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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR), DO

EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

N.º 1028794-78.2017.8.26.0564
(RECURSO EXTRAORDINÁRIO n.º 1.211.446)

GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de


Gênero, CNPJ n.º 17.309.463/0001-32, com sede na Rua da Abolição, n.º 167, Bela
Vista, São Paulo/SP, CEP 01319-020, por suas advogadas signatárias, vem
respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fulcro no art. 7º, §2º, da Lei
n.º 9.868/99 (por analogia) e no art. 138 do CPC/2015, requerer sua admissão, na
condição de AMICUS CURIAE, nos autos do Recurso Extraordinário com
Repercussão Geral interposto pelo MUNICÍPIO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO,
pela qual (teratologicamente) requer a declaração da “inconstitucionalidade” (sic) da
concessão da licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável
homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação
artificial.

1. BREVE SÍNTESE DESTA MANIFESTAÇÃO. Da pretensão inicial, críticas e


pertinência temática da Entidade Peticionária.

A entidade Peticionária tem profundo histórico de atuação em


defesa dos direitos das pessoas LGBTI+, bem como daqueles direitos oriundos das
entidades familiares formadas por meio das relações homotransafetivas (cf. item 2,
infra), que serão diretamente afetadas pela decisão desta Suprema Corte na
presente ação. Assim, está plenamente respeitado o requisito legal da pertinência
temática, por expertise, para que a Peticionária possa atuar no presente feito.
Em síntese, na petição inicial do processo n º 1028794-
78.2017.8.26.0564 a autora, ora recorrida, pleiteou a concessão da licença
maternidade, pelo período de 180 dias, com pagamento de remuneração. Uma vez
que é mãe biológica da criança gestada por sua companheira, conforme comprovado
nos autos de origem. Por ser matéria da mais lídima justiça, o pleito foi concedido pelo
juízo de primeiro grau e o entendimento mantido em segunda instância.

Agora, a questão constitucional com repercussão geral suscitada


é objeto do Recurso extraordinário em epígrafe, manejado pelo Município de São
Bernardo do Campo, com arrimo no artigo 102, inciso III, a alínea “a” do permissivo
constitucional, contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que
assentou a interpretação extensiva atribuída ao direito à licença-maternidade da
recorrida.

Ao contrário do argumento trazido pelo Município recorrente, em


elementar dogmática jurídica, além de uma suposta ausência de lei não significar
ausência de direitos1 - na medida em que pode existir lacuna na lei, mas nunca lacuna
no Direito, daí a existência da interpretação extensiva e dos princípios constitucionais
– que a própria parte traz em suas razões, dispositivo legal que garante o pagamento
de salário-maternidade à mães biológicas, como no caso da recorrida.

Tratarão as Peticionárias: (1) DE SUA PERTINÊNCIA


TEMÁTICA (item 1.1); (2.1) DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTAVEL
HOMOAFETIVA PELO STF – do status de entidade familiar e da extensão da
proteção destinada a união estável do artigo 226, 3º, da CF; (2.2) A OMISSÃO DA
LEI NÃO É AUSÊNCIA DE DIREITOS – ARTIGO 4º DA LINDB (DECRETO
4657/1942 e LEI Nº 12.376, DE 2010) - Fontes do Direito e Funções De Interpretação
do Direito; (3) DOS DIREITOS ADVINDOS PELA ADI 4277 ADPF 132 E A
MAXIMIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - Evolução Jurisprudencial e
Legislativa das Concepções De Família; (4.) DA CONSTITUCIONALIDADE DA
LICENÇA-MATERNIDADE À MÃE NÃO GESTANTE, EM UNIÃO ESTÁVEL
HOMOAFETIVA - DOUTRINA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS,
inclusive à luz dos princípios da Dignidade Da Pessoa Humana, Princípio Da
Igualdade, Princípio da Não Discriminação, Princípio Da Livre Reprodução; (5.)
LICENÇA-MATERNIDADE NO BRASIL – Conceito de filiação e finalidade do
benefício de natureza previdenciária; (5.1) AD ARGUMENTANDUM – DA ANALOGIA
A LICENÇA-MATERNIDADE À MÃE ADOTANTE; (6.) DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. ART. 5º, §§ 2º E 3º, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

1.1. DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA. A atuação da Entidade Peticionária em


defesa dos direitos das pessoas LGBTI+,

A Entidade Peticionária tem notória e consolidada atuação em


defesa dos direitos das pessoas LGBTI+, que constitui uma das preocupações

1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 11ª Ed., São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2016, p. 271.
centrais da construção e dimensão da entidade familiar. Com efeito, ressaltando-
se de antemão que os grifos são sempre nossos:

O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e


de Gênero é uma entidade de direitos humanos com consolidada atuação nacional,
inclusive perante esta Suprema Corte, em defesa dos direitos da diversidade sexual
e de gênero da população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos). Além do caso em tela ter por objeto a discussão sobre a
concessão de um Direito à uma entidade familiar formada por um casal de mulheres
(duas mães) e uma criança, o que, em si, legitima a atuação do GADvS no presente
feito. Isto também se dá pelo disposto no art. 2º, I, II, III, X, XVI, XXIV, XXIX, XXX e
XXXI (em especial art. 2º, XXX) e art. 3º, VIII e IX, senão vejamos:

Art. 2º. O GADvS tem como objetivo precípuo o ativismo por meio do
Direito para enfrentar a homofobia [gayfobia], a lesbofobia, a bifobia e
a transfobia e obter a igualdade de direitos para a população LGBTI+
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos).
Constituem também seus objetivos sociais:

I – promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos


e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;
II – defender e estimar a efetivação dos direitos consagrados na
Constituição Federal e em leis vigentes no país, bem como a criação
de leis e políticas públicas que contemplem a diversidade sexual e de
gênero e a população LGBTI, além de defender a criminalização da
discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero e outras
formas de punição e enfrentamento a tais discriminações;
III – promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos,
da democracia e de outros valores universais;
[...]
X – contribuir para a construção de saberes sobre a diversidade
sexual e de gênero que permitam uma renovação das práticas sociais,
visando estimar a inclusão social, a melhoria da qualidade de vida e o
exercício da cidadania da população LGBTI;
[...]
XVI – prevenir, denunciar e combater as diferentes formas de violência
contra a população LGBTI;
XXIV – promover estudos, pesquisas e ações voltadas à prevenção de
doenças e promoção da saúde da população LGBTI;
[...]
XXIX – atuar em quaisquer campos que julgue necessários para
promover os direitos da população LGBTI, com igualdade de direitos
e igual dignidade jurídica relativamente aos conferidos a pessoas
heterossexuais cisgêneras, bem como para o enfrentamento da
homofobia, da transfobia e da discriminação à população LGBTI em
geral, a quaisquer minorias sexuais e de gênero e a quaisquer
pessoas que não se enquadrem na heterossexualidade cisgênera;
XXX – O GADvS apoiará e defenderá toda e qualquer luta contra
preconceitos e discriminação contra minorias e grupos vulneráveis,
em especial as relativas a gênero, sexo, raça, cor, etnia, origem
nacional, religião e condição de pessoa com deficiência;
XXXI – O GADvS abrangerá em seu foco de atuação a luta das
identidades assexuais, de pessoas não binárias e quaisquer outras
que se enquadrem como minorias sexuais e de gênero, bem como não
se enquadrem na heterossexualidade cisgênera em geral.

Art. 3º - No desenvolvimento de suas atividades, o GADvS observará


os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
economicidade e da eficiência, e não fará qualquer discriminação por
raça, cor, língua, gênero, sexo, condição social, orientação sexual,
identidade de gênero, credo político ou religioso, nem qualquer outra
distinção discriminatória, podendo, para tanto, desenvolver as
seguintes atividades próprias:
[...]
VIII – apoiar e propor quaisquer medidas judiciais e extrajudiciais de
interesse do GADvS;
IX – realizar quaisquer outras atividades ou praticas quaisquer outros
atos necessários ao cumprimento de seus objetivos sociais, entre
elas, exemplificativamente, apresentar manifestações enquanto
amicus curiae em processos anteriormente propostos em favor dos
direitos da população LGBTI, do enfrentamento da discriminação por
orientação sexual e por identidade de gênero e da discriminação
contra quaisquer minorias sexuais, de gênero e quaisquer pessoas
que não se enquadrem na heterossexualidade cisgênera.

Em suma, considerando que o GADvS tem como finalidade estatutária a


luta contra preconceitos e discriminações a quaisquer minorias e
grupos vulneráveis (art. 2º, XXX, do Estatuto Social), ante a lógica da
necessidade da união de minorias contra estereótipos e estigmas
discriminatórios em geral, a partir do paradigma da intersecionalidade
das opressões; conclui-se que há plena pertinência temática para o
GADvS participar do presente feito, na condição de amicus curiae, ao lado
das valorosas entidades de defesa dos direitos das famílias homoafetiva,
emprestando-lhes apoio institucional formalizado para o desenvolvimento
de suas atividades, mediante parcerias de entidades de direitos
humanos na luta contra preconceitos e discriminações que constitui
uma de suas finalidades institucionais. (grifos nossos)

2. DO MÉRITO.
2.1. DO RECONHECIMENTO DA ENTIDADE FAMILIAR HOMOAFETIVA PELO STF
(ADI 4277 E ADPF 132) – DO STATUS DE ENTIDADE FAMILIAR E DA EXTENSÃO
DA PROTEÇÃO DESTINADA A UNIAO ESTÁVEL DO ARTIGO 226, 3º, DA CF

Primeiramente, a norma constante do art. 1.723 do Código Civil


prevê que: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com
o objetivo de constituição de família”, JAMAIS impediu que a união de pessoas do
mesmo sexo fosse reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção do
Estado. Em síntese, esse foi o entendimento do E. Supremo Tribunal Federal na ADI
4277 ao julgar procedente os pedidos formulados nas Arguições de Descumprimento
de Preceito Fundamental 132 e 178, propostas, respectivamente, pelo Governador do
Estado do Rio de Janeiro (ADPF 132) e pela Procuradora-Geral da República (ADPF
178).

Como muito bem destacado na ADPF 178, princípios


constitucionais como: a dignidade da pessoa humana, da igualdade e da segurança
jurídica, basilares do ordenamento jurídico brasileiro, por si só devem ser aplicados
às normas que garantem a união estável entre homens e mulheres, para que se
reconheça de forma objetiva e instantânea a união entre pessoas do mesmo sexo.

Seguindo o entendimento, explicita que a total ausência de


previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual possibilita
a incidência do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de que “II - ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” e de que o
emprego da sexualidade humana diz respeito à intimidade e à vida privada, as quais
são direito da personalidade, considerando o § 1º do artigo 5º da Constituição como
âncora normativa.

Nesta perspectiva, a Constituição não sonega aos parceiros


homoafetivos, em contínua e duradoura união, o mesmo regime jurídico
protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação. Em sentido
similar, a doutrina de Suannes2 entende que

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela


celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da
Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem
e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como digna da proteção
do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em
casamento. Em nenhum momento foi dito não existirem entidades familiares
formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos no casal
para haver a proteção do Estado é fazer distinção odiosa (SUANNES, 1999, p.
32), postura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade,
ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu
sexo.

Segundo a jurista Maria Berenice Dias3. nenhuma espécie de


vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família,
merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal (art. 1º, III) consagra,
em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana. Ainda, de acordo com
essa doutrinadora em “A Família Homoafetiva e seus direitos”, elucida importantes
pontos de reflexão:

2SUANNES, Adauto. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/96. COAD. Ed. Especial out/nov. 1999.
3DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005
A Constituição Federal tem como regra maior o respeito à dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inc. III), que serve de norte ao sistema jurídico. Os princípios
da igualdade e da liberdade estão consagrados já no seu preâmbulo. O artigo
5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais,
proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Garante o mesmo dispositivo, de modo expresso, o direito à liberdade e à


igualdade. Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana, à
liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que
homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou
qualquer forma de discriminação.

Enquanto houver segmentos que são alvo da exclusão social, enquanto a


homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está
vivendo em um Estado Democrático de Direito. As normas constitucionais que
consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que
respeita à inclinação sexual.

A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual


constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de
discriminação sexual. Rejeitar a existência de uniões homossexuais é
afastar o princípio insculpido no inc. IV do art. 3º da Constituição Federal,
segundo o qual é dever do Estado promover o bem de todos, vedada
qualquer discriminação, não importa de que ordem ou de que tipo. A
orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições,
configurando afronta à liberdade fundamental a que faz jus todo ser
humano. (grifos nossos).

No mesmo sentido, a doutrina de Luiz Edson Fachin considera


que:

O direito à homoafetividade4, além de estar amparado pelo princípio


fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações
injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como
garantia do exercício da liberdade individual, cabe ser incluído entre os
direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade
pessoal e a integridade física e psíquica.

Acresce ainda lembrar que a segurança da inviolabilidade da intimidade e da


vida privada é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual,
como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana
(FACHIN, 1999, p. 95).

O doutrinador Paulo Luiz Netto Lobo defende que:

Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226


da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem
4 Luiz Edson Fachin. Elementos Críticos do Direito de Família, p. 95
os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais
entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do
conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo
conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência
da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e
adaptabilidade5.

Nesse ínterim, a aplicação direta dos princípios fundamentais,


com o consequente reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como
entidade familiar, detentora dos mesmos Direitos e Deveres já emanados das uniões
heteroafetivas, fez com que a Decisão do E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento
conjunto da ADPF 132 e da ADI 4277, representasse imenso avanço para o Direito
das Famílias.

2.2 A OMISSÃO DA LEI NÃO É AUSÊNCIA DE DIREITOS – ARTIGO 4º DA LINDB


(DECRETO 4657/1942 e LEI Nº 12.376, DE 2010) - FONTES DO DIREITO E
FUNÇOES DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Com bases nessas premissas, é completamente descabido o


argumento de que a omissão da lei impede a concessão da licença-maternidade à
mãe não gestante, em união estável homoafetiva.

A teoria da norma geral exclusiva, que exclui a juridicidade de


situações não expressamente regulamentadas, vigora apenas para regimes em que
a Constituição expressamente exigiu legalidade estrita, como o Direito Penal e
Tributário. Tal teoria não se aplica à garantia de direitos fundamentais e sociais.
Ao contrário, quando envolvidos tais preceitos, a interpretação deve ser regida
pela teoria da norma geral inclusiva, pela qual, na omissão da lei, deve o Judiciário
decidir de acordo com a analogia (legis ou juris)6, situação do ordenamento jurídico
brasileiro, à luz do art. 4º da LINDB e do art. 140 do CPC – sem falar que, na omissão
da lei, deve haver a incidência direta da principiologia constitucional na resolução do
caso concreto.

Em sentido similar, a doutrina de Pietro Perligieri explica que o


princípio da legalidade não se reduz ao aspecto formal dos textos normativos,
demandando sua interpretação em harmonia com o texto constitucional, de sorte que
a “interpretação é, portanto, sistemática e teleológica-axiológica, isto é, finalizada à
realização dos valores constitucionais”.

5 LOBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus.
Disponível em . Acesso em 26.abr.2014.
6 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon, 2ª Ed., São

Paulo: Ed. Edipro, 2014, p. 129. No mesmo sentido, citando a doutrina de Maria Celina Bodin de
Moraes também em prol da teoria da norma geral inclusiva e da aplicabilidade imediata da
principiologia constitucional na solução de lacunas: TJ/RS, Apelação Cível n.o 70013801592, 7a
Câmara Cível, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 05/04/2006.
Ainda neste sentido, o Ministro Roberto Barroso ensina que “o
intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na
realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução
não se encontra no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à
revelação do que lá se contém: ele terá de ir além, integrando o comando normativo
com a sua própria avaliação”, inclusive à luz das regras da experiência ordinária [art.
375 do CPC], não por uma interpretação discricionária sua, mas a partir da
normatividade dos princípios, a partir de argumentação consubstanciada no dever de
fundamentação, em que reconduza sua decisão ao ordenamento jurídico, explicando
porque ela é com ele coerente, mediante fundamentos universalizáveis a casos
equiparáveis que levem em conta as consequências práticas da decisão.7

Em consonância com os supracitados entendimentos, Maria


Berenice Dias instrui que, “independentemente do sexo a que pertencem”, se duas
pessoas mantém uma relação “duradoura, pública e contínua”, estruturada em um
vínculo afetivo, formam um núcleo familiar semelhante ao constituído pelo
matrimônio.8

Elucida ainda:

Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa valer-se da


analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais
uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não
existir regramento legal específico, mister se faz a aplicação analógica das
regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o
casamento e a união estável (...)9 (grifos nossos).

Dentro desse contexto, é salutar mencionar o artigo 4 o e artigo


5 o, do Decreto 4657/1942 (Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010), da
denominada Lei de Introdução as Normas de Direito Brasileiro, ipisis litteris:

Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige
e às exigências do bem comum

Em se tratando de garantia de direitos, incabível a alegação de


que a ausência de legislação específica seja um fundamento para restrições de
garantias, até porque a LINDB (Lei de Introdução das Normas de Direitos Brasileiro)
prevê outras fontes do direito aplicáveis aos casos concretos.

Nesse sentido, Del Vecchio10 assevera que “Fonte de direito in


genere é natureza humana, ou seja, o espírito que reluz na consciência individual,

7 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, São Paulo: Ed.
Saraiva, 2009, p. 310-314.
8 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ªed/2015

9 DIAS, Maria Berenice, A família homoafetiva e seus direitos, pag 6

10 DEL VECCHIO, George. Lições de filosofia do direito. Coimbra: Arménio Amado. 1972, p. 140.
tornando-se capaz de compreender a personalidade alheia, graças à própria. Desta
fonte se deduzem os princípios imutáveis da justiça e do Direito Natural”.

Conforme transcrito a seguir, Maria Helena Diniz, discorrendo


sobre as fontes do direito e pontuando sobre as funções da interpretação - dentre
essas, a de conferir aplicabilidade da norma jurídica às nossas relações sociais -
conclui que o juiz deve se utilizar da hermenêutica para interpretar as leis:

“Por vezes o juiz se depara com casos não previstos nas normas jurídicas ou
que, se estão, podem por sua vez ter alguma imperfeição parecendo claro num
primeiro momento, mas se revelando duvidoso em outro. Quando um destes
casos aparece o juiz terá que utilizar da hermenêutica, que vem a ser uma
forma de interpretação das leis, de descobrir o alcance, o sentido da
norma jurídica, trata-se de um estudo dos princípios metodológico de
interpretação e explicação. Ainda de acordo com a Maria Helena Diniz, as
funções de interpretação são: a) conferir a aplicabilidade da norma jurídica as
relações sociais que lhes deram origem; b) estender o sentido da norma a
relações novas, inéditas ao tempo de sua criação; c) temperar o alcance do
preceito normativo, para fazê-lo corresponder as necessidades reais e atuais
de caráter social, ou seja, aos seus fins sociais e aos valores que pretende
garantir11.

Na análise em comento, o doutrinador Zeno Veloso menciona


que essa “interpretação, portanto, deve ser axiológica, progressista, na busca
daqueles valores, para que a prestação jurisdicional seja democrática e justa,
adaptando-se às contingências e mutações sociais12”. Ainda “não se pode falar
em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a
evolução social, a mudança de mentalidade.

Nesse pórtico, a partir do uso da analogia, na qual, na omissão


da lei, deve o Judiciário decidir de acordo com a analogia (legis ou juris)13, conforme
o art. 4º da LINDB e do art. 140 do CPC, em que o Juiz não se exime de decidir sob
alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Acerca desse tema, a
doutrinadora Maria Helena Diniz registra que:

“Modernamente, encontra-se na analogia uma averiguação valorativa. Ela


seria um procedimento argumentativo, sob o prisma da logica retórica,
que teria por escopo “transferir valores de uma estrutura para outra”.
Teria um caráter inventivo, uma vez que possibilita ampliar a estrutura de
uma situação qualquer, incorporado-lhe uma situacão nova. Tendo por
um juízo de semelhança. Encaixa-se aqui a Lógica do Razoável, que não é

11Diniz, Maria Helena, Curso de Direito Civil 1, 28 ed.


12 Zeno Veloso. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, 92.
13 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon, 2ª Ed., São
Paulo: Ed. Edipro, 2014, p. 129. No mesmo sentido, citando a doutrina de Maria Celina Bodin de Moraes
também em prol da teoria da norma geral inclusiva e da aplicabilidade imediata da principiologia
constitucional na solução de lacunas: TJ/RS, Apelação Cível n.o 70013801592, 7a Câmara Cível,
Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 05/04/2006.
uma invenção de Recasens Siches, mas que decorre da verificação da
realidade oferecida pelo mundo dos valores14”. (grifos nossos)

Por todas essas nuances, é evidente que a concessão da


licença-maternidade à mãe não gestante, mesmo que não biológica - que inclusive
não é o caso em discutido no Recurso em questão, em união estável homoafetiva,
atende a própria finalidade social da norma jurídica e por estar inserida no campo de
direito fundamental deve ser aplicado com base nas fontes do direito e na utilização
da hermenêutica jurídica, correspondente as funções de interpretação e métodos de
compreensão legal.

2. DOS DIREITOS ADVINDOS PELA ADI 4277 ADPF 132 E A MAXIMIZAÇÃO


DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL E
LEGISLATIVA DAS CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA

Na decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)


nº 4277 e Ação Declaratória de Preceito Fundamental (ADPF)132, direitos
fundamentais até então negados aos casais formados por pessoas do mesmo
sexo foram-lhe estendidos, com fundamento nos princípios da dignidade da
pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da intimidade e privacidade,
privilegiando como consequência a proteção contra quaisquer tipos de
discriminação.

Nesse sentido, além da decisão do E. STF ter se dado em razão


da inércia do Poder Legislativo em regulamentar de forma expressa os direitos dessas
entidades familiares, mesmo quando exposta a necessidade, ao reconhecer de forma
expressa essas uniões como entidades familiares, o STF pôs fim à uma série de
discriminações. Uma vez que o não reconhecimento perante o Estado propiciou a
manutenção de um histórico de marginalização e preconceito contra as uniões
homossexuais, o que importava em desigualdade e ausência de direitos até então
usufruídos apenas pelos casais heterossexuais.

Importante ressaltar que a Lei jamais proibiu a união homoafetiva,


muito pelo contrário, quando observados os preceitos e as garantias fundamentais
trazidos pela Constituição Federal, vê-se que o entendimento trazido pelo E. STF
deveria ter sido aplicado desde a promulgação da Constituição. Mas o tratamento
jurídico era exposto por um pensamento heterocisnormativo, baseado em "sociedades
de fato", reguladas pelo direito das obrigações.

Contudo, a decisão do E. STF passou a conceder aos casais


homossexuais os mesmos direitos e servindo, inclusive, como fundamento para
quaisquer temas relacionadas com direitos inerentes à entidades familiares. Ou
seja, caso seja negado a algum casal homoafetivo o reconhecimento de direitos

14 Diniz, M. H. As lacunas no direito. 3. ed. aum. e atual., São Paulo: Saraiva, 1995, p.145 e 147
e deveres inerentes e decorrentes da união estável, desde que devidamente
comprovada, tais casos poderão ser discutidos judicialmente, com aguardado
entendimento favorável nas instâncias ordinárias. Conforme ocorreu na ação
que deu origem ao inconformismo do recorrente no presente caso.

Tendo em vista que tanto o § 3º do artigo 226 da CF, a Lei federal


nº 9.728/96 (lei que rege as uniões estáveis), quanto o artigo 1723 do Código Civil,
jamais proibiram o reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo, ao
declarar o confronto da não proteção dessas entidades familiares com os direitos
fundamentais esculpidos na norma constitucional, a referida decisão interpreta a lei
civil de acordo com a Constituição Federal.

Isso significa dizer que aos conviventes de uma relação


homoafetiva foram resguardados todos os direitos previstos às uniões estáveis, bem
como os decorrentes destas. Como regime de bens, direitos sucessórios, benefícios
previdenciários, adoção conjunta, dentre outros.

Quanto às discussões previdenciárias, nenhum óbice existe à


concessão dos respectivos benefícios, tendo a Advocacia-Geral da União, no dia
04/06/10, reconhecido antes mesmo do julgamento do STF, que a união
homoafetiva estável dá direito ao recebimento de benefícios previdenciários,
seguindo, dessa forma, a linha do entendimento de tribunais e do próprio STJ, que já
conduziam pelo deferimento da união estável e de seus efeitos às relações entre
conviventes do mesmo sexo.

Ainda, nesse contexto, o Ministério da Previdência Social


reconheceu o direito de companheiros à pensão como descendentes preferenciais,
dando-lhes a mesma condição de cônjuges e filhos menores ou incapazes, conforme
a Portaria 513/10.

Verifica-se que por meio da decisão do E. STF foi possível


obter o reconhecimento de inúmeros direitos inerentes as entidades familiares
e seus membros, não sendo possível conceder a omissão, do porte como vinha
sendo efetivada em prejuízo dessas relações, tratava-se mais do que um retrocesso
legal e social, de uma verdadeira discriminação.

Na mencionada decisão o Ministro Relator Celso de Mello


fundamenta o “direito de qualquer pessoa de constituir família, independentemente de
sua orientação sexual”. Ainda o Ministro Alexandre de Moraes destaca em sua
doutrina que:

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o texto constitucional proíbe


expressamente o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre
homens e mulheres, afirmando a existência de isonomia entre os sexos, que
se caracteriza pela garantia de “não sofrer discriminação pelo fato em si da
contraposta conformação anátomo-fisiológica e de fazer ou deixar de fazer uso
da respectiva sexualidade; além de, nas situações de uso emparceirado da
sexualidade fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo ou não15.

Após essa decisão do E. STF, no mesmo ano o Superior Tribunal


de Justiça “decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas
do mesmo sexo”. O Ministro Relator Luis Felipe Salomão ainda destaca que “a
fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço
histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da
dignidade da pessoa humana”16.

Ainda com base na necessidade de dar efetividade a decisão


da nossa Corte Constitucional, no mês de maio de 2013, o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) publicou a Resolução n.º 175, que passou a vedar a recusa de
habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em
casamento entre pessoas do mesmo sexo17.

Ante o exposto, fica evidenciado que os laços afetivos se tornou


elemento que embasa o novo conceito de família18, a qual não mais se encontra
atrelada à antiga definição, baseada em uma percepção fundamentalmente religiosa
e patrimonial, motivo pela qual as uniões homoafetivas não podem ser excluídas do
âmbito de proteção familiar, o que vem provoca uma constante evolução
jurisprudencial e legal para atender aos anseios sociais e gerar pacificação social nas
mais diversas relações jurídicas formadas em nosso Estado Democrático de Direito.

3. DA CONSTITUCIONALIDADE DA LICENÇA-MATERNIDADE À MÃE NÃO


GESTANTE, EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA – DOUTRINA
CONSTITUCIONAL DE DIREITO SOCIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA, PRINCÍPIO DA IGUALDADE, PRINCÍPIO DA NÃO
DISCRIMINAÇÃO, PRINCÍPIO DA LIVRE REPRODUÇÃO

Nesse sentido, cabe destacar que a Constituição Federal de 1988,


desde seu preâmbulo até suas normas constitucionais propriamente ditas (em
especial o art. 226, da Constituição Federal) já prevê a proteção da família pelo
Estado, o que gera, consequentemente, uma imposição constitucional de proteção
à mais ampla concepção de entidade familiar e o enfrentamento de toda e qualquer
forma de discriminação, especialmente contra minorias e grupos vulneráveis fruto de
opressões estruturais, sistemáticas, institucionais e históricas, como é o caso das
pessoas LGBTI+, visando garantir direitos e extirpar antigos sofismas de exclusão
social.

15 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29ª edição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 40.
16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.183.378/RS. Quarta Turma. Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, Julgado em: 25.10.2011.
17 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n.º 175, de 14 de maio de 2013.

18 DIAS, Maria Berenice (coord). Diversidade sexual e direito homoafetivo / coordenação Maria

Berenice Dias. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 269.
Faz-se necessário uma breve análise acerca dos princípios
constitucionais mais significativos e relevantes para o tema em questão, quais sejam,
os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da não-discriminação.
Isso mostra como as formas de relações afetivas alternativas passaram a ser
introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, abandonando-se o conceito
tradicional de núcleo familiar definido por aspectos biológicos ou por aspectos
impostos pela heteronormatividade.

Nesse sentido, não há que se falar em “inconstitucionalidade” da


concessão de licença-maternidade à mãe não gestante, em união estável
homoafetiva, cuja companheira engravidou após procedimento de inseminação
artificial, de acordo com entendimento do Artigo 7, inciso XVIII, da CF e legislação
infraconstitucional que devem ser interpretados conforme os atuais
entendimentos jurisprudenciais acerca da união homoafetiva e da
multiparentalidade.

Com efeito, trata-se de legítima concretização da principiologia


constitucional à espécie. Há normas jurídicas autorizadoras de tal exegese da
jurisprudência pacífica deste E. TST – ocorre que são normas-princípio, não normas-
regra. O pressuposto lógico da tese do Recorrente é o de que a ausência de regra
legal (aplicável por silogismo – método lógico-dedutivo) que reconheça a licença
maternidade para mãe não gestante em relação homoafetiva tornaria inviável o
reconhecimento disto pelo Judiciário. Mas tal pressuposto se pauta em uma
compreensão anacrônica do Direito, a Escola da Exegese, como se o juiz ainda
fosse a mera boca que pronuncia as palavras da lei, como queria Montesquieu. O
reconhecimento da normatividade dos princípios é ponto pacífico na atualidade e
princípios se aplicam por concretização de seu conteúdo pelo Judiciário.

A Constituição Federal de 1988 se pauta na promoção de igualdade


e no tratamento com base na equidade entre as pessoas; “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes, conforme o caput, do
artigo 5º, da CF.

No âmbito internacional, o artigo 1° da Convenção n° 111 da


Organização Internacional do Trabalho (OIT) conceitua a palavra discriminação como:
“Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião
política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar
a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.

Nesse mesmo sentido, os incisos XXX e XXXI, do artigo 7, da


Constituição Federal preconizam a proibição de tratamentos diferenciados e de
qualquer contexto discriminatório. Ainda sob esse tema, os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1, inciso III) e a proteção
do Estado para a entidade familiar estabelecem o propósito constitucional de
que esses sejam fundamentos suficientes para sanarem qualquer lacuna ou
omissão legislativa, principalmente por se tratarem de direitos sociais
fundamentais.
Na doutrina do Min. Gilmar Mendes sobre os direitos sociais, é
preciso lembrar que “não apenas a existência de lei, mas também a sua falta pode
revelar-se afrontosa aos direitos fundamentais”, o que decorre do fato de que nos
encontramos:

Vinculados à concepção e que ao Estado incumbe, além da não intervenção


na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa,
a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as
condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades
fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última
análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o
Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da
premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção
de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes
públicos.19 (grifos nossos)

Assim, continua a doutrina do Min. Gilmar Mendes, a hegemônica


doutrina do significado objetivo dos direitos fundamentais, fruto da festejada
jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, demanda do Estado que atue para
“proteger esses direitos contra a agressão por atos de terceiros”, o que se extrai desde
um dever genérico de proteção, decorrente da irradiação dos direitos fundamentais
nas relações privadas, enquanto um postulado de proteção (Canaris), à luz do
princípio da proporcionalidade enquanto proibição de proteção insuficiente. De
sorte que, da estrutura dos direitos sociais, surge “a possibilidade de formular uma
pretensão de adoção de uma dada conduta (‘dever jurídico relacional’, passível de
judicialização’, tendo em vista que os “direitos sociais podem repercutir sobre a
ordem jurídica em geral, dando ensejo [a] uma expansão direta ou indireta no plano
do direito ordinário (eficácia direta ou indireta sobre as relações privadas)”.

4. LICENÇA-MATERNIDADE NO BRASIL – CONCEITO DE FILIAÇÃO E


FINALIDADE DO BENEFÍCIO DE NATUREZA PREVIDENCIÁRIA

A licença-maternidade, também conhecida como “licença gestante”,


está prevista no artigo 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal de 1988, sendo essa
uma licença remunerada concedida às trabalhadoras gestantes, regulamentada no
artigo 392, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com duração de 120 (cento
e vinte) dias.

Por esse aspecto, é de suma importância trazer as normas jurídicas


que regulamentam o tema:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social: [...]

19MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos


de Direito Constitucional, 4ª Ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2012, p. 472.
XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a
duração de cento e vinte dias;

Art. 392. A empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120


(cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário.
§ 1o A empregada deve, mediante atestado médico, notificar o seu empregador
da data do início do afastamento do emprego, que poderá ocorrer entre o 28º
(vigésimo oitavo) dia antes do parto e ocorrência deste.
§ 2o Os períodos de repouso, antes e depois do parto, poderão ser aumentados
de 2 (duas) semanas cada um, mediante atestado médico.
§ 3o Em caso de parto antecipado, a mulher terá direito aos 120 (cento e vinte)
dias previstos neste artigo.
§ 4o É garantido à empregada, durante a gravidez, sem prejuízo do salário e
demais direitos:
I - transferência de função, quando as condições de saúde o exigirem,
assegurada a retomada da função anteriormente exercida, logo após o retorno
ao trabalho;
II - dispensa do horário de trabalho pelo tempo necessário para a realização
de, no mínimo, seis consultas médicas e demais exames complementares.

Nesse sentido, a Lei n.º 6.136/1974 definiu a responsabilidade da


Previdência Social pelo pagamento das verbas do salário-maternidade, as quais
passaram a ter natureza previdenciária. O artigo 72, §1°, da Lei n.º 8.213/88, definiu
que caberá ao empregador antecipar o valor correspondente ao salário-maternidade
à segurada, efetivando-se a compensação quando do recolhimento das contribuições
previdenciárias.

Com vistas à prorrogação da duração da licença-maternidade e do


correspondente período do salário-maternidade de 120 dias para 180 dias, o
Programa Empresa Cidadã foi criado pela Lei n.º 11.770/2008, e regulamentado pelo
Decreto n.º 7.052/2009. O programa prevê que as pessoas jurídicas que aderirem
poderão deduzir, do imposto devido, o valor correspondente à remuneração paga à
empregada durante o período adicional da licença.

Tal benefício se aplica tanto às empregadas com filhos biológicos,


quanto às empregadas adotantes, sendo, neste caso, os períodos diferenciados de
acordo com a idade da criança, conforme disposto no artigo 2º do Decreto n.º
7.052/2009:

Art. 2º O disposto no art. 1º aplica-se à empregada de pessoa jurídica que


adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança, pelos
seguintes períodos: I - por sessenta dias, quando se tratar de criança de até
um ano de idade; II - por trinta dias, quando se tratar de criança a partir de um
ano até quatro anos de idade completos; e III - por quinze dias, quando se tratar
de criança a partir de quatro anos até completar oito anos de idade.

A licença-maternidade objetiva proteger tanto a mãe, como também


a criança ou o nascituro. No que concerne à proteção materna, percebe-se uma
preocupação do legislador quanto ao aspecto de adaptação da entidade familiar,
quando à finalidade de proteção da criança e do nascituro, essa encontra amparo no
artigo 227, da Constituição Federal, com a seguinte redação:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,


ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.

(...)

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão


os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação. (grifos nossos)

Verifica-se como bem analisado na decisão do Tribunal de Origem,


a seguir transcrito trecho:

“o afastamento por tempo determinado das funções profissionais e a


aproximação ao lar da mãe que acaba de receber novo ente na família é
fundamental para a harmonia daquele ambiente e atende aos princípios
elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a exemplo de
seu artigo 4º, que zela pelo ‘melhor interesse do menor’, levando-se em
conta que o convívio da criança com os pais/mães – biológicos ou adotivos,
é essencial para sua criação. Assim, configurada a entidade familiar, a partir do
reconhecimento da união estável entre a recorrida e sua companheira (ADPF
132/RJ), não há como negar, como bem fez a sentença, que o direito à licença
maternidade deveria ser estendido para a recorrida, sob o fundamento maior
de maximização de direitos fundamentais – tanto para as mães quanto para a
criança, no âmbito familiar” (E-doc fls 257 – 258)

Ainda com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, em


seu artigo 4º é imperioso zelar pelo melhor interesse do menor, possibilitando o
convívio da criança com os pais e mães. O conjunto normativo demonstra que o
dever de proteção do Estado vai além da questão biológica da mãe, principalmente
quando fica claro que o filho também tem direito à proteção decorrente da licença
maternidade como forma de propiciar a sua integração e adaptação à entidade familiar
que o recebe, medida essencial para o sucesso da convivência com as pessoas deste
núcleo.

No presente caso, a questão envolve casal homoafetivo feminino, no


qual uma mulher, mãe pelo vínculo afetivo e familiar, casada com outra mulher, mãe
pelo vínculo afetivo e biológico, busca obter o benefício previdenciário. Sabe-se que
por meio de fertilização in vitro, com utilização de sêmen doador, ou outras formas
encontradas e já autorizadas na medicina, é possível assegurar à mulher a gravidez
dentro da relação homoafetiva. No casal de mulheres, normalmente uma das mães é
a responsável pela gestação, enquanto a outra, também considerada mãe, será a mãe
não gestante.
Dentro desse contexto, negar o benefício pela ausência de previsão
legal, viola princípios constitucionais fundamentais e toda evolução jurisprudencial e
legal percorridas até o momento, sendo de suma importância ainda entender a
natureza jurídica do benefício e preservar a proteção da família e das crianças, nos
termos do artigo 226 e 227, da Constituição Federal. Ainda, no § 8º do artigo 226
da Constituição prevê que o Estado deve dar assistência aos membros da família e
prevenir a violência dentro dela. No artigo 229, da CF ainda há previsão de que “os
pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm
o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

Portanto, a norma constitucional evidencia a importância de proteger


as crianças e de assegurar a proteção à família, ainda que formada por formas “não
convencionais”, ainda com base no direito de liberdade reprodutiva e de escolher a
sua família dentro de laços afetivos, somada a proteção de novas formas de entidades
familiares, totalmente distante de padrões ou conceitos pessoais, filosóficos ou
religiosos.

Segundo a doutrina de Marcelo Leonardo Tavares “o salário


maternidade, juntamente com o salário família, é um dos benefícios que visam à
cobertura dos encargos familiares. Tem por objetivo a substituição da remuneração
da segurada gestante durante os cento e vinte dias de repouso, referentes à licença
maternidade”20. A finalidade social do salário maternidade é propiciar o descanso da
mulher trabalhadora, e garantir o contato da mãe com a criança nos primeiros meses
de vida. Como menciona Miguel Horvath Júnior, o salário maternidade “é concedido
visando a proteção da mulher, bem como a proteção do filho”. 21 Ainda Marcelo
Leonardo Tavares, comentando sobre o salário maternidade em caso de adoção,
explica que “o objetivo, neste caso, é permitir uma melhor adaptação no convívio com
o adotado”. 22

Por isso, o direito previdenciário, inclusive quanto ao salário


maternidade, da mãe biológica e o da mãe não gestante podem coexistir para ambas,
tendo sempre como pressuposto o intuito de ficar com a criança, cuidar e criar laços
afetivos e familiares. Não se pode olvidar a finalidade da norma jurídica de proteção à
criança, estando ainda vedada quaisquer discriminações relativas à filiação (art. 227,
parágrafo 6).

Na presente ação, na data de 11 de outubro de 2019 o Ministro


Relator Luiz Fux em seu voto sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário
1.211.446 solidificou o entendimento sobre a finalidade da licença-maternidade:

Com efeito, o direito à licença-maternidade consiste em benefício de


natureza previdenciária destinado a assegurar à mãe um período de
amplo convívio com a criança, mediante afastamento laboral remunerado.
É benefício que tanto empregadas celetistas como servidoras públicas
possuem, nos termos do art. 7º, XVIII, e art. 39, § 3º, da Constituição da

20 TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 160
21 JÚNIOR, Miguel Horvath. Direito Previdenciário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 283
22 TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 160
República. O escopo dessa licença é justamente tutelar o vínculo formado entre
mãe e filho(a), independentemente da origem biológica ou adotiva dessa
relação, consoante assentado por esta Suprema Corte, ao julgar o mérito do
RE 778.889, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 10/3/2016 (Tema 782 da
Repercussão Geral). Na ocasião, prevaleceu o entendimento de que a
legislação não pode instituir prazos diferenciados de licença-maternidade entre
as servidoras gestantes e as adotantes, mercê de ambas constituírem um novo
vínculo familiar constitucionalmente protegido. A titularidade da licença-
maternidade ostenta uma dimensão plural, recaindo sobre mãe e filho(a),
de modo que o alcance do benefício não mais comporta uma exegese
individualista, fundada exclusivamente na recuperação da mulher após o
parto. Certamente, a licença também se destina à proteção de mães não
gestantes que, apesar de não vivenciarem as alterações típicas da
gravidez, arcam com todos os demais papeis e tarefas que lhe incumbem
após a formação do novo vínculo familiar. Considerando que a Constituição
alçou a proteção da maternidade a direito social (CF, art. 6º c/c art. 201),
estabelecendo como objetivos da assistência social a proteção “à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice” (CF, art. 203, inc. I), revela-
se dever do Estado assegurar especial proteção ao vínculo maternal,
independentemente da origem da filiação ou da configuração familiar que lhe
subjaz. (grifos nossos)

Nesse sentido, a concessão do benefício supera o aspecto


biológico da gravidez, abrangendo o vínculo parental afetivo e o favorecimento do
contato familiar, além de levar em consideração a evolução histórico-cultural da
sociedade brasileira. No caso da dupla maternidade, é possível ser concedido à mãe
não gestante o benefício, privilegiando-se o direito da entidade familiar de realizar os
cuidados parentais e de fortalecer o vínculo afetivo.

5.1 AD ARGUMENTANDUM – DA ANALOGIA DA LICENÇA-MATERNIDADE À


MÃE ADOTANTE

Visando o preenchimento da lacuna legislativa da licença


maternidade dentro do contexto de adoção, a Lei n.º 10.421/2002 estendeu à mãe
adotiva o direito à licença-maternidade e ao salário-maternidade, alterando a
Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1 de maio
de 1943, e a Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, por meio do acréscimo do artigo
392-A à CLT, a seguir:

Art. 392-A. À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de
adoção de criança será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392,
observado o disposto no seu § 5o.
Após isso, a Lei n.º 12.010/2009, além de dispor sobre adoção,
uniformizou o prazo da licença-maternidade para 120 dias, independentemente da
idade da criança adotada. Esta mudança, no entanto, se deu somente no âmbito
trabalhista, fato que gerou controvérsias, uma vez que o artigo 71-A, da Lei n.º
8.213/199198 (Lei da Previdência Social), não foi objeto de modificação, continuando
a prever a diferenciação de prazos para o pagamento do salário-maternidade nos
casos de adoção.

Em seguida, a Medida Provisória n.º 619/2013 foi adotada a fim


de solucionar a referida contradição, unificando os prazos de salário-maternidade para
seguradas adotantes previstos no artigo 71-A, da Lei n.º 8.213/1991, para o período
de 120 dias, adaptando-os à alteração da Consolidação das Leis do Trabalho. Por fim,
a lei n° 8.213/91 foi alterada pela lei n° 12.873/2013 em seu artigo 71-A que acabou
com a diferenciação do tempo de fruição do salário-maternidade em razão da idade
do adotado, regulamentando que ele será de 120 (cento e vinte) dias em todos os
casos de adoção de menor de idade.

Nesse sentido, ad argumentadum, ainda que remotamente


houvesse qualquer questionamento acerca da concessão da licença- maternidade a
mãe não gestante mesmo com todo reconhecimento por essa Corte da relação
homoafetiva como entidade familiar, princípios constitucionais que resguardam o
tema, natureza jurídica do benefício e conceito de filiação, não há como negar ao
presente caso sequer a aplicação por analogia do regramento jurídico da mãe –
adotante e o referido benefício da licença-maternidade inserida nas legislação
aplicável ao tema. Tal apontamento é com base ne necessidade imperiosa de zelar
pela aplicação dos direitos fundamentais e sociais, ainda que ausente legislação
específica.

6. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. ART. 5º, §§ 2º E


3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A doutrina tem reconhecido que os países latino-americanos têm


concedido um status constitucional aos tratados internacionais que tratem de direitos
humanos. Com efeito, segundo Valério Mazzuoli:

Vários países latino-americanos têm concedido status normativo


constitucional aos tratados de proteção dos direitos humanos, sendo
crescente a preocupação dos mesmos em se deixar bem assentado, em
nível constitucional, a questão da hierarquia normativa de tais instrumentos
internacionais protetivos dos direitos da pessoa humana. [...] A Carta de 1988,
com a disposição do § 2, do seu art. 5 , de forma inédita, passou a reconhecer
claramente, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte
normativa: a) aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos
na Constituição, estes últimos decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados), e; b) aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos
tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do
Brasil seja parte). De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados
pelo Estado brasileiro a condição de fonte do sistema constitucional de
proteção de direitos.23 (grifos nossos)

Assim, consta expressamente no artigo 5º, § 2º e 3º, da


Constituição Federal que os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos podem ser equivalentes às emendas constitucionais:

Art. 5º. [...] §2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte. §3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais. (g.n)

O tema da hierarquia normativa dos tratados de direitos


humanos merece ser revistado pelo STF, inclusive pelo atual entendimento, de
hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, ter sido obtida por maioria de 5x4, logo,
não por maioria absoluta da Corte. Seja como for, o advento do §3º não teve o condão
de afastar a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos
já vigentes no Brasil. Consoante a clássica doutrina de Flávia Piovesan, o rito para a
constitucionalização formal dos direitos humanos, mas não afastou a
constitucionalização material dos mesmos, no bloco de constitucionalidade
objeto do §2º do art. 5º da CF/8824. Com efeito, ao dispor que os direitos e garantias
objeto de positivação constitucional não excluem outros decorrentes dos princípios e
do regime enunciados na Constituição, bem como dos tratados internacionais de
direitos humanos vigentes no Brasil, tem-se que a interpretação lógica deste
dispositivo constitucional significa que ele reconheceu, como também direitos e
garantias constitucionais, aqueles(as) objeto de positivação dos tratados
internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil. Inclusive por força do
citado cânone hermenêutico do ejusdem generis, pelo qual “se listam-se uma série
de itens e a partir daí se inclui uma expressão aberta no final, essa expressão inclui
apenas coisas similares aos itens que a precedem”25, considerando que não há como
negar a hierarquia constitucional dos direitos decorrentes dos “princípios” e do
“regime” consagrados pela Constituição, não se pode ter outra conclusão
relativamente aos direitos decorrentes dos tratados internacionais de direitos
humanos vigentes no Brasil.

Nesse sentido, os direitos podem ser formal e/ou materialmente


fundamentais, na esteira do pensamento de Dirley da Cunha Júnior, serão
materialmente fundamentais quando, ainda que revelassem, por seu conteúdo,

23 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A incorporação dos tratados internacionais de proteção dos


direitos humanos no ordenamento brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n.
147, jul./set. 2000, p. 179-200.
24 PIOVESAN, Flavia, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7ª Ed., São Paulo:

Ed. Saraiva, 2016, p. 71/74


25 TRIBE, Lawrence. MATZ, Joshua. To end a Presidency. The Power of Impeachment, NY: Basic

Books, 2018, p. 34-42.


imprescindíveis para as estruturas básicas do Estado e da sociedade, não estiverem
constitucionalizados26.

É importante aclarar, consoante lição de Ingo Wolfgang Sarlet,


que, a despeito de não estar necessariamente ligada à fundamentalidade formal, é
por meio do direito constitucional positivo (art. 5º, § 2º, da CF/1988) que a ideia de
fundamentalidade material permite a abertura da Constituição a outros direitos
fundamentais não previstos no seu texto27. Importa averiguar se a Constituição
brasileira contém cláusula aberta que permita acolher os chamados direitos
materialmente fundamentais, ou direitos fundamentais em sentido material, que são
aqueles não previstos expressamente por ela, mas que, por força de sua
essencialidade, isto é, de seu conteúdo e importância para sobrevivência e
convivência digna do homem em sociedade, são direitos fundamentais, detentores da
mesma dignidade dos direitos constitucionalizados. A essa abertura material
denomina-se, com arrimo em lição de Jorge Miranda, de “não tipicidade de direitos
fundamentais”28. Em razão dela, a doutrina entende que a Constituição brasileira
reconhece a fundamentalidade material dos direitos fundamentais à medida que se
associou a um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais29.

Por outro lado, é preciso lembrar-se que é pacífico no Direito


Internacional dos Direitos Humanos que não há uma hierarquia formal entre direitos
consagrados em tratados e convenções internacionais e direitos consagrados na
legislação interna do país, mas uma hierarquia material/substantiva, consagrada
no princípio do in dubio pro dignitate, pelo qual deve ser aplicada a norma de
direitos que melhor proteja a situação jurídica do indivíduo, ante a circunstância
histórico-teleológica, inclusive positivada na Convenção Americana de Direitos
Humanos, de que nada no Direito Internacional dos Direitos Humanos pode ser
interpretado como restringindo direitos melhor consagrados na ordem interna.

Por analogia ao notório fundamento do Ministro Roberto Barroso


sobre a interpretação do art. 226, §3º, da CF/88 no tema da união homoafetiva, os
direitos humanos funcionam como norma de inclusão, que visam garantir uma
proteção mínima dos direitos das pessoas, de sorte que não podem ser interpretados
como piorando uma situação jurídica melhor garantida pelo ordenamento jurídico
interno. Negar isso é negar algo basilar no Direito Internacional dos Direitos Humanos,
tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial. Lembre-se, ainda, que seria
evidentemente inconstitucional, por violação do princípio da proibição do retrocesso

26 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 2ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2008, p.
618.
27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8º Ed.. Porto Alegre: Ed. Livraria

do Advogado, 2007, p. 89.


28 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, t. 4, 3ª Ed. Coimbra:

Ed. Coimbra, 2000, p. 75.


29 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed., São Paulo:

Saraiva, 2006. p. 55-57; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO,
Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 662-663; MAZZUOLI,
Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 685;
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2006. p.
420; SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 93 et seq.
social, qualquer “denúncia” do Estado Brasileiro à Convenção Fundamental nº 111 da
OIT.

É relevante entender a principal ratio decidendi da


paradigmática decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Atalla
Ryffo y niñas vs. Chile (2012). Embora seja um caso de declaração de
inconvencionalidade da discriminação por orientação sexual na guarda de filhos(as),
o fundamento determinante da decisão foi algo absolutamente relevante ao presente
julgamento, a saber, a proibição de que ESTEREÓTIPOS DISCRIMINATÓRIOS
(sejam usados para fundamentar conclusões relativas a legítimos fins estatais. Ali, por
mais que se corretamente afirme que a proteção das crianças é, à toda evidência, um
legítimo fim estatal, é INCONVENCIONAL aduzir-se perseguir um legítimo fim tal a
partir de estereótipos discriminatórios.

No caso Artavia Murillo vs. Costa Rica30, a Corte Interamericana


de Direitos Humanos indica que o direito à identidade é afetado quando os Estados
impedem arbitrariamente o desenvolvimento pessoal e, afetam o direito da pessoa de
se apresentar, como ela é (como ela decide se projetar), para com os outros. Em
outras palavras, constitui direito de todos organizarem, de acordo com a lei, sua vida
individual e social de acordo com suas próprias opções e convicções. A liberdade,
definida desta maneira, é um direito humano básico, próprio dos atributos da pessoa,
projetado ao longo da Convenção Americana (Caso Artavia Murillo (“Fertilização In
Vitro”) v. Costa Rica, Série CN ° 257, julgamento de 28 de novembro de 2012,
parágrafos 142-3).

No caso I.V. com a Bolívia31, por sua vez, a Corte enfatizou os


aspectos das relações individuais e pessoais que se cruzam no direito à identidade,
sustentando que a proteção deste inclui o direito de definir e estabelecer
relacionamentos, apresentando-se do modo como queira ou deseja perante os
demais, dentro de um conceito de vida privada abrange os aspectos da identidade
física e social, incluindo o direito à autonomia pessoal, desenvolvimento pessoal e o
direito de estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e
com o mundo exterior. A efetividade do exercício do direito à privacidade é decisiva
para a possibilidade de exercer autonomia pessoal no direcionamento de eventos
relevantes que garantem a qualidade de vida de uma pessoa. A vida privada inclui
a maneira pela qual o indivíduo se vê e como ele decide se projetar para os
outros, e é uma condição indispensável para o desenvolvimento da
personalidade livre (IV v. Bolívia, Série CN No. 329, sentença de 30 de Novembro
de 2016, parágrafo 152).

30
Caso Artavia Murillo (“Fertilização In Vitro”) v. Costa Rica, Série CN ° 257, julgamento de 28 de
novembro de 2012, parágrafos 142-3).

31
IV v. Bolívia, Série CN No. 329, sentença de 30 de Novembro de 2016, parágrafo 152).
Em suma, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
considerou, em sua Opinião Consultiva nº 2432, que o direito à identidade envolve
aspectos subjetivos (da própria experiência e autonomia) e sociais (relacionados ao
tipo de relacionamento que se estabelece e à maneira pela qual que as pessoas
decidem entrar nesses relacionamentos) e que esses aspectos não podem ser
definidos com antecedência, mas decorre do reconhecimento do livre
desenvolvimento da personalidade e da proteção do direito à privacidade,
direito à identidade, que está intimamente relacionado à autonomia da pessoa e
que a identifica como um ser que autodetermina e autogoverna, ou seja, quem
é proprietário de si mesmo e de seus atos.

Essas análises demonstram que o direito de preservar a


identidade deve ser respeitado e garantido, a fim de proteger seus melhores e mais
amplos interesses, conforme expressamente estabelecido no Comentário Geral No.
14 (2013) da Comissão dos Direitos da Criança de Nações Unidas, “O direito da
criança a preservar sua identidade é garantida pela Convenção (art. 8) e deve ser
respeitada e levada em consideração na avaliação dos melhores interesses da
criança” (§ 55). Isso significa dizer que reconhecer esses outros direitos, incluindo o
direito à identidade; consagra o PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE33 como
garantia da validade de outros direitos que consagrem e identifiquem o melhor
interesse, inclusive o interesse da criança dentro dessa relação jurídica34.

Assim, consoante basilar na teoria da vinculação a


precedentes que são as ratione decidendi que se configuram como os princípios
vinculantes a decisões futuras, requer-se seja tal fundamento determinante utilizado
por esta Suprema Corte, para se referendar a convencionalidade (e a
constitucionalidade) da Licença maternidade para mãe não gestante dentro de uma
relação homoafetiva (especialmente à luz da hierarquia constitucional e “pro dignitate”
dos tratados internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil à luz do art. 5o,
§2o, da CF/88, cf. supra). Em suma completamente descabida a alegação do
Recorrente (Município de São Bernardo do Campo) de violação aos arts. 7º,
XVIII, e arts. 39, caput e § 3º, da Constituição da República.

32
Opinião Consultiva OC-24/17, Identidade de Gênero e igualdade e não discriminação contra casais
do mesmo sexo, 24 de novembro de 2017, parágrafo 89).

33
ALEGRE, Silvana., HERNANDEZ, Ximena. y ROGER, Camille. El interés superior del niño.
Interpretaciones y experiencias latinoamericanas. 2014.

34
CILLERO, Miguel. “El Interés Superior del Niño en el Marco de la Convención Internacional sobre los
Derechos del Niño.” Ponencia presentada en el I Curso Latinoamericano: Derechos de la Niñez y la
Adolescencia; Defensa Jurídica y Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos.
San José de Costa Rica, 30 de agosto a 3 de septiembre de 1999.
7. DOS PEDIDOS.

Ante o exposto, requer-se:

(I) seja a Entidade Peticionária admitida como amicus curiae no


presente processo, considerando-se o memorial aqui apresentado, outras petições
eventualmente protocoladas em momento futuro e deferindo-se a realização de
sustentação oral no julgamento tanto da medida cautelar, se realizado, e de mérito;

(II) seja designada audiência pública onde sejam ouvidos


ativistas do Movimento de Mulheres LGBTI+, tanto da Entidade Peticionária quanto
de outras, para que possam relatar suas experiências de formação de entidades
familiares e reprodução por inseminação artificial em relações homoafetivas,
ainda com estigmas sociais existentes contra si;

(III) seja o Recurso Extraordinário interposto pelo Município de


São Bernardo do Campo desprovido, confirmando a decisão emanada pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo e, consequentemente, considerando a sistemática da
repercussão geral dada à matéria, a tese fixada para os casos que tratem ou venham
a tratar da temática;

Por fim, requer sejam as intimações publicadas em nome das


advogadas signatárias, sob pena de nulidade.

Termos em que,
Pede e Espera deferimento.

São Paulo, 24 de julho 2020.

Luanda Morais Pires


Diretora - Tesoureira
OAB/SP n.º 357.642

Fernanda Aparecida Gonçalves Perregil


OAB/SP n.º 236.036

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