é manifestamente ilegal. Por
isso é que eu disse, na aula passada, que o art.3º n.º2, a propósito da legalidade, trata destas
situações de Estado de Necessidade.
Ora bem, portanto esta ideia de proporcionalidade permite o controle dos critérios utilizados.
O legislador, embora não com a melhor técnica disponível, consagra aqui sobretudo – de
alguma maneira – a ideia da adequação e a ideia do excesso. Mas, de alguma maneira, deixa
implícita a ideia da necessidade na primeira parte do n.º1 do artigo 7º.

Depois, o legislador fala de dois princípios - um com força constitucional e outro que, quanto
a mim, deveria ter. Mas eu confesso que não consigo perceber a razão desta junção - Justiça e
Razoabilidade não são a mesma coisa - e até diria que não tem nada a ver uma coisa com
outra. A Justiça tem a ver com o ético, que é assumido pelo Direito, que tem que o realizar; a
Razoabilidade tem a ver com um critério, que é um critério jurídico, já que o Direito é uma
realidade cultural e, como tal, tem que ser racional, portanto aqui insere-se o critério de
razoabilidade. Não são então a mesma coisa; uma usa o critério ético-jurídico e, portanto, está
cá no Direito a Justiça como está na Constituição, o que significa que o legislador se quis
abrir a valores materiais da ordem jurídica e esses valores são transformados em valores
jurídicos; e o princípio da Racionalidade, e agora da Razoabilidade, determina que todas as
normas façam sentido e que tenham uma função de Racionalidade, no sentido em que
percebemos o que o legislador quer e são razoáveis. Eu tenho seguido que o princípio da
Racionalidade é também um princípio constitucional, e, de acordo com a orientação alemã,
há numerosos casos de inconstitucionalidade pelo facto de não se conseguir perceber o que o
legislador quer dizer. Agora, não percebo o porquê de eles estarem juntos, e não percebo
também o porquê de, estando juntos no mesmo artigo, não hão de estar juntos em dois
números diferentes. E que o legislador defina a Justiça utilizando a Razoabilidade ainda
percebo.

No caso da Justiça, é um princípio que é um princípio ético; é um princípio que obriga, como
diz o Professor Freitas do Amaral, de acordo com a lógica Aristotélica, a dar a cada um o que
é seu, e que tem esta dimensão ética. Mas este princípio não se aplica a todas as situações,
mas apenas aquelas que violam gravemente esta regra, porque o que se pretende é que haja
esse sentido ético, e que ele se prepare na atuação administrativa.

O Professor Freitas do Amaral diz que “Bem, mas isso é uma coisa demasiado
ético-filosófica e, portanto, isto não pode ter aplicabilidade.” Acho que não tem razão. E não
tem razão porque tudo depende do modo como a norma está concebida e da realidade que
está em causa. Vamos por uma situação deste género: há, como sabem, um orçamento anual
que só se aplica durante aquele ano, e suponham que há um qualquer acontecimento, uma
qualquer calamidade, e um míssil desviado cai em Lisboa e que é criada uma verba
excecional, apenas com uma missão de reparar os danos e compensar as pessoas afetadas pela
explosão do míssil. Esta norma tem que ser aplicada no prazo de um ano, porque é uma
norma excecional e foi criada para ser aplicada durante aquele ano, e se a Administração
Pública não a aplicar durante o ano, isto significa que aquela verba não tem utilidade; o fim
para o qual ela foi concebida não se realiza, e isto é uma violação do princípio da Justiça,
porque o não aproveitamento, dentro daquele prazo de um ano, implica que não possa ser
mais utilizada. Isto acontece também com muita frequência em relação a muitas coisas do
género. Ou seja, há um período – normalmente de 3, 6 meses, 1 ano – em que aquele dinheiro
tem de ser aproveitado. Se esse dinheiro não se aproveita, isto é uma violação do princípio da
Justiça. E, portanto, a Justiça é um princípio ético, e agora surge também como um princípio
jurídico e que implica o controle dos casos mais extremos.

Já completamente diferente é a ideia da desrazoabilidade. A desrazoabilidade tem a ver com


a ilogicidade da Administração. A Administração, que por exemplo tem uma lei que impõe
determinada atuação, e ela adota atuações contrárias ou um qualquer outro comportamento
irracional e isso é também um motivo de ilegalidade. Não consigo então perceber – bom,
enfim, até consigo perceber - o legislador não quis definir Justiça, mas poderia ter
salvaguardado a Justiça como se fez na Constituição.

Depois temos o outro princípio da imparcialidade, que é também um princípio externo, que
por isso condiciona a Administração - que tem que ser imparcial. A administração não deve
decidir nos casos em que um titular do órgão tem interesse direto ou indireto. Direto porque
tem a ver com a sua própria propriedade, ou a sua casa, por exemplo; ou indireto porque está
a afetar tias, ou mulheres ou família, ou qualquer outra realidade. Isto quer se trate de um
órgão de natureza legal, quer um órgão de natureza política.

Eu, por exemplo, trabalho nesta casa e sou casado com uma professora desta casa. Estamos
juntos e, portanto, quando o Conselho Diretivo ou Científico está a decidir qualquer matéria
que diga respeito à minha mulher eu saio da sala, tal como se for uma matéria que diz
respeito a mim ela sai da sala. Porque o legislador impõe que quem tem interesse direto ou
indireto naquela situação não pode intervir e não pode decidir – se o fizer estará a violar a lei.
Realidades que não estejam de acordo com isto são realidades manifestamente ilegais. Todos
nós conhecemos alguns casos que vêm nos jornais. E o que tem acontecido desde os anos 90
– quando isso foi estabelecido na lei – é que a notícia tem evitado que continuem a existir
essas situações, e que por outro lado cada vez há mais casos em que particulares afetados por
essa decisão podem pedir a anulação dessa mesma decisão, e devem fazê-lo mais vezes. Para
que isto funcione, o legislador criou normas do tipo preventivas.

Os impedimentos e as suspeições são dois mecanismos preventivos para evitar a violação do


princípio da imparcialidade. O impedimento deve ser reconhecido pelo próprio, que percebe
que há uma situação que o afeta direta ou indiretamente, e se ele não o faz, alguém pode
considerar que ele está impedido e suscitar essa questão. Os casos de impedimento são os
mais graves – casos de casados, que vivem em economia comum, parentes até ao 3º grau da
linha colateral, gestores de negócios – portanto os casos de ligações mais íntimas entre o
titular do cargo e a pessoa que vai decidir.

Nas suspeições alarga-se aqui a mais um grau na linha colateral, alarga-se aos amigos,
alarga-se aos inimigos - alarga-se a todos os com quem haja uma ligação que possa pôr em
causa a suspeição. O que o legislador faz é dizer que nestes casos não há automaticamente
uma situação de ilegalidade, mas é preciso verificar a situação do caso concreto para verificar
se há ilegalidade. E, portanto, se alguém tem tanta sorte e comprou o andar que lhe custou
10% do preço que pagaram todos os outros – “que sorte que tive! Por acaso sou o
Primeiro-Ministro e tenho em cima da mesa uma questão para decidir, e tive sorte!” esta é
uma situação manifestamente impossível. Uma oferta é algo que não se pode aceitar e nem se
pode receber. Por exemplo, o tal código de conduta do governo prevê que até determinado
montante – 500 euros, suponho – seja possível aceitar, a partir daí é que não. Agora, o que
não se pode admitir é que alguém se possa viver à custa de amigos, sobrinhos, outras coisas
do género – teve imensa sorte porque é amigo de membros do governo – isto é
manifestamente ilegal.

Portanto tem que haver mecanismos, e o nosso legislador estabeleceu esses mecanismos de
forma preventiva através de impedimentos e da suspeição – que permitam controlar essas
situações. Mas se a prima, mulher, etc. for a pessoa mais em condições de aceitar aquele
cargo, ela fica impedida de ser nomeada? Não fica, porque se a pessoa se declarar impedida,
quem vai decidir é quem a substitui. Se for um órgão coletivo, a decisão é tomada pelo órgão
sem a participação dos interessados. Assim, as decisões podem ser tomadas – só não podem
ser tomadas por quem tem interesse direto na questão.

Transcrição feita por Ana Louro n.º64670 e Sara Alexandre n.º64560

28 de Março de 2022 - Lara Fernandes; Ana Louro


Estávamos na aula passada a analisar os princípios gerais de Direito Administrativo
que, por um lado são vínculos autónomos, vínculos genéricos, de qualquer exercício do poder
e portanto são instrumentos de limitação do poder discricionário, uma vez que fornecem
critérios à Administração e depois também critérios de avaliação para os tribunais.
Portanto os princípios são responsáveis pela juridicização do poder discricionário, na
sequência daquilo que estivemos a ver em aulas passadas, mas também os princípios têm esta
dimensão importante de abertura do Direito Administrativo a valores fundamentais da ordem
jurídica que o legislador transformou em regras da administração.
Grande parte da discussão que tem havido em Portugal acerca desses princípios é que
aqueles que ainda têm posições dubitativas quanto ao alcance desses princípios são
precisamente aqueles que se mantém fiéis à tradição de que o poder discricionário é um poder
diferente, é um poder livre e que é um poder submetido à reserva da Administração.
Ora, nada disso é razoável do ponto de vista lógico. Nada disso corresponde ao direito
português e portanto esta abertura é essencial no quadro da reserva de teoria do Direito
Administrativo.
Vimos que a imparcialidade destina-se a assegurar que nenhuma decisão é tomada
relativamente a outrem, relativamente a um terceiro, havendo interesse do decisor nesta
matéria, e portanto, é preciso garantir que os titulares dos órgãos públicos não decidam em
causa própria nem decidam em causa em que haja algum benefício familiar ou até mesmo de
algum amigo. Portanto é um princípio muito exigente e é um princípio muito contrariado pela
realidade que se tem vindo a impor e que tem introduzido uma transformação no quadro do
Direito Administrativo português.
E vimos na aula passada que a forma que o Código encontrou de consagrar este
princípio não é apenas estabelecer a sua formulação genérica e considerar que há uma
ilegalidade material sempre que o decisor está a decidir em causa própria, mas também é
preciso criar garantias para esta imparcialidade e estas garantias correspondem aos
impedimentos, o que está no artigo 69.º e seguintes do CPA e a suspensão que está no artigo
63.º e seguintes, também do CPA.
Vimos qual era a diferença entre um e outro: o impedimento é para os casos mais
próximos em que estão em causa decisões relativas a atuações que envolvam os próprios
titulares do órgão numa situação anterior ou os seus familiares mais próximos. O caso da
exclusão e da suspensão alarga-se relativamente a amigos e inimigos (nem amigos nem
inimigos devem ser envolvidos no quadro de uma decisão do poder público e se isso
acontecer há uma ilegalidade). E precisamente porque há uma maior proximidade entre os
casos de impedimento e os casos de suspensão, o legislador apenas diz que para os casos de
impedimento há forçosamente uma ilegalidade, os casos de suspensão permitem ponderação
das circunstâncias para ver se há ou não ilegalidade.
Há alguns casos em que os problemas (que são fáceis de resolver e têm sido bem
resolvidos) têm a ver com uma discricionariedade no modo como o poder é exercido. Por
exemplo, quando se fala em que se o titular do poder público recebeu alguma dádiva de
alguém que pediu alguma coisa, não pode decidir, saber que dádiva é essa pode gerar alguns
problemas de fronteira - podem ser uma oferta vultuosa e o vulto pode ter também uma
dimensão de uma lógica qualitativa, de uma ligação intensa àquilo que se vai receber.
Portanto, pode-se utilizar critérios de natureza quantitativa, por exemplo:

“O Governo tem um código de conduta que diz que a partir de 500 euros não se pode aceitar
nem receber nada.”

500 euros para alguns casos pode não ser uma oferta adequada, portanto é preciso
analisar se efetivamente 500 tem consequências no quadro da decisão que foi tomada.
Portanto, não é algo que pode ser decidido em termos quantitativos, depende da importância
do caso e da importância que isso tenha no âmbito da situação que está em causa.
É preciso que estes princípios sejam aplicados pelos titulares do poder e que sejam
aplicados também por aqueles que são afetados por estas decisões, pois muitos dos casos
existentes nos nossos dias em que existe essa relação de proximidade entre o decisor e aquele
que apresentou o pedido são casos que não chegam a ir a tribunal, ou só chegam nos casos do
direito penal - o maior escândalo em Portugal que envolveu o antigo Primeiro-Ministro não
foi julgado pelos tribunais administrativos, não se colocou a questão relativamente a nenhum
ato praticado, ninguém suscitou o problema. Houve foi um crime e portanto o julgamento que
está a acontecer é um julgamento criminal, o que não significa que os atos praticados no
quadro dessa atuação não pudessem ter ido ao tribunal administrativo, porque eram ilegais
uma vez que havia relação de proximidade entre o titular do cargo público e quem
denunciava aquela decisão.
E portanto são mecanismos muito importantes, não apenas numa perspectiva jurídica,
mas também são um aspecto essencial do Estado de Direito, em que a corrupção é uma
realidade nefasta que deve ser combatida com os métodos democráticos - os populismos não
são normalmente uma boa solução, embora esse tipo de discussão possa por vezes cair na
lógica populista. Mas é preciso usar os instrumentos jurídicos para efetivamente pôr em causa
as atuações que são determinadas por relações pessoais que existam entre o titular do órgão
público e aquele que pediu ou que vai obter uma determinada atuação administrativa que é
favorável.
E portanto há aqui, toda uma realidade que assenta em primeiro lugar numa ação do
Ministério Público, e o Ministério Público que atua no âmbito do Direito Penal tem se
limitado um pouco no âmbito do Direito Administrativo, mas dentro, sobretudo, da lógica dos
particulares porque as relações jurídicas administrativas fazem com que uma decisão que
beneficia alguém (no âmbito de um concurso ou qualquer outra coisa do género), prejudique
outros e esses outros devem impugnar essa decisão com base nessa relação pessoal a obter
assim a sua anulação.
Portanto, são mecanismos muito importantes que no início se dizia que eram
meramente de ordem moral (ou outra) mas que se converteram em princípios jurídicos e é
precisamente essa jurisdicização desses princípios que faz com que esse sistema possa
funcionar. É uma realidade relativamente recente em Portugal: começou nos anos 90 e com o
primeira versão do CPA, que agora foi continuada (em 2015), mas é algo que tem que
continuar e que é um elemento essencial no quadro da realidade política em que vivemos. É a
melhor forma de defender as instituições democráticas no Estado em que vivemos.
Depois temos um outro princípio que é o princípio da boa fé. Este também é um
princípio novo que no início era um princípio de direito privado. Começou-se por dizer que a
administração deve atuar como uma “pessoa de bem” - o que é uma forma simpática de dizer
que a Administração quando atua não deve ter nenhuma dimensão persecutória com relação a
ninguém e que deve atuar tratando todos por igual, de forma imparcial, justa, de acordo com
todos os princípios que estão em causa.
Mas para além dessa ideia que é uma ideia formativa para o comportamento da
Administração Pública, se a Administração Pública tem um comportamento, por exemplo
num concurso público destinada a afastar alguém do concurso, isso é uma atuação de má fé e
enquanto atuação de má fé é ilegal. Mas no quadro do direito público a dimensão essencial da
boa fé é a inversa dessa, é a situação da tutela da confiança, ou seja, se o particular recebeu
qualquer coisa através de uma atuação legislativa (seja um ato, seja um regulamento, seja um
contrato), o particular tem o direito de confiar na palavra dada pela administração e esta tutela
da confiança faz com que aquilo que a administração determinou não pode ser posto em
causa, em termos normais.
Só pode ser afastado pela própria administração se há uma ilegalidade - e mesmo
assim poderá ter que indemnizar os particulares pela correção dessa ilegalidade e se se trata
de uma mudança de critério, essa mudança de critérios não pode afetar os casos passados, só
pode valer para o futuro. Também vamos estudar isso mais tarde, com mais cuidado quando
falarmos a propósito do ato administrativo da anulação e da revogação dos atos
administrativos: é uma matéria que o legislador regulou com especiais cuidados para permitir
que haja essa lógica de tutela da boa fé. Este princípio entendido nestes termos é um princípio
muito importante no quadro do Direito Administrativo.
Mas não era, era um princípio de direito privado. E aqui há que dizer que uma das
primeiras pessoas a estudar esse princípio também no quadro do Direito Administrativo foi
um professor de Direito Civil. Na tese de doutoramento do Professor Menezes Cordeiro,
sobre a boa fé, o Professor tem um capítulo dedicado à boa fé no direito público e, em
especial, no Direito Administrativo. Portanto, é um daqueles domínios também relativamente
recentes e que origina uma transformação da administração, em dois momentos: no momento
em que atua, em que deve atuar de acordo com regras de boa fé, sobretudo quando vai fazer
um contrato com um particular, também quando está a praticar um ato administrativo; mas
depois, também deve proteger, tutelar, as expectativas do particular.
Este aspecto da tutela já era mais ou menos estudado no direito público, agora é
tratado nos artigos 165.º e seguintes que tratam da renovação e anulação administrativa,
sendo que a renovação é uma mudança apenas por razões de mérito (a administração
descobriu uma melhor forma de resolver aquele caso) e a anulação é por razões de
ilegalidade. E portanto, o que se salvaguarda através da boa fé são sobretudo essas mudanças
que não devem ter efeitos passados, não devem ter efeitos retroativos.
Mas há também a dimensão dual da administração e a administração deve
relacionar-se, como se diz no artigo 10.º, agir e equacionar segundo as regras da boa fé. E
portanto significa isto que tem que ponderar os valores envolvidos em causa, a confiança
suscitada na contraparte, o objetivo a alcançar com a atuação compreendida, ou seja, tudo isto
são parâmetros de decisão que existem em todos os casos e quando são violados geram a
ilegalidade do comportamento administrativo.
Depois, a administração fala em dois princípios que são importantes e que têm a ver
com as relações jurídicas administrativas: em primeiro lugar, a ideia da colaboração com os
particulares - a Administração Pública deve atuar colaborando com os particulares, o que
significa que deve procurar que eles colaborem no exercício da função administrativa (uma
das formas tradicionais tem a ver com a criação de mecanismos que façam com que os
particulares em vez de desrespeitar a lei, a cumpram). Mas no quadro disto, também a
administração tem que atuar de boa fé (lá está, os princípios depois também se misturam uns
com os outros) e, por exemplo, não pode enganar os particulares, as informações prestadas
são informações que devem ser genuínas (e o legislador liga aqui esta lógica da colaboração
com a responsabilidade da Administração na prestação de informações que é o que está no
número 2 do artigo 11.º do CPA).
A Administração deve prestar informações, não pode enganar o particular
deliberadamente (porque isso é violar o princípio da boa fé), mas esta responsabilidade pelas
informações que presta é algo que está salvaguardado e é o princípio da colaboração entre a
Administração e os particulares.
O outro princípio absolutamente essencial e que também é um princípio de natureza
constitucional no quadro da nossa ordem jurídica, é o princípio da participação.
Um Estado de direito democrático é um Estado em que os particulares participam nas
decisões que lhes digam respeito e interessam. E isto significa que este direito de participação
se converte numa realidade, num outro princípio, que é o princípio da audiência, é o corolário
do princípio da participação que o particular seja ouvido antes da prática de um ato de boa-fé.
E este é um princípio fundamental de uma ordem democrática e de um Estado de Direito.
Este princípio foi muito difícil de enquadrar (eu lembro-me nos anos 90 quando fizemos o
Código de Procedimento Administrativo e nos propusemos instaurar em Portugal este
princípio da audiência, as respostas que obtivemos quer da Administração Pública, quer dos
juízes, quer dos colegas, foi que isso era algo impossível de realizar; que era uma coisa para
nórdicos, é uma coisa que em Portugal nunca vai acontecer! Imaginem que em Portugal a
autoridade antes de decidir tem que ouvir o particular interessado). Foi preciso mudar a
filosofia do procedimento para tornar esse momento da participação uma realidade essencial.
E esta realidade é tão essencial que isso faz com que a Administração tome as melhores
decisões precisamente porque ouve os particulares e porque os ouve mesmo quando eles não
têm um interesse direto (mas mais quando têm um interesse direto).
A participação é um elemento essencial para a tomada de decisões: é preciso saber
todas as consequências e perceber todos os interesses que são afetados- é preciso que aqueles
que são afetados se possam pronunciar. E isto foi uma mudança radical no Código do
Procedimento Administrativo. E uma mudança que faz com que hoje a Administração, 30
anos depois, saiba que tem sempre que ouvir o particular antes de tomar decisões. Para mim,
este direito à audiência, é um corolário do direito de participação, que está estabelecido no
artigo 267.º, n.º1 da CRP e como tal, enquanto direito fundamental, gera a nulidade da
decisão administrativa que foi tomada sem audiência dos particulares. É uma posição que eu
defendo, juntamente com o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, com o Professor Gomes
Canotilho e com o Professor Vital Moreira, mas não é a posição dominante. A posição
dominante é a defendida pelo Professor Freitas do Amaral e que era defendida pelo Professor
Pedro Machete que é a ideia de que gera uma mera anulabilidade. Mas isso não é relevante-
quer seja a anulabilidade ou nulidade (acho que nulidade é o mais adequado) mas quer seja
uma ou outra, o que é relevante é que os tribunais controlem essas situações e não permitam a
tomada de decisões sem a audiência dos particulares. A Administração sabe que tem de ouvir
e se não ouvir está a cometer uma ilegalidade e o Tribunal lá estará para a pôr em causa.
Portanto, este princípio da participação (participar nas decisões, especialmente
aquelas decisões que lhes dizem respeito), este direito que se traduz no direito de audiência,
é um direito constitucional que está consagrado no artigo 267.º da CRP, e portanto, na minha
perspetiva, este é um daqueles direitos fundamentais de natureza procedimental da terceira
geração e gera um status activus processualis (a ideia de que o cidadão pode atuar de forma
ativa no âmbito do procedimento para a tutela dos seus direitos) e portanto, é uma norma
muito importante que aqui está consagrada.
Depois no artigo 13.º do CPA, o princípio da decisão: este também é um princípio
fundamental, uma vez que a Administração deve decidir, e decidir rapidamente. E se alguém
diz alguma coisa à Administração, a Administração tem de decidir, deve dizer sim ou não,
tendo de dar uma resposta ao particular. Até porque o particular, senão ficar contente com
essa resposta pode efetivamente usar os meios jurídicos. E portanto, este princípio que está
consagrado no artigo 13.º estabelece precisamente esta ideia de decisão.
Mas isto não significa que havendo se há este dever de decisão, se houver uma
situação em que o particular é daqueles chatos esporádicos que vai todos os dias pedir a
mesma coisa com os mesmos fundamentos à Administração, se ele já tem uma resposta, não
é preciso (a menos que haja mudança da situação), não é preciso que ele tenha 10/20
respostas a dizerem todas o mesmo. Agora a primeira resposta, ele tem de ter, ele tem de
saber qual é a posição da Administração.
Depois vem o artigo 14.º do CPA, que é um daqueles princípios que me deixa
satisfeito e desconsolado. Satisfeito porque eu fui um dos primeiros que no “Em busca do ato
administrativo perdido” o visei sobre a aplicação da informática e das novas tecnologias no
Direito Administrativo. Porque por um lado, os computadores nos dias de hoje não são
apenas uma máquina de escrever sofisticada como antes se dizia, mas antes uma realidade
que toma decisões ela própria e essas decisões têm de ser tratadas juridicamente. E portanto,
a primeira coisa que era preciso fazer é juridicizar a atuação dos computadores, que era uma
coisa que inicialmente se dizia que não era preciso. Há até uma teoria que foi a primeira
teoria alemã que era a teoria dos dois degraus que dizia que há uma parte teórica e que essa
fica para os maluquinhos dos computadores e há uma parte jurídica e essa é que nos interessa.
Mas o problema é que as duas coisas se misturam. E hoje em dia, e na minha perspetiva, é
preciso considerar que aquilo que sai da máquina é um ato administrativo, ou um
regulamento, ou um contrato, que pode ser tratado como qualquer outro ato administrativo. E
que o programa que faz com que saia aquele resultado, a realidade que permite chegar àquele
resultado, é o regulamento, e portanto esta lógica que estabelece os critérios a partir dos quais
se forma esta decisão, e funciona como um regulamento administrativo. E se fizermos isso,
isto significa que é possível controlar toda a atividade, mesmo a atividade administrativa
produzida por um computador que é cada vez mais o dia a dia da Administração Pública. E
portanto, o resultado da atuação da máquina corresponde a uma forma de atuação
administrativa um ato, um contrato, uma forma individual e concreta, um modo como a
administração, o algoritmo, é um regulamento. E portanto, é possível impugnar um
algoritmo. Na nossa ordem jurídica é possível. E portanto, eu, enfim, por um lado, vinha
defendo este tipo de considerações mas criticava o legislador por ter um Código de
Procedimento e não se ter ocupado disso, e não ter tratado estas questões. Não fui bem
sucedido quando integrei a Comissão nos anos 90, a Comissão Freitas do Amaral mas fui
continuando a defender aquilo que eu entendia mais correto e depois associou-se a mim o
Professor Marcelo Rebelo de Sousa que também em vários escritos criticou o CPA por ser
demasiado conservador e só se preocupar com a produção administrativa feita pelas pessoas.
E portanto, eu fiquei muito satisfeito quando o legislador fez aqui um conjunto de princípios
relativos à administração eletrónica. O meu problema é que: por um lado, um artigo não é
suficiente; depois se agora há um revelação, por um lado esta revelação é insuficiente, e por
outro é completamente insatisfatória porque o legislador não diz nada. Reparem neste n.º 1:
“Os órgãos e serviços da Administração Pública devem utilizar meios eletrónicos no
desempenho da sua atividade, de modo a promover a eficiência e a transparência
administrativas e a proximidade com os interessados ``. - era preciso dizer que isto tem
algum sentido útil? Não tem. É uma norma idiota. Não é preciso que o legislador diga “devem
utilizar computadores”, e a referência à eficiência e à transparência não são suficientes para
criar uma regra jurídica. E portanto, era preciso não apenas que estivesse cá uma norma, mas
que essa norma fosse uma norma eficaz e uma norma que garantisse alguma coisa. Por
exemplo, quando no número 2 já se diz que “Os meios eletrónicos utilizados devem garantir
a disponibilidade, o acesso, a integridade, a autenticidade, a confidencialidade, a
conservação e a segurança da informação” já é um bocadinho mais, mas apesar de tudo
também estamos aqui perante conceitos demasiado vagos, e estamos perante realidades que
são feitas independentemente das situações concretas e que não têm a densidade que
deveriam ter.
O n.º 3 também é deste género: “A utilização de meios eletrónicos, dentro dos limites
estabelecidos na Constituição e na lei, está sujeita às garantias previstas no presente Código
e aos princípios gerais da atividade administrativa”. O que é que é isto? O que é que isto
tem? Qual é a eficácia disto? Nenhuma. E portanto, para isto não vale a pena. O problema
agora não é o não existir, e eu fico satisfeito por o legislador se ter lembrado de criar normas
destinadas à administração eletrónica, uma vez que é uma realidade cada vez mais importante
no domínio do Direito Constitucional e no domínio do Direito Administrativo, há problemas
cada vez maiores que eu analiso e que nós analisaremos mais adiante mas ,enfim, é preciso
que estas normas sejam eficientes e sejam adequadas.
Estabelece o direito à igualdade do acesso, um dos princípios que eu defendia e que
não era muito difícil de estabelecer e que não era muito difícil de estabelecer é a ideia de que
mudar o sistema manual pelo sistema eletrónico só é possível não só quando haja meios para
o fazer de forma eletrónica, como também que não seja mais difícil fazer pela via eletrónica
do que seria se fosse feito por via manual. Porque se se cria um sistema eletrónico mas ele é
também complicado que ninguém pode fazer, isso deve ser considerado (e é assim, por
exemplo, no Direito Britânico e no Direito Alemão), uma ilegalidade, uma substituição desse
género, porque viola o princípio da proporcionalidade, ou seja, há muita coisa que é preciso e
que tem a ver com o estudo destas relações eletrónicas, que infelizmente não tem sido feito
em Portugal (e que devia ser) e há que adequar o sistema legislativo a esta realidade.
Depois ainda há para adiante mais algumas normas sobre o Balcão Eletrónico, normas
estas que resultam de uma diretiva europeia que o legislador se limitou a transpor de forma
acrítica sem criar as condições, designadamente para uma das coisas que lá diz que é se um
estrangeiro se dirigir à Administração tem direito a receber uma resposta dentro do prazo
máximo de 90 dias na sua própria língua- isto é uma norma que resulta de uma diretiva
europeia e que visa facilitar a comunicação entre as populações europeias mas que em
Portugal não é aplicada.
Depois estabelece o princípio da gratuitidade (embora se diga que se há despesas a
fazer elas terão de ser compensadas).
O princípio da responsabilidade (a Administração é responsável por todas as decisões,
e deve responder por aquilo que faz).
O princípio da administração aberta (uma administração de um Estado de Direito deve
estar aberta e deve fornecer os seus arquivos a todos os que tenham interesse nisso- princípio
esse que está limitado pelos dados pessoais), os dados que interessem apenas a uma pessoa
não são públicos, os outros dados são públicos a todos. São dois princípios que resultam de
resto da Constituição que estabelece a lógica da administração aberta e o outro das
limitações em termos de natureza pessoal.
Por último, o artigo da cooperação leal com a União Europeia, que é um princípio de
origem europeia e que obriga o Estado português enquanto Estado-membro da União
Europeia a cooperar com todos os outros Estados no âmbito das políticas públicas. É um
artigo genérico, não faz mal em estar aqui mas é um artigo que se tem de concretizar em
numerosas formas de atuação, uma delas é a possibilidade de utilizar a sua própria língua no
âmbito da realidade europeia. Aqui ainda há muita coisa para fazer no quadro do princípio da
cooperação leal mas este é um princípio muito importante e ainda bem que o legislador o
inclui aqui.
Com isto terminamos este capítulo. Para a próxima aula vamos começar já com as
questões do procedimento.
Transcrição feita por Ana Louro n.º64670 e Lara Fernandes, n.º 63602

30 de Março de 2022 - Francisca Matos (64506); Ana Luís (64525); João Vilar
de Carvalho (64795)

“Antes de mais nada, muito boa tarde. Vamos hoje dar início a um novo capítulo da nossa
matéria, em que vamos falar do centro do Direito Administrativo, a viagem ao centro do
Direito Administrativo. A ideia é familiarizar-nos com alguns conceitos que depois vamos
utilizar: conceito de ato administrativo, o primeiro centro do Direito Administrativo, as
concepções atocêntricas do Estado Liberal; depois a noção de procedimento, o que é, para
que serve e como funciona - também uma realidade essencial nos nossos dias -; e, por último,
a ideia de relação jurídica administrativa. Portanto, a ideia é dar algumas noções essenciais
que depois vão ser utilizadas quando começarmos a teoria das formas de atuação e a estudar o
ato administrativo, o regulamento, o contrato e por aí a diante.
Porque é que eu escolhi este título “viagem ao centro do Direito Administrativo”? O título é
inspirado em Júlio Verne, e essa inspiração foi deliberada, porque a ideia de centro é uma
ideia um pouco ficcional e é uma ideia em parte desadequada. No início, quando surgiu o
Direito Administrativo e quando surgiu a sua teorização pela Doutrina positivista, a ideia era
encontrar uma noção-quadro que resumisse toda uma disciplina jurídica, e a preocupação dos
positivistas era encontrar um conceito assim, que tivesse um valor simbólico de representar
todo o Direito. Como calculam, no quadro do Direito Administrativo foi o ato administrativo,
no Direito Civil foi o negócio jurídico. Mas nem o Direito Civil é só o negócio jurídico, nem
muito menos o Direito Administrativo é só ato administrativo. Portanto, esta ideia de que há
um conceito que resume todo…um conceito-quadro, um conceito central é uma ideia que, do
ponto de vista teórico, não faz sentido. Mesmo se substituirmos as concepções atocêntricas,
na noção autoritária de ato administrativo, por outras concepções mais modernas como o
procedimento e como a relação jurídica administrativa, mesmo assim ainda nos encontramos
perante realidades que, apesar de muito generalizadas, são realidades que não se caracterizam
por resumirem tudo e serem um conceito omniexplicativo. Portanto, nesse sentido, o recurso à
obra literária permite dizer que a ideia de um centro é uma construção fictícia, que não faz
muito sentido. por estarmos perante realidades policentradas. Só que, nos últimos tempos,
tem começado a surgir uma outra ideia de centro, uma outra ideia para justificar o recurso à
noção de centro, que é a procura de conceitos mais amplos e conceitos que sejam mais
frequentes, e nesse sentido quer o procedimento, quer a relação jurídica são, em si mesmos,
conceitos mais amplos que o de ato administrativo, são melhores, o que não significa que
esgotem tudo o que tenha a ver com ato administrativo. O que é importante aqui, para efeitos
pedagógicos, é encontrar uma forma de falar da evolução que se passou no ato administrativo
e que entendam a função do procedimento e da relação jurídica, que são essenciais nos nossos
tempos.
Isto dito, as concepções clássicas foram marcadas por esta lógica atocêntrica. O Direito
Administrativo nascido com o Estado Liberal era o direito de uma Administração agressiva,
que estava limitada pela lei, mas pouco limitada, portanto fazia aquilo que lhe apetecia e que,
no quadro de uma filosofia liberal à moda do século XIX, a Administração atuava pouco no
quadro da vida da sociedade e garantia, basicamente, a segurança. Portanto, a lógica liberal
era proteger a segurança da propriedade e do Estado, e portanto o modelo de atuação da
Administração Pública eram as polícias e os exércitos. Isto levou a que o centro deste Direito
Administrativo desta Administração agressiva fosse o ato polícia, o ato construído à maneira
da Administração. Portanto, as primeiras noções de ato são noções autoritárias, noções que
tinham a ver com o liberalismo do século XIX: um liberalismo que tinha, como explicam os
autores clássicos - Montesquieu e outros -, a classe aristocrática que procurava resistir e que
estava atrás do Rei, procurando o equilíbrio de compromisso entre a burguesia no Parlamento
e a aristocracia por detrás do Executivo. Portanto, havia aqui uma realidade muito marcada
por uma noção autoritária de Administração Pública que foi dando origem a uma noção
autoritária de ato administrativo. Este ato era caracterizado precisamente por isso mesmo, por
Otto Mayer, o pai do Direito Administrativo alemão e um dos pais do Direito Administrativo,
numa lógica positivista (um positivismo científico) que equiparava a Administração à justiça,
com funções secundárias, dizia que o ato administrativo era uma espécie de sentença e no
quadro desta realidade vinha criar uma noção autoritária de ato administrativo que tinha duas
componentes: em primeiro lugar era a componente da definição autoritária de uma posição
jurídica do particular…a Administração definia o direito aplicado ao particular, no caso
concreto, à semelhança do tribunal, e esta sentença era executada pela força física, pela força
do poder, pela polícia e era uma decisão que era suscetível de execução coactiva contra a
vontade do particular. Estas duas características de definição do direito são características que
vão marcar o Direito Administrativo clássico.
Uns anos depois, Maurice Houriou, em França, que era um positivista sociológico…já não
construía as coisas da mesma maneira, mas arranjou uma dicotomia, uma dualidade que
levava a comparar o ato administrativo com o negócio jurídico, e ao comparar apercebeu-se
que havia ali uma realidade exorbitante ao nível do Direito Administrativo. Na lógica de
Houriou, semelhante à de Mayer, era dizer que havia dois privilégios exorbitantes da
Administração Pública: o privilégio exorbitante de definir o direito aplicado ao particular do
caso concreto e o privilégio exorbitante de executar a decisão através de um ato que era
executável. Acresce que, no quadro deste entendimento, isto era completado por uma outra
característica da Administração: um privilégio de execução prévia, outro privilégio
exorbitante da Administração, que tinha poderes de executar coactivamente as suas decisões,
independentemente de previsão. Ora bem, essa realidade era uma realidade que se pode dizer
que era adequada para o modelo de Estado Polícia, para o modelo do Estado Liberal, mas
com a passagem do século XIX e do século XX esta realidade vai mudar. O que é estranho é
que tendo mudado a realidade no início do século XX, as construções teóricas continuaram a
ser, em muitos países, as mesmas, mesmo quando aquilo que se repetia já não fazia sentido.
Esse é um fenómeno que tem a ver com os tais trauma do Direito Administrativo, os traumas
da infância difícil.
Foram precisos muitos anos, sobretudo em Portugal, para o Direito Administrativo se libertar
desses traumas, porque as ideias de Otto Mayer e de Maurice Hauriou vão ser repetidas no
século XX e vão constar dos textos latinos. Em Portugal, por exemplo, foi preciso esperar
pela revisão constitucional de 1989 para que a noção de ato definitivo executório saísse da
Constituição, e ainda até 2004 continuava no Código de Processo, mesmo quando já ninguém
ligava nenhuma a essa noção que não tinha qualquer efeito jurídico de aplicabilidade. E
portanto é um fenómeno estranho, e eu ironizei logo no meu Em busca do ato administrativo,
é um fenómeno quase paranormal de uma vida para além da morte, que eu costumava
ironizar nas aulas, lembrando um anúncio de televisão que acho que já desapareceu, em que
havia uma bruxinha - há muitas bruxas na televisão nos dias de hoje, são muito populares -
que dizia ‘Não negue à partida uma ciência que desconhece’, como se fosse uma realidade
científica. E estes conceitos de ato administrativo continuam a ser utilizados quando já não há
este ato administrativo, quando a Administração se tornou prestadora, quando a realidade
mudou completamente e nenhuma destas características já servia para continuar a caracterizar
o ato administrativo. Mas há alguns autores clássicos que contribuem para isto, como
Santiromano, em Itália, e, em Portugal, o Prof. Marcello Caetano, porque o Prof. Marcello
Caetano o que faz é pegar nesta noção de ato e aplicá-la à realidade do regime vigente no
quadro da Constituição de 33, e de resto o Prof. Marcello Caetano diz isso mesmo não só nas
Lições de Direito Administrativo como Direito Constitucional, que uma certa visão
autoritária do liberalismo é algo estava bem…e podemos dizer que estava de acordo com a
filosofia autoritária. O que é que o Prof. Marcello Caetano vai dizer? Vai pegar nesta ideia
autoritária e vai dizer que os atos administrativos têm como característica a definitividade, a
ideia de definição do direito e do procedimento por uma entidade de natureza superior e a
suscetibilidade de execução coactiva. E isto vai plasmar o Direito português, porque é com o
punho do Prof. Marcello Caetano que as normas de Contencioso Administrativo vão
consagrar esta ideia e, designadamente, o princípio segundo o qual para que um ato possa ser
apreciado pelo Tribunal Administrativo tem de ser definitivo. E de alguma maneira,
explicitando este conceito, o Prof. Freitas do Amaral vai, no quadro da explicação deste
regime jurídico…vai apelar à tripla definitividade, vai dizer que não basta que o ato seja
definitivo: ele tem de ser definitivo por representar o fim do procedimento (é o ato último do
procedimento administrativo, igual a uma sentença); é o ato praticado por um órgão de topo,
e isto vem explicar a manutenção, por muitos anos, da ideia do recurso hierárquico
necessário, a ideia de que antes de ir a tribunal era preciso recorrer ao superior hierárquico e
que sem isso o ato não seria impugnável; e, por último, a ideia da definitividade material, que
era a ideia de definição, o ato definia o direito aplicado ao particular do caso concreto. E
como vos disse, estas características vão plasmar o Direito português e não apenas eram
aceites pela Doutrina e pela jurisprudência como também constavam da lei.
Ora bem, a primeira coisa que é preciso dizer é que com a transição do Estado Liberal para o
Estado Social, a partir do início do século XX, nenhuma destas características essenciais do
ato administrativo continuava a existir, e portanto as noções que eram discutidas não faziam
qualquer sentido. Em primeiro lugar, a ideia de definição do direito: um ato administrativo
não define o direito, o ato administrativo produz efeitos jurídicos, mas não tem sequer de ser
um ato jurídico, não que lidar com o Direito; aquilo que a Administração faz é utilizar o
Direito como um fim para satisfazer necessidades coletivas, o que é diferente do que faz o
tribunal, em que o Direito é o fim da sua própria atividade. Portanto, o tribunal diz o direito,
mas a Administração não. Eu já vos dei o exemplo do controlador aéreo que está ali no
aeroporto a dar ordens aos aviões para eles aterrarem ou levantarem voo, e estas ordens são
determinadas por zero conhecimento jurídico. Ele dá estas ordens com base na meteorologia
e com base no tráfego que existe nessa altura, no aeroporto. Ele não faz a mínima ideia que
está a praticar um ato administrativo e o seu ato não tem nada de jurídico. Para todos os
efeitos, a ordem que ele dá tem de ser cumprida, mas este ato não define qualquer direito: não
define o direito do avião, dos utentes do avião, não há nenhuma definição de direito. Porque
maior parte dos atos da Administração Prestadora são atos de atribuição de bens e serviços
que não definem qualquer posição jurídica. Portanto, não se pode dizer, nos dias de hoje, que
a definitividade seja uma característica dos atos administrativos. E se pensarmos na
definitividade, na tal tripla dimensão de que falava o Prof. Freitas do Amaral, então ainda
menos a definitividade faz qualquer sentido, porque: em primeiro lugar, a ideia de
definitividade material é afastada por isto mesmo, ou seja, o direito é um meio para a
Administração atuar, é um resultado, é um efeito jurídico do ato, mas não é um fim em si; a
Administração usa o Direito para satisfazer necessidades coletivas. Quem tem de dizer o
direito aplicável ao particular do caso concreto é o juiz. Portanto, definitividade material não
existe. A maior parte dos atos administrativos praticados, hoje em dia, pela Administração
não definem qualquer direito, e portanto isso não pode ser uma característica do ato
administrativo. Depois, a lógica da complexificação da atividade administrativa faz com que
haja um sucessão de procedimentos que se interpenetram e estão numa lógica sequencial, e
em todos esses procedimentos há atos administrativos e atos administrativos que, hoje em
dia, sempre que produzam efeitos lesivos são suscetíveis de impugnação. Portanto, não é
apenas o último ato, o ato esgota o procedimento, que é relevante: todos os atos
procedimentais são juridicamente relevantes e, sempre que lesivo, é possível ao particular
impugná-lo judicialmente. Temos um exemplo simples em que alguém pede uma autorização
para exercer uma atividade industrial. Ora, antes disso há todo um procedimento de avaliação
do qual resultam atos que poderão dizer que não existe nenhum prejuízo ambiental; a seguir
há um processo de licenciamento, que é um processo autónomo, e que dá origem a um outro
ato, também ele impugnado, e depois vê-se se está em condições de exercer o ato, e só após
todo este processo é que há o concurso.
A ideia do recurso necessário é um autêntico “disparate”, é uma coisa muito excecional. O
que é que se sucedeu para eu defender esta posição? O ato produz efeitos jurídicos, e basta
que o ato… e a ideia da exigência do recurso hierárquico necessário era o acesso ao…
primeiro tem de recorrer hierarquicamente sob pena de… Ora, isto é manifestamente
inconstitucional, põe em causa o acesso à justiça, por violação da separação de poderes, viola
o princípio da desconcentração administrativa, mas apesar de eu entender que é
inconstitucional, durante algum tempo, até à reforma de 2004, o artigo 25.º da Lei do
Processo continuava, levando os autores a procurar justificar as exceções, mas há tantas
exceções que a regra acaba por desaparecer. Em 2004, a regra desapareceu, na medida em
que deixou de ser exigida. Apesar de o antigo CPA falar dela, esperava-se que o novo CPA a
fizesse desaparecer; porém, a regra continua a existir, mas só existe em casos extraordinários
e quando houver uma lei especial, mas isto não muda rigorosamente nada. A comissão que
fez o Código de Procedimento fez também o Código de Processo, e o Código de Processo
não previa, e tinha de prever, sob pena de…, mesmo nos casos excepcionais,… o legislador
revogou aquilo que tinha escrito alguns meses antes. Esta realidade já há muito tempo que
não existia, o particular que… hoje no quadro… e isso que determina o Código de Processo,
a definitividade era algo que foi à vida, acabou por afastar mesmo quando… desapareceu em
todos os países; na França já não existe há cerca de 50 anos, tal como na Itália e na
Alemanha. Mas a maior parte dos atos da Administração prestadora… os atos favoráveis que
prestam bens e serviços são… e o particular que quer obter esse bem. Os atos prestadores… o
que significa que a maior parte dos atos são insuscetíveis de serem executados, mas para além
disso, o CPA diz que regula a… regras jurídicas que proíbem… esses só podem ser impostos
por um tribunal e não podem ser impostos coativamente. Portanto, num caso de exemplo, não
há poder de decisão de dívidas coativas. Isto significa duas coisas: não é característica dos
atos; o princípio da legalidade abrange o poder executório;… se não com base numa concreta
lei. No quadro da teoria jurídica, era o ato definidor do direito… ato exorbitante de execução
coativa era a única realidade… O procedimento… o que estava em causa era a decisão final,
que, segundo o Contencioso, dizia isso até 2004, mesmo que nessa altura a maior parte dos
atos fossem… Esta conceção… Em Portugal, esta crise é mais tardia, porém, noutros países
europeus, esta crise foi sentida nos anos 40 e 50, em que surgiram outras formas… O ato
deixou de ser… e a realidade do Direito Administrativo foi trazendo coisas novas, tais como:
ato prestador; ato multilateral e outros atos que não encaixavam… Nos anos 50, surgiu na
Itália… mas já existia nos países anglo-saxónicos, nomeadamente nos Estados Unidos, mas a
verdadeira valorização do procedimento enquanto novo centro do Direito Administrativo … a
atividade administrativa complexificou-se de tal maneira que as decisões tinham de vir de um
procedimento mais ou menos complexo, proveniente de uma vontade administrativa, que dá
origem a… Há procedimentos em cada uma das funções do Estado, temos o procedimento
legislativo, o procedimento administrativo e o processo judicial; estes são procedimentos
autónomos, o procedimento é comum a todas as formas de atuação, qualquer ato resulta…
Esta construção objetivista desenvolveu-se na Itália e estava preocupada com os valores e
princípios objetivos do Direito Administrativo, pelo que veio a chamar a atenção para…Por
sua vez, na Alemanha surgiu a ideia da relação jurídica, porque esta integra o procedimento.
As relações jurídicas podem ser substantivas quando decorrem das normas de Direito
Administrativo, que estabelecem direitos e deveres dos diferentes sujeitos. Podem ainda ser
procedimentais, dado que a existência de um procedimento em que há diferentes sujeitos
procedimentais cria uma relação jurídica, e podem ser processuais, caso alguém vá a tribunal
para exercer a tutela dos seus direitos. A ideia de relação jurídica traduz uma vantagem sobre
o procedimento e justificava uma construção… afastava os traumas do Direito
Administrativo e permitia uma construção jurídica. Porém, nos últimos tempos, o
procedimento em sentido estrito e a relação jurídica tiveram uma crise, porque a característica
essencial é a multilateralidade, isto porque uma decisão produz uma multiplicidade de efeitos.
Mesmo os atos administrativos que têm um nome… mesmo as atos concretos produzem
efeitos a todos os candidatos dos concursos, estes são todos afetados, … Isto veio a mostrar
que, embora o conceito de relação jurídica seja mais adequado e frequente, é um conceito
sujeito… no quadro português, após a Constituição de 1976 e por influência da nova
doutrina, a relação jurídica encontra-se na Constituição: estabelece as regras de
funcionamento da relação pública, estabelece a igualdade do sujeito, estando no Processo
Administrativo em que o que está em causa são partes… e uma construção que, no quadro do
direito português, é omni-explicativa. Na minha perspetiva, o legislador fez bem em adotar
este conceito que corresponde a uma opção do legislador português adequada para ajudar a
explicar a teoricamente o Direito Administrativo atual, assim como a lógica da relação
jurídica.

João Vilar de Carvalho (64795), Francisca Matos (64506), Ana Luís (64525)

ABRIL

4 de Abril de 2022 - Joana Ferreira (64422), Adriana Azevedo (64642)

Voltando à nossa matéria, na última aula falamos da evolução do centro do


administrativo (atocêntrico em que tudo circula em volta do ato administrativo, o ato
administrativo era o centro do direito administrativo e era discutido e apreciado no processo).
Depois com a crise do ato administrativo e surgimento do estado social e pós-social, a busca
de novas realidades centrais não no sentido positivista mas que fossem as mais habituais e
utilizadas pela doutrina, vimos que a tendência surgiu no direito italiano e no direito alemão.
Nos dias de hoje e em Portugal podemos considerar que o legislador parece adotar no
processo uma lógica assente na realização jurídica (explicação da realidade que abarca o
procedimento e que nos nossos dias tem de te também em consideração a ideia de que as
relações jurídicas são multilaterais).

Vamos procurar analisar a realidade do procedimento em Portugal, partindo da lógica


constitucional, onde ele aparece previsto, e depois olhando para a respetiva noção que consta
das primeiras páginas do CPA.

A primeira coisa que é preciso dizer é que, no quadro de uma lógica constitucional, a
Constituição estabelece a necessidade de uma lei portuguesa. Em Portugal, isto é uma
exigência constitucional porque na altura a seguir à Revolução (quando se fez a Constituição
de 1976) havia uma enorme preocupação com a lógica da administração pública, como ela
funcionava, como ela devia estar organizada e isso gerou um conjunto de regras, que não
apenas falam da ideia da relação jurídica, como estabelecem (no caso do artigo 267º CRP
com a estrutura da administração) regras sobre a estrutura e no meio dessas regras, o
legislador no nº 5 do mesmo artigo vem dizer "O processamento da actividade administrativa
será objeto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços
e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem
respeito.". Ou seja, o legislador entendeu, e bem, que o procedimento era uma forma de
organização da administração pública, o procedimento enquanto realidade autónoma que
serve para a tomada de decisões e para a execução de decisões, deve estar organizado numa
lei que visa assegurar os direitos dos particulares.

Aqui aparece uma lógica dupla. Uma lógica que é simultaneamente objetiva e
subjetiva. O procedimento serve para racionalizar os meios a utilizar pelos serviços, é um
instrumento de racionalização da atuação da administração e é um instrumento de
participação dos cidadãos na tomada das decisões que lhes disserem respeito. E é daqui que
resulta o direito fundamental à audiência. O particular tem um direito fundamental de
participação e este direito fundamental de participação corresponde a um direito fundamental
de audiência.

É importante que se tenha dito isto porque isto corresponde à nova lógica democrática
e de Estado social que as diferenças das administrações públicas apresentam nos nossos dias.
Aqui, curiosamente, o legislador aproxima-se da lógica italiana que, por um lado, regula o
procedimento como uma forma/modalidade de administração, é uma questão de organização
democrática da administração pública e é um instrumento que tem uma dupla dimensão: uma
dimensão objetiva que é sobretudo salientada pelos autores italianos, mas tem também uma
dimensão subjetiva, uma vez que serve para proteger os direitos dos particulares,
designadamente através da via da participação. Quer no 267º quer no 268º, o legislador
estabelece, num quadro da lógica de uma relação jurídica administrativa, com a tal tripla
dimensão substantiva, procedimental e processual, direitos e deveres respectivos de cada uma
das partes. E portanto, temos o legislador constituinte a conjugar as duas dimensões da
relação jurídica e de procedimento, a valorizar autonomamente o procedimento, a dizer que
tem de estar numa lei específica e temos também a integração deste procedimento no âmbito
da teoria da relação específica.

É uma exigência constitucional que existe em Portugal desde 76, se agora revogasse o
Código do Procedimento Administrativo e não fosse substituído por outro diploma, isso
significaria que havia inconstitucionalidade em matéria essencial no quadro da organização
do Estado. Mas se esse é um problema agora, houve um problema no passado, porque o
primeiro Código do Procedimento Administrativo surgiu apenas nos anos 90. A primeira
versão do CPA é uma versão que data precisamente dos anos 90, o que significa que de 1976
a 1990, o legislador não foi capaz de dar cumprimento a essa exigência constitucional. É um
caso típico de inconstitucionalidade por omissão e um caso de violação de uma norma
constitucional. O que na altura gerava vários problemas, o direito administrativo e a doutrina,
nos anos 90, apercebeu-se, que haviam vários problemas de défice constitucional no direito
administrativo. Era preciso estruturar a realidade administrativa de acordo com a lógica
constitucional, senão voltávamos a ideia de Otto Mayer de que o direito constitucional passa
e o direito administrativo fica.

O direito administrativo existente em Portugal nos anos 90, era, infelizmente, um


direito do passado. Tinha mudado tudo, a constituição, a lógica do relacionamento do
particular e da administração, tinha mudado o funcionamento da administração pública, o
funcionamento dos tribunais administrativos, mas a lei continuava a ser a mesma, e a
realidade administrativa tinha mudado muito pouco. De resto há, desta altura, dos anos 90,
um estudo muito curioso do Doutor Rui Machete, em que ele usa a expressão de Otto Mayer
para dizer que ela, de alguma maneira, ainda continuava a fazer sentido porque do ponto de
vista legislativo, a realidade portuguesa era uma realidade do passado. Os anos 90 foram os
anos em que se discutiu praticamente tudo do direito administrativo e essa discussão, que por
um lado, mudou os rumos da doutrina, essa discussão também introduziu instrumentos
relativos adequados à nova situação, uns imediatamente, outros mais tarde, o primeiro a
surgir foi o Código de Procedimento Administrativo. Este código resultou do trabalho de uma
comissão. Comissão Freitas do Amaral, que era o presidente da mesma e que era o último
responsável pela Comissão e que convidou alguns colaboradores, como foi o caso do
professor Vasco Pereira da Silva, também a participar neste esforço de elaboração da primeira
lei do procedimento administrativo em Portugal.

A lei foi feita em condições amadoras (não havia sequer apoio de secretariado) e o
código avançou contra tudo e todos. Embora tenha sido desde a primeira hora alvo de
críticas, foi o principal elemento de democratização da administração pública. O facto do seu
surgimento foi importante. Esta realidade de que era preciso mudar o procedimento
administrativo também explica algumas opções do legislador. Não se limitou a regular o
procedimento, o procedimento administrativo é o modo de formação e execução das decisões
administrativas, sendo um mecanismo do “decision making process”. O legislador português
(à semelhança do alemão e espanhol) aproveitou a oportunidade de estar a regular o
procedimento para regular aspectos essenciais da relação jurídica. Logo, de alguma maneira,
o CPA acabou por ser um verdadeiro código administrativo. Em Portugal havia tradição dos
diplomas do século XIX eram administrativos mas eram só diplomas parcelares da
administração local. O CPA é, em bom rigor, mais que um simples código de procedimento,
basta olhar para o modo como está organizado: uma primeira parte onde há princípios gerais
do direito administrativo, a segunda parte com regras sobre os órgãos da Administração
Pública que não são de procedimento (são de administração no geral), parte terceira do
procedimento (só uma parte é que trata do procedimento) e parte quarta sobre. Isto reflete a
lógica do código no quadro da sua organização. Este modelo é o modelo alemão e espanhol
mas foi muito criticado, nomeadamente pela escola de Coimbra (não tendo código de
procedimento não devíamos logo fazer código administrativo, era algo demasiado
ambicioso). É claro que há problemas e a lógica de “ir fazendo”. A lógica era de que, “isto é
um diploma que tem interpretações distintas que representa aquilo que o máximo
denominador comum entre posições doutrinárias diferentes de pessoas que se respeitam”.
Num quadro de uma lógica de pessoas que sabem, discutir para encontrar a melhor solução.

Quando, em 2015, se fez uma reforma profunda com direção do Professor Fausto
Quadros, aí também houve uma perspetiva de continuidade ou alteração de normas, diplomas
modernos são diplomas abertos à realidade histórica. Em boa hora, tenho muito orgulho e
honra por ter colaborado com Freitas do Amaral na elaboração do código. Este código resulta
de uma doutrina dos anos 90 que estava a construir-se. Uma das coisas que vos queria dizer
agora tem a ver com a noção de procedimento administrativo que, curiosamente, aparece no
quadro do artigo 1º e não foi alterada em 2015. Tenho de dizer que fui crítico desta
formulação em 2015 mas ela estar aqui era melhor que adotar a lógica monista de
alternatividade entre procedimento e processo (promiscuidade entre administração e justiça),
esta lógica na época do Freitas do Amaral já não existia. Freitas do Amaral defendia a ideia
de Código do Processo Administrativo no artigo 1º e só cedeu quando o regente falou que o
“Código do Processo Administrativo” ia ser declarado inconstitucional porque a CRP
distingue processo de procedimento. O código era o código de Freitas do Amaral mas foi
muito modificado pelo quadro da evolução e com colaboradores que introduziram novas
dimensões nesse código. Aquilo que acabou por ficar no número 1 é a noção dos anos 70,
ideia de que o procedimento já tem autonomia mas subalternizada, com alguma
independência face ao resultado da atividade administrativa. É uma visão ultrapassada, o
procedimento é que condiciona o resultado da atividade administrativa. Se eu já era crítico do
legislador do CPA ter adotado esta noção, mais critico tenho de ser quando o legislador de
2015 manteve essa formulação do artigo 1. Hoje em dia é uma fórmula de museu que não tem
qualquer utilidade.

Para perceber isto e perceber o que é cada uma destas realidades, há que ver a noção
de procedimento. Eu escrevi um artigo que vos vou deixar no moodle, que faz uma crítica,
não só à noção do legislador como também ao facto de ter havido consequências nefastas da
legislação desta conceção em regras e normas que o legislador de 2015 consagrou. E de
acordo com a minha lógica polémica de escolher títulos provocativos intitulei este estudo de
“Breve crónica do legislador do procedimento que parece não gostar lá muito de
procedimento”, o que me parece que é uma forma muito adotada porque o legislador de 2015
gostava menos de procedimento do que o legislador dos anos 90. Porque, em muitos aspetos,
ou fugia a uma lógica estritamente procedimental e preocupava-se em regular matérias
substantivas porque algumas delas eram escusadas, por outro lado, porque esta noção de
procedimento é demasiado limitativa e põe em causa a lógica da autonomia procedimental.

As alternativas eram a conceção clássica do século XIX que corresponde à conceção


atocêntrica, em que, aí o procedimento não existia nem servia para nada, ninguém valorizava
o procedimento, só haviam formalidades que deviam ser seguidas no âmbito da tomada de
decisões mas ninguém se preocupava com elas nem com a existência de quaisquer regras
reguladoras do modo de formação e afirmação da vontade, portanto, nos tempos da infância
difícil do direito administrativo, havia uma lógica de total negacionismo do procedimento.

A única referência de procedimento foi feita por La Ferrière, um autor francês que
está por detrás do nascimento do contencioso administrativo, que dizia que procedimento,
quanto muito era uma mera formalidade que correspondia à forma do ato. E portanto, era
algo relacionado com ato administrativo e correspondia a uma mera forma do ato. Esta
confusão entre a forma e as formalidades (forma e o procedimento) mostrava bem como o
procedimento era completamente ignorado porque a forma é como o ato se expressa, ou seja,
qual a realidade formal que está em causa, como o ato se organizou/como se vestiu, ou seja,
qual a sua aparência. Ora, isto não tem nada a ver como o ato foi produzido, o procedimento
é o modo como o ato surgiu e quais as regras para que ato tivesse surgido, outra coisa
diferente, é a confusão de La Ferrière entre forma do ato e procedimento que decorre da total
desvalorização do procedimento.
Isto influenciou o direito português porque ainda hoje o artigo 161º, nº2, alínea g)
refere-se aos atos que careçam absolutamente de forma legal como sendo uma forma de
ilegalidade e no quadro destas ilegalidades a doutrina inclui as formalidades essenciais e
inclui os vícios de procedimento, e isto é manifestamente absurdo nos nossos dias.
Procedimento e forma não se podem confundir, são realidades radicalmente opostas e só em
momentos de falta de importância do procedimento até se podiam entender. Portanto, nesta
fase, negava-se qualquer relevância jurídica do procedimento administrativo. Mas num
quadro da lógica positivista, passou-se a um segundo momento de conceções monistas que
integravam o procedimento e o processo numa mesma realidade e subalternizavam o
procedimento e o processo. Isto correspondia, por um lado, partir da velha ideia do trauma da
infância difícil em que a administração e a justiça eram a mesma coisa, e tal como nos tempos
da revolução francesa, na segunda metade do século XIX, se dizia que o sistema ministro-juiz
que o ministro era a primeira instância do contencioso administrativo e a segunda instância
era o juiz, isto era uma lógica de continuidade entre administração e processo, como se o juiz
e o ministro tivessem autonomia, como se fossem a mesma coisa e atuassem da mesma
maneira, isto era uma realidade que não fazia sentido mas que correspondia à lógica
tradicional da escola de Lisboa. Era a lógica clássica da promiscuidade entre administração e
justiça que correspondia a esta desvalorização do procedimento que existia em Portugal.

Ainda hoje, se falam em doutrinas/visões processualistas do procedimento, isto é um


disparate absoluto, o que é necessário é uma visão procedimental do processo porque o
procedimento é que é a categoria geral da formação das atuações públicas, essas atuações têm
procedimento legislativo, administrativo e judicial e este último chama-se processo. Ou seja,
não são visões processualistas do procedimento, o que queremos é uma visão procedimental
de todas as formas de atuação e uma visão procedimental do processo, a lógica é de dar
autonomia ao procedimento administrativo. E isto fez-se na construção de Sandulli nos anos
70 do século XX, que procurava dizer que ele tem autonomia mas é uma autonomia ainda
limitada e foi essa solução que corresponde à lógica da total autonomia do procedimento que
foi adotada pelo legislador nos anos 90 e que foi repetida em 2015.
6 de Abril de 2022 - Iara Sequeira (64769); João Vilar de Carvalho (64795)

Vamos hoje continuar a nossa matéria e estávamos, na aula passada, a falar das diferentes
funções do procedimento administrativo a propósito do artigo 1º do Código de Procedimento
Administrativo, que dava uma noção de procedimento que da minha perspetiva é uma noção
datada, uma noção que não fazia sentido quando o código foi criado - esta formulação é dos
anos 90, aliás em 80 foi quando preparámos o Código, que entrou em vigor em 90 - tal como,
muito menos faz sentido em 2020.

O que vamos ver hoje é que esta conceção do procedimento teve consequências em soluções
normativas encontradas por este legislador que também não são adequadas. Uma má teoria
gera más normas, uma boa teoria gera boas normas. E é algo que nós nos habituamos a
pensar, que a ligação entre teoria e prática faz com que ter bons conceitos e boas teorias
permite boas soluções. É sempre possível encontrar boas soluções, mas existe esta ligação.
Como vamos ver na aula de hoje, há soluções que o legislador encontrou, no quadro da
reforma do contencioso administrativo que não são as melhores e que de resto estão na
origem daquele tipo que eu dei, aquele trabalho que eu vou colocar no moodle, que se chama
«Breve Crónica de um Legislador de Procedimento que Parece Não Gostar Muito de
Procedimento». Portanto, há alguns problemas no quadro dessa realidade.

Na aula passada, falámos das duas primeiras concessões de procedimento. A concessão


negacionista, foi a primeira, que não dava qualquer relevância ao fenómeno procedimentário
e quando fazia alguma referência indireta ao procedimento era como uma mera formalidade,
e uma formalidade que era considerada um elemento essencial do ato administrativo.
Portanto, é uma lógica atocêntrica, em que no entendimento de La Ferrière e que depois
chegou até aos nossos dias, em que o procedimento não era relevante, havia algumas
formalidades que por vezes tinham de ser cumpridas e essas formalidades apenas respeitavam
a um elemento essencial do ato administrativo e só eram consideradas no quadro dessa
dimensão ao longo do ato administrativo. Portanto, o procedimento não tinha qualquer
relevância.

Depois há uma construção monista. E esta, em Portugal, foi dominante e teve uma influência
que está mesmo para além daquilo que correspondeu à sua utilização em outros países. A
concessão monista considerava que o procedimento e processo eram a mesma coisa, aliás fala
em processo administrativo gracioso e contencioso – havia uma continuidade do processo
gracioso para o contencioso – e considerava-se que aquilo que se passava no seio da
Administração era relativamente pouco relevante e aquilo que era mais importante era o
controle contencioso que surgia no fim. E, portanto, a relativização do procedimento no
quadro da concessão monista atribui algum papel ao processo, mas de alguma maneira
também desvalorizava o procedimento. Este construção que foi muito defendida em Portugal
pelo Professor Marcelo Caetano, teve um grande apoio nos anos seguintes por causa dos seus
discípulos, o Professor Freitas do Amaral até ao fim gostaria de ter continuado a falar de
processo administrativo gracioso – em relação ao código de procedimento administrativo, só
no último dia quando foi votado o 1º artigo, que deveria ter sido o primeiro, mas foi o último
e só aí é que ele cedeu e, a partir daí, deixou-se de falar em processo administrativo gracioso.
Mas em todos os seus companheiros, que iam desde o Professor Jorge Miranda ao Professor
Sérvulo Correia a ideia continuou, já não no nome, mas a ideia de que era preciso ter uma
visão processualista do procedimento, o que é um disparate. O processo é uma realidade que
tem a ver com o processo negocial, com o Tribunal. Portanto, não é esse processo
jurisdicional que serve de exemplo ao funcionamento da Administração. Eu, pelo contrário,
acho que é necessário ter uma visão procedimental do próprio processo porque o processo é
uma manifestação do procedimento, é o procedimento ao nível da função judicial.

Esta formulação adotada pelo regulador deste artigo 1º é a primeira formulação que diz que o
procedimento é importante, mas apesar de autonomizar o procedimento, ela autonomiza-o
subautonomizando-o ao resultado final, à forma da atuação administrativa. O primeiro autor a
formular esta visão, em termos quase iguais aos do artigo 1º do CPA, foi Sandulli, um dos
grandes autores administrativistas italianos, que definia o procedimento administrativo
ligando-o, exclusivamente, ao ato administrativo. É o conjunto de atos e formalidades
encadeados para a tomada de uma ato administrativo, ligados à prática do ato administrativo.
Tirando isso, a formulação era basicamente esta aqui “é uma sucessão ordenada de atos e
formalidades que se destinava à formulação e à execução de um ato administrativo”. Temos
uma noção mais ampla, não é apenas o ato administrativo é a forma de atuação que está em
causa, pode ser o ato, o contrato, o regulamento, uma atuação informal, é a realidade que
corresponde ao resultado do procedimento.

Se por um lado, se dá relevância pela primeira vez ao procedimento, por outro lado, ele é
subalternizado à formulação final, ao resultado dessa atuação. E o predomínio do resultado
nota-se em várias normas da CPA. Nota-se que o legislador está preocupado em regular o
procedimento, mas diz que se não for cumprido assim não tem problema. Chega a dizer, no
artigo 163º/5, que o procedimento é autónomo e relevante, mas que se não houver
procedimento não há problema algum. É importante, mas não é tão importante assim, o que é
um disparate. O artigo 163º está a regular o regime da anulabilidade e os atos anuláveis
produzem efeitos até serem anulados e ao serem anulados têm eficácia retroativa, apagando
todos os efeitos produzidos anteriormente. É uma forma de invalidade no nosso ordenamento
jurídico. Existem dois tipos de invalidades: a nulidade, que corresponde a uma situação em
que uma atuação administrativa desde o início não é suscetível de produzir efeitos e, portanto,
os efeitos que existirem têm-se por não existentes, não é suscetível para produzir efeitos; e a
sanção da anulabilidade, a segunda mais grave, que diz que o ato administrativo produz
efeitos até ser anulado, mas essa anulação tem eficácia retroativa, afastando todos os efeitos
produzidos desde o início, eventualmente com necessidade de recompor a ordem jurídica em
resultado desse efeito anulatório. Mas pode suceder que se esse ato administrativo nunca for
anulado, ou porque a Administração não tomou essa iniciativa ou porque os particulares
nunca recorreram ao tribunal, um ato ilegal pode vigorar na ordem interna porque enquanto
não for anulado vai produzir todos os efeitos normais. Por isso é que é a sanção menos grave
da ordem jurídica, uma sanção que até é justificada um pouco no extremo com base na ideia
de que o poder administrativo não pode estar à espera de atuações de outrem, se elas
existirem muito bem, senão perpetua-se aquela realidade. É uma situação que em termos de
segurança tem explicação, mas que do ponto de vista da justiça tem menos e até se discute
muito saber se a nulidade não deve ser a forma de invalidade principal. Entendo que,
contrariamente ao que dizem os autores do Código que entendem que o código consagra a
anulabilidade como a sanção principal, eu entendo que não, que o Código estabelece um
mecanismo de igual aplicação da nulidade e da anulabilidade consoante a gravidade da
ilegalidade. Mas aquilo que esta norma nos diz é extraordinário, diz-nos que o ato é ilegal
porque violou uma norma de procedimento, o ato praticado sem notificação, sem
fundamentação, sem direito de audiência, todos aqueles direitos fundamentais consagrados na
Constituição que são violados, e diz-se que esse efeito anulatório não se produz, dizem eles
em situações excecionais, em três situações diferentes. A primeira é quando o conteúdo do
ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso
concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível. Dois problemas
com esta norma. O conteúdo do ato determina-se através do procedimento, é o procedimento
nas suas diferentes fases que vai configurando o conteúdo do ato administrativo. Se não há
procedimento, como é que se pode dizer que o resultado não poderia ser outro? Não pode,
porque o resultado depende do procedimento. E se saltou algum dos momentos
procedimentais, isto significa que o objetivo do procedimento não se realizou e se não se
realizou não pode deixar de haver anulabilidade. Por outro lado, na segunda parte desta alínea
a) diz-se que o conteúdo não pode ser outro por o ato ser de conteúdo vinculado, isto é a ideia
do ato discricionário e ato vinculado que como já sabemos é um disparate – na nossa ordem
jurídica, os ato são simultaneamente vinculados e discricionários e estes dois aspetos
correspondem a duas dimensões da legalidade. E, portanto, o legislador parece partir de uma
concessão que considera que se houver vinculação, se o ato for um ato vinculado (que não
existe), então não há problema nenhum porque independentemente de se ter cumprido ou não
a regra de procedimento, o ato é legal. Isto é manifestamente insustentável. Depois o nº2 é a
lógica mais disparatada possível. Ou seja, o fim visado com a exigência procedimental pode
ser conseguido por outra via, outra via que não é procedimental, outra via que contraria a lei.
A lei diz este ato tem de seguir este fim, para prosseguir este fim tem de praticar isto. Não faz
qualquer sentido dizer que quando o fim do ato se realiza, então considera-se que não há
ilegalidade procedimental. É claro que há, a Administração para que aquele ato cumprisse os
seus efeitos tinha que contactar o particular e notificar da existência do ato. A seguir, na
alínea c) como é que se pode provar que sem o vício o ato teria sido praticado com o mesmo
conteúdo se saber qual é o conteúdo do ato tinha de ser determinado através do procedimento.
De novo, estas normas são um disparate, esta normas correspondem a dizer que o
procedimento é essencial, é tão essencial que a Constituição manda haver uma lei de
procedimento, que diz que a lei de procedimento é importante para garantir a qualidade das
decisões administrativas e para permitir a tutela dos direitos dos particulares, mas que apesar
desta importância toda não tem problema se não existir um procedimento. Isto é algo que é
inadmissível. E, portanto, significa que esta norma do nº5 do artigo 163º é manifestamente
inconstitucional , viola a norma do artigo 267º da Constituição, que estabelece a necessidade
do código de procedimento e os objetivos deste código, designadamente a participação. E isto
que aconteceu em Portugal por causa desta norma, que de resto é copiada da norma do código
de procedimento administrativo alemão. Isto leva a que se diga, em Portugal tal como na
Alemanha, que isto é manifestamente inconstitucional em razão dos direitos fundamentais. E
aquilo que tem sido dito na Alemanha, eu julgo que faz sentido alegar com razão em
Portugal, para através de uma interpretação conforme à Constituição, estabelecer aquela
realidade, dentro da qual e só nessa este artigo pode ser considerado constitucional, uma
solução no limite, todas as outras são inconstitucionais. Como é que se encontra esse limite?
Tem de vir da teoria dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar, e foi a primeira
consideração feita num quadro do direito alemão, a realidade dos direitos fundamentais
procedimentais, aqueles que a Constituição elevou à posição de direitos fundamentais, esses
direitos nunca podem ser postos em causa por que a Constituição diz que tem de haver
sempre direito à notificação, direito à audiência, direito à fundamentação das decisões, todos
aqueles que estão consagrados no artigo 267º e 268º, que são princípios e direitos
fundamentais em matéria de procedimento administrativos que nunca podem ser
contrariados. Portanto, isto é um limite à aplicabilidade deste artigo. O primeiro limite
constitucional é, então, este ,se a Constituição estabelecer que estes direitos fundamentais de
natureza procedimental têm essa natureza, se isso é um elemento essencial da lógica
constitucional, então, não é possível superar essa norma e, dentro dessas situações, este artigo
não pode ser aplicado. É possível ainda dar outro passo, que também foi dado no direito
alemão. A primeira objeção é a dos direitos procedimentais, mas uma outra objeção tem a ver
com a própria existência dos direitos fundamentais. O direito fundamental implica um regime
jurídico de tutela. O nosso artigo 18º estabelece um regime jurídico especial para os direitos
fundamentais. Desse regime resulta implicitamente que qualquer decisão tomada no quadro
da aplicação de um direito fundamental, tem de ser uma decisão tomada no procedimento
administrativo porque isso faz parte das garantias mínimas que a constituição estabelece para
que esse direito fundamental não seja violado relativamente ao seu conteúdo. Portanto,
começou-se a dizer no direito alemão, tal como diz a jurisprudência do tribunal alemão e
jurisprudência do tribunal português, que o conteúdo de um direito fundamental não pode ser
afetado por qualquer decisão administrativa se não houver um procedimento que nos termos
estabelecidos na Constituição estabeleça essa situação. O procedimento é uma condição, ou
na expressão de Gublin que o direito fundamental é uma garantia do procedimento, é uma
garantia que a decisão tomada por uma autoridade administrativa tem uma dimensão
procedimental. Se olharmos o âmbito dos direitos fundamentais nos nossos dias isso significa
que na prática isto se aplicará a quase nenhuma expressão. Se encontrar alguma que não
corresponder nem a um direito fundamental procedimental nem a um direito fundamental de
qualquer natureza pois aí não haverá inconstitucionalidade. Deve ser mais difícil - para usar
uma expressão Bíblica - encontrar uma agulha num palheiro do que encontrar uma situação
desta. Efetivamente, o que está em causa é algo que, do ponto de vista constitucional, é
duvidoso. E portanto, por mais justificações que se encontrem…e o legislador do CPA, nas
anotações, procura justificar “nós não gostávamos muito disso, mas a jurisprudência tem uma
coisa parecida e achamos que era bom salvar alguma coisa, mas isto é muito excecional, isto
não se aplica”: não, mas o problema não é a excecionalidade, isso é inadmissível! E é
inadmissível no quadro dos direitos fundamentais. Portanto, isso é inconstitucional. É algo
que o legislador não devia ter feito. Estabelece uma relação subserviente do
procedimento…não se sabe qual seria o resultado, portanto os fins do procedimento não
foram efetivamente realizados. Mas eu avancei depressa demais, tinha pensado deixar isto
mais para o fim, mas não tem problema.
Acabei por não vos dizer aquilo que corresponde à nova conceção do procedimento e ao
modo como se deve olhar para ele. O procedimento é uma realidade que tem um valor…e
essa é uma realidade que, hoje em dia, condiciona como a lei olha para o procedimento, em
todos os países da Europa: a ideia que o procedimento não tem de servir, não está ao serviço
do resultado final, que o procedimento é algo de absolutamente essencial, sem o qual há uma
ilegalidade da atuação administrativa. De alguma maneira significa dizer, contrariamente à
lógica tradicional de que os fins não justificam os meios, mas é considerado que os meios são
relevantes para os fins quando se está a falar de uma atuação administrativa. Não basta a
Administração tomar decisões corretas, tem de as tomar da forma correta, porque isso é que
caracteriza uma Administração democrática do Estado Social. Não é apenas a legalidade
material que conta, é tudo o que está para trás. Portanto, o procedimento é uma realidade
essencial. Podemos ainda ligar ao ato administrativo como faz o Professor Marcelo Rebelo de
Sousa, e bem. Podemos, como é a minha perspetiva, partir da lógica constitucional. Agora, o
que não podemos dizer é que o procedimento é absolutamente essencial mas não há problema
nenhum se não for cumprido. Não basta que a decisão final pareça correta, é preciso que seja
tomada da forma correta. O procedimento é uma realidade essencial para a Administração
democrática do Estado de Direito que presta serviços aos cidadãos, que tem de tratar de todas
as pessoas com a lealdade necessária e cumprimento de todos os princípios fundamentais.
Isto é absolutamente essencial. E a prova que isto é assim é que o procedimento que vale em
si mesmo, vale pelos resultados que sejam alcançados no âmbito do Direito Administrativo.
Fala-se muito - e eu também - da multifuncionalidade do procedimento administrativo. Há
várias funções que o procedimento desempenha e que não podem ser prosseguidas de mais
forma alguma. Se não há procedimento, essas realidades não se concretizam. Quais são? Em
primeiro lugar, a função de racionalização: o procedimento racionaliza o processo de tomada
de decisão, estabelece uma lógica, estabelece o que é que a Administração deve fazer para
tomar aquela decisão. Para quê? Para que a própria decisão seja mais racional por ter havido
racionalidade na forma como ela foi realizada. Era aquilo que os italianos diziam desde o
inicio, que é a ideia de que o procedimento é uma forma de organização administrativa: a
Administração deve estar organizada de uma forma tal que o procedimento seja racionalizado
para que essa racionalização do funcionamento da Administração permita a racionalização da
decisão administrativa. Segunda função do procedimento: legitimar a atuação da
Administração. A maior parte dos órgãos administrativos gozam apenas da legitimidade do
Estado de direito - aquilo que Max Weber chamava de legitimidade legal-burocrática -,
porque a maior parte dos órgãos administrativos não são iguais, são de caráter local e mais
nada, não gozam de legitimidade direta. A sua legitimidade é cumprir as regras do Estado de
direito: regras de competência, regras de procedimento e regras de forma. E o facto de se
cumprirem as regras implica também que o particular participe nas decisões. A participação
nas decisões, por um lado, melhora a qualidades das decisões porque mostra outras
alternativas a que a Administração podia recorrer e, por outro lado, permite que a decisão seja
melhor recebida pelos destinatários e, portanto, seja de mais fácil aplicação. E portanto há
uma legitimidade que acresce à legitimidade legal-burocrática que é a legitimidade que
decorre do procedimento. Isto foi uma realidade que, nos anos 70, foi muito teorizada: a ideia
de que o procedimento é uma realidade legitimadora. Em terceiro lugar, o procedimento serve
para coser - como dizem os italianos - os interesses antagónicos que existem em qualquer
decisão administrativa. Porque a realidade administrativa é cada vez mais complexa e há
interesses antagónicos, públicos e privados, que têm de ser cozidos no procedimento, têm de
ser trabalhados e conciliados no procedimento. Deixem-me dar um exemplo: a construção de
uma segunda ponte sobre o Tejo. É um exemplo que vamos analisar como se fosse uma
realidade teórica, mas que é que uma realidade que aconteceu assim, mais coisa menos coisa.
Se pensarmos no Governo, órgão superior da Administração Pública, e se pensarmos que
cada Ministro tem atribuições diferentes, a escolha do melhor local para construir a ponte
Vasco da Gama varia ou pode variar e variou, em Portugal, consoante o Ministro da pasta
respetiva. Para o Ministro das Finanças, a solução mais baratinha é a melhor e portanto o sítio
onde o rio esteja mais estreito para que a construção possa ser mais pequena e a ponte ser
mais barata é o sítio adequado para construir. Na perspetiva do colega da Economia, o sítio
mais adequado é o que melhor desenvolve a realidade económica dos dois lados da ponte. Da
perspetiva do Ministro da Defesa, o melhor sítio é aquele que corresponde melhor às
realidades geoestratégicas de Portugal, para que se houver uma invasão aquela ponte possa
permitir uma rápida passagem de um lado ao outro e, de preferência, construída de uma
forma que não seja destruída rapidamente. Da perspetiva do Ministro do Ambiente, o melhor
sítio é o que afeta menos o ambiente, designadamente não por em causa nem os peixes, nem
as aves - e a zona do Tejo é uma zona protegida não apenas por lei nacional, mas por lei
europeia: há duas diretivas, a Habitat e a diretiva aves que protegem os peixes e as aves da
zona do Tejo. Ora, o local inicialmente pensado para construir a ponte é o pior local de todos,
e isto gerou problema de conflito entre o Ministro da Economia e o Ministro do Ambiente.
Podíamos continuar por aí adiante. E para além disso, também havia os interesses dos
particulares, que viviam no Montijo, na Moita ou noutro sítio qualquer e que tinham especial
interesse na construção no sítio que desenvolvesse melhor a sua zona. Mas também havia
interesses das ONG que achavam que o primeiro projeto era o pior porque era aquele que
mais afetava os peixes e as aves, e por isso a QUERCUS apresentou uma queixa à Comissão
Europeia e apresentou um pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeia para que fosse
posta em causa aquela decisão, que ainda por cima implicava uma mobilização de meios
comunitários. E a UE veio a Portugal ver o que é que se estava a passar. E é muito curioso
que uma situação que tinha todas as condições para dar resultar da pior maneira, acabou por
dar uma solução que agrada a toda a gente, que faça a UE dizer que Portugal é, neste sentido,
o que é necessário. O caso da ponte Vasco da Gama podia ter sido um caso de completa
violação de valores e acabou por ser uma boa solução. Porquê? Primeiro, porque se alterou o
local, houve uma deslocação de centenas de metros que permitiu não passar por cima da zona
mais problemática em termos de proteção ambiental. Depois, porque o caderno de encargos
obrigou a que todas as técnicas de construção fossem todas cumpridas. Utilizou-se aquilo que
a diretiva europeia chama de melhores tecnologias disponíveis. Depois, porque o
equipamento da ponte foi concebido em termos ambientais. Já viram com certeza aquelas
luzes azuis, que não são apenas bonitas, mas que só podem ser aquelas para que a luz só
ilumine o tabuleiro da ponte, para que não haja nenhuma luz a ir para o Tejo e encadear
peixes e aves. É por isso que os senhores à noite, se se colocarem entre as duas pontes, olham
para o lado direito, para a ponte Salazar ou para a ponte 25 de abril (como lhe quiserem
chamar), e veem um arraial, luzes, barulho, Zés Pereiras a tocarem bombo; olham para a zona
Vasco da Gama não veem a ponte, porque não tem luz senão sobre o tabuleiro. Todo o
equipamento foi escolhido a dedo. E depois, também a Lusoponte tem deveres de
recuperação do meio ambiente, designadamente ficou com o dever de recuperar as salinas do
Samouco e ainda hoje tem essa tarefa, que corresponde a uma exigência do caderno de
encargos. E portanto, evitar um mau resultado decorreu do procedimento. Foi o procedimento
que manifestou os interesses antagónicos, os coseu uns nos outros e fez com que eles
chegassem à melhor decisão possível. Soluções ideais não existem. É por isso que as
melhores soluções são construídas no procedimento. Não caem do céu aos trambolhões. Não
podem ser feitas de outra maneira, que não seja uma maneira procedimental. O procedimento
é absolutamente essencial para a qualidade da decisão administrativa, para permitir conciliar
interesses antagónicos. Mas ainda mais: é a última função do procedimento. O procedimento
serve também para ouvir os interesses dos particulares e para ouvir os seus direitos, porque a
Administração tem de saber o que pensam os particulares antes de tomar a decisão. Eu
costumo contar uma história que explica isso às maravilhas - acho que até já contei, mas
repito outra vez: é uma história que tem a ver com uma das minhas estadias em Nova Iorque,
há muitos anos para trás, em que eu tinha acabado de dar as minhas aulas e o meu amigo
diz-me “olha, tu querias ver o funcionamento da Administração, não querias? Vai haver uma
audiência pública, no sítio onde eu moro. Queres vir?” e eu fui. Eu estive lá duas horas a
sofrer horrores, porque durante duas horas ouvi todos os engenheiros a explicarem qual devia
ser o tamanho dos canos da rua - estava em causa uma obra que ía substituir todos os canos
da rua de Manhattan. Ouvi todas as explicações sobre as medidas mais adequadas. Estava
com o meu tempo perdido a ouvir coisas que não prestavam nada, até que a minha tarde foi
salva por uma simpática avozinha que salvou também a decisão, que explicou esta coisa
elementar: a velhota dizia “eu vou todos os meses fazer as minhas compras ao supermarket
do Joe do outro lado da rua. Eu gosto imenso de ir ao supermarket, o homem é muito
simpático, eu vou lá 4 vezes por dia, há até uma tertúlia que se junta ao fim da tarde porque o
Joe vem da Turquia, é um imigrante turco e faz um chazinho de menta fantástico e às 5 horas
vamos as velhotas todas buscar o chá que ele nos oferece. Mas eu vou deixar de ir ao
supermarket, porque, durante 6 meses, eu não posso atravessar a rua, e para lá chegar tenho
de andar 3 km por outra rua e depois mais 3 para ir para lá: tenho de fazer 6km para ir e fazer
6km para vir. E como é que eu durante 6km trago as compras? Antes de mais nada, eu mal
consigo andar”. E esta intervenção luminosa fez com que alguém se lembrasse que para que a
obra estivesse lá durante 6 meses, era preciso que houvesse uma passadeira que permitissem
a todos atravessar para o outro lado da rua. Foi isso que a velhota trouxe ao procedimento.
Foi isso que salvou a minha tarde, que passou a ser luminosa depois de ouvir aquela
avozinha. E foi isso que salvou a decisão do Mayor de Nova Iorque, que mandou instalar
pontes de 200 em 200m para que todas as pessoas pudessem deslocar-se em condições
adequadas ao outro lado e voltar, fazer as compras.
O procedimento serve para saber quais são todos os direitos afetados, quais são os interesses
das pessoas envolvidas por aquela decisão, e considerar esses interesses no quadro da decisão
final. Se não houver procedimento, a decisão é pior e a decisão põe em causa os direitos das
pessoas. E portanto, é absolutamente essencial fazer procedimento. Outro exemplo: quando
estava na Alemanha…só dois segundos, uma historinha agora. Bem, o procedimento é
absolutamente essencial, não só para a tutela de direitos, mas também para manifestar
interesses jurídicos, manifestar posições das pessoas que são importantes para a tomada da
decisão. E portanto tem, simultaneamente, uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva:
melhora a qualidade das decisões, protege os direitos dos particulares.
A nova lógica de olhar para o procedimento, a lógica que em França vai tendo cada vez mais
defensores, a lógica do direito italiano, que defendem a autonomia do procedimento, a lógica
alemã, a lógica espanhola…enfim, em todos esses países, hoje, percebem que é preciso
considerar a relevância autónoma do procedimento.
Bem, ficamos por aqui. Desejo a todos uma ótima Páscoa, com muitas amêndoas.

Iara Sequeira, João Vilar de Carvalho (64795)

11 de Abril de 2022 - Clarisse marques; Iara Sequeira


● professor faltou

20 de Abril de 2022 - Sara Borga; Índia Salvador 64609

O procedimento é uma realidade que podemos definir como sendo quadrifásica – expressão
do professor Diogo Freitas do Amaral – que entende que a principal transformação do CPA
foi ter transformado o procedimento trifásico - abertura, investigação, inquisitório – porque
acrescentou a fase da audiência e início da decisão.

Transformou-se o procedimento administrativo introduzindo a necessidade de a


Administração ouvir sempre particular interessado. Ela já pode ter ouvido o particular em
momentos anteriores, na fase do instrutório, e se já conhece suficientemente as posições dos
particulares pode dispensar a audiência, fundamentando, mas não sendo esse o caso, o direito
de audiência é um direito fundamental que deve ser sempre cumprido. Esta qualificação da
audiência como direito fundamental é importante e dela decorrem várias consequências:

Esta qualificação tem que ver com a noção que se adota de direitos fundamentais: o professor
Vasco Pereira Silva assume uma noção evolutiva de direitos fundamentais, que se vão
transformando ao longo da história - os direitos de 1.ª geração que correspondem ao Estado
liberal, são liberdades em face do Estado, que são direitos em face do quadro da vida privada;
existem ainda os direitos da 2.ª geração, os direitos e liberdades, os direitos a uma
intervenção do Estado na vida económica social e cultural, como é típico do modelo do
Estado social. No modelo do Estado pós-social, com novas ameaças à dignidade da pessoa
humana no quadro do ambiente, das novas tecnologias e da informática, há novos direitos
fundamentais a esse nível, mas também os direitos procedimentais e processuais, que tendo
uma função que é de prevenção dos outros direitos de caráter material, são também direitos
fundamentais, e são reconhecidos pelo quadro da nossa 3.ª geração dos direitos fundamentais.
A nossa Constituição, no artigo 266 e seguintes, consagra efetivamente esses direitos
fundamentais: o direito à audiência é um direito integrado no direito de participação, que está
reconhecido enquanto tal no art.º 267/3 CRP. Ao ser um direito fundamental, existem
consequências: uma delas já vimos na interpretação que se dá aquela norma, como
invalidades que podiam ser desconsideradas. Mas há competências, no quadro da execução
política, porque desrespeitar um direito fundamental é uma ilegalidade muito grave, pelo que
o regime das liberdades e garantias estabelece essa superioridade dos direitos fundamentais.
E, por isso, a violação do direito à audiência equivale à nulidade da decisão administrativa,já
que esta é a mais grave. Não é esta a posição dominante, nem a posição aceite pela
jurisprudência. Os constitucionalistas adotam esta posição: Jorge Miranda, Gomes Canotilho,
Vital Moreira, e Marcelo Rebelo de Sousa; mas a generalidade da doutrina tende a considerar
que é uma mera ilegalidade. Não há grandes argumentos, ou para o professor, pouco
relevantes, embora tenham convencido a jurisprudência: um argumento iniciado pelo
professor Diogo Freitas do Amaral, é o argumento datado do elemento histórico - para o
autor, os direitos fundamentais são apenas os das 1.ª geração – os direitos e liberdades e
garantias em sentido restrito, liberdades em face do Estado, pelo que o resto já não
correspondem a direitos. O professor Vasco Pereira da Silva não concorda: isto é dizer que
história para no tempo, e que se há novas ameaças à dignidade humana elas não podem ser
consideradas. É algo que faz pouco sentido do ponto de vista da realidade histórica. Mas os
argumentos principais não são esses, são de ordem do “tricô jurídico”, a lógica de
compatibilidade entre normas vistas de forma acrítica. Um argumento utilizado pelo
professor Pedro Machete, e depois também aceite pelo professor Freitas do Amaral, é a ideia
de que a nossa ordem jurídica, quando trata de procedimento disciplinar, que é uma sanção
grave e que deve ser exercida para casos graves, pelo que se diz que é indispensável que o
arguido se pronuncie antes de ser punido. Só que a lei, que o diz expressamente, diz que a
falta do direito à audiência corresponde à anulabilidade. Os argumentos do professor Pedro
Machete e do professor Diogo Freitas do Amaral são argumentos de tricô jurídico: se o
legislador diz que este caso, que é o mais grave, apenas corresponde à anulabilidade, então os
outros, menos graves, não podem ser de nulidade. O professor Vasco Pereira da Silva acha
que isto é um disparate. – é um disparate porque é errado é inconstitucional. A situação do
processo disciplinar é grave porque pode levar à expulsão das pessoas, e é um poder que pode
e deve ser exercido, mas exercido dando todas as garantias de defesa. O professor acha que
isto deve ser um caso de nulidade – não é este caso que está bem qualificado e que por causa
dele todos os outros têm de padecer de anulabilidade, mas é este caso que está mal
qualificado e qualificado de um ponto de vista inconstitucional, porque nesse caso é a
participação por uma decisão punitiva do próprio, e portanto há os direitos equiparados ao
direito penal, e, portanto, é manifestamente inadmissível que haja sanção de simples
anulabilidade, tal como em todos os demais casos.

E portanto temos aqui uma discussão, e uma discussão que, apesar de tudo, Vasco Pereira da
Silva reconhece que não teve a importância que se pensou que se poderia ter, porque apesar
de os tribunais terem adotado esta versão mais benigna quanto às atuações administrativas, o
que é certo é que os tribunais reagiram em todos os casos em que faltavam audiência dos
interessados, e anularam estas decisões. E portanto, hoje em dia ninguém tem dúvida que é
obrigatório. que deve haver audiência dos interessados, e a sua falta gera vício de
procedimento, que origina invalidade, tal como a Administração não tem dúvidas que é
assim, e quando não é assim os tribunais anulam decisões.

Aquele medo que havia nos anos 90, quando se estabeleceu esta obrigatoriedade quase
genérica de audiência dos interessados, não se confirmou - a norma aplica-se e em todos os
casos. O problema agora não é apenas esse, é que agora as entidades administrativas sabem
que têm de ouvir os interessados: o problema é que ouvem, mas não ligam ao que eles dizem.
Ouvem mas não ponderam os interesses dos interessados, no quadro daquela decisão. A
batalha do direito administrativo atual não é apenas a de exigir que haja audiência, é de
exigir que os interesses que foram manifestados na audiência sejam considerados no âmbito
do procedimento decisório, e portanto que influenciam a decisão final. Isto que acontece em
Portugal também acontece em todos os países europeus. No quadro alemão diz-se que a
Administração, num procedimento, tem dever de ponderação de todas as situações e de todos
interesses manifestados no quadro do procedimento, e quando a Administração viola esse
dever de ponderação inerente, e mesmo ouvindo, mas não prestando atenção ao que ouviu, a
administração comete ilegalidade material – está a viola regras de ponderação inerentes ao
exercício dos deveres administrativos.
Há outras soluções igualmente boas, em Itália: diz-se que o que está em causa nestas
situações é a violação dos princípio da imparcialidade, porque se a Administração tem de
tratar de forma neutra, e igual todos os interesses com que se depara, a Administração não
pode ignorar interesses manifestados pelos particulares num qualquer procedimento, e se o
fez, viola o princípio da imparcialidade. É também uma boa perspetiva, que o professor tem
defendido.

Há também outra explicação que leva ao mesmo resultado, mas essa seria dificilmente
realizada em Portugal, que tem que ver com outra filosofia do funcionamento monista do
tribunal, a lógica americanos do push back: a ideia do direito norte americano de que o juiz,
perante uma decisão em que entende que não foram considerados os interesses, pode “mandar
para trás a decisão para a Administração”, para que reconsidere a sua posição. É algo que faz
sentido no sistema norte americano mas não no poder europeu, porque nos tribunais europeus
julga-se a Administração depois dela ter cometido ilegalidades, não se manda para trás. Não
há aquele jogo de empurra da filosofia monista. Mas o resultado é o mesmo: a
não-ponderação de todos os interesses gera uma ilegalidade material que acresce à ilegalidade
procedimental que decorre da violação do direito à audiência.

O professor diz que em Portugal há outro argumento mais convincente que todos os outros,
apesar dos outros serem bons e utilizáveis. Há uma realidade que está consagrada
constitucionalmente: consagram-se dois princípios constitucionais que nunca podem
contradizer-se - a prossecução do interesse público no respeito pelo direito dos particulares.
Não se pode realizar de forma unilateral apenas a prossecução de interesse público, nem
somente o respeito pelos direitos dos particulares, É preciso que haja uma relação entre elas. -
nunca se pode considerar só um. No caso de uma entidade administrativa que ouviu os
particulares, recolheu os diferentes argumentos que demonstram diferentes sensibilidades,
diferentes interesses e valores perante determinada realidade, mas não ligou ao que foi dito
por estas partes, está a desrespeitar os direitos dos particulares, mesmo que prosseguindo o
interesse público. Neste sentido, estamos perante uma situação de inconstitucionalidade, que
gera ilegalidade da atuação administrativa. No quadro da ordem jurídica portuguesa, esta é a
forma mais adequada para resolver este problema, mesmo defendo que o uso da
imparcialidade, e o dever de ponderação faz sentido.

Mas esta é uma batalha que é preciso ganhar, porque se os tribunais se habituaram a mandar
para trás, a anular uma decisão só porque não foi cumprido o direito à audiência, têm de usar
o mesmo rigor para aquelas decisões em que os interesses manifestados não foram
minimamente considerados. Há aqui que introduzir uma dimensão de rigor. Isto é essencial
do ponto de vista da tomada de decisões – quer para a qualidade das decisões, para a tutela
dos direitos, para o coser de interesses antagónicos. E é preciso que isto se proceda num
quadro de uma unidade procedimental.

É preciso conseguir convencer juízes que, para além da verificação da legalidade


procedimental decorrente da ausência da audiência, é igualmente importante dizer que há
uma ilegalidade material que decorre da não consideração dos valores.

Isto não significa dizer que tem de decidir de acordo com particular a, z, , tal como não
significa decidir da forma de que a maioria das pessoas se pronunciar, nem fazer a média
entre posições: o que é preciso é que a Administração pondere os interesses para tomar a
decisões, e que considere todos os valores, mesmo quando os põe em causa. Mesmo quando
entende que, apesar de haver aquele interesse contraditório, a melhor solução por razões que
fundamentam é a que contraria aquele interesse. Agora, desconhecer o interesse é um absurdo
e algo que não faz sentido.

E, portanto, há aqui que introduzir uma dimensão de rigor. Porque às vezes é inclusive
chocante ver o modo, enfim, uma vez no parlamento eu ouvi um alto deputado, líder de um
grupo parlamentar, a lamentar-se de não ter havido a audiência dos interessados, que é uma
coisa facílima de mandar, basta por um fax, receber umas cartas, que as pessoas queiram
mandar. Na altura era o tempo dos faxes, agora é o tempo dos emails. Os emails, durante um
mês, recebemos todos os emails, mas depois pronunciam-se sobre aquilo que querem.

Eu ouvi isto já várias vezes uma coisa destas, daquelas que de vez em quando é sempre
repetida. Ainda na semana passada num encontro com uma entidade reguladora veio à baila
uma situação idêntica, desconsideração dos valores procedimentais. E isto é disparate. É um
disparate por todas as razões e mais uma. Porque o que está em causa é algo que é
absolutamente essencial, do ponto de vista da tomada de decisões. É essencial para a
qualidade das decisões, é essencial para a tutela do direito, é essencial para o cozer de
interesses antagónicos. E o que é preciso é que isto se proceda no quadro de uma realidade
procedimental. E Portugal é assim. Somos o país das melhores soluções e das piores. Todas
vêm ao mesmo saco e são muitas vezes utilizadas de forma indistinta. E não devia ser. E,
portanto, aquilo que agora é preciso convencer os juízes, e há uma guerra na qual eu ando há
pelo menos 30 anos, e que espero que os senhores agora passem a andar, é conseguir
convencer os juízes que para além da verificação da validade procedimental decorrente da
ausência da audiência, é igualmente importante dizer que há uma ilegalidade material que
decorre da não consideração dos valores. Não significa isto que se decida de acordo com o
que diz o particular X, Y ou Z. Tal como não significa decidir de acordo com a maioria das
pessoas que se pronunciaram ou fazer a média entre posições. Não! A administração tem é
que ponderar os interesses para tomar decisão que os considera a todos mesmo quando os põe
em causa. Mesmo quando, entende que apesar de haver aquele interesse contraditório, a
melhor solução, por razões que fundamenta, é a que contraria aquele interesse manifestado.
Agora, desconhecer o interesse é que é um absurdo e é algo que não faz sentido. E não vale a
pena perder tempo a fazer um procedimento que, no fundo, só serve para deitar fora. É
precisamente a lógica do legislador daquele preceito, o procedimento é absolutamente
essencial mas se não acontecer não há problema algum, mantem-se o fundamento. Isto é algo
que não faz sentido nos nossos dias, é algo que é preciso mudar no quadro da realidade do
nosso direito jurídico. E portanto, é uma dimensão que introduz uma nova lógica no
procedimento da administração e essa lógica deve afirmar-se em todas as suas atuações, tal
como deve passar pelo controle efetuado por todos.

Mas, ainda temos alguns minutos e atendendo a que temos necessidade de avançar, deixamos
aqui as considerações acerca do procedimento. Sei que nas aulas práticas têm também estado
acompanhados e passamos às formas de atuação administrativa e, em especial, à forma do ato
administrativo. E eu começo por retomar aquilo que já tinha dito em momento anterior,
designadamente, em que falámos das conceções atocêntricas do direito administrativo para de
alguma maneira introduzir aqui uma dimensão psicanalítica e para procurar perceber o modo
como na nossa ordem jurídica o legislador configurou o ato administrativo em especial na
norma do código de procedimento administrativo, do artigo 148º, em que apresenta uma
noção para efeito do código, de ato administrativo.

Qual é o problema e qual é a lógica psicanalítica que temos que procurar salvaguardar? Como
sabem, no início, tudo girava em torno do ato administrativo. Era a única forma de atuação,
era a única realidade que interessava para o direito administrativo. Não havia outras formas
de atuação, o ato era aquilo determinante, era aquela que juntava todo o universo do direito
administrativo, correspondia a duas características essenciais, a característica da definição do
direito e a característica da executoriedade, esgotava em si todos os conceitos centrais do
direito administrativo, era uma espécie de abóbada catedral que correspondia à teoria
positivista e pós-positivista do direito administrativo.

Só que esta realidade vai entrar em crise. Vai entrar em crise desde logo porque ao ato
administrativo opõe-se cada vez mais, e cada vez mais abundantes formas de atuação
diversificada, contratos, documentos, planos, atuações técnicas, atuações informais da
administração, ou seja, há uma multiplicidade cada vez maior de atuação. Para citar a última
aula, o ato deixou de ter a forma de atuação administrativa e passou a ser apenas uma das
formas de atuação administrativa. Uma que a administração pode escolher pela via clássica,
mas que está sujeita a uma escolha. Não é a única solução que pode tomar.

Por outro lado, as características do ato administrativo que dizem que estava em causa são
características que desapareceram. Na maior parte das atuações públicas, se quisermos pegar
na última moção autoritária do ato administrativo que em Portugal teve uma longa vida, uma
vez que só desapareceu do ponto de vista constitucional, da revisão constitucional de 89, e só
desapareceu da lei ordinária com a Reforma do Contencioso Administrativo de 2018 da
Lei-quadro, a noção de atos definitivos executórios correspondia a duas categorias, duas
características de atos administrativos que não existem na maior parte dos atos
administrativos que a administração pratica.

Essas características eram a definitividade. A definitividade correspondia à ideia da definição


do direito, definição material que dizia a última palavra, tal como o juiz no quadro de uma
sentença, quer também a decisão do órgão de topo da administração e era a decisão tomada
no quadro administrativo.

Nenhuma destas características, da definitividade, a administração não diz o que é, a


administração utiliza o direito para satisfazer necessidades coletivas. Não tem que definir o
direito e, na maior parte dos casos, não define o direito algum. Eu estou aqui a dar uma aula e
não estou a definir o direito de ninguém. Estou a explicar o direito, não estou a definir o
direito. Não defino o direito quando dou uma nota, quando marco uma falta, ou qualquer
outra coisa do género. Definir o direito é uma noção que não se aplica à maior parte das
atuações da administração pública. O controlador aéreo que está na Portela a praticar serviços
administrativos sem conhecer nada de direito. Os atos não têm qualquer conteúdo jurídico, no
entanto produzem efeitos jurídicos, são unilaterais e são obrigatórios. E, portanto, a
definitividade é um disparate. Tal como é um disparate a ideia que a decisão tem que ser
tomada do topo, no quadro da desconcentração administrativa são os subalternos que
decidem, na maior parte dos casos. É um disparate dizer que é o último ato do procedimento,
como se os procedimentos fossem uma coisa que acabassem. Os procedimentos estão sempre
a suceder uns aos outros e na realidade, nos dias de hoje, é de uma dimensão complexificada
da realidade jurídica em que os atos dos procedimentos se encadeiam uns nos outros em
termos que são inexplicáveis e que nunca mais acabam. Por exemplo, a construção de um
aeroporto, de uma fábrica, primeiro há uma avaliação de impacto ambiental que termina com
um ato administrativo. Depois disso há um outro procedimento que mete a licença ambiental
para ver as consequências ambientais do funcionamento daquela realidade. Só depois destes
dois atos e destes dois momentos é que se passa para autorização da atividade ou da
construção e depois a seguir a autorização de funcionamento e depois ainda todas as outras
autorizações no quadro da verificação do funcionamento de uma fábrica, de um hospital, de
um aeroporto. É uma realidade interminável. Os procedimentos procedem-se numa realidade
complexa em que há uma multiplicidade de atos. Todos eles jurídicos. Portanto, esta ideia,
não deixa de ser uma ideia que não condiz no quadro do direito administrativo em que todos
os procedimentos se implicam uns aos outros e geram atos administrativos que são todos
igualmente relevantes.

A ideia da executoriedade é ainda pior. Porque essa sim, provavelmente nunca existiu, ou
existiu em situações muito limitadas e em relação a certos tipos de atos, porque nem a
administração tem o poder autoritário que permite executar todas as decisões, do poder da
administração da lei, nem a lei estabelece que os atos administrativos têm todos que ser
executados. Mas a maior parte dos atos administrativos não são suscetíveis de ação coativa
porque são favoráveis, porque são feitos a pedido do particular e portanto, não são suscetíveis
de ação coativa contra o particular. Quando a administração recebe um pedido para uma bolsa
de estudo, um subsídio, uma licença, uma autorização de construção, seja o que for, a
administração está a praticar um ato que foi pedido por um particular e que é um ato
favorável. Esse ato não é suscetível de execução coativa. Os únicos atos que ainda são
suscetíveis de execução coativa, e mesmo assim só quando a lei efetivamente o estabelece,
são atos administrativos, e portanto não é possível caracterizar o universo dos atos
administrativos em função de uma categoria muito limitada e que defendam. E mesmo a lei
pode estabelecer que em relação aos atos de polícia, como estabelece em Portugal, o
pagamento de uma indemnização, o pagamento de uma quantia monetária não é suscetível de
ação coativa. Portanto, é uma realidade que é um disparate completo. E é algo que já não
existe, e já não existe há séculos. No entanto, este conceito de ato definitivo executório, que
já não é assim desde o início do século XX, este conceito era recebido pelo legislador, era
recebido pela própria Constituição e a doutrina repetia este conceito que não fazia qualquer
sentido. E, portanto, agora temos que fazer um esforço de psicanálise. Psicanálise que é ainda
mais importante quanto este ato administrativo perdurar para além do tempo.

E hoje em dia já ninguém aceita essa expressão, mesmo aqueles que toda a vida a
defenderam, e é muito curioso ler, é um bom esforço de psicanalise, se lerem a última edição
do manual do Professor Freitas do Amaral, o Professor Freitas do Amaral dedica quatro
linhas com epítetos fúnebres ao ato definitivo executório, em que diz que é uma figura
histórica interessante e com muito para dar, mas hoje em dia já não é utilizada. Hoje em dia
desapareceu. E portanto, se desapareceu, a única coisa que há a fazer é pô-la fora. Mesmo
essas quatro linhas são um excesso, um excesso que ele não conseguiu resistir e que se calhar
explica depois algumas limitações que ainda perduram hoje.

Como é que a questão se coloca hoje então no Direito? Curiosamente, também a discussão
tem a ver com os pressupostos das duas posições principais. A posição de Otto Mayer, no
direito alemão, e a posição de Maurice Hauriou, no direito francês. Otto Mayer dizia que o
ato administrativo era um ato de natureza reguladora. E esta ideia da regulação, do ato
administrativo como ato regulador ainda é uma ideia utilizada pela escola de Coimbra em
Portugal para caracterizar o direito administrativo, e para alguns outros professores da escola
de Lisboa, como Sérvulo Correia. O que é que significa esta ideia de regulação? A dinâmica
de Otto Mayer significava definir o direito aplicado. Hoje já ninguém aceita esse sentido. E
portanto a regulação tem a ver com a produção de efeitos. O que é que é preciso para que o
efeito seja regulador? Segundo a lógica do Prof Sérvulo Correia, segundo a lógica do
Professor Vieira de Andrade, é regulador quando produz efeitos próprios. Não pode ser um
efeito que corra sucessivamente na lei, não pode ser um efeito que já existisse na ordem
jurídica, só há um ato administrativo quando há um efeito. Mas aí nós perguntamos “mas o
efeito já existia?” Tem que ser uma autorização que está predeterminada na lei que decorre de
um direito substantivo. Aí já não há um ato administrativo? Não há efeito constitutivo na
atribuição de uma licença de construção? Parece um disparate. A forma de resolver este
disparate em termos linguísticos é dizer que há uns atos administrativos que são atos e outros
que não o são. É literalmente isto que diz o Prof. Sérvulo Correia. Há a produção de efeito,
mas só falamos em verdadeiro ato administrativo quando esses efeitos são produzidos,
portanto há os atos que são atos, e atos que não são.

De resto, esta é uma construção similar àquela que faz hoje o direito alemão, que fala em atos
administrativos e em quase atos administrativos. O que são quase atos administrativos? São
os atos administrativos. Aqueles que não tem forma. No direito alemão isso até faz algum
sentido que não faz em Portugal. É que no direito alemão o legislador enuncia taxativamente
os tipos de atos administrativos. E portanto há outros atos que não estão indicados de forma
taxativa, mas que produzem o mesmo efeito. São os tais quase atos administrativos ou aquilo
a que o direito alemão chama as atuações informais. Uma expressão muito utilizada em
Portugal até por aqueles que não sabem direito alemão e não sabem o que é que ela significa.
Informais significa que não são os não tipificados. E como não são tipificados são atos
administrativos também só que só produzem. E portanto é uma explicação que procura
guardar alguma dimensão restritiva ao ato administrativo embora vá balizar a ideia da
produção de efeitos.

Vejamos ao contrário na lógica de Maurice Hauriou. Maurice Hauriou partia de uma


conceção de ato administrativo como sendo a de um ato produtor. Simplesmente produtor.
Mas depois dizia que desses atos administrativos, os que são fundamentais são os definitivos
executórios que têm todas as características essenciais de um ato administrativo. Se
desaparece o ato definitivo executório da história o que é que fica? A produção de efeitos.

Curiosamente, é este conceito de produção de efeitos jurídicos, efeitos jurídicos unilaterais,


algo similar a um direito administrativo, que é o único sentido útil de um ato procedimental.
É um ato que produz efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. São efeitos
unilaterais que resultam da vontade da administração, são uma realidade similar aos direitos
administrativos. É essa a explicação mais razoável. E a mais adequada para os atos
executivos de agora, porque essa é a única distinção que permite juntar os atos da
administração dos estados liberais que para além disso ainda podem gozar do tal efeito de
definitividade e de alguma dimensão de executoriedade da lei no que permitir. Abrange os
atos da administração prestadora, os que prestam bens e serviços, e que trazem uma ação
definitiva executória de forma alguma e que devem caber no conceito de ato administrativo.

E abrange os atos da administração do Estado Pós-social.


E portanto as definições de ato administrativo devem acentuar na ideia de produção de efeitos
jurídicos, é isso que faz o artigo 145º da nossa ordem jurídica. Adotam uma boa conceção
jurídica.

Eu gostava mais da anterior, mas deixaremos isso para a próxima.

India Salvador, 2º ano, Turma B, Subturma 13, nº 64609


Sara Borga, Subturma 13, n.º 64734

27 de Abril de 2022 - Professor faltou.

MAIO

2 de Maio de 2022 - Sara Barão (64700); Clara Cymbron de Medeiros (64198)

É preciso que a noção de ato administrativo englobasse os atos polícia (modelo do estado
liberal). O modelo do estado social, com a administração prestadora, trouxe novos tipos de
atos – que distribuem bens ou serviços, atos favoráveis; praticam atos de natureza jurídica
com conteúdo favorável ao particular. Era preciso enquadrar todos estes atos e com o estado
pós social surgiram novos tipos de atos – aplicam-se a uma multiplicidade de destinatários. O
dilema do legislador moderno é o de criar um conceito de ato que corresponda às
características de todos os tipos de atos. Os atos da administração prestadora e infraestrutural
não são nem definitivos nem executórios.
Um ato administrativo não define o direito, utiliza-o para satisfazer necessidades coletivas. A
utilização do direito é um meio e não um fim em si como é para o juiz por isso a sua maioria
não tem natureza de direito. É preciso encontrar um conceito que permita englobar todas
estas categorias porque os tradicionais atos definitivos executórios são uma minoria. O
aprofundamento do princípio da legalidade implica que a executoriedade não seja uma
característica dos atos administrativos – nenhum ato favorável é suscetível de execução
coativa. A administração só tem os poderes que a lei expressamente lhe atribui. O legislador
nos dias de hoje precisa de partir de uma noção de ato administrativo suficientemente ampla e
que compreenda as características de todos os tipos de atos e foi isso que o legislador
português estabelece – art. 148º, CPA - um ato administrativo depende de 2 coisas: unilateral
e tem de produzir efeitos jurídicos (características de todos os atos). Da perspetiva de VPS
esta é uma noção adequada mais os atos hoje, em regra, são resultado de um procedimento,
que estabelecem o modo de relacionamento entre particular e administração e visam produzir
efeitos jurídicos unilaterais numa situação individual e concreta.
Há 2 conceções de ato: o prof. Freitas do Amaral vai agarrar-se a uma construção baseada no
quadro do direito alemão – os atos administrativos não são enquadrados através de uma
noção mas estão tipificados no código de procedimento administrativo; atos
reguladores/constitutivos, não basta produzir efeitos, estes têm de ser novos. O legislador
alemão debateu-se com atos que produziam efeitos mas não estavam tipificados como tal –
quase atos administrativos – necessidade de conciliar um espírito restritivo do CPA e uma
noção da doutrina que era impossível manter uma construção tão fechada. Esta foi a noção
que a escola Coimbra, desde os anos 50, tem vindo a defender para Portugal. A ideia de ato
regulador é mais ampla. Esta é uma das posições, implica falar em atos administrativos com
efeitos reguladores e outros atos que têm efeitos similares – doutrina esquizofrénica; introduz
uma definição que não é adequada nem legítima. Na opinião do Professor Vasco Pereira da
Silva o ato administrativo é caracterizado pela produção de efeitos unilaterais.
Licenças e autorizações são atos administrativos idênticos. Um direito não precisa de ser
inovador para o ser e não tem de ser construído integralmente pelo ato administrativo,
depende da lei, eventuais regulamentos, etc. Aquilo que é relevante para o Professor Vasco
Pereira da Silva no quadro da nossa ordem jurídica é a produção de efeitos de forma
unilateral. Mas há aqui uma discussão: começa com a revisão de 2015 do art. 148º -
introduziu uma alteração e conduziu a uma interpretação diferente; a interpretação: expressão
“decisões”, o legislador não está a querer alargar o efeito útil da norma, em termos judiciais,
denominam-se “sentenças” ao contrário do que o Professor Freitas do Amaral defende; o que
está em causa é um ato voluntário da administração que visa produzir efeitos jurídicos, é isso
que significa a expressão em causa. Tendo desaparecido o ato definitivo executório, O
Professor Freitas do Amaral ficou receoso que tudo fosse invadido de atos administrativos –
nem a alteração legislativa levou a um maior número de atos a serem levados a tribunal nem
atuações meramente fáticas foram tratadas como atos administrativos. A ideia do informal
que está por detrás do ato regulador, pode fazer sentido na Alemanha mas não faz sentido em
Portugal. Surgiu um novo argumento com a revisão de 2015: conceito intermédio entre o
Professor Freitas do Amaral e o Professor Vasco Pereira da Silva – acrescentou à noção do
art. 148º a palavra “externos” (produzir efeitos jurídicos externos); a produção de efeitos
internos não gera um verdadeiro ato administrativo; com isto aproxima-se da lógica do
constitutivo embora com limitações; exemplo de aplicação desta conceção: projetos de
arquitetura – no momento em que está a ser preparada uma autorização de construção, há um
momento em que se aprovam estes projetos e essa aprovação não significa que se trate de um
verdadeiro ato administrativo só determina uma atuação posterior. O Professor Vasco Pereira
da Silva discorda na íntegra: não tem razão do ponto de vista teórico porque a distinção entre
atos internos e externos deixou de fazer sentido, os atos são simultaneamente internos e
externos, um ato ao produzir efeitos internos está a produzir efeitos externos. Não há
nenhuma distinção com base nesta distinção do séc. XIX. Tem ainda menos razão quanto ao
projeto de arquitetura porque a partir do momento em que é aprovado o particular tem direito
a construir e pode ser sujeito a impugnação porque não há a exigência do ato definitivo.

Validade e eficácia
No quadro do DA há uma realidade do direito civil porque a regra neste são realidades que
andam a par: um ato inválido não produz efeitos jurídicos – isto não é verdade para o direito
administrativo; um ato pode ser praticado segundo os requisitos legais e não produzir efeitos
porque a lei estabeleceu requisitos de eficácia que acrescem aos de legalidade. Ex: decisão
que foi tomada e eventualmente publicada mas não houve notificação (não produz efeitos
jurídicos porque a notificação é um requisito de eficácia). Mas há uma outra distinção,
verdadeiramente característica dos atos administrativos: possibilidade dos atos
administrativos inválidos, contrários à lei, poderem ser eficazes isto porque na nossa ordem
jurídica, a lei distingue entre os atos nulos e os anuláveis; os nulos não produzem quaisquer
efeitos desde o início, os anuláveis produzem efeitos até serem anulados. É certo que a
anulação tem efeitos retroativos. Mas há outra regra do regime da anulabilidade característica
do direito administrativo: o ato que é ilegal se não for anulado, pode produzir efeitos
eternamente. A justificação prende-se com a natureza da função administrativa e com a
garantia da segurança da administrativa mas esta só vale enquanto puder sempre ser possível
anular o ato administrativo, coisa que antes não existia – art. 38º, CPA – a qualquer momento
o juiz pode anular uma decisão administrativa. A interpretação correta a dar a este artigo (art.
168º) , para o Professor Vasco Pereira da Silva, deve ser interpretado no sentido de considerar
que os prazos são meramente indicativos e que a administração pode, a todo o tempo, anular
os atos ilegais por causa do princípio da legalidade. Temos então aqui duas realidades
diferentes. Esta lógica obriga a que os diferentes sujeitos e que são partes legítimas atuem
neste processo.
Invalidade: qual é a fonte e espécie de invalidade? Os atos administrativos são ilegais quando
violam os requisitos de validade – elementos do ato administrativo (competência,
procedimento, forma e os requisitos materiais). Em Portugal, para complicar esta realidade,
apareceu a teoria dos vícios do ato administrativo – algo que corresponde à evolução histórica
do DA (as diferentes leis foram acrescendo elementos ao elemento originário). Nos anos 80
chegou-se a uma enumeração de vícios. Esta enumeração durante muitos anos foi lei. Não há
nenhuma lei que diga que é obrigatória a utilização destes vícios. A teoria dos vícios é
ilógica, absurda e incompleta – Prof. André Gonçalves Pereira. Aquilo que se diz no CPA é
que o particular tem de identificar o pedido e a causa do pedido, não tem de falar em vícios
do ato administrativo. Em 1º lugar – ilógica: nos dois primeiros vícios (usurpação de poder e
incompetência) são dois vícios que correspondem a um único elemento do ato que é a
competência e ainda é mais ilógico que o vício de forma em vez de corresponder a um
elemento corresponde a 2 – vício e forma e de procedimento (2 elementos materiais). O
desvio de poder e violação de lei tem a ver com elementos materiais mas separaram o poder
discricionário e o vinculado em termos que não são mais admissíveis. Não há atos
discricionários e qualquer poder discricionário que viole princípios constitucionais gera um
vício material e não desvio de poder. Admitindo esta teoria, teríamos o problema da
incompletude: falta o procedimento e não apenas a lógica da falta de causa mas todos os
vícios de falta de vontade (requisitos materiais para a produção de atos administrativos). É
uma realidade que afasta a utilização desta teoria. Os requisitos de validade têm que ver com
os elementos essenciais do ato, por isso há invalidade ou validade consoante isso, isso é que
são as causas de pedir que a lei estabelece.
A única referência aos vícios – art. 161º/2, CPA – usurpação e desvio de poder. E não está em
lado algum a necessidade de qualificar estas ilegalidades através da teoria dos vícios.
Modalidades da invalidade:
O código adotou deliberadamente uma noção simplificadora: anulabilidade e nulidade
(invalidade + grave e pode surgir a propósito de qualquer requisito de validade). Nesta lógica
simples estava organizada a enumeração das condições de validade do art. 161º e ss. A versão
de 2015 alterou o nº1 do art. 168º no sentido de considerar que a nulidade teria sempre de ser
tipificada. “São designadamente nulos os seguintes atos”: exemplos de atos nulos os que
veem no nº2. Não é correto dizer que há tipificação; para que tivesse havido tipificação era
necessário reduzir os casos do nº2 e como tal mantém-se a cláusula aberta em matéria de
invalidade. O legislador nestas alíneas de a) a l) refere-se a todos os requisitos de validade e
estabelece um critério de intensidade. Os casos mais graves geram então nulidade, os outros,
geram anulabilidade. Contrariamente ao que se diz, não há nenhuma regra geral de nulidade
nem de anulabilidade, o desvalor da ordem jurídica depende da intensidade da violação.
Transcrição feita por Clara Cymbron de Medeiros, n.º64198 e Sara Barão n.° 64700

4 de Maio de 2022- Clara Cymbron de Medeiros (64198); Sara Barão (64700)

Vamos então aproveitar bem as duas últimas aulas da disciplina de direito


Administrativo. Estive a planear o jogo de forma a podermos cobrir os restantes pontos da
matéria. Portanto a minha ideia é acabar os capítulos relativos às formas de atuação e o
último capítulo relativo ao “cá se fazem, cá se pagam”, os meios administrativos e a
responsabilidade administrativa, ou ficará como facultativo, ou pelo menos a parte relativa
aos meios ficará como facultativa, embora a parte sobre a responsabilidade consiga ainda ser
dada. O que é que quero dizer com “Ficará como facultativa”? Significa que na frequência
isso não será perguntado, e não o darei diretamente, mas pode ser utilizado enquanto
enquanto tema de oral. É isto que corresponde à realidade da nossa disciplina.
Vamos então à nossa matéria, dada com alguma velocidade. Na última aula falamos da
questão da noção de ato administrativo, e falámos dos requisitos de qualidade, e, quando a
aula terminou, estávamos no quadro da avaliação dos requisitos de qualidade, a considerar
que a noção e utilização acerca dos vícios do ato administrativo, não só não era lógica nem
adequada, como contrária à nossa ordem jurídica. Portanto aquilo que se deve fazer é recorrer
aos elementos do ato, recorrer à competência, ao procedimento, à forma, e aos requisitos
materiais, e dizer que há uma violação desses requisitos, e verificar a existência de uma
invalidade.
Vimos também o regime da nulidade, e verificámos que, apesar da alteração que
houve em 2015, a nulidade continua a ser vício definido de forma aberta, e que não é possível
dizer que o vício dominante no quadro administrativo é a anulabilidade - consoante a
gravidade da violação, como chegámos a ver, será a nulidade ou anulabilidade de acordo com
os critérios que constam desta norma do artigo 168.º do CPA.
Mas vamos, para terminar o ato, falar sobre a distinção entre revogação e anulação
administrativa. Aqui, a primeira coisa a dizer é que esta distinção que foi introduzida em
2015, faz sentido. E, portanto, ao contrário de outros, como o Professor Freitas do Amaral,
Professor Paulo Otero, eu acho que esta ideia de distinguir os dois conceitos faz sentido,
porque o que está em causa é uma mera questão terminológica, e, ao dizer isto também estou
a desvalorizar a importância da alteração. Coimbra vem dizer “isto é uma coisa fantástica,
uma coisa exigida pela doutrina, está inclusivé na explicação de motivos do diploma a dizer
“a doutrina ansiava por esta distinção” com todo o respeito, isto é um exagero. Agora, de
acordo com a lógica da Escola de Lisboa, o que está em causa é um ato sobre um ato. E este
ato sobre um ato, que afasta os efeitos do ato anterior, chamava-se sempre revogação. E,
portanto, a doutrina distinguia entre uma revogação ab rogatória, que era feita por motivos
de legalidade, servia para corrigir a ilegalidade do ato, e uma revogação propriamente dita,
que corresponderia a uma alteração por mérito, e enquanto a alteração por mérito só corrigia
efeitos para o futuro.
O que é que agora diz o código? O código diz que a revogação anulatória, que
afastava todos os efeitos do ato, e que era por motivo de legalidade, passa a chamar-se
anulação. A revogação ab-rogatória, que era por razões de mérito e que só produzia efeitos
para o futuro, passa a chamar-se revogação. É uma alteração com a qual concordo, porque
podemos dizer que assim a realidade de cada uma das figuras fica melhor definida. Agora,
isto não significa, contrariamente ao que diz a Escola de Coimbra, que haja uma separação
radical entre a anulação e revogação, porque ambos são atos sobre atos sobre outros atos, e
portanto o regime jurídico é comum. Se olharem para estas normas dos artigos 165.º e
seguintes: o artigo 165.º é comum à anulação e revogação, o artigo 166.º também, o 167.º
aplica-se apenas à revogação, o 168.º à anulação. E, portanto, as questões dos
condicionalismos são diferentes. Todos os outros artigos aplicam-se sempre às duas figuras:
iniciativa e competência (169.º), forma e formalidades (170.º), efeitos (171.º), todas estas
normas correspondem ao mesmo regime jurídico. E, portanto, quando Coimbra vem dizer
que isto é uma coisa muito ansiada pela doutrina por serem radicalmente diferentes a
anulação e revogação: não são. São atos separados que eliminam os efeitos de um ato
anterior. Quando este ato sobre outro ato tem uma motivação de ilegalidade, chama-se
anulação. Produz efeitos ad initium. Se tem por fundamento uma questão de mérito, chama-se
revogação e só produz efeitos para o futuro. É tão simples como isto. E, portanto, não acho
que seja de arrancar os cabelos, é uma boa distinção, mas também não é uma alteração tão
importante como isso.
Qual era a questão material que estava subjacente a esta mudança de nome? É que
entendiam, os autores de Coimbra, que as regras da revogação eram demasiado fixas e
rígidas, pelo que era preciso introduzir flexibilidade na utilização dos valores que estão em
causa na anulação e na revogação. E isto faz sentido, correspondendo a algo que eu também
já venho a defender. Que a ideia que estava subjacente no regime anterior que, no caso da
revogação quer a anulação, quer a revogatória, só permitia que efetivamente se pudesse
praticar um ato sobre outro ato quando não tivesse ainda passado o prazo limite de um ano -
porque se entendia que a partir desse prazo limite havia uma espécie de estabilidade, efeito do
caso decidido, que implicava que o ato não pudesse mais ser revogado. Da minha perspectiva
isto nunca fez sentido. E portanto, eu sempre estive, como o Professor Vieira de Andrade, e
outros professores da Escola de Coimbra, a defender o sentido de ser preciso flexibilizar o
sistema. E esta flexibilização tem a ver com a consideração dos valores que estão em causa.
Vou dar-vos um exemplo para tornar mais simples o que estou a dizer, que é um
exemplo real, que de resto corresponde ao que eu escrevi quando tratei desta matéria, e
portanto utilizei como exemplo: quando falamos destes atos sobre atos, é preciso ter em conta
valores constitucionais. Que valores constitucionais são esses? Primeiro: legalidade. O
princípio da legalidade aponta no sentido de a anulação ser devida, e ser admitida em termos
flexíveis, e portanto, para além do prazo de um ano poder haver anulação das decisões.
Depois, o princípio da prossecução do interesse público. Se a administração encontra formas
mais adequadas do que decidido, deve utilizá-las, até porque só as irá usar para o futuro, é
uma mudança que só produz efeitos para o futuro. Mas, neste caso, costumamos ter em conta
o princípio da boa-fé e a tutela da confiança. E, portanto, esta realidade da tutela de confiança
também indica um regime mais supletivo no quadro da atuação da administração. E estes
princípios, de um ponto de vista jurídico, podem ser regulados de duas formas diferentes: da
forma alemã, que quer dizer que quem resolve o conflito entre estes princípios é o juiz; da
forma francesa, que quer dizer que o legislador resolve os conflitos litígios, e portanto o
legislador determina que quer num caso quer noutro, a partir de um ano, não se pode anular
nem revogar. Isto era, da minha perspectiva, um disparate, porque conduzia a maus resultados
e tinha que ver com a tal lógica do caso decidido, que como já sabemos não existe, a
administração não pratica através do caso decidido, os atos administrativos são sempre
susceptíveis a serem anulados ou revogados, desde que haja condições para isso.
Portanto, a ideia é de que é preciso flexibilidade, e o exemplo que vos dou é um
exemplo que foi uma vez dado por um Director Geral quando eu colaborei numa comissão
legislativa para fazer a lei de bases do sistema fiscal. Pediram-me a minha opinião
administrativa: “Tenho um problema insolúvel, estou aflitíssimo. Não sei o que hei de fazer.
Há um contribuinte que preencheu a declaração de impostos, e que é um caso de
prodigalidade, porque é o caso de alguém que toma uma decisão absurda, mas que pode
favorecer o estado. O Sr. achou que deveria encher de <9> os quadradinhos, e portanto
declarou ter ganho milhões e milhões de euros, porque foi acrescentado noves enquanto
houvesse espaço. Quando a direção geral da contribuição de impostos lançou o imposto, o
imposto era uma coisa altíssima, correspondente ao que o Sr. tinha declarado. E o Sr. não
pagou. Começou um processo de execução fiscal, e o Sr. continuou a não pagar. Ao fim de
um ano, a inspeção fiscal dirigiu-se ao sítio onde o Sr. vivia, e viu que o Sr. vivia numa
barraca, não tinha nada, o único bem que tinha era uma televisão que já nem funcionava e
não valeria dinheiro absolutamente nenhum.” Continuava o Sr. Diretor Geral: “Andamos um
ano a perder tempo com este Sr., e agora não podemos revogar o ato. A seguir temos de ir a
tribunal, isto vai demorar 4 a 5 anos, vou ter de por um funcionário a tratar disto, isto é
terrível, não podemos revogar o ato.” Eu respondi: “Sr. Inspetor Geral, pode.” Ele respondeu
com “Posso? Mas a lei não permite.” Pelo que continuei a minha resposta: “Não; a lei tem de
ser interpretada à luz da Constituição. Nesse caso, todos os interesses apontam no sentido da
revogação. O interesse do particular, que não tem dinheiro para pagar nada, é que o assunto
não prossiga para tribunal, e que se resolva ali. É do interesse da administração fiscal, que
escusa de perder 4 ou 5 anos com uma coisa que já está resolvida - já chegaram à conclusão
de que o Sr. não vai pagar. A prossecução do interesse público corresponde a esta realidade.
Por último, o princípio da legalidade também aponta no sentido da revogação, e portanto o Sr.
Diretor deve revogar.” Ele pergunta-me: “Mas posso mesmo fazer isso?” Ao que respondo:
“Claro que pode.”
E portanto, sempre achei que flexibilidade fazia todo o sentido. Olhando para o que
aqui está e para estas normas acerca da anulação e revogação, eu concordo inteiramente com
o que está neste artigo 167.º, relativamente ao regime da revogação, porque aqui mostra-se
um sistema flexível de denominação das possibilidades de revogação, mas não consigo
perceber o que levou o legislador no 168.º a fazer precisamente o contrário, e a manter os
prazos como critério único. É certo que alargou os prazos, antes o prazo era só um ano, e
agora pode ser 5 ou até mais. Mas os prazos estão cá, e estando cá, este esquema continua a
ser um esquema rígido e um sistema que não corresponde ao que deviam ser as orientações
do legislador. E, portanto, apesar destes prazos, eu continuo a dizer que é preciso interpretar
isto à luz dos princípios constitucionais, o princípio da legalidade, que obriga a revogar os
atos ilegais, o princípio da tutela da confiança, que é um limite à revogação, e do princípio da
prossecução do interesse público. Garantidos estes interesses e princípios, qualquer prazo que
os ponha em causa será uma decisão inconstitucional e ilegal, pelo que, apesar dos limites do
artigo, a administração tem a possibilidade de atuar como entender.
Mas vejamos um pouco mais detalhadamente. O que é que se diz no artigo 167.º (num
regime que parece adequado)? Diz-se que os atos podem ser revogados, desde que de um
ponto de vista de ordenamento jurídico isso não cause problemas, e afastam os casos de haver
uma vinculação legal que tenha a ver com a impossibilidade de revogação ou a obrigação de
julgar `xxxxxxxxxxxxx.` E no nr. 2 diz que os atos constitutivos de direito só podem ser
revogados em certos casos, cá está a flexibilidade. Em princípio um ato constitutivo de
direitos é um ato que não pode ser revogado sem mais, se a administração já disse que era
assim e o particular confia na prova da administração, é preciso que isto tenha alguma
eficácia num quadro do ato administrativo. E portanto aquilo que se faz nesse nr. 2 é dizer
que, apesar de serem atos constitutivos de direito e, portanto, é um limite à revogação,
admitem-se hipóteses onde é permitida essa revogação. Na alínea a), “Na parte em que sejam
desfavoráveis aos interesses dos beneficiários.” Se o objetivo é proteger o direito e o ato tem
uma parte desfavorável, essa parte pode ser revogada, pelo instrumento da flexibilidade.
(alínea b) “Quando todos os beneficiários manifestem a sua concordância e não estejam em
causa direitos indisponíveis”, os particulares concordam com a revogação, não é um direito
indisponível, não há problema. Há que haver revogação. Depois esta da alínea c), que tem
uma `xxxxxx`. É a formulação que eu defendia em Portugal e que o legislador adota. Só
posso ficar satisfeito por significar que acompanhava aquilo que tinha sido por mim escrito. É
que, de acordo com a lógica Europeia, que está transcrita na legislação portuguesa e
transposta na administração portuguesa no quadro de uma diretiva. As licenças ambientais
são temporárias, vamos supor. Duram 2 anos. Mas, apesar de temporárias, se houver uma
mudança nas técnicas produtivas que seja mais favorável para o ambiente, a administração
pode revogar apesar de estar dentro do prazo. Ora bem, isto faz sentido, desde que seja uma
mudança radical, porque há uma alteração das circunstâncias de facto ou uma alteração das
circunstâncias de direito, e desde que, quando isso aconteça dentro do prazo, o particular fez
os seus investimentos a pensar no prazo de 2 anos, que é o prazo da licença ambiental, não
seja prejudicado. É isso que eu defendia e é isso que o legislador agora diz, e bem.
Flexibiliza-se o regime da revogação, que é uma revogação do ato, uma licença ambiental
mas há uma mudança radical das condições …. mas se isto é feito dentro do prazo da licença
que é um prazo curto, de 2 anos, então deve haver uma indemnização em particular. Porque o
particular tinha no quadro da boa fé confiado na licença ambiental. E portanto isto é o que se
diz aqui nesta alínea c) quando “com fundamento na superveniência de conhecimentos
técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais,
num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados” ou seja, o legislador adotou a solução
que eu defendia no direito do ambiente (se quiserem procurar está no livro verde de direito,
lições de direito do ambiente, é um livro esgotadíssimo há tempo, mas enfim, encontram-no
na biblioteca). E por último (alínea d)) quando haja “uma reserva de revogação na medida em
que o quadro normativo aplicável consinta a precarização do ato em causa e se verifique o
circunstancialismo específico previsto na própria cláusula”, aqui já a flexibilidade podia
excessiva, mas no modo como ela está elaborada porque a precarização não é a realidade
normal, é uma realidade excecional, tendo que resultado de um circunstancialismo físico,
aqui também me parece adequado. E depois diz no número 5 (que corresponde à minha
perspetiva acerca da licença ambiental) que “os beneficiários de boa-fé do ato revogado têm
direito a ser indemnizados, nos termos do regime geral aplicável às situações de
indemnização pelo sacrifício, mas quando a afetação do direito, pela sua gravidade ou
intensidade, elimine ou restrinja o conteúdo essencial desse direito, ou seja, uma solução
equilibrada. E eu ao ler este artigo ficava à espera que o artigo 168, relativo à revogação,
também tivesse essa flexibilidade, para evitar os casos iguais aos daqueles senhores que tinha
decidido declarar uma fortuna maior do que todos os magnatas deste mundo e não tinha um
tostão para mandar cantar um cego, portanto essa flexibilidade é uma condição da eficácia do
direito.
Tem a ver com esta lógica da flexibilidade e aqui vemos que se mantém na mesma o
prazo de um ano, vê-se que há um prazo de 5 anos contra a violação do direito da União
Europeia, que há um outro prazo de 2 anos e no final xxxxx e portanto continuamos a ter a
esta realidade. E da minha perspetiva isto não só não é justificável, como isto contraria a lei, e
os tais valores constitucionais que há pouco falei e aí depois a lei do contencioso
administrativo, porque o artigo 38 do código de processo dos tribunais administrativos
(CPTA) diz que o tribunal pode conhecer de qualquer decisão a qualquer tempo e, portanto,
o tal prazo de 1 ano para o qual o legislador nos que remete e que é o prazo da impugnação só
vale para as ações de impugnação, mas não vale no sentido de impedir o particular de querer
ver se há ou não xxx do ato. Isso pode ser feito a todo o tempo. Ora se isso é assim para a
relação jurisdicional temos no quadro da lógica da souplesse, a lógica da flexibilidade da
utilização dos critérios constitucionais combinados com os lugares temos que admitir que
para além do prazo seja ainda angular quando essa for a realidade do ponto de vista do
ordenamento jurídico é absolutamente essencial. Sou também já agora embora não receba
avançar isto também não se percebe então este n. 7 porque quando se diz que há no caso
julgado da União Europeia, portanto quando estamos a falar de tribunais não se pode dizer
que a anulação deve caber à administração (riso) tem que ser o tribunal… E portanto o que
está aqui neste ponto 7 só pode ser uma daquelas exceções a um caso julgado português que
contraria jurisprudência europeia e que permite a equiparação normas, que permite que seja
possível, excepcionalmente, haver a revisão daquele processo. Portanto é um disparate ser
administração, o disparate aqui é porque a administração supostamente teria mais tempo, o
legislador parece que se esqueceu do artigo 38, o juiz tem muito mais tempo, pode apreciar a
todo o tempo, portanto esta solução é um disparate pegado. Viola o princípio da separação de
poderes é manifestamente inconstitucional mesmo se aquilo que subjaz aqui que seja
verdade, ou seja a violação do direito europeu é igual à violação do direito nacional se há
uma anulação do direito europeu isso deve poder conduzir à anulação desde que haja uma
sentença transitada em julgado no quadro da compatibilização do direito português.
Como temos pouco tempo queria dizer-vos que o que aparece em relação à forma e
formalidades me parece bem, em princípio é a mesma forma e as mesmas formalidades do
ato ilegal a menos que a lei estabeleça coisa diferente, quanto aos efeitos já vimos, quanto à
competência o legislador também adota aqui a solução que que eu defendia no artigo 169,
que havia uma grande discussão em Portugal, acerca de saber quem é que podia revogar se
era o órgão que ia praticar o ato, dizia o Prof. Freitas do Amaral, o autor do ato, se era um
órgão competente, dizia entre outros o Prof. Marcello Caetano. Eu sempre entendi que o que
estava em causa era o princípio da legalidade pelo que deviam ter competência os dois. Ora,
da minha perspetiva, a solução correta era dizer que ambos podem, porque se está em causa
um ato praticado por um órgão incompetente, quer o órgão competente porque tem a
competência legal, quer o órgão incompetente porque agiu mal e porque está a reparara
ilegalidade cumprindo o princípio da legalidade, podem revogar. A revogação de um ato
negativo. Revogar não é praticar um ato novo, é corrigir uma ilegalidade que ele próprio
cometeu. E, portanto, o órgão que cometeu a prática ou que praticou um ato não tendo
competência para tal, apercebe-se dessa ilegalidade e pode retirar-lhe efeito, pode anulá-lo.
Por último, em relação ao ato, da execução do ato administrativo temos uma mudança
importante, desapareceu qualquer referência xxxx e faz todo o sentido e estamos perante
aquela realidade também defendia há pouco tempo da do princípio da legalidade aplicável à
execução tal como aos objetivos e portanto havendo a tipificação das formas de atuação: a
execução das obrigações pecuniárias, a execução para entrega de coisa certa e execução para
prestação de xxxx, e em relação às quantias pecuniárias temos as manobras que já falámos
desde o início, do artigo 179 que proíbe a execução coactiva de dívidas pecuniárias, se há
uma dívida pecuniária tem de ser sempre o tribunal a intervir. Que é mais uma prova de que
isto é dar uma característica de xxxx tal como o privilégio da execução prévia não é uma
característica da administração. Não é uma característica que não exista em todo o lado, não é
uma característica porque a lei pode proibir essa execução e ela só pode ter lugar nos casos
expressamente previstos na lei.
Não me coíbo de fazer uma última referência, já devia ter avançado, mas não resisto a
haver uma única crítica que eu fiz, aliás está nos textos que vos enviei acerca da forma mas
que legislador não prestou atenção. É que o legislador no artigo 176 quando fala da
legalidade da discussão parece querer dizer que o garante da legalidade é a prática de um ato
administrativo prévio. Não é verdade. A única forma de controlar o instituto da força é
através da lógica da proporcionalidade. (professor dá o exemplo do filme do Dirty Harry
interpretado por Clint Eastwood, que era um polícia que abusava de seu poder e portanto
disparado e matado os melhores em São Francisco e assim gerou se uma opinião pública a
favor do Dirty Harry apesar de extravasar da força e ser um criminoso era um cumpridor do
direito administrativo, era até melhor administrativista que o Prof. Marcelo Caetano, porque o
Dirty Harry antes de dar o tiro o final, praticava um ato administrativo, dizia: “come on,
make my day”, e a seguir é que disparava e, às vezes, dava primeiro tiro no pé e depois
“come on, make my day” e matava ali a sangue frio. Portanto cumpria este critério só que
esse não é o critério da legalidade, o critério da legalidade é o critério da proporcionalidade
do uso da força.)

Ficamos por aqui, na próxima aula terminamos com as formas de atuação.

Transcrição feita por Sara Barão n.° 64700 e Clara Cymbron de Medeiros, n.º64198

09 de Maio de 2022 - Aradna Fernandes (62910); Júlia Machado (65020)

Ora muito bem, boa tarde a todos, vamos então dar a nossa última aula, uma vez que,
como tínhamos combinado na aula passada, vamos procurar acabar o capítulo relativo, ou os
capítulos relativos às formas de atuação administrativa.
O capítulo fica como facultativo, portanto os senhores podem estudar, podem ser
interrogados, se quiserem nas provas escritas ou orais, mas não haverá perguntas no teste de
frequência sobre essa última parte da matéria.
Muito bem, tínhamos estado a falar dos regulamentos, na aula passada, e só para
terminar essa matéria é importante dizer que os regulamentos podem ser autónomos, ou
dependentes ou subordinados a um determinado diploma normativo. Fizemos uma referência
a isso mas não aprofundamos, e os senhores já sabem que nos termos do artigo 112º da
Constituição, que estabelece a regra das fontes de direito, que os regulamentos dependentes
ou de execução são regulamentos que estão diretamente relacionados com uma concreta e
determinada lei e por causa disso diz-se, neste artigo 112º que é preciso determinar qual é a
lei que aquele regulamento regula. Portanto é uma exigência de procedimento, uma
formalidade procedimental que o órgão que faz o regulamento, que indique qual é a lei que
ele visa regular.
Podem ser autônomos ou independentes, neste caso eles já têm ligação mais ténue com a lei,
mas mesmo estes regulamentos, nos termos deste artigo 112º da Constituição, estes
regulamentos devem indicar a lei de habilitação. A lei que determina a competência
subjetiva, qual é o órgão que emite o regulamento e a competência objetiva para a sua
emissão, qual é a matéria para qual esse órgão é competente. E portanto, há sempre uma
ligação umbilical à lei que resulta da lei de habilitação.
Para além disso, como eu julgo já ter dito na aula passada, há ainda a ideia de que estes
regulamentos como atuações da função administrativa estão submetidos ao princípio da
legalidade, no quadro das diferentes fontes de atuação administrativa.
Portanto, como dizia, e bem, o professor Marcelo Caetano, estes regulamentos são
necessários e adequados para a boa execução das leis e portanto estão subordinados às leis do
seu conjunto. Portanto há aqui uma realidade que tem que ver com esta dimensão secundária
dos regulamentos. São inovadores, mas inovadores dentro daquilo que é a sua esfera própria
de atuação, que é uma esfera de atuação do poder administrativo que está aqui em causa.

Muito bem, isto dito, vejamos então os contratos públicos.


Eu uso esta expressão e sublinho-a de forma importante, porque esta regulação que surgiu por
via europeia do direito dos contratos públicos, veio superar uma esquizofrenia existente no
direito português que levava a distinguir os contratos ditos administrativos, dos contratos
ditos privados da administração.
Essa esquizofrenia foi posta em causa por parte da doutrina dos anos 80 e anos 90, a
Professora Maria João Estorninho foi a primeira a dizer em Portugal, na sua tese de mestrado,
que não havia razão para distinguir uns dos outros. Contratos administrativos ou contratos
ditos privados da administrativos são ambos contratos efetuados pela administração pública
no exercício da função administrativa, usando regras públicas e atuando no quadro do
cumprimento da lei e que não havia nenhuma razão para introduzir essa dicotomia
esquizofrénica entre esses dois tipos de contratos.
Favoráveis a esta ideia, a favor da unificação do regime da contratação pública, foram desde
logo o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que escreveu isso, o Doutor André Salgado
Matos, que colaborou com ele nessa obra e que tinha sido assistente da Professora Maria João
Estorninho e de mim, foi o Professor João Caupers, um dos primeiros a aderir a essa tese, ele
próprio também entendia que essa esquizofrenia era um disparate pegado. Mas não foi por
causa dessa entoação à capela que a maioria da doutrina passou a abandonar a expressão
contratos ditos administrativos e contratos ditos privados. Continua a haver uma posição
maioritária, o Professor Freitas Amaral, o Professor Sérgio Correia, o Professor Vieira de
Andrade, o Professor Pedro Gonçalves, que em Lisboa e Coimbra, continuaram a falar dessa
distinção como se ela se mantivesse na mesma.
Até que, o legislador europeu nos anos 90 veio alterar radicalmente este estado de coisa e
estabeleceu o regime para todos os contratos públicos, que abrange quer os anteriormente
considerados administrativos, quer os anteriormente considerados de direito privado. E
portanto a esquizofrenia que existia em Portugal, que perante os contratos do exercício da
função administrativa, dizia que uns eram administrativos e por isso regulados pelo direito
administrativo e da competência dos tribunais administrativos, outros eram privados,
regulados pelo direito civil e da competência dos tribunais judiciais.
Esta dicotomia acabou ,em Portugal, por influência da União Europeia.
Porque? Porque, a União Europeia instituiu, não apenas um mercado único, mas uma
realidade de natureza económica em que há liberdade de circulação de pessoas, bens e
capitais.
E para que haja liberdade de pessoas, bens e capitais, é preciso que as regras da contratação
pública sejam comuns.
É preciso que um contrato público na Alemanha tenha as mesmas regras que o contrato
público em Portugal, na Polónia, na Hungria, na República Checa, seja onde for. E portanto,
precisamente, regras comuns para precisamente permitir que haja um mercado único a
funcionar.
Portanto a União Europeia estabelece diretivas europeias que foram transpostas para as
diferentes ordens jurídicas. Estas diretivas regularam os contratos típicos da função
administrativa, precisamente aquilo que aquela corrente dos anos 80 e 90 em Portugal tinha
defendido, como de resto houve posições idênticas em França, Itália, na Espanha, na
Alemanha, foi um movimento que surgiu nessa altura.
Nos outros países até teve imediatamente alcance, em Portugal não, em Portugal foi preciso
esperar pelo legislador. Mas hoje em dia, o Código dos Contratos Públicos, a última
atualização deste código datou de 2015 (já há depois a 19, mas esta versão completa a 19,
introduziu muito pouca coisa, esta última versão é basicamente aquela que resultou de 2015),
e portanto transpôs um conjunto de diretivas, que datam as últimas de 2014, estão a ser
preparadas novas diretivas, mas temos um conjunto de regras unificadas em matéria de
contratação pública.

O que é que é preciso dizer acerca destes contratos públicos agora unificados?
Primeiro é preciso dizer que a origem destes contratos não remonta ao momento inicial do
surgimento do direito administrativo, mas ocorre pouco tempo depois. Porque inicialmente,
naquela lógica atocêntrica do estado liberal e do estado absolutista do século 18 e século 19,
o direito administrativo era construído a propósito do ato administrativo. E portanto a única
coisa que preocupava os cultores do direito administrativo e que preocupava os juízes, eram
as noções autoritárias, dado o ato polícia que estava no centro do direito administrativo.
Quando se começou a utilizar a contratação pública, foi quando as entidades administrativas
chegaram à conclusão que determinadas tarefas poderiam ser realizadas de forma mais
eficiente, de forma mais eficaz pelos particulares no quadro de um contrato de natureza
pública. Um contrato que correspondesse ao exercício da função administrativa.
Estes contratos começaram a surgir e generalizaram-se na segunda metade do século 19,
porque nessa altura há um movimento.
Os senhores que gostam de cinema já viram os filmes sobre o Jack de Ripper, em que nas
grandes cidades europeias o problema da iluminação pública era um problema decisivo, que
aliás o fenómeno de Jack de Ripper é simultâneo desta tendência para o começo da
iluminação das cidades. Iluminar as cidades é uma tarefa que implicava montar uma
estrutura, arranjar energia, distribuir energia, fornecer luz elétrica. Portugal também começou
por iluminar, na segunda metade do século 19, a baixa de Lisboa e a zona de Cascais, que
eram os dois sítios onde havia o Paço real e portanto no século 19 foram as duas zonas
prioritárias, depois a partir dai a iluminação pública irradiou por todo o país.
Portanto, isto nasceu a propósito de duas modalidades de contratos públicos.
O contrato de empreitada de obras públicas, contratado pelo qual a administração
encomendava uma obra a um particular e responsabilizava-se pelo mesmo, e o contrato de
concessão, neste caso a concessão de um bem público, a concessão da energia.

(Diálogo com o auditório, não relevante para a matéria )

Bem dizia eu que, o que aconteceu foi que precisamente, estes dois tipos de contratos.
Empreitada, uma obra que se paga, ou a concessão de um bem público que vai ser explorado
pelo particular, ou até a combinação dos dois. Nos nossos dias por exemplo, as estradas como
as auto-estradas são concessionadas a uma empresa privada que realiza uma obra pública mas
depois explora essa obra, que é o que acontece por exemplo nas portagens, nas pontes. Uma
ponte resultou de um contrato de empreitada e concessão de obra pública, porque neste caso
em vez do estado pagar um preço, como numa empreitada normal, o particular cede a
exploração de um bem com serviço de interesse público.
Estes contratos que surgiram nesta segunda metade do século 19, em primeiro lugar eram
considerados essenciais, porque estava em causa um bem público, que a administração
naquela altura queria fornecer a todos, depois eram contratos importantes para a função
administrativa, eram contratos que correspondiam ao exercício de funções públicas que o
Estado realizava indiretamente, através da atuação de um particular, mas realizava um serviço
público. Eram contratos onerosos, em que havia bastante dinheiro envolvido.
Começou a surgir a ideia de que o estado devia ter especiais cuidados na sua elaboração, e no
pacto francês, quando esta lógica surgiu, estes cuidados começaram por ser cuidados de
natureza jurisprudencial, aquilo que se fez foi dizer:
Temos que atribuir a estes contratos, que à falta de pior nome se começou a chamar contratos
administrativos, temos que lhes atribuir um regime de privilégio em matéria de fonte. Temos
que tratá-los como atos administrativos, portanto eles não são suscetíveis de ser conhecidos
por qualquer tribunal, eles podem ser conhecidos pelos tribunais administrativos. E foi aí que
nasceu a noção francesa de contrato administrativo.
Era um contrato administrativo porque tinha um regime de direito público, era da
competência dos tribunais administrativos e isso servia para proteger a administração nos
dois casos mais importantes, que eram as empreitadas e as concessões, e foi para eles que este
modelo foi organizado.
Só que isto começou por ser uma realidade processual, depois tornou-se, em França e nos
países de maior influência da doutrina francesa, numa noção teórica.
A doutrina depois de ter destacado, ter pegado neste conceito de jurisprudência, vai dizer:
Mas será que nós não podemos encontrar algo diferente destes contratos em relação aos
outros ? E começou à procura de, muito bem explicado pela professora Maria João
Estorninho no Requiem, Requiem do contrato contrato administrativo: Requiem deve ir para
o lixo, é preciso substituir esta noção de contrato francês, por uma noção unificada de toda a
contratação pública, era o que significava o Requiem, no fundo.
Esta realidade levou à procura de um conceito que fosse unificador e a doutrina arranjou mil
e um conceitos.
Primeiro era um conceito de executoriedade, os contratos são suscetíveis de executoriedade
de tal forma, mas já sabemos que nem os atos são dotados executoriedade, muito menos os
contratos, eventualmente haverá algumas cláusulas executórias se a administração e o
particular assim o entenderem e se o contratarem. Mas em regra não há cláusulas executórias
e se há, elas resultam do contrato da lei, tal como em qualquer outro contrato privado.
Depois, mas ah…, isto corresponde a cláusulas exorbitantes, são contratos administrativos
porque são exorbitantes como os atos administrativos.
Só que, também não há nada exorbitante nos contratos, porque tudo o que consta nestes
contratos, consta em primeiro lugar dentro dos contratos celebrados pelos particulares. Tal
como há empreitadas de obras públicas, também há empreitadas de obras privadas, se os
senhores quiserem comprar um terreno e construir uma casa têm que contratar uma
empreiteiro e fazem um contrato de empreitada.
As regras do contrato de empreitada de obras públicas são idênticas às de empreitadas de
obras privadas, os poderes de um empreiteiro são poderes que resultam do contrato ou da lei
e que permitem ao dono da obra ver se o empreiteiro está a cumprir o que se estabeleceu no
contrato, punir o empreiteiro em termos de cláusulas contratuais, que estão estipuladas,
alterar ou extinguir o contrato em caso de alteração das circunstâncias, em caso de
incumprimento, ou seja, tudo regras que também existem em contratos em direito privado. E
portanto, como dizia a Professora Maria João Estorninho, não há nada de exorbitante num
contrato administrativo, tudo isso existe, ou pode existir num contrato de direito privado.
Por outro lado, dizer que os que não eram exorbitantes eram direito privado, significava
esquecer, que não pode nunca ser esquecido, que um contrato depende da prática de um ato
administrativo, depende de procedimento administrativo para a sua elaboração, e depois dá
origem a um procedimento público de natureza contratual. Além de que está em causa
dinheiro público, está em causa a realização de tarefas públicas e portanto, todos os contratos
devem ter um regime uniforme.
Como vos disse, isto começou por surgir como uma corrente doutrinária, uma corrente
doutrinária que teve, como já vos disse, estes defensores, eu próprio já escrevi desde os anos
80 bastantes vezes que acho que efetivamente esta esquizofrenia era mais uma daquelas que
correspondia aos traumas da infância difícil e ainda mais era uma esquizofrenia localizada,
porque só existia em quatro países. De todos os que se podiam reclamar da realidade francesa
esta esquizofrenia existia apenas em França, na Espanha, em Itália e em Portugal, mesmo a
Alemanha não sabia o que eram contratos administrativos. Então se falarmos em qualquer
país anglo-saxónico, não se sabe sequer o que isso seja nem o que possa ser. Isso vai explicar
porquê que surgiu a noção de contrato público, a União Europeia que queria regular esta
matéria, a União Europeia queria começar de novo.
A ideia de um contrato, que era exorbitante e um contrato que correspondia a poderes
autoritários da administração também é uma contradição, porque não estamos numa atuação
bilateral, estamos perante um contrato e portanto era uma espécie de Batman com cara de
Joker, Joker com cara de Batman, era uma mistura que não podia existir, que não fazia
sentido. Portanto é algo completamente contraditório e um absurdo.
E a altura em que se deu esta discussão foi essa, foi nos anos 80/anos 90 e também se
quiserem, e para dar aqui uma nota de ironia, eu aderi desde o início à tese, porque estava
plenamente convicto que era um disparate continuarmos com essa realidade. Não foi apenas
por causa do rolo da massa, agora também confidenciou-vos aqui que o rolo da massa lá de
casa é grande e esse é um argumento científico de muito peso. Mas não foi esse o argumento
científico que decidiu, eu genuinamente fui um dos primeiros a aderir a essa concessão
unitária em matéria de contratação pública.

Se os contratos eram idênticos, então qual a solução a tomar?

A solução é a de criar um regime jurídico unificado em matéria de contratação pública todos


os contratos públicos devem ter o mesmo regime jurídico.

O que é que a União Europeia fez? A União Europeia cria um regime comum e queria que
esse regime fosse aceite por todos. Não quis fazer um regime que valê-se apenas para 4
países, e, assim sendo, mudou os dados do sistema e foi buscar a expressão do Direito
Alemão.

Na Alemanha, Ottomayer tinha dito, no quadro da lógica tradicional germânica (não


francesa) que o Estado não podia contratar com a administração ou que o Estado não podia
contratar com um particular. A administração, ou impõe os seus atos ou então não contrata. A
ideia de um contrato público ou de um contrato administrativo é uma ideia que não é
aceitável.

Depois, começaram a surgir contratos entre entidades públicas mal vistos pela doutrina, que
começaram a chamar-se “contrato público” e a União Europeia achou que essa poderia ser
uma boa designação.

A que é que corresponde, na lógica europeia, a contratação pública?

Em primeiro lugar, correspondem todos os contratos que correspondem ao exercício da


função administrativa (exemplo: empreitada de obras públicas; concessão; contrato de
prestação de serviços, etc). Em segundo lugar, corresponde a todos os contratos tidos de
direito privado (exemplo: compra e venda; arrendamento; prestação de serviços em matérias
não habituais, etc).

Portanto, o primeiro critério é o critério do exercício da função administrativa e o segundo


critério é o das zonas, das matérias que são de tal maneira importantes, que, na nossa ordem
jurídica, estas matérias devem ser consideradas como matérias públicas à título II do Código
de Contratação Pública: artigo 7º e seguintes – define como setores administrativos, o setor
da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais. Seja que atuação for que tenha que
ver com estes setores é matéria administrativa porque, nos países anglo-saxónicos estas
matérias são realizadas por particulares, mas apesar disso têm um regime administrativo, têm
um regime público.

A União Europeia definiu setores que tinham o regime público e, ao mesmo tempo que fez
isso, também retirou alguns outros setores desta realidade – os setores excluídos. É um
critério simultaneamente positivo e negativo e assim chegou à solução adequada. Ou seja,
tudo o que tem a ver com a atuação administrativa, é administrativo, as regras aplicáveis são
regras comuns e, os diferentes tipos de contratos podem ter regulação especial.

Em Portugal, gerou grandes resistências e essas resistências chegam até aos dias de hoje
porque, quando surgiram as diretivas europeias (anos 80/90), a União Europeia preocupou-se
por estabelecer regimes substantivos, regimes procedimentais e, regimes processuais para
estes contratos públicos.
Houve muitas resistências à transposição integral destas diretivas e uma das divergências
mantém-se ainda hoje uma vez que , o Código dos Contratos Públicos, se por um lado
uniformizou todo o regime contratual, por outro lado, continua a chamar a uma certa
categoria de contrato: contratos administrativos. De acordo com o Professor Vasco Pereira da
Silva, esta é uma noção esquizofrénica de contratos.

Ter chamado contratos administrativos a uma espécie ínfima dos contratos públicos significa
que, para Portugal e para o legislador português, os contratos administrativos são contratos
públicos e enquanto contratos públicos estão todos submetidos ao mesmo regime jurídico, ou
seja, não devia ter usado esse nome, pois, isso é uma manifestação esquizofrénica de todos
aqueles autores que queriam manter a noção de contrato administrativo e a única forma que
encontraram para que ela tivesse alguma sobrevivência, mas ainda que em termos alterados,
foi a lógica de reservar esse nome para certas categorias de contrato público.

Depois, há jogos de palavras que não fazem sentido, porque quando não se identifica, como
faz o legislador do Código dos Contratos Públicos, os contratos administrativos como sendo
todos contratos públicos, joga-se numa linguagem dupla que não é adequada do ponto de
vista jurídico, nem corresponde à realidade portuguesa nem europeia.

Vejamos como isto se passou no Direito Português:

→Em primeiro lugar, a primeira mudança foi do ponto de vista processual. A reforma de
2004 considerou / estabeleceu que, todos os contratos quer públicos, quer ditos
administrativos, quer ditos privados, todos os contratos públicos eram objeto do ponto de
vista dos contratos administrativos – artigo 4º do Estatuto

→O legislador de 2015, na dúvida se teria feito bem ou não, anulou as expressões, mas
manteve o mesmo regime jurídico, pois, diz que compete aos Tribunais Administrativos os
contratos administrativos e todos os contratos no âmbito da contratação pública, ou seja,
todos. Portanto, não devia ter usado a expressão “contratos administrativos” mas, como inclui
todos no contencioso administrativo, não vai dai nenhum problema no quadro desta lógica.

Na parte primeira, quando o legislador limita o âmbito de aplicação do código, regula todos
os contratos em que intervém a administração pública, quer os ditos contratos
administrativos, quer os ditos contratos de direito privado. Estabelece a disciplina desde o
artigo primeiro, aplicado à contratação pública e a um regime substantivo dos contratos
públicos.

Esta realidade depois manifesta-se no artigo 2º em que as entidades adjudicantes são, não
apenas o Estado, as autarquias, os institutos públicos, mas também, as entidades
independentes, as associações públicas, os particulares no exercício de funções públicas. No
artigo 3º, também os contraentes públicos podem ser quaisquer entidades que
independentemente da sua natureza pública ou privada, celebrem contratos no exercício de
funções materialmente administrativas. No artigo 7º estabelece quais são os setores
considerados administrativos – aqueles em que qualquer atuação tenha natureza
jurídico-pública.

Há ainda uma parte segunda, que se intitula de contratação pública, e aqui estabelece-se o
regime geral de todos os contratos públicos, independentemente da sua qualificação. Aqui
temos regras de natureza contratual, temos procedimentos determinados em função das
diferentes modalidades de contrato em termos amplos. Existe, também, uma parte terceira em
que o legislador reserva a regulamentação dos contratos ditos administrativos, que têm o
mesmo regime que os outros e têm algumas regras especiais.

A União Europeia trouxe, com este novo regime da contratação pública, uma modalidade de
contratos extremamente importantes: os contratos verdes. A ideia de que a ecologia tem
consequências ambientais e de que é preciso que as normas da contratação pública tenham
uma componente ambiental.

Desde os primórdios que tem preocupações de natureza ambiental, sendo que essas
preocupações se manifestaram pela primeira vez, no quadro da contratação pública, numa
sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia: a Concordia Bus (2002), em que estava
em causa o serviço público de transportes no âmbito da capital da Dinamarca. Depois deste
Concordia Bus, houve uma diretiva em 2004, que introduziu regras verdes no domínio da
contratação pública. Mais tarde, o Livro Verde de 2011, introduziu novas regras. E, por fim,
as diretivas de 2014 vieram dar um salto nestas disposições, pois passou-se de um regime que
era meramente facultativo para um regime obrigatório, em todos os contratos públicos.

O que vem dizer a União Europeia?


Começa por dizer, na diretiva de 2002 que, se estamos perante contratos do exercício da
função administrativa, esses contratos têm de ter regras de prossecução dos interesses
públicos e, não há dúvida de que nos nossos dias, os interesses ambientais são decisivos.
Daqui resulta que, o Estado poderia incluir cláusulas ambientais e, nessas cláusulas
ambientais o Estado deveria dar preferência às empresas que utilizassem produtos reciclados
(exemplo: papel reciclado, nos contratos de prestação de serviços). Isto foi muito importante,
mas não foi suficiente.

Na versão da diretiva de 2014, o legislador foi mais amplo. Em primeiro lugar, o legislador
vem dizer de uma forma muito clara que, no quadro dos princípios administrativos, em
matéria de contratação pública, não estão apenas os princípios da legalidade, do interesse
público, da imparcialidade, da boa-fé mas, de acordo com art.1º/1/a) que, também os
princípios da sustentabilidade ambiental, da responsabilidade, assim como, da concorrência,
da publicidade, da transparência, da igualdade de tratamento e da não descriminação. Isto
significa que, o princípio do desenvolvimento ambiental obriga à fundamentação ecológica
das decisões, isto é, a entidade administrativa, quando decide, tem que ponderar as
alternativas mais adequadas em termos ambientais e, tem de justificar as suas opções, em
razão das realidades ambientais.

Portanto, as vantagens económicas, ambientais, sociais, têm que justificar a existência dessa
lesão ambiental, mas, para além disso, esta reforma da diretiva de 2014 ainda estabeleceu
que, os mecanismos unitários como o rótulo ecológico e a eco etiqueta devem ser condições
de preferência.

A União Europeia vem dizer que, as regras verdes deviam estar presentes em todos os
momentos da celebração dos contratos, designadamente, no momento da adjudicação. Se no
quadro da adjudicação, a União Europeia vem dizer que a escolha das propostas deve ser feita
em função daquela que é economicamente mais vantajosa (art.74º/1), logo a seguir diz que a
melhor relação qualidade / preço, é determinada por vários fatores e subfactores, entre os
quais, os da sustentabilidade ambiental. Isto decorre do artigo 74º e do artigo 75º e, vem dizer
que, a avaliação do preço ou do custo, deve ser determinada em ciclo de vida da duração do
bem – desde o momento em que o bem começa a ser praticado até que ele desaparece, sendo
reciclado ou sendo destruído. Portanto, o custo não é o custo da sua venda ao público, nem é
o custo da sua produção em termos económicos, o custo que justifica a adjudicação, é o custo
decorrente do ciclo de vida e, esta situação de verificação do ciclo de vida, obriga a
considerar o bem em causa desde que foi iniciada a sua produção até onde ele termina o seu
ciclo de vida. E isto significa que agora há um critério vinculativo de natureza ambiental que
tem que ser utilizado em todos os contratos públicos, sendo que quando este critério não é
feito ou utilizado qualquer dos concorrentes a esse concurso público pode pôr em causa as
suas normas.

Transcrição feita por Júlia Machado n.° 65020 e Aradna Fernandes, n.º62910

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