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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

ESCOLA DE DIREITO

CURSO DE DIREITO

Transcrição: aula 21/05/2022

Turno: Noturno

Docente: Daniel Antônio de Aquino Neto

Acadêmicos:

João Pedro Bentes de Souza do Nascimento – 2111201014


Laiza do Nascimento Praciano – 2111202018
Lucas Macedo Manhães de Souza – 2111201116
Lucas Siqueira da Silva – 2111201117
Luis Gabriel Macedo de Oliveira – 2111201118
Nataly de Araújo Sobrinho – 2111201121
Rodrigo Lima Martins – 2111201085

Manaus – AM
2022
SUMÁRIO

PREFÁCIO DO LIVRO "O CONCEITO DE DIREITO".............................................. 3

1. CAPÍTULO I: QUESTÕES PERSISTENTES........................................................ 3


1.1 PERPLEXIDADE DA TEORIA JURÍDICA .................................................. 3
1.2 TRÊS QUESTÕES RECORRENTES.......................................................... 4
1.3 DEFINIÇÃO................................................................................................ 14

2. CAPÍTULO II: LEIS, COMANDOS E ORDENS................................................... 17


2.1 VARIEDADE DE IMPERATIVOS .............................................................. 17
2.2 O DIREITO COMO ORDENS COERCIVAS.............................................. 20

3. CAPÍTULO III: A DIVERSIDADE DAS LEIS....................................................... 23


3.1 O CONTEÚDO DAS LEIS......................................................................... 24
3.1.1 A NULIDADE COMO SANÇÃO....................................................... 25
3.1.2 AS REGRAS QUE CONFEREM PODERES COMO FRAGMENTOS
DE LEIS..................................................................................................... 26
3.1.3 A DISTORÇÃO COMO PREÇO DA UNIFORMIDADE.................... 27
3.2 O ÂMBITO DE APLICAÇÃO...................................................................... 28
3.3 OS MODOS DE ORIGEM.......................................................................... 29

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PREFÁCIO DO LIVRO "O CONCEITO DE DIREITO"

[DOCENTE]: A tradução de concept – em português, conceito – ela pode ser um


tanto enganadora, porque concept na língua inglesa é algo além de conceito,
significa ideia, uma ideia geral. Aqui quando falamos conceito na linguagem comum
é como sinônimo de definição, só que a palavra concept está bem além disso.
Aliás, na verdade, a própria palavra conceito, do latim concepto, ela tem uma
abrangência mais ampla, é que nós que nos habituamos por um vício de linguagem
a tratar conceito como sinônimo de definição, mas entendam que a ideia é bem
mais ampla. É justamente o problema da redundância, não é só o conceito como
definição, é a ideia da coisa.

[DOCENTE]: Colocado isto, o professor Hart abre a sua obra dizendo


explicitamente: “Foi meu desígnio neste livro aprofundar a compreensão do direito,
da coerção e da moral como fenômenos sociais diferentes, mas relacionados”. A
distinção do direito e da moral não é uma grande novidade, já falamos bastante
disso. Mas a distinção entre direito e coação é importante por quê? Ambos com
pensadores que insistiram que o direito, a ordem jurídica na sua essência, é uma
ordem coativa. E o Hart vai dizer que direito e coação são coisas distintas, ainda
que, repita-se, possam estar relacionadas.

1 CAPÍTULO I: QUESTÕES PERSISTENTES

1.1 Perplexidade da teoria jurídica

[DOCENTE]: Ele abre o capítulo 1, chamado de “questões persistentes”, em que


ele vai justamente pegar três conceitos, três questões recorrentes e vai tentar
respondê-las. Ele começa abordando a análise do Austin – nós já o vimos várias
vezes, ele é citado pelo Kelsen, um jurista britânico que teve também um impacto
muito grande no pensamento anglo-saxão em geral, não apenas na Inglaterra, mas

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também nos Estados Unidos.

1.2 Três questões recorrentes

[DOCENTE]: Prosseguindo aqui, distinguiremos aqui três dessas principais


questões recorrentes e mostraremos mais tarde por que a razão surge junto sob a
forma de um pedido de definição do direito ou de uma resposta à questão “o que é
o direito?” ou em questões formuladas de forma mais obscura como “o que é a
natureza ou essência do direito?”. Duas dessas questões surgem do seguinte modo:
a característica geral mais proeminente do direito em todos os tempos ou lugares
consiste que sua existência significa que certas espécies de conduta humana já
não são facultativas, são mais obrigatórias em certo sentido. Até aqui tudo bem,
certo? O direito possui seu elemento de obrigatoriedade. Contudo, essa
característica aparentemente simples do direito não é de todo simples, porque
dentro da esfera de conduta obrigatória não facultativa podemos distinguir formas
diferentes. "O sentido primeiro e mais simples em que a conduta já não é facultativa
opõe quando o homem – aqui, lógico, no sentido amplo da palavra – é forçado a
fazer o que outro lhe diz, não porque seja fisicamente compelido no sentido de que
seu corpo seja empurrado ou arrastado, mas sim porque outro o ameaça com
consequências desagradáveis se ele recusar". Isso, inclusive, tem uma distinção no
direito: coação física e coação moral. Numa coação física, a pessoa, por exemplo:
“Ah, fui coagido a entrar dentro do carro”. Se foi uma coação física, a pessoa torceu
seu braço, lhe dominou e empurrou para dentro do carro ou para dentro do
porta-malas, se for um sequestrador. Já, se foi uma coação moral, a pessoa
ameaçou causar consequências a você se você não entrasse – “Se você não entrar
agora, vai acontecer o pior contigo. Se você não entrar agora, eu vou ter que usar a
minha arma”.

[DOCENTE]: Muito bem, voltando aqui ao Austin, o assaltante armado ordena à


sua vítima que lhe entregue a bolsa e ameaça de lhe dar um tiro se esta recusar.
Se a vítima cede, referimo-nos à maneira como foi forçada a agir assim, dizendo
que foi obrigada a agir assim. Para alguns, tem parecido claro que nesta situação

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em que uma pessoa dá ordem e a outra baseada em ameaças, e neste sentido de
obrigar, o obriga a obedecer, temos a essência do direito, ou pelo menos a chave
da ciência do direito. Este é o ponto de partida da análise de Austin, a qual tanto
tem influenciado a ciência do direito inglesa. Gente, a princípio é algo que podemos
dar razão, porque o direito na maioria das coisas que nos manda fazer, o direito não
está lá como um guarda sempre de prontidão para nos algemar. A maioria das
coisas que o direito nos ordena que façamos, nós não obedecemos mediante
coação diretamente física, mas mediante coação moral. “Olha, se você não fizer tal
coisa, aí eu vou chamar o guarda. Ele vai te algemar. Ele vai te dar umas
‘borrachadas’. Quer apanhar do guarda? Não, tu não quer? Então é melhor tu
fazer”. De fato, repita-se: a maioria das vezes em que obedecemos o direito, nós
obedecemos mediante uma obediência coativa. No caso, não é uma obediência
fisicamente coativa, é uma obediência moralmente coativa. O conceito de coação
moral passou a ser estendido. Atualmente, eu confesso que não gosto da maneira
como a jurisprudência atual trata a coação moral. Eles passaram a estender para
situações de temor reverencial. Um temor reverencial é diferente. Na coação moral
existe a possibilidade da prática de um mal, só que esse mal não chega a ser feito
fisicamente, ele é apenas ameaçado. O mal não chega a existir fisicamente na
coação moral, ele é ameaçado. Na coação física, ele existe fisicamente. O temor
reverencial é uma coisa um pouco diferente. Um temor reverencial, você está
falando de um temor a uma certa autoridade que, mesmo que ela não possa
ameaçar, ela tem sobre você uma ascendência que se torna muito difícil,
dependendo das circunstâncias, de você dizer “não”. Então vamos lá, pegar um
exemplo: eu tive uma aluna. Quando ela estava se formando, ela estava noiva e ela
e o noivo já estavam querendo acertar para se casar. Só que ela estava com uma
preocupação muito grande e pediu, num dado momento, para conversar comigo a
sós. Qual era a preocupação dela? Ela estava com uma dívida, na época, de uns
duzentos e cinquenta mil reais. Por que essa moça estava com essa dívida?
Porque o pai havia colocado uma empresa no nome da filha e a empresa tinha
quebrado. E porque o pai tinha colocado a empresa no nome da filha? O pai estava
querendo expandir os negócios, mas estava sem conseguir colocar a empresa no
nome dele, ele estava com um problema no nome. O que ele fez então? A filha,

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quando completou dezoito anos, ele chegou lá “filha, vou precisar abrir uma
empresa no seu nome, assina aqui essa papelada. Fica tranquila que você não vai
ter preocupação, seu pai vai cuidar de tudo. Isso aqui, minha filha, é mera
formalidade”. Ela assinou, e a “formalidade”, anos depois, virou uma dívida de
duzentos e cinquenta mil reais. Pois é, aí vem a pergunta: essas filhas poderiam ter
dito “não”? Em tese, sim. Mas olhe, vamos falar francamente, eu pergunto aí: o pai
chega com você dizendo “olha, a gente tá precisando abrir uma empresa, não tá
podendo abrir no meu nome, a gente vai colocar no teu nome, mas fica tranquilo
que eu vou cuidar disso tudo, você não precisa se preocupar. Assina aqui, por
favor”. Ele não está ameaçando você, ele não está batendo em você, ele não está
encostando uma arma em você, ele não está dizendo “se você não assinar, você
vai pro olho da rua, eu vou te botar pra fora de casa”. Não, ele não está dizendo
isso, mas ele está empregando o que chamaríamos aqui de um “temor referencial”,
um senso de respeito que você tem. E sejamos francos, a maioria de vocês
provavelmente iria dizer “sim”. Dificilmente alguém iria dizer “não”.

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Mesmo se fosse divisão parcial de bens?

[DOCENTE]: (DISCENTE), veja só. Do ponto de vista técnico, se eles casarem,


você tem razão. Com uma separação de bens ou uma comunhão parcial, talvez, o
patrimônio não poderia ser alcançado. Só que existem duas cobranças no direito
que infelizmente elas atropelam muito as formalidades legais: a dívida tributária e a
dívida trabalhista. Execução tributária e execução trabalhista muitas vezes é “lei da
selva”, é o leão correndo na savana africana e pegando o primeiro que está pela
frente. E outra coisa, e supondo que essa separação total de bens – “Ah não,
vamos casar em separação total de bens, deixa tudo no seu nome porque aí
ninguém mexe” –. Só que aí, você tem um risco: o casal está trabalhando junto,
está fazendo patrimônio, está no nome de um só. Aí, depois de anos de patrimônio
só no nome do sujeito, o cara te dá um “pé na bunda”. Quais são os seus direitos no
divórcio? Você sai do casamento, desculpe a expressão, “com a mão na frente e
outra atrás”.

[DOCENTE]: Então, pois bem, nos dias de hoje, gente, você encontra decisões

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judiciais – vocês já devem ter visto as notícias disso, né? – “Juiz determina que
igreja devolva a doação que foi feita pela fiel”. Isso era considerado, antigamente,
um ato realizado sob temor reverencial. Isso não era anulado, só que hoje em dia, a
jurisprudência está considerando isso uma forma de coação moral. Eu, como disse,
tenho as minhas discordâncias nesse sentido, não sei até que ponto isso foi correto.
Mas você tem situações onde admita-se que a coação moral e um temor reverencial
às vezes está num limite muito tênue. Se eu disser “você vai pro inferno”, isso é
uma coação moral ou um temor reverencial? Tecnicamente, por coação entenda-se
por ameaça com coisas concretas. Ameaças sobrenaturais, em tese, não se
enquadrariam como uma coação moral, mas a jurisprudência vem começando a
tratar isso.

[DOCENTE]: Vamos lá, a pergunta nuclear latente que o professor Hart coloca é:
“O que é o direito? E como nós o separamos ou distinguimos de outras ordens com
regras, de outros ordenamentos de regras?". Ele prossegue: "tal como o sistema
jurídico contém elementos estritamente ligados com os casos simples de ordens
baseadas em ameaças, também contém óbvia e igualmente elementos estritamente
ligados com os aspectos da moral". De novo o que o Hart diz: direito e moral não
são a mesma coisa, mas há uma inter-relação. Normalmente, uma pessoa quando
diz que quer um direito livre de concepções morais, ela está dizendo que é um
direito livre das concepções morais que ela não gosta, mas que quer um direito
adstrito às concepções morais que ela gosta. Mas prosseguindo, pensamos e
falamos de justiça, de harmonia com o direito. Também de justismo e justiça das
leis, ou seja, a discussão de justiça e injustiça, senhores, ela é um elemento moral.
Com “Justiça ou injustiça” você entra numa discussão axiológica que é valorativa, é
moral. Repito: não é que a moralidade seja parte do direito, mas há uma
interligação. A terceira questão principal, que suscita à pergunta “o que é o direito?”
é uma questão mais geral. À primeira vista poderia parecer que a afirmação de que
um sistema jurídico consiste, pelo menos em geral, em regras dificilmente podia ser
posta em dúvida ou difícil de compreender. Ora, então, que o direito é um sistema
de regras, é algo que a princípio se concorda, porém, põe-se mais adiante. Claro, é
verdade, que existem regras de muitos tipos diferentes. Não só no sentido óbvio de

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que ao lado das regras jurídicas, regras de etiqueta, de linguagem, de jogos, de
clubes; mas também no sentido menos óbvio de que, mesmo dentro de qualquer
dessas esferas, as realidades que se chamam regra podem surgir de modos
diferentes, e podem ter relações muito diferentes com as condutas que dizem
respeito. Assim, mesmo dentro do direito, algumas regras são estabelecidas através
de legislação. Outras não são feitas por nenhum ato intencional, e realmente, as
regras costumeiras, elas não surgem com um ato intencional. O construir, muitas
vezes, vai surgindo de uma maneira espontânea e imemorial. Não há
necessariamente um ato intencional no estabelecimento de um costume. Algumas
vezes pode haver? Pode, o Erick Hobbes, notem no livro, que ele pega um pouco
esse mote chamado “A invenção das tradições”. É um livro interessante, mas que
vocês precisam ler com certo cuidado pra não incorrer na ideia de que toda a
tradição é necessariamente inventada, mas enfim. Prosseguindo, algumas regras
são imperativas, que realmente é regra no sentido que nós utilizamos comumente
(a regra enquanto uma determinação, enquanto algo que você tem que cumprir).

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Prof, existe alguma diferença entre coação e


coerção? Ou são sinônimos?

[DOCENTE]: Ah, desculpe, eu pulei a pergunta do (DISCENTE). (DISCENTE),


embora coação e coerção sejam eventualmente utilizadas como sinônimos, na
verdade, muitas pessoas chegam a fazer uma diferenciação sim. A coerção é o
poder de imposição. A coação é ato de exercício do poder pela força para fazer com
que algo se cumpra. A coerção, portanto, segundo alguns, poderia ser a
imperatividade e a coação, por sua vez, é a aplicação da imperatividade no caso
concreto, está bem? O Goffredo Telles, ele chega também a fazer uma
diferenciação disso, depois vocês podem dar uma olhada nele.

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Obrigado, prof!

[DOCENTE]: Prosseguindo, a mera convergência de comportamentos entre


membros de um grupo social pode existir. Exemplo: todos podem tomar chá
regularmente ou ir semanalmente ao cinema, e, contudo, pode não existir uma
regra a exigi-lo, ou seja, você pode ter a convergência de comportamento sem que

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haja uma regra. Ora, nós fazemos três refeições por dia, essa é uma convergência
comportamental em regra não no sentido de “a praxe”. Mas há uma regra no
sentido de norma coativa determinando “você tem que tomar café às sete, almoçar
meio-dia e jantar às dezenove? Não, não existe.

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Regras costumeiras normalmente só serão


positivadas depois, certo? Quando passa a fazer parte do ordenamento por
legislação.

[DOCENTE]: Sim, as regras costumeiras poderão ser incorporadas depois sim à


legislação. Poderão sim ser positivadas.

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Obrigada.

[DOCENTE]: Prosseguindo, a diferença entre as duas posições sociais de meros


comportamentos convergentes e da existência de uma regra social mostra-se
frequentemente de forma linguística. Ao descrevermos a última, podemos, embora
não seja necessário, usar certas palavras que seriam enganadoras se só
quiséssemos afirmar a primeira. As palavras são: ter o dever e ter de fazer, as quais
partilham certas funções comuns, não obstante às diferenças ao indicarem a
presença de uma regra que exige certa conduta. Não há na Inglaterra qualquer
regra nem é verdade que todas as pessoas tenham o dever ou devam ir ao cinema
todas as semanas. Isso, é verdade que é um hábito regular, de ir ao cinema todas
as semanas. Entretanto, há uma regra: a de estabelecer que os homens devem
descobrir a cabeça na igreja. Então, qual a diferença crucial entre o comportamento
habitual meramente convergente num grupo social e a existência de uma regra de
que as palavras “ter de dever” ou “ter o dever de” são muitas vezes um sinal?
Gente, nas regras jurídicas você tem uma consequência previsível e definida e
organizada de forma social. Já no caso não-jurídico, embora seja provada uma
reação do seu semelhante perante o desvio, esta não é organizada nem define
substância. Isso também nós vimos. Algo que vai diferenciar ordem jurídica de
outras ordens comportamentais, é que na ordem jurídica a violação do
comportamento tem como consequência uma sanção previamente determinada,
previamente regulada, enquanto que na violação da regra social não há isto, existe

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uma consequência que não é regulada, muitas vezes não é previsível. A
consequência pode ser, por exemplo, o ostracismo social – as pessoas deixam de
lhe convidar para certos ambientes porque você não se comporta bem –. A outra
consequência pode ser o ridículo: as pessoas continuam lhe convidando, mas
enquanto você está lá cometendo uma gafe atrás da outra, as pessoas continuam
rindo nas suas costas.

[DOCENTE]: É óbvio, como ele diz, que a previsibilidade do castigo é um aspecto


importante das regras jurídicas, porém, aí ele diz: “Não é possível aceitar isto como
uma descrição exaustiva”. Ou seja, gente, Hart está dizendo que o castigo ou a
sanção, embora seja um elemento muito importante diference-lo da regra jurídica,
não é uma descrição exaustiva. O Hart, diferente de outros pensadores não vai
colocar a sanção como elemento fundamental diferenciador do direito em relação a
outras ordens. Dentro do conceito do direito, para o Hart, a sanção é importante
sim, mas ela não terá o aspecto tão fundamental quanto tem no Kelsen, ou mesmo
no Bobbio. Ele diz em seguida que há muitas objeções contra essa descrição,
principalmente da teoria jurídica escandinava, porque a teoria jurídica escandinava
é uma teoria realista, que trabalha muito com o papel do juiz. E aí ele diz: "É que,
se examinarmos de perto a atividade do juiz, ou do funcionário que pune os desvios
das regras jurídicas, vemos então que as regras estão envolvidas nesta atividade de
uma maneira que a descrição, em termos de previsibilidade, deixa praticamente por
explicar. Porque o juiz, ao punir, toma a regra como seu guia e a violação da regra
como razão e justificação para punir o autor da violação”. Ele não considera a regra
como afirmação de que ele e outros previsivelmente punirão os desvios, embora
um espectador pudesse considerar a regra precisamente dessa maneira. O aspecto
da previsibilidade da regra, embora suficientemente real, é irrelevante para os seus
objetivos enquanto que o respectivo estatuto como guia e justificação é essencial.
O mesmo é verdade quando as censuras informais proferidas por causa das
violações das regras não jurídicas. Também estas não são meras reações
previsíveis ao desvio, mas algo que a existência da regra serve de guia e é
considerado como justificação. Por isso dizemos que censuramos ou castigamos
um homem porque violou a regra, e não meramente porque era provável que o

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censuraríamos ou castigaríamos.

[DOCENTE]: Ora, o que o professor Hart está querendo dizer aqui? Que embora a
sanção seja um elemento importante, a norma de conduta – e ele vai bater nessa
tecla outras vezes – também terá uma imensa importância. No fim das contas, seja
pelo direito, seja pelas regras de trato social, o que nós queremos é condicionar
comportamentos. O Kelsen vai dizer que não é o condicionamento comportamental
que é o mais importante, tanto é que ele chama o condicionamento comportamental
de norma de conduta de norma secundária. Kelsen vai dizer que o importante é a
primária, que é a sanção. Hart não, a sanção é importante sim, mas o direito, como
qualquer ordem de regras, ele está lá sim de um jeito ou de outro para condicionar
comportamentos. Prosseguindo: "contudo, entre os críticos que suscitaram essas
objeções, a descrição em termos de previsibilidade, alguns confessam que há algo
de obscuro, algo que resiste a uma análise em termos claros, precisos e factuais.
Que pode haver uma regra para além da punição ou censuras regulares, e por isso
previsíveis, daqueles que se desviam dos padrões comportamentais que a
distinguem de um simples ato de grupo, pode realmente existir algo para além
desses fatos claramente termináveis algum elemento extra que guia o juiz e justifica
ele ter uma razão para punir? A dificuldade de dizer o que é exatamente esse
elemento extra levou esses críticos à Teoria da Previsibilidade neste ponto. A insistir
que em toda a referência a regras e a uso correspondente de palavras como “deve”
está afetada por uma confusão que talvez aumente a respectiva importância dos
olhos dos homens, mas não tem base racional. Nós assim pensamos, assim
argumentam tais críticos que há algo na regra que nos vincula a fazer certas coisas
e nos guia e justifica fazê-las. Mas isso é uma ilusão, ainda que se trate de uma
ilusão útil. Tudo que há para além dos fatos claramente termináveis do
comportamento de grupo e da reação previsível ao desvio são os nossos
sentimentos poderosos de concussão para nos comportamentos de harmonia com
a regra e para agir contra os que não se comportam assim. Não reconhecemos
esses sentimentos por aquilo que são, mas imaginamos que é algo externo, alguma
parte invisível da estrutura do universo que nos guia e fiscaliza nessas atividades.
Aqui estamos no domínio da ficção, com o qual se tem dito que o direito tem estado

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sempre ligado. É só porque adotamos essa ficção que podemos falar sobre limite do
governo das leis, não dos homens. Esse tipo de crítica, quaisquer que sejam os
méritos de suas afirmações positivas, pede pelo menos uma elucidação posterior
ou anterior da distinção entre regras sociais e meros atos convergentes de
comportamento". Essa distinção é crucial para a compreensão do direito em grande
parte dos capítulos. Gente, vejam só, quando nós falamos aqui da distinção entre
regras sociais e meros atos convergentes, nós estamos aqui falando de uma teoria
que muitas vezes passa por um elemento psicológico. Por que temos atos
convergentes? Por que fazemos três refeições por dia? Bom, porque já estamos
condicionados a isso, nós temos fome, geralmente, nos três horários que eu
mencionei – o início da manhã, por volta do meio dia e o final da tarde para o início
da noite. Além disso, nós ouvimos dos especialistas em nutrição que esse padrão
seria o mais saudável, e dessa maneira temos o hábito de fazer três refeições.
Outro ponto: isso é a mesma coisa que nós termos o hábito de não “meter” o dedo
no nariz em público, não ficar lá tirando secreção em público? Não. Há em relação
a essa segunda situação um elemento psíquico. Eu sei que será constrangedor se
alguém me flagrar em um ambiente público com o hábito anti higiênico – os
sentimentos de vergonha, de embaraço, de constrangimento. Eu já falei pra vocês
sobre um pesquisador que trabalhou bastante esses sentimentos, o papel deles
nos comportamentos sociais, mas eu vou colocar de novo aqui o nome: Norbert
Elias, autor de uma obra chamada O Processo Civilizador, Volume I e II.

[DOCENTE]: Prosseguindo. Então, como eu estava dizendo, quando ele diz aqui
“sentimentos poderosos de compulsão para nos comportarmos em harmonia com a
regra e para agir contra os que não se comportam assim”. Bom, não
reconhecemos, repetindo, esses sentimentos por aquilo que são, imaginamos que
há algo externo, alguma parte invisível da estrutura do universo que nos guia e
fiscaliza nessas atividades. Ele diz: “Estamos aqui, no domínio da ficção, com o qual
se tem dito que o direito tem sempre estado ligado”. E ele diz: “É só porque temos
adotado essa ficção que podemos falar sobre limite do governo das leis, não dos
homens”. Aqui, gente, entra um outro ponto: quem que nos constrange? A regra ou
as pessoas? Bem, do ponto explicitamente prático, são as pessoas. São as
pessoas que vão apontar para você e dizer: “Não faça isso, não fique colocando o

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dedo no nariz em público”. Mas o que acontece quando você se dá conta de que
não tem ninguém olhando e você sente, digamos assim, aquele excesso de
“massinha” dentro do seu nariz? Aí você olha – ninguém está olhando – e dá aquela
“cavucada”, tira e joga. Gente, é a regra então que constrange, ou são as pessoas
fiscalizadoras das regras? o que que nos constrange, nesse exemplo que eu dei: a
regra ou as pessoas? as pessoas. Por isso "a regra constrange" é uma ficção, meu
filho. Uma ficção. Quem está lá para lhe constranger, para lhe apontar o dedo, para
lhe dizer que você está errado, são as pessoas. Todavia, nós criamos uma ficção,
segundo Hart, de que são as regras que nos constrangem. E aí o Hart vem e dá
esta frase maravilhosa: "É só porque adotamos esta ficção, que podemos falar
solenemente do governo das leis, não dos homens". Isto, gente, é um axioma
quase religioso na teoria do Estado de Direito. "Temos que ter um governo de leis, e
não de homens", certo? O que o Hart está dizendo aí é que, no fim das contas, toda
ordem coercitiva será uma ordem fiscalizada por pessoas. Por que que os teóricos
do Estado de Direito gostam de falar disso, "queremos um governo de leis, não de
pessoas"? Porque as leis são impessoais, enquanto que as pessoas (com o perdão
da aliteração) são pessoais. "Queremos um governo de leis, de leis isentas", já as
pessoas, não são isentas. O Hart vai dizer: "no fim das contas, tudo é um governo
de pessoas", que muitas vezes não serão isentas.

[DOCENTE]: Prosseguindo: "O cepticismo acerca da natureza das regras jurídicas


nem sempre tomou, todavia, a forma extrema de condenação da própria noção de
uma regra vinculativa como confusa ou fictícia. Pelo contrário, a forma de cepticismo
que mais tem prevalecido na Inglaterra e nos Estados Unidos convida-nos a
reconsiderar o ponto de vista de que um sistema jurídico é constituído totalmente,
ou mesmo primariamente, por regras. Não restam dúvidas de que os tribunais
proferem os seus julgamentos de forma a dar a impressão de que as suas decisões
são a consequência necessária de regras predeterminadas cujo sentido é fixo e
claro. Em casos muito simples, tal pode ser assim; mas na larga maioria dos casos
que preocupam os tribunais, nem as leis, nem os precedentes em que as regras
estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado. Nos casos mais
importantes, há sempre uma escolha. O juiz tem de escolher entre sentidos
alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações conflitantes do que

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um precedente significa". Hart está aqui dizendo o que acabamos de comentar. Em
todo sistema jurídico você terá um elemento de pessoalidade, um elemento de
escolha. Nem tudo estará definido pela força da lei. Muitas coisas serão definidas
pelo pensamento da autoridade julgadora. É por isso que, quando vocês entrarem
na atuação prática no Direito, vocês se depararão com situações do tipo: "ah, será
que a gente consegue levar essa causa? Depende. Se cair na primeira vara, a
gente ganha. Se cair na segunda, a gente perde". Poxa, mas o Direito não é o
mesmo? Pois é, mas é que o juiz da segunda vara pensa de um jeito, e a juíza da
primeira vara pensa de outro jeito. Mesmo ambos aplicando a lei idêntica.

[DOCENTE]: Bom, o que que acontece gente? Isso significa o seguinte: as leis,
elas são a fonte do Direito, mas o Direito, enquanto produto, pode sair muito
diferente daquilo que eventualmente está nas leis. Ele conclui essa parte dizendo:
"Tais pensamentos levam-nos à negação paradoxal que já citamos: As leis são
fontes de direito, não parte do próprio direito". A lei é uma fonte do Direito? sim.
Mas ela não vai integrar o próprio Direito. O Direito será o resultado dessa lei
misturada à pessoalidade ou a discricionariedade do aplicador dessa lei: do juiz, da
juíza, do fiscal, do guarda etc.

1.3 Definição

[DOCENTE]: Prosseguindo: "Aqui estão, pois, as três questões recorrentes: Como


difere o direito de ordens baseadas em ameaças e como se relaciona com estas?
Como difere a obrigação jurídica da obrigação moral e como está relacionada com
esta? O que são regras e em que medida é o direito uma questão de regras?".
Bem, "todos nós estamos por vezes nesta provação; é fundamentalmente o caso do
homem que diz: Sou capaz de reconhecer um elefante quando vejo um, mas não
sou capaz de o definir". Gente, o Direito, assim como várias coisas na vida, é
interessante que nós conseguimos reconhecê-lo quando vemos, mas não
conseguimos defini-lo. O exemplo aqui que inclusive o autor dá: todo mundo sabe
que é um elefante, mas se você pedir para que se dê o conceito de elefante, você
pode ficar confuso, ou então você pode dar um conceito que é um e a outra pessoa
do seu lado, que viu o mesmo elefante, dar um outro conceito, um tanto distinto. E

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aí ele diz: 'É deste modo que mesmo hábeis juristas têm sentido que, embora
conheçam o direito, há muito acerca do direito e das suas relações com outras
coisas que não são capazes de explicar e que não compreendem plenamente".
Bom, em termos dos conceitos, o mais óbvio candidato para uso deste modo, na
definição do Direito, é a família geral das regras de comportamento. Vejam só,
Aristóteles dizia o seguinte: que um conceito pode ser dado mediante o
enquadramento na regra geral e a diferença específica. O que que é tal coisa?
Resposta: Você pega tal coisa, enquadra na sua família, no seu gênero, digamos
assim, e aí você dá a especificidade. Essa ideia aristotélica foi justamente aquilo
que ele leu, utilizou, na sua classificação taxonômica. Muito bem, dentro da
classificação de Lineu, uma espécime, ela é classificada de que maneira, senhores?
de que maneira?

[DISCENTE 1]: As características dela?

[DOCENTE]: Gente, o nome, o nome da espécie. Homo sapiens, o que é isso?

[DISCENTE 2]: São dois nomes em latim, falando do gênero e da espécie. O


primeiro do gênero e o segundo da espécie.

[DOCENTE]: Exatamente. Regra aristotélica: gênero próximo e diferença


específica, para você identificar algo. O que é o ser humano? Dentro da regra
aristotélica: qual o gênero ao qual ele pertence? Ao gênero dos hominídeos, homo.
Tá, mas o que que o diferencia dos demais hominídeos? A faculdade racional, do
saber, do sapiens, a sapiência. Homo sapiens. Gente, tal qual o ser humano, ou a
taxonomia de Lineu, o Direito é diferenciado por um gênero, que é qual? O gênero
das regras de comportamento. O direito é o que? É regra comportamental. Nós
temos outras regras comportamentais: as regras do comportamento social, moral
etc. Mas o Direito integraria essa família, ou esse gênero, dos grupos de regras. Só
que aí vem o Hart e diz: "contudo o conceito de regra, como vimos, é tão causador
de perplexidade como o do próprio direito, de tal forma que definições de direito que
começam por identificar as leis como uma espécie de regras, normalmente não
aumentam mais a nossa compreensão do direito". E ele, mais adiante, fala: "há
vários casos de um termo geral que têm as mesmas características. Muito
frequentemente o uso comum, ou mesmo técnico, de um termo é bastante aberto,

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na medida em que não proíbe a extensão do termo a casos em que apenas
algumas das características normalmente concomitantes estão presentes. Isto,
como já notámos, é verdadeiro quanto ao direito internacional e quanto a certas
formas de direito primitivo, de modo que é sempre possível argumentar de forma
plausível a favor e contra tal extensão". Ou seja, mesmo a ideia de regra, ela possui
uma elasticidade que, ainda assim, pode causar ambiguidades. O Hart vai explicar
isso melhor, um pouco mais adiante. Principalmente na situação de regras
implícitas, regras explícitas. Muito bem: "Há, claro, muitos outros tipos de definição,
além da forma tradicional muito simples que debatemos, mas parece nítido, quando
recordamos a natureza das três questões principais que identificámos como
subjacentes à questão recorrente: O que é o direito?, que nada de suficientemente
conciso, susceptível de ser reconhecido como uma definição, lhe podia dar
resposta satisfatória. As questões subjacentes são demasiado diferentes umas das
outras e demasiado fundamentais para serem capazes deste tipo de resolução. A
história das tentativas para dar definições concisas mostrou isso. Contudo, o
instinto que frequentemente reconduziu estas três questões conjuntamente a uma
única pergunta ou pedido de definição não foi mal orientado; porque, como
mostraremos no decurso deste livro, é possível isolar e caracterizar um conjunto
central de elementos que formam uma parte comum da resposta a todas as três
questões. Quais sejam estes elementos e por que razão merecem o importante
lugar que lhes está reservado neste livro, tal evidenciar-se-á melhor, se
considerarmos primeiramente em detalhe as deficiências da teoria que tanto tem
dominado a ciência jurídica inglesa, desde que Austin a expôs. Esta teoria consiste
na pretensão de que a chave da compreensão do direito se encontra na noção
simples de uma ordem baseada em ameaças, que o próprio Austin denominou
comando".

[DOCENTE]: Bom, gente, nós vimos um pouco disso, da ideia de comando, tirada
da teoria de Austin como sendo a essência do Direito. O Direito é um comando, um
comando em que sentido? Alguém dá uma ordem sob pena de cumprimento de
uma ameaça se você não executar, se você não obedecer a ordem. Bom, o que
que acontece? Isso é uma teoria imperativa, e o Hart possui uma relação um tanto
ambígua com a teoria imperativa. Ele acha que a teoria imperativa não vai explicar

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tudo, ela é uma teoria incompleta, mas que, mesmo assim, ela continua sendo uma
teoria melhor do que as suas rivais. Então ele diz aqui: "A nossa desculpa, se se
precisar de alguma, para este tratamento não histórico, reside em que os erros da
teoria imperativa simples são uma melhor bússola para a verdade, do que os das
suas rivais mais complexas". E ele prossegue: "o objetivo deste livro não é fornecer
uma definição do direito, no sentido de uma regra por referência à qual pode ser
testada a correção do uso da palavra; é antes fazer avançar a teoria jurídica,
facultando uma análise melhorada da estrutura distintiva de um sistema jurídico
interno e fornecendo uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças
entre o direito, a coerção e a moral, enquanto tipos de fenômenos sociais". Então
gente, essa observação aqui, ela é interessante. Por isso que eu disse que o termo
"conceito de direito", em uma tradução literal, pode ser enganoso, porque você
pode pensar "como é que o cara coloca o nome do livro 'Conceito de Direito' e aí na
página 21 ele fala que o objetivo do livro não é fornecer uma definição de direito?
Ora, que propaganda enganosa é essa? Que publicidade enganosa é essa? O cara
fala uma coisa e, quando você fala o livro é outra? Pois é gente, é porque conceito,
enquanto sinônimo de definição, não é a melhor tradução ai. Melhor seria que
estivesse tratado como a "ideia" de Direito. Vamos então prosseguir, entrando no
capítulo dois, que é o capítulo sobre leis, comandos e ordens.

2 LEIS, COMANDOS E ORDENS

2.1 Variedade de imperativos

[DOCENTE]: Hart abre o capítulo dizendo: "A tentativa mais clara e completa de
análise do conceito de direito em termos de elementos aparentemente simples de
comandos e hábitos foi a feita por Austin na obra Province of Jurisprudence
Determined. Neste e nos próximos dois capítulos, exporemos e criticaremos uma
posição que é, em substância, a mesma da doutrina de Austin, mas que
provavelmente dela diverge em certos pontos. Isto porque a nossa principal
preocupação não tem a ver com Austin mas com as credenciais de um certo tipo de

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teoria que tem atrativos perenes, sejam quais forem os seus defeitos. Assim não
hesitamos, quando o sentido de Austin é duvidoso ou quando os seus pontos de
vista parecem inconsistentes, em ignorá-lo e em expor uma posição clara e
coerente. Mais ainda, quando Austin se limita a dar leves indicações quanto aos
modos por que as críticas podiam ser rebatidas, nós desenvolvemo-las
(parcialmente pelas linhas seguidas por teorizadores posteriores, nomeadamente
Kelsen), de forma a assegurar que a doutrina por nós considerada e criticada seja
exposta na sua forma mais intensa". O Kelsen, ele faz um pouco isso com o Austin,
ele vai expor a teoria do Austin mas ele vai colocando aqui e acolá correções e
discordâncias. O Hart fará algo parecido. Prosseguindo: "Em muitas situações
diferentes da vida social, uma pessoa pode exprimir um desejo de que outra
pessoa deva fazer ou abster-se de fazer algo. Quando este desejo é formulado, não
apenas como uma nota de informação com interesse ou de auto-expressão
propositada, mas com a intenção de que a pessoa interpelada se deva conformar
com o desejo expresso, é costume usar, em inglês e em muitas outras línguas,
embora não necessariamente, uma forma linguística especial chamada modo
imperativo". Isto foi algo que já falamos. Quando falamos da imperatividade, das
regras, a imperatividade se traduz linguisticamente. O modo imperativo, inclusive,
funciona dessa maneira: quando você dá uma ordem a alguém. Bem,
prosseguindo, Hart diz: "usaremos as expressões 'ordens baseadas em ameaças' e
'ordens coercivas' para nos referirmos a ordens que, tal como as do assaltante, são
baseadas em ameaças, e usaremos as palavras 'obediência' e 'obedecer' para
abranger o cumprimento de tais ordens". Isso é importante na leitura do restante do
livro. "Ordem baseada em ameaça" e "ordem coerciva" seria uma coisa, seria,
digamos, o comando, e "obediência" o cumprimento do comando da ordem.
"Contudo é importante notar, nem que seja por causa da grande influência sobre os
juristas da definição de Austin da noção de comando, que a situação simples em
que as ameaças com um mal, e nada mais, são usadas para impor a obediência,
não é a situação em que naturalmente falamos de comandos. Esta palavra, que
não é muito comum fora de um contexto militar, traz consigo implicações muito
fortes de que há uma organização hierárquica de homens relativamente estável, tal
como um exército ou um corpo de discípulos em que o comandante ocupa uma
posição de proeminência" e ele diz, mais embaixo: "Comandar é caracteristicamente

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exercer autoridade sobre homens, não o poder de lhes infligir um mal, e, embora
possa estar ligado com ameaças de um mal, um comando é primariamente um
apelo não ao medo, mas ao respeito pela autoridade".

[DOCENTE]: Ora gente, a ideia, portanto, de comando ligado ao próprio Direito é


que haja uma obediência a ele também com base na sua autoridade. Ora, muitos
de nós obedecemos ao Direito não por temor às sanções, às ameaças, digamos
assim, que o Direito pode nos fazer, mas por uma questão de respeito. Afinal de
contas, é a lei. A lei está lá para que? Está lá para ser respeitada. Então notem
que, muitas vezes, a obediência ao Direito não necessariamente é uma obediência
coercitiva. Ela pode ser uma obediência também mediante um temor referencial,
certo? Isso pode eventualmente acontecer, mas prosseguindo: "É óbvio que a ideia
de um comando com a sua conexão muito forte com a autoridade está muito mais
próxima da de direito do que a ordem do nosso assaltante baseada em ameaças"
— você não obedece o assaltante porque você o respeita, certo? Isso é evidente —
"embora esta última seja um caso daquilo que Austin chama, ignorando as
distinções observadas no último parágrafo, de forma enganadora um comando".
Isso é uma coisa que ele critica: o Austin chama de comando tanto aquilo que
resulta de uma obediência por respeito quanto aquilo que gera uma obediência por
ameaça, e o Hart diz que essas situações não devem ser confundidas. Devemos
ter em mente que são situações distintas. "Um comando está, contudo, demasiado
próximo do direito para os nossos propósitos, isto porque o elemento de autoridade
implicado no direito tem sido sempre um dos obstáculos no caminho de qualquer
explanação fácil daquilo que o direito é. (...) Na verdade, constitui uma virtude da
análise de Austin, quaisquer que sejam os seus defeitos, que os elementos da
situação do assaltante não sejam em si, diferentemente do elemento de autoridade,
obscuros ou necessitados de muita explanação; e daí que sigamos Austin na
tentativa de construir a ideia de direito a partir deles". Essa parte final é engraçada:
"Não teremos, porém, esperança, como teve Austin, de triunfar, mas antes de tirar
ensinamentos da nossa derrota". O Hart, gente, está dizendo aqui, e já está
antecipando que, de certa forma, ele não vai conseguir dar um conceito fechado de
Direito. Ele vai tentar, em cima da busca desse conceito, extrair lições que possam
nos dar, como ele mesmo diz, a ideia do que é o Direito, mas não o conceito no

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sentido fechado. Isso é uma coisa importante, o Hart está, portanto, aqui,
assumindo que sempre haverá, no Direito, um mínimo de indeterminação que não
permite separar completamente as duas coisas. Ora gente, isso não é uma
exclusividade do Direito. Em vários pontos você tem dificuldade de separar onde
termina a Química e começa a Biologia, em vários pontos você tem dificuldade de
separar onde termina a Física e começa a Química: o Ernest Rutherford, que
descobriu a estrutura do átomo, que depois tornou-se um campo de aplicação da
Física, mas na época não. Rutherford não ganhou o Prêmio Nobel de Física,
Rutherford ganhou o Prêmio Nobel de Química, certo? Rutherford ganhou o Prêmio
Nobel de Química quando descreveu a estrutura do átomo. Então, gente, o que o
Hart, em si, está dizendo, é que o Direito, eventualmente, no seu conceito, digamos
assim, ele ter áreas de ambiguidade, isso não é o fim do mundo. Isso pode,
eventualmente, sim, acontecer, e repito: não é só com o Direito, acontece também
com outras áreas do conhecimento. Mas isso não impede que você apreenda a
ideia de Direito.

2.2 O Direito como ordens coercivas

[DOCENTE]: Aí o Hart vai tratar a ideia do Direito como ordem coerciva, ok? Esse
Direito enquanto ordem coerciva, o próprio Hart vai começar dando o exemplo do
funcionário público, do agente público, que ordena que alguém faça algo. Mas ele
mesmo vai dizer "olha, isso não pode ser tratado como exemplo generalizado".
Nenhum Estado possui uma quantidade de funcionários públicos para o tempo todo
dizer às pessoas o que elas devem fazer. Portanto, deve haver alguma
espontaneidade das pessoas em cumprirem as regras mesmo que não haja o
guarda, ali, para dizer o que elas devem fazer. "Aqui vale a pena observar", ele diz:
"que embora os juristas entre eles Austin incluído, falem por vezes das leis como
sendo dirigidas a categorias de pessoas, isto é enganador ao sugerir um paralelo
com uma situação de pessoas frente a frente, a qual efetivamente não existe e nem
é o que está na mente dos que usam esta expressão. Ordenar às pessoas que
façam coisas é uma forma de comunicação e efetivamente implica que nos
dirijamos a elas, isto é, que se atraia a atenção delas ou se tomem medidas para a
atrair, mas fazer leis para as pessoas não implica tal (...) fazer leis difere de ordenar

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às pessoas que façam coisas, e temos de contar com esta diferença, ao usar esta
ideia simples como modelo para o direito". Vejam só, quando a gente fala que o
Direito nos ordena, que a lei nos ordena, a rigor, a lei não ordena coisa nenhuma,
certo? Se uma ordem for dada, ela é dada por um agente público. Há pessoas, são
pessoas dando as ordens para que se cumpram as regras do Direito. Ora, essa
ordem, uma vez dada, aí sim ela poderá ser considerada um comando, mas a lei,
em si, a lei não ordena nada, certo? Ora, acresça ainda um outro ponto: a lei, ela
tem o que ele chama de uma característica de permanência ou de persistência. O
que que isso significa? Uma ordem é dada para você naquele momento específico:
"cumpra a ordem". Por outro lado, caso você deseje obedecer a lei, a obediência
não é em um momento específico, é uma obediência contínua da lei. As leis têm
uma natureza permanente, nós vimos que as leis temporárias elas são exceção. As
leis, em regra, elas são permanentes, elas vão, portanto, ter uma existência que se
prolonga no tempo. Como ele diz: "As leis têm, todavia, de forma proeminente, esta
característica de permanência ou persistência. Daqui se segue que, se utilizarmos a
noção de ordens baseadas em ameaças para explicar o que são as leis, temos de
tentar reproduzir este carácter duradouro que as leis têm. Devemos, por isso, supor
que há uma crença geral da parte daqueles a quem as ordens gerais se aplicam,
em que a desobediência será provavelmente seguida pela execução da ameaça,
não só no momento primeiro da promulgação da ordem, mas continuamente, até
que a ordem seja retirada ou revogada".

[DOCENTE]: Então a lei, portanto, ao longo do seu período dilatado em que ela
está vigendo, a desobediência a ela poderá, sim, ter como consequência a sanção,
aplicada não em um momento específico, mas ao longo de todo o período de
existência da lei. E aí ele prossegue: "Temos de supor que, qualquer que seja o
motivo, a maior parte das ordens é mais frequentemente obedecida do que
desobedecida pela maior parte dos afetados. Designaremos tal realidade aqui, na
esteira de Austin, como um hábito geral de obediência" embora, como ele mesmo
alerte, é uma "noção essencialmente vaga ou imprecisa". Ora gente, como foi
falado, em regra, não há um agente público em cada esquina para dar uma ordem
de como temos que seguir ou não a lei. Isso é algo que, na maioria das vezes,
fazemos espontaneamente. A maioria de nós está cumprindo, em linhas gerais, o

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que a lei determina — podemos incorrer numa violação aqui e acolá, mas a maioria
de nós está cumprindo a maioria das leis. O ilícito, portanto, ele é a exceção, ele
não é a regra, isso porque? Porque você tem, como ele mesmo diz, usando uma
expressão do Hart: nós temos aí um "hábito geral de obediência". Bem, essa ordem
jurídica, esse sistema jurídico, ele vem de dentro de um Estado moderno, que é
caracterizado pela soberania. A soberania, gente, ela possui duas características,
lembrando: a supremacia interna e a independência externa. Diz-se de um poder
soberano que, no plano interno, ele é o poder superior, máximo. Dentro do Brasil,
do território brasileiro, ninguém manda mais que o Estado brasileiro. E no âmbito
externo? No âmbito externo, o Estado brasileiro se apresenta como um Estado
soberano, um Estado independente — uma situação de igualdade, pelo menos
formal, com outros candidatos. E aí ele completa esse capítulo dizendo que "as leis
de qualquer país serão as ordens gerais baseadas em ameaças que são emitidas,
quer pelo soberano quer por subordinados em obediência a este". Isso são as leis.

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Professor, então o Hart é um não sancionista?

[DOCENTE]: Ok. O Hart ele não gosta de tomar posições muito dicotômicas, mas
com certeza não para você caracterizá-lo como um sancionista. O Hart entende a
sanção como algo importante para o Direito, mas não como algo que chamaríamos
de primordial. A sanção é importante para o direito positivo em Hart? É. Mas o Hart,
gente, ele era de uma concepção que a gente chamaria de positivismo inclusivista.
O que que é isso? O "inclusivista" significa um positivismo que abriga noções não
diretamente tiradas do direito positivo, ou seja: é um positivismo que está aberto à
discussão de valores, como, por exemplo, a questão moral. Então o Hart, de fato,
ele não pode ser considerado o que a gente chamaria de um sancionista estrito,
certo? Vejam só, O Hart ele vem da tradição da jurisprudência analítica. Se vocês
procurarem, tem uma dissertação de mestrado da PUC-RJ… É Nathália alguma
coisa, que ela fala da ideia de sanção na Teoria Analítica do Direito. Deem uma
procurada aí…

[DOCENTE BUSCA A DISSERTAÇÃO]

[DOCENTE]: Ah, o (DISCENTE) já localizou, isso. É Nathália Ferreira Masson. É


uma dissertação de mestrado bem interessante que, por pegar a Teoria Analítica,

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evidentemente que vai pegar o Hart. Então, prosseguindo…

3 CAPÍTULO III: A DIVERSIDADE DAS LEIS

[DOCENTE]: Indo para o capítulo três, sobre a diversidade das leis, aqui diz: "Se
compararmos a diversidade dos diferentes tipos de leis, que se encontram num
sistema moderno como o do Direito Inglês, com o modelo simples de ordens
coercivas construído no capítulo anterior, ocorre ao espírito uma grande quantidade
de objecções. Por certo que nem todas as leis impõem às pessoas que façam ou
não façam algo. Não será enganador classificar assim leis que conferem poderes
aos particulares para outorgarem testamentos, celebrarem contratos ou
casamentos, e leis que dão poderes aos funcionários, por exemplo a um juiz para
julgar casos, a um ministro para fazer regulamentos ou a um conselho municipal
para fazer posturas? Certamente que nem todo o direito é legislado ou constitui a
expressão do desejo de alguém, como nas ordens gerais do nosso modelo. Tal
afigura-se falso no caso do costume, que tem um lugar genuíno, embora modesto,
na maior parte dos sistemas jurídicos. Certamente que as leis, mesmo quando se
trate de legislação deliberadamente elaborada, não são necessariamente ordens
dadas apenas a outros. Não vinculam tantas vezes as leis os próprios legisladores?
Finalmente, terão as leis promulgadas, para serem leis, de exprimir realmente os
efetivos desejos, intenções ou aspirações de um qualquer legislador? Não seria lei
uma lei devidamente aprovada se (como deve ser o caso relativamente a muitos
artigos de uma lei orçamental inglesa) os que a votaram não soubessem o que
significava?". Aqui, gente, o Hart já começa, de certa forma, chutando o pau da
barraca. O termo "lei" abrange uma diversidade tão grande de coisas que, por
vezes, pode ser muito difícil você procurar um conceito único. "Ah, a lei tem que ter
sanção", por exemplo… ora, mas o próprio Hart vai trabalhar a ideia de normas de
leis que não têm sanção. "Ah, a lei precisa ser elaborada pelo legislador": Ok, mas
e o legislador que votou contra? "Ah, mas a lei é uma coisa que é aprovada pelo
legislador"... e se o legislador não entendeu do que a lei falava? Isso é muito
comum, muito comum mesmo. E ele prossegue: "As objeções mencionadas
reconduzem-se a três grupos principais. Algumas dizem respeito ao conteúdo das

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leis, outras ao seu modo de origem e outras ainda ao seu campo de aplicação".

3.1 O conteúdo das leis:

[DOCENTE]: Em relação ao conteúdo das leis, gente, o Hart vai nos dar aqui uma
explanação seguida de alguns exemplos sobre leis que o conteúdo pode ser uma
regra, uma determinação para fazer algo, leis que podem ser meramente
permissivas, ou leis que podem tratar de formalidades. E aí, diante de toda essa
diversidade, ele diz: "Uma taxonomia pormenorizada das variedades de leis
compreendidas num moderno sistema jurídico, liberta do preconceito de que todas
devem ser redutíveis a um tipo único simples, está ainda por fazer". Olha só, a
taxonomia da variedade de leis conforme o conteúdo, ela abrange, em regra, três
tipos, que nós já vimos: leis obrigatórias, leis proibitórias e leis permissivas. Ocorre o
seguinte: há várias leis que escapam dessa tricotomia. Há várias leis que não
podem ser enquadradas, segundo Hart, nem como leis obrigatórias, nem como leis
proibitórias nem como leis permissivas. Então a classificação, a taxonomia de lei
conforme o seu modal deôntico, para o Hart ela é uma redução, uma redução
preconceituosa, no sentido de que deixa de lado diversas outras normas, que não
se encaixam aí. "Ah, mas então qual que ele propõe como a classificação correta?"
— pois é, ele não propõe. Ele diz que uma classificação correta disso ainda está
por ser feita. Por isso que muitos dizem que o Hart, gente, ele está mais, no livro,
para apontar problemas do que apontar soluções. Então não estranhem se, na
leitura do Hart, vocês ficarem um pouco na dúvida do tipo: "Onde esse cara quer
chegar, exatamente?". Muitas vezes o Hart, ele está querendo expor o problema,
mas ele não está, de maneira alguma, rogando se ater a solução para aquilo.
Prosseguindo: "Tal como não poderia haver crimes nem delitos e, portanto, nem
homicídios, nem furtos, se não houvesse leis criminais do tipo imperativo que
realmente se assemelham a ordens baseadas em ameaças, também não poderia
haver nem compras e vendas, nem doações, nem testamentos ou casamentos, se
não existissem as regras que conferem poderes; porque estes actos, tal como as
decisões dos tribunais ou as estatuições dos corpos legislativos, consistem
justamente no exercício válido de poderes jurídicos. Todavia, a tentação da

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uniformidade na ciência do direito é forte" — ou seja, apesar de nós termos, então,
essas variações de regras, há uma tentação classificatória, no Direito, em tentar
reduzi-las, que o Hart reclama que são tentativas reducionistas. Quando nós
falamos, por exemplo, "ah, norma é aquela que tem que ter sanção, a norma
imperativa, e tendo sanção no caso de sua desobediência" — é mesmo? e as
normas sem sanção, que apenas prevêem a nulidade do ato, desfazimento do ato?
Lembram disso? Chamamos essa norma de que? Como chamamos, senhores, as
normas que prevêem a anulação do ilícito, mas sem punição ao infrator? Tem um
nome. Nomas mais-que-perfeitas, normas perfeitas, normas menos-que-perfeitas
ou normas imperfeitas?

[DISCENTE ATRAVÉS DO CHAT]: Normas perfeitas?

[DOCENTE]: Normas perfeitas, isso mesmo. Normas que prevêem a nulidade do


ato sem prever a punição daquele que praticou o ato, são chamadas de normas
perfeitas. A norma mais-que-perfeita é aquela que prevê as duas coisas: nulidade
do ato e punição do infrator. Norma menos-que-perfeita: prevê apenas a punição do
infrator, mas não desfaz o ato. E norma imperfeita: nenhuma coisa nem outra.

3.1.1 Nulidade como sanção

[DOCENTE]: Então, como ficaria aí? Alguns diriam "ah, mas a nulidade é uma
forma de sanção". Gente, Hart vai discordar disso de maneira veemente, certo? Ele
vai tratar desse argumento a partir da página 41 e, em essência, da página 41 até
ele fechar esse item, na página 43, ele estará, em essência, dizendo o seguinte:
nulidade não é sanção. Sanção é punição. Nulidade, por outro lado, é o
desfazimento do ato ou a negação de validade do ato. Inclusive, ele dá até
exemplos ligados ao jogo, e aqui, nós podemos dar um exemplo nesse sentido. Se,
por exemplo, um jogador fez um gol violando uma regra, por exemplo, ele estava
impedido, ora, quem conhece futebol sabe, o impedimento, salvo em situações de
lei da vantagem, – não seria o caso – o impedimento anula o gol. O gol feito por
jogador impedido é anulado. Na dúvida, você vai lá no VAR. Eu pergunto: o
impedimento gera a expulsão do jogador? Gera? Não. O impedimento não gera a

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expulsão do jogador. Por outro lado, o jogador que faz o gol, logo após ter feito uma
falta grave – então, por exemplo, ele estava com a bola, tinha um jogador marcando
(...).

[DOCENTE]: Prosseguindo, e se esse jogador que está sendo marcado pelo


adversário, ele acha que ninguém está olhando, dá uma cotovelada no adversário,
daquelas "de com força", como diz o “caboco”, aí, em seguida, ele corre e faz um
gol – nessa situação, o juiz que tenha visto, o árbitro que tenha visto o lance, ele vai
anular o gol e ele vai, possivelmente, dar um cartão, dependendo da gravidade da
lesão, até um cartão amarelo, quiçá um cartão vermelho. Então, gente, é evidente
que punição e anulação não são a mesma coisa. Então, por isso que o Hart refuta
mesmo a ideia de que a nulidade seja uma forma de sanção, o que, na minha
opinião, ele está muito correto. Prosseguindo, vamos lá: "o segundo argumento que
vamos considerar prossegue uma via diferente, ou mesmo oposta àquele. Em vez
de procurar mostrar que aquelas regras são uma espécie de ordem coerciva,
nega-lhes o estatuto de lei. Para as excluir, restringe o significado da palavra lei. A
forma geral deste argumento que surge, de forma mais ou menos extrema entre
esses juristas, consiste na afirmação de que aquilo que referindo sem rigor, ou que
através de modos similares de expressão com regras jurídicas completas, é
constituído, na realidade, por fragmentos incompletos de regras coercivas, que são
as únicas regras jurídicas genuínas". Ou seja, aqui o Hart está atacando a ideia de
que somente a regra coerciva é regra jurídica genuína e que, inclusive, somente a
regra coerciva que poderia ser chamada de lei, no sentido estrito da palavra.

3.1.2 As regras que conferem poderes como fragmentos de leis

[DOCENTE]: Prosseguindo: "na sua forma extrema, esse argumento nega até
mesmo que as regras do direito criminal, nos termos em que frequentemente são
enunciadas, sejam leis genuínas. É nesta forma que o argumento é adotado por
Kelsen: 'O direito é a norma primária que estipula a sanção'. Não há lei que proíba o
homicídio; o que há é apenas uma lei que encarrega os funcionários de aplicar
certas sanções". Ora, nós já vimos isso quando nós tratamos do Kelsen. De fato,
esta é considerada uma concepção extremada, o Kelsen chega a dizer que a norma

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primária, por ser a sanção, é, por excelência, o núcleo da norma jurídica e não a
norma de conduta. Desse ponto de vista, não é necessário que uma sanção seja
prescrita para a violação de cada lei, é tão só necessário que toda lei genuína dirija
a aplicação de uma sanção. Esse é um ponto importante, não necessariamente a
sanção vai estar prevista na própria lei, como vemos no Código Penal, nós podemos
ter situações em que a sanção não está prevista na lei, mas a lei pode, por outros
meios, conduzir a uma sanção. Entendam, gente, que esse esquema de norma de
conduta seguida de sanção não está em todas as leis. Se vocês abrirem o Código
Penal, estará lá; se vocês abrirem o Código Civil, não. Tanto é que, muitas vezes,
para você saber qual é a sanção aplicável a violação de uma lei civil, você olhando
apenas aquela norma, você não vai ter uma resposta, você vai realmente precisar
ter que procurar em outras normas. Prosseguindo, "esta teoria geral pode", vou ler o
Hart: "como referimos, tomar duas formas, uma menos extrema do que a outra".
Que seria, basicamente, o seguinte: a teoria de que a norma de conduta se refere à
conduta de cidadãos e também de funcionários, ou então a teoria de que se refere
apenas aos funcionários públicos, mas não aos cidadãos. E o Hart, ele vai
evidentemente refutar a ideia de que a lei apenas se dirige aos agentes públicos,
lembrando que o Kelsen tem um tanto dessa visão, a de que a lei se dirige, a
verdadeira norma, se dirige ao aplicador do direito e não ao súdito. Aqui não, Hart
diz que você tem a norma aplicada ao súdito e também ao agente público, e aqui
ele fala qualquer das versões desta teoria procura reduzir variedades
aparentemente distintas de regras jurídicas a uma única forma que, alegadamente,
é portadora da quintessência do direito. Ambas, de modos diversos, fazem da
sanção um elemento de importância central e ambas falharão, se for demonstrado
que uma lei sem sanções é perfeitamente concebível. Então você não pode
realmente enquadrar o Hart como um sancionista.

3.1.3 A distorção como preço da uniformidade

[DOCENTE]: Aí ele fala aqui do problema da distorção como preço da


uniformidade, ou seja, que muitas vezes, para se tentar enquadrar as normas
dentro de uma classificação fechada, você tem que distorcer certos aspectos e

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negligenciar certas peculiaridades delas, e é isso que o Hart vai, dentre outras
coisas, se insurgir. A ideia de que as regras substantivas do direito criminal têm
como função — em sentido lato como significado –- a orientação não só dos
funcionários que administram o sistema de penas, mas também dos cidadãos
comuns nas atividades da vida não oficial não pode ser eliminada sem que se
alistem distinções fundamentais e se obscureça o caráter específico do direito
como meio de controle social. Se o direito é meio de controle social, é evidente que
as normas se dirigem também as pessoas em geral e não apenas aos agentes
públicos.

3.2 O âmbito de aplicação

[DOCENTE]: Em seguida, o Hart vai falar do âmbito de aplicação. Ele começa


dizendo que "todas as variedades de lei são claramente as leis penais que se
aproximam mais estreitamente do modelo simples de ordens coercivas. Contudo,
mesmo estas leis apresentam certas características, examinadas nesta secção, em
relação às quais o modelo é suscetível de nos cegar, e que não compreenderemos
enquanto não nos furtarmos à sua influência. A ordem baseada em ameaças é
essencialmente expressão de um desejo de que outros façam ou se abstenham de
fazer certas coisas. Evidentemente que é possível a legislação tomar uma forma
exclusivamente dirigida a outros – um monarca absoluto exercendo um poder
legislativo pode, em certos temas, ser sempre considerado fora do alcance das leis
que faz, e até num sistema democrático podem ser feitas leis que não se aplicam
aqueles que as fazem, mas tão só a grupos especiais indicados na lei". Ele chama
isso de uma imagem vertical, a legislação — diferentemente do simples ordenar a
outros que façam coisas sob ameaças, pode perfeitamente ter tal força auto
vinculativa, não existe nada de essencialmente dirigido a outros na legislação.

[DOCENTE]: Ora, é, portanto, possível que, no âmbito de aplicação, a legislação se


dirija a alguns e não se dirija a outros, e nós já vimos vários exemplos nesse
sentido, como certas normas do Estatuto do Idoso, por exemplo. Normas que se
dirigem a grupos específicos, nós vimos isso. Então, em relação a este âmbito de
aplicação, a lei nem sempre é uma lei geral, nem sempre é uma lei generalista, por

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vezes ela pode ser uma lei particularista. É uma coisa que o Hart diz, que
eventualmente o legislador pode se colocar fora do âmbito da lei. Exemplo, temos
dos mais diversos: em nosso país, ocupantes de certos cargos importantes não são
processados na Justiça comum, eles têm de ser processados em instâncias judiciais
especiais, então, em relação à aplicação, você pode sim ter a lei diferenciada
conforme o grupo a qual ela se dirige.

3.3 Os modos de origem

[DOCENTE]: E para fechar isto, de um modo de origem: "até aqui, confinamos


nossa situação sobre as variedades de leis àquelas que, apesar das diferenças que
acentuamos, possuem um aspecto saliente de analogia com as ordens coercivas. A
promulgação de uma lei, tal qual a emissão de uma ordem, é um ato deliberado que
se pode datar. Os que tomam parte na criação da legislação atuam
conscientemente segundo um procedimento para a criação do Direito, tal como um
homem que dá uma ordem e utiliza conscientemente uma forma das palavras que
assegure o reconhecimento dos seus intentos e a obediência a eles. Por isso, as
teorias que usam o modelo de ordem coercivas para a análise do Direito sustentam
que todo o direito pode ser visto se nos desembaraçarmos dos disfarces, como
tendo este ponto de semelhança com a legislação, e devendo o seu estatuto de
Direito é um ato deliberado de criação jurídica”. Aí o tipo de direito que colide mais
obviamente para essa pretensão, qual é? O costume. Porque o costume, senhores,
é um direito que não deriva da deliberada criação jurídica. Aí ele entra na discussão
se esse costume realmente é direito. E ele diz que essa discussão é muitas vezes
afetada por conta desse problema da distinção sobre as fontes do direito, a origem
do direito. Você eventualmente pode ter normas jurídicas que provêm da atividade
legislativa consciente, mas, você também pode ter normas que não provêm dessa
atividade legislativa consciente. A norma costumeira é o exemplo clássico disso.
Bom, claro que no costume também haverá o problema aqui, o primeiro a saber se
o costume como tal é direito ou não. Há costumes que não são jurídicos: os
costumes ligados a regra de estrato social não são jurídicos. Ele fala aqui: “não tirar
o chapéu a uma senhora não constitui violação de qualquer regra jurídica.”

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Lembrando, o livro é do início dos anos 70 — os homens até final dos anos 50
utilizavam muito o chapéu, então era considerado de boa educação, de bom tom,
que, se passasse uma mulher, o sujeito tirava o chapéu para cumprimentá-la. Tirar o
chapéu era um cumprimento, só que gerou uma expressão boa do tipo “tiro o
chapéu para o fulano; fulano é um cara muito inteligente, para ele eu tiro o chapéu”,
ou seja, eu manifesto os meus cumprimentos à inteligência dele, eu manifesto: “ah
não, a fulana ali, aquela advogada, é muito competente, eu tiro o chapéu pra ela”,
manifesto meus cumprimentos à competência dela, isso é que é tirar o chapéu.
Então tudo bem. O segundo problema diz respeito ao reconhecimento jurídico. Ora,
o que é para o costume ser juridicamente reconhecido? Como nós reconhecemos
um costume como norma jurídica? Isso vai entrar naquela classificação de norma de
reconhecimento que ainda vai ser tratada. Ele diz, claro, que o costume não é uma
fonte jurídica muito importante no mundo moderno, ele é usualmente uma fonte
subordinada. Eu gosto desse termo, o costume como fonte subordinada no sentido
que o Poder Legislativo pode, através de uma lei, retirar a regra costumeira do seu
estatuto jurídico.

[DOCENTE]: Bom, então ele fala sobre o que seria uma doutrina do
reconhecimento jurídico, e para apresentarmos essa doutrina devemos recordar o
papel desempenhado pelo soberano na concepção do Direito, como ordem
coerciva. Segundo essa teoria, o Direito não é só a ordem do soberano, assim como
a dos subordinados que aquele pode escolher para dar ordem em seu nome, então
o rei nomeia você como ministro, o ministro nomeia você como auditor, e assim vai.
Ou seja, o poder soberano é aquele a quem ele nomeia. No primeiro caso, o Direito
consiste na ordem do soberano, no sentido mais literal de ordem, e no segundo
caso é a ordem dada pelos subordinados, que só será lei se, por seu turno, tiver
sido dada em obediência a uma ordem qualquer ditada pelo soberano, chamamos
isso de validade. Ou seja, a ordem inferior tem que estar subordinada à ordem
superior. Por vez, tal pode ser conferido por uma diretiva expressa ao ministro para
fazer regulamento sobre determinada matéria. Bom, as regras consuetudinárias
entram no mundo jurídico de uma forma que ele dá um exemplo interessante,
pense em um quartel, onde quem manda é um coronel, eis que o sargento ali
começa a dar ordens que não foram apenas aquelas que o coronel instruiu. O

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coronel instruiu o sargento a dar as ordens A, B e C, e o sargento dá as ordens A,
B, C e D. então, o coronel toma conhecimento disso, mas ele entende que aquela
ordem que o sargento deu, além da ordem dada por ele, foi uma coisa correta, e ele
deixa por estar. Ou seja, nesse caso, o comandante deu uma autorização tácita
para que aquela prática continue existindo, validada. É dessa maneira que o
costume ingressa no ordenamento jurídico, através de uma não interferência
silenciosa.

[DOCENTE]: Bom, falando do costume, "é a esta luz que nos solicitam que
consideremos as regras consuetudinárias como estatuto do Direito no sistema
jurídico. Até que os tribunais as apliquem em casos particulares, as regras são
meros costumes e em nenhum sentido são Direito. Quando os tribunais as
aplicam, em concordância com elas, proferem decisões que são executadas, só
então, pela primeira vez, recebem essas regras o reconhecimento jurídico. O
soberano que poderia ter interferido, ordenou tacitamente aos súditos que
obedecessem a decisão do juiz, moldados os costumes pré-existentes". Dessa
maneira, segundo Hart, é que o costume se torna norma jurídica, pois antes era
apenas norma social, está certo? Ele fala aqui também de uma crítica à teoria de
que o costume, quando é Direito, deve ser o estatuto jurídico a orientar seu
soberano, mesmo que se conceda não ser Direito até que seja aplicado pelo
tribunal, será possível considerar abstenção do soberano de interferir numa
expressão tácita do desejo de quem ser que sejam obedecidas? Hart diz que até
no exemplo militar não se pode inferir necessariamente do fato de que o coronel
não ter intervindo nas ordens do sargento, que ele desejasse vê-las obedecidas,
pois ele poderia ter desejado simplesmente o temporizar com um soldado de valia,
ou seja, pode ser apenas que o comandante não quisesse entrar em conflito com
o subordinado. Isso eventualmente pode acontecer, e, neste caso, quando o
costume está apenas sendo tolerado, ele seria também considerado Direito? Ora,
tal significa que o Poder Legislativo podia retirar seu estatuto jurídico, mas a
abstenção de um fazer pode não ser um sinal dos desejos do legislador. Só muito
raramente a atenção de um Poder Legislativo e ainda mais raramente, do
eleitorado, se volta para regras consuetudinárias aplicadas pelos tribunais, a sua
não interferência não pode por isso, porém, ser comparada à não interferência do

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general em relação ao sargento. Mesmo se nesse caso estivermos preparados
para inferir dela um desejo de que as ordens de seus subordinados fossem
obedecidas. Gente, por vez você pode ter uma indiferença na lei em relação aos
costumes, essa indiferença não permite por si só dizer que aquele costume é um
costume jurídico. “Ah, eu estou fazendo, mas ninguém está me proibindo”. Ok,
mas pode ser que a lei pode ser indiferente a você, não quer dizer que ela esteja
aprovando você.

[DOCENTE]: Bom, é isso então que eu queria colocar. É 9:23, vamos fazer um
intervalo de 15 minutos só, e aí vamos fazer as apresentações seguidas, tudo
bem?

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