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Correio da Cidadania - Internacional – Direção Plínio de Arruda Sampaio

A batalha do Chile
Mário Maestri

O Chile tem sido a grande vitrine das políticas neoliberais, uma situação alcançada com o golpe de 11 de setembro de
1973, que transformou, com o massacre e a repressão do movimento social, o país no primeiro laboratório das
receitas conservadoras que se derramaram a seguir sobre o mundo. Para tal, as conquistas sociais, as organizações
populares, os partidos de esquerda foram destruídos e a saúde, a educação, a segurança social e as empresas
públicas, privatizadas. A liberalização da legislação trabalhista, fiscal e tributária facilitou ao extremo a circulação de
capitais e mercadorias.

A operação neoliberal teria produzido resultados excelentes, apesar de o Chile ter se desindustrializado e multidões
de nacionais terem abandonado o país por razões políticas e econômicas. Em inícios de 2006, a dívida, a inflação, os
juros e o desemprego prosseguiam baixos. As exportações de cobre, peixe, frutas, celulose e vinho – mais de 50% do
PIB – avançavam de vento em popa, ajudadas pela assinatura de um tratado de livre comércio, em 2004. O preço do
cobre nas alturas enchia as burras do Estado. O balanço político era também supimpa. A gestão conservadora de
Ricardo Lagos, primeiro presidente “socialista” após a ditadura, fora referendada com a eleição de Michelle Bachelet,
outra socialista amorosa da sociedade de mercado.

A obra magna do Chile neoliberal era, porém, a destruição do projeto histórico construído através de décadas de lutas
por uma das classes trabalhadoras mais conscientes do mundo. Uma herança pinochetista preservada com carinho,
após 1990, pelos governos democrata-cristãos e socialistas da Concertación Democrática. A longa noite da ditadura
teria soterrado para sempre as certezas que partejaram o governo da Unidade Popular, em 1970. Uma juventude
chilena individualista, despolitizada e consumista seria a pedra angular do Chile novo, paradigma mundial de
sociedade de mercado.

A mobilização dos secundaristas nasceu nos três ou quatro melhores liceus públicos de Santiago e estourou como um
inesperado raio em céu sereno. Muito logo, ganhou os mais de trezentos colégios secundários da capital e, a seguir,
do país. Os presidentes dos centros de alunos dos colégios envolvidos na mobilização formaram uma Assembléia
Coordenadora dos Estudantes Secundários, com seis porta-vozes: dois estudantes comunistas, dois socialistas e dois
conservadores, também favoráveis à escola pública.

Fortalecido, o movimento lançou duas poderosas greves nacionais, em 30 de maio e 5 de junho, pondo
inapelavelmente por terra o projeto de manutenção da Lei Orgânica Constitucional do Ensino, ditada por Pinochet no
último dia de ditadura. Em verdade, os secundaristas chilenos fizeram muito mais. Com a multitudinária ofensiva,
trincaram profundamente a pesada teia ideológica que envolve a sociedade chilena, imobilizando-a com a falsa idéia
de que as instituições capitalistas, mesmo não sendo desejáveis, seriam as únicas possíveis.

Chile profundo

Os resultados macroeconômicos escondem sociedade dura, brutal e desigual. No Chile, os direitos de greve e
sindicalização são limitados e os salários, baixos. Dominam o trabalho part time e os contratos precários. A jornada
laboral é de 48 horas, uma das mais altas do mundo. A saúde, previdência, educação, lazer e segurança privatizados
corroem a economia familiar vergada pelo endividamento bancário. Quarenta e cinco por cento da população vivem
na pobreza. A educação secundária é exemplo da triste realidade do país. Antes do golpe, o ensino estatal
encontrava-se entre os melhores da América Latina. Com a ditadura, as escolas públicas, destino da maior parte dos
estudantes, foram municipalizadas e entregues a sua sorte. Ao contrário, o ensino privado pago, destinado às classes
médias, passou a ser financiado pelo Estado. Finalmente, consolidaram-se colégios extremamente caros para os
filhos dos grandes proprietários. Nesse sistema de castas sociais, o estudante de escola privada pode custar quatro
vezes mais ao Estado do que o de colégio público.

A diversidade entre a escolarização do estudante pobre e do rico garante o monopólio à universidade, também
fortemente privatizada, aos segundos. Não mais de cinco por cento dos alunos chegados das escolas públicas
vencem a Prova de Aptidão Acadêmica que, há poucos anos, passou a exigir taxa de inscrição de uns setenta reais.
A deterioração da educação comprometeu a própria produtividade do trabalhador, para o horror do empresariado.
Para não tocar o princípio da divisão classista do ensino, o presidente “socialista” Lagos empreendeu reforma da
educação descolada da realidade social. Determinou escolarização obrigatória de doze anos e maior permanência
dos alunos nas escolas, sem realizar os investimentos exigidos pelas medidas.

Não houve financiamento da passagem escolar para os alunos dos anos superiores, recaindo o custo da passagem
sobre a economia familiar. Não se compensou a retenção na escola de jovens que contribuíam para a frágil renda
família. Os colégios públicos permaneceram sem refeitórios, salas de aulas, bibliotecas etc., apesar de fortemente
exigidos pelo acréscimo da jornada e dos anos de escolarização. Enfrentava-se a crise da educação enjaulando o
estudante pobre em escolas decaídas.

Os estudantes chilenos possuem riquíssima tradição de luta. Secundaristas e universitários morreram às centenas
combatendo o golpe e a ditadura. Nos últimos anos, jamais deixaram de empreender duras mobilizações de
vanguarda por melhores condições de ensino, pelos direitos democráticos e sociais, em defesa da memória das lutas
populares. O governo Lagos neutralizou a mobilização estudantil fortalecida por sua “reforma” estabelecendo “mesas
de diálogo” onde, um pouco como na Revolução Francesa, os estudantes definiram suas reivindicações mínimas e
afinaram as lideranças.

Começar novamente

Michelle Bachelet desconheceu simplesmente a elaboração das “mesas de diálogo”. Inicialmente, o governo limitou-
se a reprimir as primeiras mobilizações dos liceus mais politizados da capital, esperando que a luta não se
espraiasse. As reivindicações de transporte livre, gratuidade do vestibular e estatização das escolas municipalizadas
conquistaram a adesão de praticamente todo o ensino público e o apoio popular. Alunos de liceus privados
envolveram-se na luta reunindo alimentos, participando de reuniões nas escolas ocupadas etc. O ensino privado pesa
também no bolso das famílias de classe média, sobretudo se possuem mais de um filho. Nos bairros próximos aos
liceus ocupados, donas de casa bateram forte nos fundos de panelas, em cacerolazo plebeu que recorda as lutas
sociais quando da Unidade Popular.

O governo entregou a questão secundarista a Martín Zilic, ministro da Educação que, após negar-se a discutir com os
alunos mobilizados, convocou seus delegados, sem, no entanto, recebê-los. A repressão policial e prisão de milhares
de estudantes renderam também escassos frutos. Os confrontos entre jovens e carabineiros acirraram-se, sobretudo
no centro de Santiago. Combateu-se duramente na avenida Bernardo O'Higgins, palco histórico das refregas
estudantis, onde, em 17 de junho de 1973, o jovem gaúcho Nílton Rosa da Silva, o Bem Bolado, estudante de Letras
do Instituto Pedagógico, foi morto por bala fascista, sendo acompanhado em sua última caminhada por dezenas de
milhares de santiaguinos.

Michelle Bachelet mergulhou em profundo mutismo, esperando que os secundaristas esquecessem que tinha nas
mãos a solução do problema. Durante as eleições, seu mote de campanha fora “Bachelet: estou contigo!”. Nas
fachadas dos liceus ocupados, dependuraram-se, aos milhares, cartazes com a incômoda pergunta: “Bachelet, estás
comigo?”. A greve geral de 30 de maio, com mais de seiscentos mil estudantes, seguida de mobilizações e confrontos
nas principais cidades, obrigou finalmente a presidenta a conceder, na quinta-feira, 1º de junho, largamente, parte das
reivindicações estudantis.

Por televisão, Bachelet anunciou a gratuidade, para estudantes pobres, do vestibular e da passagem; bolsas para
mais de 150 mil estudantes; aumento de duzentas mil refeições diárias; melhorias em meio milhar de liceus. Pediu o
fim da mobilização e anunciou o estabelecimento de “Conselho Assessor Presidencial em Educação”, claramente sob
a hegemonia conservadora, de 66 membros – apenas seis secundaristas e seis universitários –, integrado também
por delegados dos professores e proprietários de escolas, para discutir a reforma da educação.

As mobilizações chilenas foram influenciadas pelas jornadas da juventude francesa contra a precarização do contrato
juvenil de trabalho. Na França, a convergência entre a luta juvenil, popular e operária ensejou vitória total de
movimento defensivo contra a reforma neoliberal. No Chile, tratou-se de ofensiva antiliberal, para ampliar o espaço
público e fazer retroceder o privado, que conquistou os estudantes universitários e a simpatia e o apoio da população.
A mobilização não teve, porém, força para arrastar o movimento operário, que ainda se recupera da desestruturação
conhecida no passado.

Mais público, menos privado


A segunda greve geral, de 5 de junho, exigia a maioria estudantil em Conselho Assessor de caráter decisório, a
generalização das concessões acordadas, a responsabilização pelo Estado do ensino público. Com seiscentos mil
secundaristas e trezentos mil universitários, recebeu o apoio, sobretudo político, de mais de cem organizações
sindicais e sociais que, em alguns casos, interromperam o trabalho por duas horas. Nas marchas que percorreram as
capitais participaram professores e funcionários públicos. Na cidade portuária de Valparaíso, entre os doze mil
manifestantes, encontravam-se trabalhadores portuários, da construção, dos serviços públicos. O governo, a mídia e
as organizações patronais denunciaram a instrumentalização da luta estudantil pelo sindicalismo classista, como se a
luta dos filhos não dissesse respeito aos pais!

A consolidação do domínio neoliberal no Chile se mantém devido, sobretudo, à destruição da unidade do mundo do
trabalho, materializada, no plano sindical, na eclipse da já monolítica Central Única dos Trabalhadores e, no plano
político, na ruptura da aliança histórica entre socialistas e comunistas. A reconversão neoliberal dos socialistas, que
deram as costas ao velho aliado comunista para abraçar-se no tradicional inimigo democrata-cristão, comprometido
no golpe militar, permitiu prosseguir e aprofundar as receitas neoliberais e manter na marginalidade o Partido
Comunista.

Os secundaristas realizaram a maior greve desde o golpe, obtiveram conquistas substanciais, ganharam a população
para a reivindicação de mais público e menos privado. Nos momentos finais da luta, demarcaram a importância da
convergência de estudantes, populares e trabalhadores. Assentaram duríssimo golpe no edifício neoliberal,
registrando a necessidade de direção política autônoma e classista. No momento em que as forças neoliberais
propunham soberbas a vitória na batalha do Chile, a juventude popular chilena, sem medo e com decisão, assinalou
com conquistas sociais irretorquíveis que apenas começou a lutar!

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