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LITERATURA COMPARADA
Conteudista
Neuza Maria de Souza Machado
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por quaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da Universidade Castelo
Branco - UCB.
ISBN
CDD – 371.39
Prezado(a) Aluno(a):
É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de gradu-
ação, na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, consequentemente, propiciando
oportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docente es-
peram retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma
estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.
Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhe-
cimento teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.
Seja bem-vindo(a)!
Paulo Alcantara Gomes
Reitor
Orientações para o Autoestudo
O presente instrucional está dividido em duas unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos e
conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam
atingidos com êxito.
Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades com-
plementares.
Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o
conteúdo de todas as Unidades Programáticas.
A carga horária do material instrucional para o autoestudo que você está recebendo agora, juntamente com
os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 60 horas-aula, que
você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros
presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.
Bons Estudos!
Dicas para o Autoestudo
1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja
disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.
7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento
da disciplina.
UNIDADE I
UNIDADE II
2.1 - O Regional: Afonso Arinos, Monteiro Lobato, Coelho Neto, Hugo de Carvalho Ramos, Valdomiro
Silveira e Simões Lopes Neto ...................................................................................................................... 40
2.2 - O Urbano: Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Antônio de Alcântara Machado e
Sérgio Sant’ Anna ....................................................................................................................................... 41
2.3 - O Exótico: Hilda Hilst, Murilo Rubião, Roberto Drummond e Sônia Coutinho ............................... 43
2.4 - O Psicológico: Machado de Assis, Osman Lins, Autran Dourado e Clarice Lispector ...................... 44
2.5 - O Existencial: Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles ................................................................. 46
2.6 - O Feminino: Helena Parente Cunha e Nélida Piñon .......................................................................... 46
2.7 - O Social: Mário de Andrade, João Antônio e Rubens Fonseca .......................................................... 47
2.8 - Textos ficcionais ................................................................................................................................. 48
2.9 - Propostas de pesquisa e trabalhos comparativos ................................................................................ 64
A disciplina Literatura Comparada visa proporcionar uma visão comparativa de autores vários, cotejando
escritores nacionais, portugueses e de outras nacionalidades, a partir de linhas temáticas previamente definidas
(linhas escolhidas: Regional, Urbana, Exótica, Psicológica, Existencial, Feminina e Social). O outro ponto a
que se dirige esta disciplina visa oferecer ao discente (do Curso de Letras do EAD da Universidade Castelo
Branco) a oportunidade de elaborar sua escolha (para pesquisas posteriores) de textos literários para compara-
ção, sejam tais textos cotejados entre os próprios autores nacionais, ou nacionais em contraponto com autores
estrangeiros, ou, excepcionalmente, confrontamento de textos estrangeiros.
Este conhecimento de Literatura Comparada, como já foi afirmado e reafirmado nos Instrucionais de Teoria
da Literatura, se somará aos conhecimentos adquiridos em cursos anteriores, pois, além de explorar todas as
possibilidades e fundamentos da Ciência da Literatura — uma vez que os Estudos Comparativos de Literatura
são também uma ramificação desta Ciência — continuará a exercer a sua principal função pedagógica, qual
seja, continuar a oferecer ao discente as condições de se disciplinar a estudar, sempre com maior empenho, e
continuar a desenvolver o senso crítico no intuito de prosseguir em estudos posteriores.
As informações, contidas nesta disciplina, tendem a provocar no aluno a continuação do gosto pelo cresci-
mento intelectual e levá-lo a pesquisas posteriores, desenvolvendo e ampliando o seu conhecimento ao longo
do tempo.
UNIDADE I 13
RENÉ WELLEK - Nasceu em 1903. Professor, in- VAN TIEGHEM - Paul Van Tieghem (1871 - 1948) –
vestigador e teórico da literatura, tcheco. (Conferir: Historiador literário francês. (Conferir: DICIONÁRIO
DICIONÁRIO DE LITERATURA. 3. ed., vol. 3. DE LITERATURA. 3. ed., vol. 3. Porto: Figueirinhas:
Porto: Figueirinhas, 1973: 1361). 1355).
AMPÈRE - Jean-Jacques Ampère – Nasceu em
RICHARDSON - Samuel Richardson (1689 - 1761)
Lion, em 12 de agosto de 1800, e faleceu em Paris,
em 27 de março de 1864. Foi filólogo, escritor e his- – Romancista inglês. (Conferir: DICIONÁRIO DE LI-
toriador. Foi também professor de Literatura France- TERATURA. 3. ed., vol. 3. Porto: Figueirinhas: 1332).
sa do Colégio de França. (Tradução livre obtida do
site: www.academie-francaise.fr). ROUSSEAU - Jean Jacques Rousseau – Escritor e
filósofo francês. Nasceu em Genebra, 23 de junho
SISMONDI - Jean-Charles Leonard Simonde de Sis- de 1712, e faleceu nas proximidades de Paris, a 02
mondi – Nasceu em Genebra, Suíça, em 09 de maio de julho de 1778. (...). (Informações obtidas no Site:
de 1773, e faleceu em 25 de junho de 1842. Escritor, www.academie-francaise.fr).
1.2 - Literatura Comparada: Olhar Crítico-Comparativo
17
de Marius François Guiard (Trechos do Livro)
GUYARD, Marius François. A Literatura Compa- delongar em estabelecer a legitimidade da Literatura
rada. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. Comparada, (...) delimitá-la, tanto no aspecto nacio-
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1956: 7-100. nal como no “mundial”, para chegar a uma definição
tão simples e fiel quanto possível.
INTRODUÇÃO (p. 9)
SOMENTE NO FINAL DO SÉCULO XIX NAS-
Finalidade: “Expor os métodos e, principalmente, CE A LITERATURA COMPARADA COMO
os resultados de uma disciplina ainda pouco conhe- DISCIPLINA AUTÔNOMA E ORGANIZADA.
cida do público erudito em geral. Desse modo, sem
“O livro teórico do inglês M. H. Posnett, Comparati- Deve saber onde encontrar as primeiras informações,
18 ve Literature (1886), marca a inauguração oficial das como organizar a bibliografia sobre um assunto.
pesquisas comparatistas. No mesmo ano, Edouard Rod
começa em Genebra seus cursos de História Compara-
da das Literaturas. Mais um ano e Max Koch publica, 2. O Campo da Literatura Comparada
na Alemanha, a sua Revue de Littérature Comparée
(1887). A tomada de consciência do cosmopolitismo Sigamos agora o comparatista no caminho que esco-
pelo romantismo une-se à preocupação de utilizar o lheu: dessa maneira, objeto e método se esclarecerão
método histórico e comparativo que, em outros domí- mutuamente.
nios – linguística, direito, mitologia –, provara a sua fe-
cundidade. Nasceu a Literatura Comparada.” (...). a) Os agentes do cosmopolitismo: Em todas as
épocas, livros e homens contribuem para o conhe-
“Em 1895, Joseph Texte sustenta, a respeito de Jean- cimento das letras e dos países estrangeiros. A Lite-
Jacques Rousseau et les origines du cosmopolitisme ratura Comparada encontra neles um primeiro objeto
littéraire (Jean-Jacques Rousseau e as origens do de estudo.
cosmopolitismo literário), uma tese que é na França a
primeira grande obra do comparatismo científico. De 1o) Os livros: A Literatura Comparada pode, primei-
1897 a 1904 sucedem-se as diversas edições de Betz e ramente, certificar-se do exato conhecimento que um
Balldensperger; a segunda, com seus seis mil títulos, autor, uma classe ou uma época tinha a respeito de
demonstra suficientemente o grau de progresso da Li- sua língua e de uma língua estrangeira. Essa pesquisa
teratura Comparada, em 1904. Daqui em diante, Fer- oferece um evidente interesse literário: entusiasma-
dinand Baldensperger publicará, durante meio século, mo-nos frequentemente com um romance traduzido,
uma série de estudos comparatistas, que teremos mais mas, só o avaliamos realmente lendo-o no original.
de uma vez ocasião de citar. Com Paul Hazard funda, - observar o problema da tradução;
em 1921, a Revue de Littérature Comparée francesa - observar as obras críticas (fontes de informação);
(Revista de Literatura Comparada) e dirige a cole- - inventariar os livros, os artigos;
ção que aí está radicada. A Literatura Comparada teve - analisá-los, apreciar-lhes o valor, medir-lhes as in-
realmente, no século XX, seu centro na França. Seu fluências.
brilhante início na Grã-Bretanha e Além-Reno não
teve futuro. A Itália, em compensação, com Bene- 2o) Os homens
detto Croce, Farinelli, Mornigliano, ocupou um lugar Procurar conhecer o que o autor conhecia da língua,
mais importante. Hoje (década de 50), na França, esta do país e dos homens.
disciplina é ensinada na Sorbonne e em várias univer- AUTOR: intérprete de seu país junto a outro;
sidades da província.” (op. cit., p.13) AUTOR: intérprete de uma cultura estrangeira jun-
to à sua pátria.
Objeto e Método
Métodos do comparatista:
“A Literatura Comparada é a História das Re- - ser um pouco biógrafo;
lações Literárias Internacionais. O comparatista - avaliar a fidelidade de um tradutor;
limita-se às fronteiras, linguísticas ou nacionais, e - avaliar a inteligência de um crítico;
acompanha as trocas de temas, ideias, livros ou sen- - avaliar a veracidade de um viajante;
timentos entre duas ou várias literaturas. Seu método - possuir conhecimento da história da literatura que
de trabalho deverá adaptar-se à diversidade de suas está sendo avaliada.
pesquisas.” (p.15)
b) O destino dos Gêneros
GÊNEROS (pela ótica da Literatura Compara-
1. O Equipamento do Comparatista da, relacionada ainda com as normas do Realismo-
Naturalismo): nascem, crescem e morrem, às vezes,
Primeiramente, ele é ou deseja ser historiador: His- sem razão aparente.
toriador das Literaturas // O comparatista deve
possuir uma cultura histórica suficiente para colocar A História é feita à custa de muitas coisas mortas.
no seu contexto total os fatos históricos que examina. Na falta de gêneros, não empregam os romancistas
[Por exemplo: conhecer a história da Espanha e de certos processos, não seguem modas? Simultaneís-
Portugal à época dos autores examinados]. mo, monólogo interior, simbólica dos sonhos, são
outras tantas fórmulas cujas origens estrangeiras o
O comparatista, porém, é o Historiador das Rela- futuro comparatista poderá pesquisar. A noção de gê-
ções Literárias e deve, pois, na medida do possível, nero, outrora tão importante, apaga-se diante da téc-
conhecer as literaturas de diversos países (necessida- nica. O romancista, poeta ou dramaturgo, o escritor,
de evidente). doravante, preocupa-se menos em ser fiel às conven-
ções de uma forma bem definida, do que adotar certa essencialmente literário, capaz de ajudar a valorizar
posição diante dos acontecimentos. Seja essa posição ou descobrir traços característicos de psicologia indi- 19
a da duração ou da psicanálise, é necessário, para vidual ou nacional.
mantê-la, submeter-se a certas regras, e descobrimos
que o problema dos gêneros está transposto, mas não d) O destino dos autores
abolido. (p.22) 1. Ponto de partida // A obra de um escritor ou
apenas uma de suas obras;
O interesse das pesquisas sobre o destino dos gê-
neros é, portanto, histórico, mas também atual. Tais 2. Público // O público poderá ser mais ou menos
investigações supõem preenchidas duas condições: extenso; // um país; // um grupo; // um escritor.
um gênero bem definido e um público nitidamente Teremos, dessa maneira, estudos de princípios idênti-
delimitado no tempo e no espaço. cos, mas de extensão e alcance muito diversos.
Outras tarefas:
RELAÇÕES DE CONTATO Relações literá- - Analisar os procedimentos do tradutor;
rias entre autores ou obras, em que intervem em um,
o outro dos dois termos da relação, se não, nos dois de - Seus conhecimentos de língua e de ambientação geral;
- Seus problemas e suas soluções; 2a) Acepção de INFLUÊNCIA:
22 Mais restringido que o primeiro;
- Seus extrapolamentos e sua fidelidade;
Mais encoberto;
- Seu servilismo e sua personalidade; Mais obscurecido pela esfera maior da noção pri-
meira.
- A significação dos matizes que captou e a explicação
histórica e cultural de seu enfoque e de sua interpretação; INFLUÊNCIA Resultado artístico autônomo de
uma relação de contato.
- Estudar em conjunto o resultado do encontro de
duas personalidades e, através delas, de duas culturas RELAÇÃO DE CONTATO Conhecimento di-
diferentes, e a nova ressonância adquirida pela obra reto ou indireto de uma fonte por um autor.
original em sua nova forma desnacionalizada.
“Enquanto resultado autônomo, nos referimos, com
RELAÇÕES DE CONTATO (p. 91 a 100) esta expressão, a uma obra literária, produzida com a
Estudar com atenção: mesma independência e com os mesmos procedimentos
INFLUÊNCIA ≠ Coincidência difíceis de analisar, mas fáceis de reconhecer intuitiva-
mente, da obra literária em geral, ostentando personali-
INFLUÊNCIA ≠ Difusão dade própria, representando a arte literária e as demais
INFLUÊNCIA ≠ Êxito características próprias de seu autor, mas em que se
INFLUÊNCIA ≠ Sorte reconhece, ao mesmo tempo, em grau que pode variar,
consideravelmente, a folha de contato antes assinalada.
A influência, em termos de Literatura Comparada,
tem duas acepções diferentes: Até certo ponto, a influência pode se confundir com a
imitação, assim como, em sua outra acepção, confun-
1ª) A que indica a soma das relações de contato de dia-se, em parte, com a difusão. Neste caso, o matiz
toda classe, que se podem estabelecer entre um emis- que diferencia as duas noções é que a imitação refere-
sor e um receptor. se a detalhes materiais (dentro da pouca materialidade
da obra literária), a rasgos de composição, a episódios,
Exemplos: procedimentos ou imagens bem determinados.
Casos de influência
fantasia verbal, com uma graça, com um estro poético
igualmente inconfundíveis. EMISSOR FONTE
Se houve influência, isto supõe a existência de uma Sobre o problema da terminologia na Literatura
relação de contato, e por conseguinte, de um contato Comparada:
material de Marivaux com a obra de Calderón. A tradução e a imitação têm nomes próprios, mas
Por outro lado, a influência não é como a tradução, quando se trata de influência não tem. Não há nenhum
que se identifica a si mesma. // Não é como a imita- nome particular para indicá-la.
ção, que se reconhece por meio de um simples cotejo
de textos.
Além disso, a dificuldade de chegarmos a um consen- Pode-se dizer, então, que a literatura comparada
so sobre a natureza da literatura comparada, seus obje- compara não pelo procedimento em si, mas porque,
tivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre como recurso analítico e interpretativo, a comparação
o assunto, pois neles encontramos grande divergência possibilita a esse tipo de estudo literário uma explora-
de noções e de orientações metodológicas. Muitos fo- ção adequada de seus campos de trabalho e o alcance
gem a essas questões. Outros dão conta das tendências dos objetivos a que se propõe.
tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Al-
guns tendem a uma conceituação generalizadora. E há Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos com-
ainda os que preferem restringir a determinados aspec- parativos, é um meio, não um fim.
tos o alcance dos estudos literários comparados.
Mas, embora ela não seja exclusiva da literatura com-
Como se vê, não é fácil caminhar nessa “babel”. parada, não podendo, então, por si só defini-la, será seu
emprego sistemático que irá caracterizar sua atuação.
E o sentido da expressão “literatura comparada”
complica-se ainda mais ao constatarmos que não No entanto, ainda que já se esteja tentando abrir
existe apenas uma orientação a ser seguida, que, por clareiras no emaranhado das definições, não convém
vezes, é adotado um certo ecletismo metodológico. adiantá-las. Espera-se que elas surjam naturalmente
Em estudos mais recentes, vemos que o método (ou das considerações posteriores.
métodos) não antecede à análise, como algo previa-
mente fabricado, mas dela decorre. Aos poucos torna- Vamos, agora, retroagir na trajetória dos estudos
se mais claro que literatura comparada não pode ser comparados para que se possa compreender como
entendida apenas como sinônimo de “comparação”. a expressão “literatura comparada” começou a ser
empregada, que significados foi adquirindo, até se
Antes de tudo, porque esse não é um recurso exclu- difundir amplamente com as acepções que hoje lhe
sivo do comparatista. Por outro lado, a comparação damos”. (CARVALHAL, 1986: 5-7)
não é um método específico, mas um procedimento
mental que favorece a generalização ou a diferen-
ciação. É um ato lógico-formal do pensar diferen- Breve História
cial (processualmente indutivo) paralelo a uma
atitude totalizadora (dedutiva). “O surgimento da literatura comparada está vincula-
do à corrente de pensamento cosmopolita que caracte-
rizou o século XIX, época em que comparar estruturas
Comparar é um procedimento que faz parte da es-
ou fenômenos análogos, como finalidade de extrair leis
trutura de pensamento do homem e da organização da
gerais, foi dominante nas ciências naturais.
cultura. Por isso, valer-se da comparação é hábito gene-
ralizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo Entretanto, o adjetivo “comparado”, derivado do la-
na linguagem corrente, onde o exemplo dos provérbios tim compatativus, já era empregado na Idade Média.
ilustra a frequência de emprego dos recursos.
Em 1598, Francis Meres utiliza-o no título de seu
A crítica literária, por exemplo, quando analisa uma Discurso comparado de nossos poetas ingleses com
obra, muitas vezes é levada a estabelecer confrontos os poetas gregos, latinos e italianos, e vamos tam-
com outras obras de outros autores, para elucidar e bém encontrá-lo em designações de obras dos séculos
para fundamentar juízos de valor. Compara, então, XVII e XVIII. Em 1602, William Fulbecke publica
não apenas com o objetivo de concluir sobre a nature- Um discurso comparado das leis e, logo depois, sur-
za dos elementos confrontados mas, principalmente, ge a Anatomia comparada dos animais selvagens, de
para saber se são iguais ou diferentes. É bem verdade autoria de John Gregory.
1
ATENÇÃO: No texto (nos parágrafos) de Tânia Franco Carvalhal, não há palavras grifadas em negrito. Os grifos são de responsabilidade da
conteudista deste Instrucional. O objetivo de tais sinalizações é chamar a atenção do estudioso de Literatura Comparada para o conhecimento (ou
reconhecimento) de terminologias especialíssimas e particulares, diferentes das inúmeras nomenclaturas das diversas Teorias e Críticas Literárias.
Mas é, sem dúvida, no século XIX que a difusão do ter- Em Outros Países
mo realmente se dará, sob a inspiração das Lições de ana- 25
tomia comparada, de Cuvier (1800), da História compa- Na Alemanha, parece ter sido Moriz Carrière quem
rada dos sistemas de filosofia, de Degérand (1804), e da adota, pela primeira vez, a expressão “vergleichende
Fisiologia comparada (1833), de Blainville. Literaturgeschichte” (história comparativa da litera-
tura), depois difundida como “vergleichende Litera-
Frequentemente, portanto, nos títulos de obras cientí- turwissenschaft” (ciência comparativa da literatura).
ficas e caracterizando-lhes a orientação, a comparação A intenção de Carrière, que se ocupou da evolução
se transfere para os estudos literários por uma espécie da poesia, era a de integrar a literatura comparada à
de contágio. Na obra Da Alemanha (1800), de Mme. de História Geral da Civilização. (...).
Stäel, a inclinação ao estabelecimento de analogias não só
norteará o espírito da investigação como estará presente Na Inglaterra, cabe a Hutcheson Macaulay Posnett
no subtítulo: “Da literatura considerada em suas relações a primazia do uso da expressão, em1886, num livro
com as instituições sociais”. (CARVALHAL, 1986: 7) teórico, intitulado Comparative Literature.
As noções que examinamos até aqui modificam, Sabemos que o poema de Gonçalves Dias é possivelmen-
sem dúvida, nossa atitude de leitor diante dos textos te uma das “fontes” de inspiração mais constantes na lite-
literários. Sabemos que sua legibilidade será maior se ratura brasileira. Affonso Romano de Sant’Anna comenta
os articularmos com os textos esparsos ou fragmentos a apropriação de “Canção do exílio” por Cassiano Ricar-
perdidos que eles recuperam para consumo próprio. do, por Oswald de Andrade e pelo próprio Drummond, em
“Europa, França e Bahia”. A lista não pararia aí: há Murilo
O conhecimento do que chamaríamos seus “arquéti- Mendes, Mário Quintana e ainda outros, inclusive um pro-
pos”, portanto, amplia os significados que lhes possa- sador que se aventura na métrica e compõe sua “Canção
mos atribuir. Desse modo, ao lermos um texto, estamos do exílio”, Dalton Trevisan, em Carnaval de sangue.
lendo, através dele, o gênero a que pertence e, sobretudo,
os textos que ele leu (aí não exclusivamente literário). Mas a intenção não é aqui de rasteio. É de leitura inter-
textual. Vemos que um poema lê outro e queremos saber
Para exemplificar, vejamos como procedeu Carlos como e por quê. (...)”. (CARVALHAL, 1986: 54 - 55)
Por outro lado, a visão cosmopolita do século XIX Como se pode observar a palavra-chave (...) é “in-
incentivou viagens e encontros entre grandes pensado- fluência”, conceito que ocupará um importante lugar
2
Nota 3 de Sandra Nitrini: Chasles apud Bassnett, 1993, p. 13.
na literatura comparada como instrumento teórico e Relação dos Capítulos do Livro de Sandra Nitrini:
28 como direção dos estudos comparatistas, sobretudo,
da primeira metade do século XX e que, também, será Capítulo 1: Percursos Históricos e Teóricos
alvo de profundas críticas a partir dos anos 50. • Origens (p. 19-23);
• Ponto de partida: Paul Van Tieghem (p. 23-27);
Ao se referir ao espírito de uma nação ou de um povo • Outras definições (p. 27-32);
e sugerir que é possível delinear-se como o mesmo
• Metodologia da tendência francesa (p. 32-34);
pode influenciar o escritor de uma outra cultura, Phila-
• René Wellek e o comparativismo americano (p. 34-36);
rète Chasles o faz, numa das primeiras tentativas de de-
• Legitimidade e alcance humano da literatura com-
finir a literatura comparada, sob o signo de uma pintura
parada (p. 36-39);
idealista da harmonia literária internacional, bem em
consonância com a mentalidade cosmopolita da época, • O comparativismo de René Etiemble (p. 39-44);
cultivada para contrabalançar as tendências acerca das • O comparativismo do leste europeu (p. 44-54);
interiorizações, próprias de um contexto de criação de • A crise da literatura comparada nos anos 80 (p. 54-59);
nações. Convém lembrar que o termo “literatura com- • Uma crise no comparativismo universal? O com-
parada” surgiu justamente no período de formação das parativismo pós-europeu (p. 59-63);
nações, quando novas fronteiras estavam sendo erigidas • O comparativismo latino-americano (p. 63-89);
e a ampla questão da cultura e identidade nacional es- • O paradigma tipológico e genético-contatual dos
tava sendo discutida em toda a Europa. Portanto, desde anos 80 (p. 59-104);
suas origens, a literatura comparada acha-se em íntima • A teoria do polissistema (p. 104-117);
conexão com a política.” (NITRINI, 2000: 19 - 21) • Uma disciplina indisciplinada (p. 117-123).
“Como dizia Ruth Benedict, não se deve montar “Os anos 80 foram decisivos para o estatuto ins-
um Frankenstein cultural, feito de pedaços tomados titucional da literatura comparada no Brasil. Em
isoladamente a culturas quaisquer. Do mesmo modo, 1986, foi criada em Porto Alegre a Associação
não se pode, por exemplo, fazer literatura comparada Brasileira de Literatura Comparada — Abralic
tomando (digamos) a função do dinheiro em Macha- — por ocasião do I Seminário Latino-Americano
do de Assis, em Dostoiévski e em Balzac, e efetuar de Literatura Comparada. A Universidade Fede-
um confronto puro e simples, pois seria produzir um ral do Rio Grande do Sul acolheu também o I
Frankenstein crítico. É preciso considerar a obra de Congresso da Associação Brasileira de Literatu-
Machado como um todo e ver de que maneira o di- ra Comparada, em 1988. Ainda nessa década, a
nheiro funciona nela. Certamente funcionará de ma- Universidade Federal de Minas Gerais foi sede de
neira diversa nas de Dostoiévski e Balzac, vistas tam- dois simpósios de literatura comparada. Convém
bém como totalidades em que ele se insere. Só a partir lembrar também a publicação do livro Literatura
daí será possível proceder a comparação”. (Antônio Comparada, de Tânia Franco Carvalhal, em 1986,
Cândido, In: NITRINI, Sandra. Literatura Compara- numa coleção de divulgação, destinada a estudos
da. S. P.: USP, 2000: 183 - Epígrafe do cap. 3) universitários.
Tais dados circunstanciais cristalizam um momento oni (professor da PUC de São Paulo e da Faculdade de
importante da história da institucionalização da lite- Filosofia, Ciências e Letras do Instituto Mackenzie). 29
ratura comparada no Brasil, cujas origens situam-se Com intenções declaradamente didáticas, este autor se
entre 1950 e 1960, quando foi introduzida no curri- propôs a buscar um caminho intermediário entre a crí-
culum dos cursos de Letras. Inicialmente, nas univer- tica histórica e a crítica estética para fazer seu “esboço
sidades dos estados da Guanabara e São Paulo, graças geral de uma história comparada das literaturas”, mar-
às sugestões e aos esforços dos professores La Fayet- cando sua posição crítica com relação aos “estudos de
te Cortes e Antônio Cândido, respectivamente. Tal literaturas comparadas” da primeira metade de nosso
iniciativa foi seguida, depois, por outras instituições. século [século XX], submetidos exageradamente aos
limites das indagações da crítica histórica, embora re-
Essas informações demasiado factuais nos permitem conheça sua utilidade “para o completo conhecimento
ver que a institucionalização da literatura comparada dos problemas filológico-literários”.
no Brasil ocorreu justamente nos anos em que vozes
contrárias à direção da chamada “escola francesa” (...)
começavam a se fazer ouvir; entre as quais, as mais
conhecidas foram aquelas que se manifestaram no II A literatura comparada como um campo específico
Congresso da Associação Internacional de Literatura de estudos acadêmicos só tomou impulso nos anos
Comparada, em Chapel Hill, em 1958. 70, com a produção universitária nos cursos de pós-
graduação, tanto no âmbito da área de Teoria Literária
Antes da introdução da literatura comparada, como e Literatura Comparada como no das literaturas estran-
disciplina, na Universidade já havia, entretanto, in-
geiras da Universidade de São Paulo e de programas
formalmente, muito estudo nesse campo. Afrânio
de outras universidades, como os da PUC de São Paulo
Peixoto desenvolveu atividade nesse sentido, sobre-
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa
tudo porque foi o introdutor do conceito de pré-ro-
mantismo em nossos estudos literários, situando em época, tomou corpo junto à disciplina de Língua e Li-
razão dele as poesias de José Bonifácio e Borges de teratura Francesas da FFLCH da USP o projeto Léryy-
Barros, em estudo que publicou em 1940. Assu, dirigido pela professora Leyla Perrone-Moisés,
cujo objeto central era estudar as marcas da França na
A primeira tese de literatura comparada na Univer- Literatura Brasileira. Este constitui apenas um dentre
sidade de São Paulo (USP), Origens e Evolução dos muitos casos de interesse pelos estudos comparatistas,
Temas da Primeira Geração de Poetas Românticos no domínio das disciplinas de literaturas estrangeiras.
Brasileiros, foi apresentada por Antônio Sales Cam-
pos para concurso à cátedra de Literatura Brasileira, Ainda nessa época, os cursos de literatura comparada
em 1945. Partindo de eixos temáticos como o patriotis- na área de Teoria Literária e Literatura Comparada da
mo, o lirismo religioso, a natureza, as ruinas, o lirismo USP ficaram a cargo da professora Onédia Barboza, que
amoroso, o indianismo e o medievalismo, o autor refaz pertencia à disciplina de Língua e Literatura Inglesas.
a história da produção literária da primeira geração de Posteriormente, essa mesma área passou a contar com a
poetas românticos, na perspectiva do mais tradicional colaboração dos professores Boris Schnaiderman e Au-
comparatismo francês, como se pode inferir do título rora Bernadini, de Língua e Literatura Russas.
da tese. Perspectiva plenamente justificada pela época
em que foi escrita. Nesta tese se aliam a historiogra- É nessa década, também, que a bibliografia teórica
fia literária e a busca das fontes e influências, sempre brasileira sobre literatura comparada inclui um artigo
comprovadas por meio do cotejo de textos. sucinto, porém esclarecedor, sobre o comparatismo:
“Conceitos e Vantagens da Literatura Comparada”,
(...).
de Afrânio Coutinho.
Outro estudioso que se dedicou à literatura compara-
Independentemente de seu estatuto institucional, a
da nos anos 40 foi Fidelino Figueiredo, que publicou
no único número da Revista USP um alentado artigo literatura comparada existe no Brasil há muito tempo:
de cunho comparatista, “Shakespeare e Garrett”, di- desde que se começou a refletir sobre a formação da
recionado pela idéia de que o “desenvolvimento his- Literatura Brasileira e sobre a criação de um projeto
tórico e episódio particular” de cada literatura ocorre de literatura nacional. Em outras palavras, desde que
no contexto da “solidariedade geral”, que é “a base da os intelectuais e escritores da antiga colônia de Por-
crítica comparativa e da literatura comparada”. tugal começaram a tomar consciência da necessidade
de se pôr em busca de sua identidade. (...).
(...)
(...)
Em 1949, apareceu um livro voltado para um públi-
co universitário: Literatura Universal. Esboço geral No âmbito da crítica literária, a literatura comparada
de uma história comparada das literaturas, de J. D. Le- também está presente há muito tempo como postura
analítica. Um dos mais antigos estudos de literatura ra, filiado aos ensinamentos dos franceses. O primei-
30 comparada no Brasil é o ensaio “Traços de Litera- ro foi publicado em 1956 e o segundo, em 1964.
tura Comparada do Século XIX”, de Tobias Barreto,
publicado em 1887, no qual se encontram diferentes A pobreza bibliográfica em literatura comparada,
análises de vários aspectos dos estudos comparados, naquela época, não significava, necessariamente, que
de acordo com a orientação do comparatista dinamar- os intelectuais brasileiros desconhecessem o que se
quês George Brandes, lido em tradução alemã. (...) passava na cena internacional. Mas, como do ponto
de vista institucional a literatura comparada no Brasil
(...) era recém-nascida, os trabalhos realizados não tinham
como finalidade questionar nem a “escola francesa”
João Ribeiro, em Páginas de Estética, dedicou um nem a “escola americana” e muito menos construir
curto artigo à literatura comparada, em 1905, no qual um “modelo comparatista”, a partir de seu contexto.
deixa clara sua opção por explorar as relações entre
os estratos culto e popular. (...) (...)
José Veríssimo, Augusto Meyer, Brito Broca, Sérgio “Antônio Cândido introduziu a literatura compara-
Milliet, Tristão de Ataíde, Álvaro Lins em diversos mo- da na Universidade de São Paulo em 1962, quando
mentos de suas obras críticas, Otto Maria Carpeaux em propôs que a disciplina de Teoria Literária se trans-
História da Literatura Ocidental e em vários ensaios formasse em Teoria Literária e Literatura Comparada,
dispersos, Eugênio Gomes, “o primeiro comparatista com o objetivo de assegurar um espaço institucional a
propriamente dito na crítica brasileira ... sem nenhum este domínio dos estudos literários. Fundou e dirigiu
liame universitário nem etiqueta profissional”3 em um círculo de estudos de Literatura Comparada, de
vários trabalhos na imprensa e em Machado de Assis 1962 a 1964, orientando dissertações de mestrado e
— Influências Inglesas (1939) incorporado a Espelho teses de doutoramento de literatura comparada.
contra Espelho (1949), entre outros, contribuíram de
modo especial para a formação de uma tradição crítica O perfil comparatista de Antônio Cândido não se li-
direcionada pelo comparatismo. (...). mita, entretanto, às atividades docentes. Sua vasta obra
crítica e histórica oferece reflexões e interpretações
(...) que representam profundas contribuições para o pensa-
mento comparatista brasileiro e latino-americano. De
Na década de 1960, a bibliografia teórica dispunha modo que até o presente não surgiu, entre nós, nenhum
de apenas dois livros ligados à literatura comparada estudioso que nos oferecesse uma obra tão ampla, den-
como área de estudos literários sistematizada: a tradu- sa, coerente e atual como a sua, em termos de uma só-
ção de La Littérature Comparée, de Marius Guyard, e lida contribuição para a literatura comparada no Brasil
o manual Literatura Comparada, de Tasso da Silvei- e na América Latina”. (NITRINI, 2000: 194-195)
3
Nota 27 de Sandra Nitrini: Cf. Candido, op.cit., 1988b, p. 19.
1.6 - Textos Poéticos para Comparação
31
Canção do Exílio Canção do Exílio
Gonçalves Dias (Coimbra, julho, 1843, Primeiros Casimiro de Abreu (Lisboa, Primaveras, 1859)
Cantos)
Eu nasci além dos mares:
Kennst du das Land, wo dieCitronen blühen Os meus lares,
4
Citação (epígrafe): versos do poema “Mignon Lied”, de Goëthe. Tradução livre: Conheces o país onde florescem as laranjeiras? /
Ardem na escura fronde os frutos de ouro... / Tu o conheces? Para lá, para lá eu quisera ir.
Hino Nacional Brasileiro (Trecho) (1) Gaturamos: pássaros ornamentais.
32 (2) Monistas: adeptos da doutrina filosófica que considera que
o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade.
Osório Duque Estrada (1909) (3) Cubistas: representantes da tendência artística européia,
surgida no começo do século XX, cujo maior expoente foi o
Do que a terra mais garrida pintor espanhol Pablo Picasso.
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida no teu seio mais amores. Ainda Irei a Portugal
Cassiano Ricardo (Um dia depois do outro)
Canto de Regresso à Pátria
Nunca fui a Portugal.
Oswald de Andrade (Pau-Brasil, 1925) Não foi por falta de querer.
Nem por perder meu lugar,
Minha terra tem palmares Que este bem guardado está.
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui Dificuldades de vida...
Não cantam como os de lá. Contratempos de memória...
Certas questões de prosódia
Minha terra tem mais rosas e outros pequenos abismos
E quase que mais amores postos entre mim e o Atlântico
Minha terra tem mais ouro até que algum dia eu vá.
Minha terra tem mais terra.
Não conheci meu avô.
Ouro terra amor e rosas Senão de fotografia.
Eu quero tudo de lá Não ouvi, senão em sonho,
Não permita Deus que eu morra o canto da cotovia.
Sem que volte para lá.
No entanto, talvez lirismo,
Não permita Deus que eu morra ─ lirismo da hora H ─
Sem que volte pra São Paulo ah! que saudade que eu sinto
Sem que veja a Rua 15 de tudo que ficou lá.
E o progresso de São Paulo.
Fui marujo, com certeza,
Canção do Exílio pois tenho alma azul-marinha.
Vim pro Brasil tão futuro
Murilo Mendes (Poemas, 1930) que nunca soube que vinha.
Puis, quand je croy ma joye estre certeine A graça dessa luz não na compreende
Et estre au haut de mon desiré heur, Quem, qual ao Sol, a vós seus olhos vira,
Il me remet en mon premier malheur. Que o cego Amor, que cego deles tira,
Com vossos próprios raios a defende.
Vocabulário
Amor e Medo (Trecho)
Urzes = Designação comum a diversas plantas eu-
Casimiro de Abreu (1839 – 1860)
ropeias da família das ericácias; Em Portugal, torgo.
Quando eu te fujo e me desvio cauto Escarpa = Ladeira íngreme.
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“─ Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!” Soneto XVII
Obras:
Afonso Arinos de Melo Franco • Tropas e Boiadas, 1917;
• Obras Completas, 1950.
(Paracatu, Minas Gerais, 1868 – Barcelona, 1916). (BOSI, 1996-1999: 215)
Obras: A vida dos tropeiros goianos encontrou seu narrador no malogra-
• Pelo Sertão, 1898; do Hugo de Carvalho Ramos, jovem hipersensível que morreu
• Os Jagunços, 1898; suicida aos vinte e seis anos. Seus contos, reunidos em Tropas e
• Lendas e Tradições Brasileiras, 1917; Boiadas, revelam plena aderência aos mais variados aspectos da
• O Mestre de Campo, 1918; natureza e da vida social goiana que reponta vigorosa em toda
• Histórias e Paisagens, 1921. parte, não obstante certa estilização preciosa a que, aliás, dificil-
mente poderia subtrair-se o adolescente inseguro recém-vindo da
(BOSI, 1996: 207).
província para a Capital (BOSI, 1996: 215).
Afonso Arinos é o primeiro escritor regionalista de real impor-
tância a considerar nesse período. Histórias e quadros sertanejos
constituem o grosso de seu livro Pelo Sertão. Não se lhe pode Valdomiro Silveira
negar brilho descritivo, não obstante a minudência pedante e
não raro preciosa da linguagem (...) (BOSI, 1996-1999: 209). (Goiás, Estado de Goiás, 1895 – Rio de Janeiro, 1921).
É verdade que se apresentaram contradições na ideo- Antecipando “as transformações trazidas pelo ma-
logia de Lima Barreto: o iconoclasta de tabus detestava nifesto modernista e a Semana de 22”, sua obra cons-
algumas formas típicas de modernização que o Rio de titui-se no “mais fértil material sobre a cidade do Rio
Janeiro conheceu nos primeiros decênios do século: o de Janeiro nas duas primeiras décadas deste século
cinema, o futebol, o arranha-céu e, o que parece grave, [século XX], interessando igualmente a historiadores,
a própria ascensão profissional da mulher! Chegava, antropólogos, urbanistas e folcloristas”.
às vezes, a confrontar o sistema republicano desfavo- (João Carlos Rodrigues. In: www.cervantesvirtual.
ravelmente com o regime monárquico no Brasil. com/portal/FBN/biografias)
Obras: Obras:
• A Morte de DJ em Paris, 1971; • Nascimento de Uma Mulher (contista), 1966;
• O dia em que Hernest Hemingway morreu, 1978; • Uma Certa Felicidade, 1976;
• Sangue de Coca-Cola, 1980; • Os Venenos de Lucrecia (contos), 1978;
• Quando fui morto em Cuba, 1982; • O Último Verão de Copacabana, 1985;
• Hitler manda lembranças, 1984; • O Jogo do Ifá, 1980;
• Ontem à Noite era Sexta-Feira, 1988; • Atire em Sofia, 1989;
• Hilda Furacão, 1991; • O Caso Alice (romance) 1991;
• Inês é morta, 1993; • Rainhas do Crime, Ótica Feminina no Romance
• O Homem que Subornou a Morte e Outras Histórias, Policial (ensaio), 1994;
1993; • Os Seios de Pandora, Uma Aventura de Dora Dia-
• Magalhães: Navegando Contra o Vento, 1994; mante, 1998.
• O Cheiro de Deus, 2001;
• Dia de São Nunca à Tarde (publicação póstuma); (Conferir: www.geocities.com)
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, — Nada menos de duas almas. Cada criatura humana
várias questões de alta transcendência, sem que a dis- traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para
paridade dos votos trouxesse a menor alteração aos fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se
espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros,
sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o
misteriosamente com o luar que vinha de fora. En- charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
tre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um
céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que
atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um
resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina,
do universo. um tambor etc. Está claro que o ofício dessa segunda
alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram qua- completam o homem, que é, metafisicamente falan-
tro os que falavam; mas, além deles, havia na sala do, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
um quinto personagem, calado, pensando, cochilan- naturalmente metade da existência; e casos há, não
do, cuja espórtula no debate não passava de um ou raros, em que a perda da alma exterior implica a da
outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma ex-
mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cin- terior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los
quenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz
não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração."
Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma ex-
um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma po- terior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que
lida do instinto batalhador, que jaz no homem, como a alma exterior não é sempre a mesma...
uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e
os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a — Não?
perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mes-
ma resposta naquela noite, contestou-lha um dos pre- — Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não
sentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com
capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um a qual disse o Camões que morria, e o poder, que
instante, e respondeu: foi a alma exterior de César e de Cromwell. São al-
mas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora
— Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por
exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tar-
este casmurro usou da palavra, e não dois ou três mi- de uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela
nutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus minha parte, conheço uma senhora, — na verdade,
meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco,
dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera;
cada sentença; não só o acordo, mas a mesma dis- cessando a estação, a alma exterior substitui-se por
cussão tornou-se difícil, senão impossível, pela mul- outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do
tiplicidade das questões que se deduziram do tronco Ouvidor, Petrópolis...
principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos
pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina — Perdão! Essa senhora quem é?
alguma opinião, — uma conjetura, ao menos.
— Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo
— Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos.
ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sa- Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as
bem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me ca- relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que
lados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e
prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosi- outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom... 49
dade! Tu não és só a alma da civilização, és também
o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que — Espelho grande?
não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco
ruidosa de física e metafísica, é agora um mar mor- — Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza,
to; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a porque o espelho estava na sala; era a melhor peça
ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui da casa. Mas não houve forças que a demovessem
como ele começou a narração: do propósito; respondia que não fazia falta, que era
só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor
— Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de alferes" merecia muito mais. O certo é que todas es-
ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imagi- sas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em
nam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Mi- mim uma transformação, que o natural sentimento da
nha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava- mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria
sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns — Não.
despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escri-
tura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha — O alferes eliminou o homem. Durante alguns
muitos candidatos e que esses perderam. Suponho dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tar-
também que uma parte do desgosto foi inteiramente dou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma
gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a
alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os
olhar-me de revés, durante algum tempo. Em com- olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser
pensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava
com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento do posto, nada do que me falava do homem. A única
me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que en-
tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que tendia com o exercício da patente; a outra dispersou-
morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com
ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, — Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina,
apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe — Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sen-
dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo timentos: os fatos são tudo. A melhor definição do
menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem
alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movi-
tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da mento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como,
moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que ao tempo em que a consciência do homem se oblite-
em toda a província não havia outro que me pusesse rava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores
o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal
alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que obtinham de mim uma compaixão apática ou um sor-
me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava riso de favor. No fim de três semanas, era outro, total-
a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alfe- mente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia
res". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de
ali morava, não me chamava de outra maneira. Era suas filhas, casada com um lavrador residente dali a
o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho!
vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mes- Adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma
mo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim
o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a
o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria
mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos
rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo sen-
mobília era modesta e simples... Era um espelho que ti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao
lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente
o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que
corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de ver- se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos
dade; era a tradição. O espelho estava naturalmente boçais. O alferes continuava a dominar em mim, em-
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em bora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais
parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos débil. Os escravos punham uma nota de humildade
nas suas cortesias, que de certa maneira compensa- era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E
50 va a afeição dos parentes e a intimidade doméstica então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa.
interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era
redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais
alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bo- larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda,
nito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhu-
casar com moça bonita, filha de general; um concerto ma... Riem-se?
de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah
! Pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta — Sim, parece que tinha um pouco de medo.
dos malvados.
— Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria.
— Matá-lo? Mas o característico daquela situação é que eu nem
sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente
— Antes assim fosse. entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era
como um defunto andando, um sonâmbulo, um bo-
— Coisa pior? neco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono
dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão
— Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os da morte, mas por outra. Acho que posso explicar
velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a ne-
próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e as- cessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma
sim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no
quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça meio da família e dos amigos, que me elogiavam o
abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de
toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o
fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mu- de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas
las, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a
três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escra- consciência do meu ser novo e único -porque a alma
vos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente
melhor do que ter morrido? Era pior. Não por medo; da outra, que teimava em não tornar... Não tornava.
juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevi- Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria
dinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne,
horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual
Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira
sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa,
notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o se- nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala.
gundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava
se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião
aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; final- lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo po-
mente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse lítico, um romance, uma ode; não escolhi nada de-
naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia finitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas
já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestí- palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas
gio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur
pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito
não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do via negrejar a tinta e alvejar o papel.
tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem
em toda aquela semana. Minha solidão tomou pro- — Mas não comia?
porções enormes. Nunca os dias foram mais compri-
dos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação — Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas
mais cansativa. As horas batiam de século a século raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegre-
no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, mente, se não fora a terrível situação moral em que
feria-me a alma interior, como um piparote contínuo me achava. Recitava versos, discursos, trechos lati-
da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma nos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas,
poesia americana, creio que de Longfellow, e topei uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia gi-
este famoso estribilho: Never, for ever! — For ever, nástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito
never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei- era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e
me daqueles dias medonhos. Era justamente assim mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme,
que fazia o relógio da tia Marcolina: — Never, for infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pên-
ever!— For ever, never! Não eram golpes de pêndula, dula. Tic-tac, tic-tac...
— Na verdade, era de enlouquecer. va, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um
autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui 51
— Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, des- outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alfe-
de que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. res, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando,
Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era meditando; no fim de duas, três horas, despia-me
um impulso inconsciente, um receio de achar-me um
outra vez. Com este regime pude atravessar mais
e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal
explicação é verdadeira, nada prova melhor a contra- seis dias de solidão sem os sentir...
dição humana, porque no fim de oito dias deu-me na
veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha
achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia descido as escadas.
conjurado com o resto do universo; não me estampou a
figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, som- (Machado de Assis. “O Espelho”)
bra de sombra. A realidade das leis físicas não permite
negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com
os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. O ESPELHO
Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo;
atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que anda- Guimarães Rosa
va; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me
embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto — Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura,
de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando mas experiência, a que me induziram, alternadamente,
para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, de-
mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, sânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me.
tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, Surpreendo-me, porém, um tanto à parte de todos, pe-
afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma netrando conhecimento que os outros ainda ignoram.
coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho
o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a nem tenha ideia do que seja na verdade — um espe-
mesma decomposição de contornos... Continuei a ves- lho? Demais, decerto, das noções de física, com que se
tir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcen-
por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem
dente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive,
capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...
os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo.
— Diga.
— Estava a olhar para o vidro, com uma persistên- Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos,
cia de desesperado, contemplando as próprias feições captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e
derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas sol- o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente
tas, informes, quando tive o pensamento... Não, não imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que
são capazes de adivinhar. espelho? Há os “bons” e “maus”, os que favorecem
e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois
— Mas, diga, diga. não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade
ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os res-
tantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá:
— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a,
as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de
aprontei-me de todo; e, como estava defronte do es-
prevalecerem para as lentes das máquinas objeções
pelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o análogas, seus resultados apoiam antes que desmen-
vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma tem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos
linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda
mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exte- que tirados de imediato um após outro, os retratos
rior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dis- sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca
persa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigí-
espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, vel, distraídos das coisas mais importantes. E as más-
emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois caras, moldadas no rosto? Valem, grosso modo, para
começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas o falquejo das formas, não para o explodir da expres-
não conhece individualmente uns nem outros; en- são, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é dos
fenômenos sutis que estamos tratando.
fim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui
está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era
Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um
antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o es- tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho.
pelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticula- Sem sofisma, refuto-o o experimento, por sinal ainda
não realizado com rigor, careceria de valor científi- so aos primitivos, aqueles povos com a ideia de que
52 co, em vista das irredutíveis deformações, de ordem o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra,
psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis sur- sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de par-
presas. Além de que a simultaneidade torna-se impos- tida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a
sível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam
o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá esca-
de cada um de nós, padecem viciação de origem, de- pado a polarização: luz—treva. Não se costumava ta-
feitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e par os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando
mais. Por começo, a criancinha vê os objetos inver- morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos
tidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes
é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislum-
externos, uma precária visão. Subsistem, porém, ou- brando em seu campo esboços de futuros fatos, não
tras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, será porque, através dos espelhos, parece que o tempo
são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém.
mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para Contava-lhe...
impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógi-
ca, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se — Foi num lavatório de edifício público, por acaso.
da gente... E então? Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado,
avistei... Explico-lhe: dois espelhos — um de parede,
Note-se que meus reparos limitam-se ao capítulo o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício —
dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma
côncavos, convexos, parabólicos — além da possibi- figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau,
lidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele ho-
espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? mem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E
Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos es- era — logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha
pecializados, depois de mental adestramento, vieram que eu algum dia ia esquecer essa revelação?
a construir objetos a quatro dimensões, para isso uti-
lizando pequenos cubos, de várias cores, como esses Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás
com que os meninos brincam. Duvida? de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda
lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes
Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz par-
desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, po- tindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos
rém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diver- falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio:
sões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos
monstrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético
os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar,
espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente;
razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mi- enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas
rou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor im-
fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal parcial, neutro absolutamente. O caçador de meu pró-
ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo prio aspecto formal, movido por curiosidade, quando
Narciso que ele viveria apenas enquanto si mesmo não não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir
se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos. científico. Levei meses.
Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de as-
Também os animais negam-se a encará-los, salvo as túcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha,
críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; a longa obliquidade apurada, as contra-surpresas, a
na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em es- finta de pálpebras, a tocaia com a luz de repente ace-
pelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. sa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo,
Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em
assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido
porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e pa- ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-
tas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio,
— jamais. Que amedrontadora visão seria então o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio
aquela? Quem o Monstro? reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o
senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mes-
Sendo talvez meu medo a revivescência de impres- mo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gen-
sões atávicas? O espelho inspirava receio supersticio- te não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro
do segredo. Se é que de mim não zombassem, para Saiba que eu perseguia uma realidade experimental,
lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, muda- não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa 53
va permanentemente. O senhor, como os demais, não operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no
vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-
constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de
diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí,
as mais necessárias novas percepções. Não vê, como porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as ou-
também não se veem, no comum, os movimentos tras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o
translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que elemento hereditário — as parecenças com os pais e
os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me avós — que são também, nos nossos rostos, um las-
desculpe; mas o senhor me compreende. tro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo
o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria
Sendo assim, necessitava eu de transverberar o em- ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes,
buço, a travisagem daquela máscara, a fito de devas- o que ressaltava das desordenadas pressões psicoló-
sar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. gicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras,
Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me materializa ideias e sugestões de outrem; e os efême-
seguras inspirações. ros interesses, sem sequência nem antecedência, sem
conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para
Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por
externo diversas componentes, meu problema seria o seu valor nominal.
de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamen-
to perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as À medida que trabalhava com maior mestria,
mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior signifi- no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema pers-
cado. Tomei o elemento animal, para começo. pectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos
de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e
Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, francamente cavernoso, como uma esponja. E es-
relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe curecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com
de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será
teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o se-
Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com nhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom
caras e cabeças ovinas ou equinas, por exemplo, basta- para confidência tão humana, em nota de fraqueza
lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terên-
para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior cio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam
na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, justamente com um espelho, rodeado de uma ser-
então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, pente, a Prudência, como divindade alegórica. De
aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo,
recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto. por meses, de me olhar em qualquer espelho.
Releve-me não detalhar o método ou métodos de Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se
que me vali, e que revezavam a mais buscante aná- aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo tre-
lise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as eta- cho, é sempre tranquilo. E pode ser, não menos, que
pas preparatórias dariam para aterrar a quem menos encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Descul-
pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor pe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo
não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente
não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não
“exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o
e pensadores incréus que os cultivam, para aprofun- sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamen-
darem-se na capacidade de concentração, de par com te tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em
a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física.
recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de Eu era — o transparente contemplador?... Tirei-me.
luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.
na obscuridade. Só a uma expediência me recusei,
por medíocre senão falseadora, a de empregar outras Com que, então, durante aqueles meses de repouso,
substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exerci-
era principalmente no modus de focar, na visão par- tara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada.
cialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os
não-vendo. Sem ver o que, em meu rosto, não passa- meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me
va de reliquat bestial. Ia-o conseguindo? espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura gradual- menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca
54 mente simplificada, despojara-me, ao termo, até à compreenderá?
total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria
em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de tal-
Seria eu um... desalmado? Então, o que se me fingia vez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo
de um suposto eu, não era mais que, sobre a persis- o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e
tência do animal, um pouco de herança, de soltos ins- mundo o plano — intersecção de planos — onde se
tintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se completam de fazer as almas?
de influências, e tudo o mais que na impermanência
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e
se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a
séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo
face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que
E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? De-
que as crianças — o espírito do viver não passando de pois, o “salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque
ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem
a esperança e a memória. de toque e timbre novos as comuns expressões, amorte-
cidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com
Mas, o senhor estará achando que desvario e de- a simples pergunta: — “Você chegou a existir?”
soriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o
transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída
a concepção de vivermos em agradável acaso, sem
alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me
pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do se-
prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria nhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se
mais que reles obsessão autossugestiva, e o despropó- digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo,
sito de pretender que psiquismo ou alma se retratas- mas companheiro no amor da ciência, de seus trans-
sem em espelho... viados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião RUBIÃO, Murilo. “O Convidado”. In: O Convida-
de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não do [contos]. São Paulo: Ática, 1988: 16 - 25.
rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um
COUTINHO, Sônia. O caso Alice.
certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o
tênue começo de um quanto como uma luz, que se ATENÇÃO: Pesquisar a temática “espelho” em ou-
nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, tros autores, nacionais e estrangeiros.
radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já es-
taria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela,
que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, A SOCIEDADE
surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.
Alcântara Machado
São coisas que se não devem entrever; pelo menos,
além de um tanto. São outras coisas, conforme pude — Filha minha não casa com filho de carcamano!
distinguir, muito mais tarde — por último — num es-
pelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e
aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas.
Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto;
não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou
o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José
emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e
abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de saiu de casa abotoando o fraque.
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri As meninas de ancas salientes riam porque os rapa-
Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço. zes contavam episódios de farra muito engraçados. O 55
professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa
O Lancia passou como quem não quer. Quase para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone:
parando. turururu-turururum!
A mão enluvada cumprimentou com o chapéu — Meu pai quer fazer um negócio com o seu.
Borsalino.
— Ah, sim?
Uiiiiia-uiiiiia! Adriano Meli calcou o acelerador.
Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Pas- Cristo nasceu na Bahia, meu bem...
sou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Ou-
tra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave
a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C Le Bom, mas a destra espalmada do catedrático o en-
sabe: uiiiiia-uiiiiia! gasgou. Alegria de vozes e sons.
— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais? — Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pe-
dir a mão da Teresa para o filho, você aponte o olho
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pom- da rua para ele, compreendeu?
peando na rua. Vestido de Camilo, verde, grudado à
pele, serpejando no terraço. — Já sei, mulher, já sei.
— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando (OLIVEIRA, Antônio Castilho Alcântara Machado de.
ele chegar! Brás, Bexiga e Barra Funda. In: NOVELAS PAULIS-
TANAS. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975: 25)
— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!
— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade. Folgado, finório, malandreco, vive de férias. Não
pode ver mulher bonita, perdulário, superficial e fes-
— Não! tivo até as vísceras. Adjetivação vazia... E só ideia
genérica, balela, não passa de carimbo.
— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando
me viu. Gosto de lembrar aos sabidos, perdedores de tempo
e que jogam conversa fora, que o lugar mais alegre
... mas a história se enganou! do Rio é a favela. É onde mais se canta no Rio. E, aí,
o carioca é desconcertante. Dos favelados nasce e se NATAL NA BARCA
56 organiza, como um milagre, um dos maiores espetá-
culos de festa popular do mundo, o Carnaval. Lygia Fagundes Telles
O carimbo pretensioso e generalizador se esquece Não quero nem devo lembrar aqui por que me encon-
de que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul trava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silên-
badalada — de Copacabana ao Leblon. Setenta e cin- cio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na
co por cento da população carioca moram na Zona embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passa-
Centro e Norte, no Rio esquecido. E lá, sim, o Rio geiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vaci-
fica mais Rio, a partir das caras não cosmopolitas e se lante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
o carioca coubesse no carimbo que lhe imputam não
se teriam produzido obras pungentes, inovadoras e O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de com-
universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo Perei- prido no banco, dirigira palavras amenas a um vizi-
ra, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho... nho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada
Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em
de se driblarem os percalços. panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo man-
to escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto
Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; de uma figura antiga.
os botequins, universidade. Algumas frases apanha-
das lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas
como aparentes tipos-a-esmo: já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele
instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra.
“Está ruim pra malandro” - o advérbio até está oculto. Nem combinava mesmo com uma barca tão despo-
jada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo.
“Quem tem olho grande não entra na China”. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada,
não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a em-
“A galinha come é com o bico no chão”. barcação ia fazendo no rio.
“Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”. Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acen-
di um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos
“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na como mortos num antigo barco de mortos deslizando
panela”. na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
“Não leve uma raposa a um galinheiro”. A caixa de fósforos escapou-me das mãos e qua-
se resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la.
“Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me
mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
“Há duas coisas em que não se pode confiar. Quan-
do alguém diz “deixe comigo” ou “este cachorro — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
não morde”.
— Mas de manhã é quente.
“Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque”.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e
“Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”. me observava com um meio sorriso. Sentei-me no
banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraor-
“A vida é do contra: você vai e ela fica”. dinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (po-
bres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas
Como filosofia de vida ou não, vivendo numa cidade de uma certa dignidade.
em que o excesso de beleza é uma orgia, convivendo
com grandezas e mazelas, o carioca da gema é um dos — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me
poucos tipos nacionais para quem ninguém é gaúcho, encarando.
paraibano, amazonense ou paulista. Ele entende que
está tratando com brasileiros. — Quente?
(Conferir: OLIVEIRA, Antônio Castilho Alcântara — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que
Machado de. Brás, Bexiga e Barra Funda. In: NOVE- lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse
LAS PAULISTANAS. Rio de Janeiro: José Olympio, sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas
1975: 25) bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma
E respondi com uma outra pergunta: loucura fazer a primeira pergunta porque agora não 57
podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos co-
— Mas a senhora mora aqui perto? municantes.
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas — Há muito tempo? Que seu marido...
vezes, mas não esperava que justamente hoje...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão
A criança agitou-se, choramingando. A mulher aper- bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga
tou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a
xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que aca-
cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exalta- bei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto.
das sobre o xale preto, mas o rosto era sereno. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs,
tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi
— Seu filho? trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão,
eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêuti- adeus através da tela de arame da porta, me lembro
co de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver nin-
mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas piorou de guém falar comigo com aquela tela no meio... Mas
repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tar-
abandonar. dinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha
mãe numa casa que alugamos perto da minha escoli-
— É o caçula? nha. Sou professora.
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mes-
altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. ma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas
desgraças com tamanha calma, num tom de quem re-
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. lata fatos sem ter realmente participado deles. Como
Subiu no muro, estava brincando de mágico quando se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos
de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar
foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos
Tinha pouco mais de quatro anos. braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante.
Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsci-
grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcan- ência? Uma certa irritação me fez andar.
cei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo de-
vagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho — A senhora é conformada.
que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— E esse? Que idade tem?
— Deus — repeti vagamente.
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, incli-
nando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão — A senhora não acredita em Deus?
alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro
que não saía nada, mas era muito engraçado... A últi- — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da
ma mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrin- minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me.
do os braços. E voou. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela seguran-
ça, daquela calma. Era a tal fé que removia monta-
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem nhas...
lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços
humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira Ela mudou a posição da criança, passando-a do
evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças ombro direito para o esquerdo. E começou com voz
para rompê-los. quente de paixão:
— Seu marido está à sua espera? — Foi logo depois da morte do meu menino. Acor-
dei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora,
— Meu marido me abandonou. enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito lou-
ca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles
58 onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pe- olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bo-
dindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto cejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei
de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais olhando sem conseguir falar.
uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um ins-
tante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola
fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não no braço.
sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apa-
receu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas
com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão
o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela de-
me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro sapareceu na noite.
e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que
acordei rindo também, com o sol batendo em mim. Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim
retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invi-
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e sível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me
em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levan- ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de
tei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio.
O menino estava morto. Entrelacei as mãos para do- (Conferir: TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. )
minar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe
continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas
ele estava morto. A PARTIDA
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atro- Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arru-
peladamente, estendendo a mão. mar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte
estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e desafogar-me: passeios, domingos sem missa, traba-
fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. lho em vez de livros, mulheres nas praias, caras no-
Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe vas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que
estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afas- as horas corressem e eu me encontrasse imediatamen-
tou o xale que cobria a cabeça do filho. te na posse de todos esses bens que me aguardavam.
Que as horas voassem, voassem!
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar
agora sem nenhuma febre. Percebi que minha avó não me olhava. A princípio,
achei inexplicável que ela fizesse isso, pois costuma-
— Acordou?! va fitar-me, longamente, com uma ternura que inco-
modava. Tive raiva do que me parecia um capricho e,
Ela sorriu: como represália, fui para a cama.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, de- Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha,
vagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao
tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me
nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: um instante à beira da cama. Minha avó continuava
manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algu-
fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de mas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe
talheres, de xícaras. adeus?
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa co-
berta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, des-
— Acordado? cobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não
era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera
de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ain- houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ra-
da hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, lhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-
beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei- se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
lhe as costas.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos
rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas ima- imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua
gens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-
barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci.
desagradável — imagens de febre. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça.
inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais pa- Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de apro-
recia um anúncio de morte. As horas passavam, can- ximação, decerto na esperança de um abraço final.
tavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei
as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta
passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e para dois, com a humilde louça dos grandes dias e
os relógios. Deitei-me. a velha toalha branca, bordada, que só se usava em
nossos aniversários).
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu:
minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu (Conferir: LINS, Osman. Os Gestos. São Paulo:
quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando Melhoramentos, 1975: 190-193)
e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? —
perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conse-
lhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por FELIZ ANIVERSÁRIO
um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e
chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Clarice Lispector
Mas eu não me parecia em nada com um morto, se-
não no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia A família foi pouco a pouco chegando. Os que vie-
morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse ram de Olaria estavam muito bem vestidos porque
em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no a visita significava ao mesmo tempo um passeio a
quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-mari-
nho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçan-
Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os do a barriga sem cinta. O marido não veio por razões
soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua
sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci. mulher para que nem todos os laços fossem cortados
— e esta vinha com o seu melhor vestido para mos-
Acordei pela madrugada. A princípio com tranquili- trar que não precisava de nenhum deles, acompanha-
dade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. da dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo,
Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas en-
um fósforo: passava das três. Restavam-me, portan- gomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e
to, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cin- pela gravata.
Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante ofensas passadas não via um motivo para desfitar de-
60 morava — disposto cadeiras unidas ao longo das pa- safiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José
redes, como numa festa em que se vai dançar, a nora e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou
de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava
aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emude- como se todos tivessem esperado embaixo o momen-
ceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultraja- to de, em afobação de atraso, subir os três lances de
da. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, escada, falando, arrastando crianças surpreendidas,
e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas enchendo a sala — e inaugurando a festa.
de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo pen-
teado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de Os músculos do rosto da aniversariante não a in-
pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido terpretavam mais, de modo que ninguém podia sa-
azul-marinho e com os paetês. ber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira.
Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a morena. Parecia oca.
babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única
mulher entre os seis irmãos homens e a única que, — Oitenta e nove anos, sim senhor!, disse José, fi-
estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo lho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oi-
para alojar a aniversariante — e como Zilda estava tenta e nove anos, sim senhora!, disse esfregando as
na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes mãos em admiração pública e como sinal impercep-
e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada tível para todos.
com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de
Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar- Todos se interromperam atentos e olharam a aniver-
se com o bebê para não encarar a concunhada de Ola- sariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a
ria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta. cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano
vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que família toda. Sim senhor!, disseram alguns sorrindo
fazia hoje oitenta e nove anos. timidamente.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, en- — Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era só-
chera-a de guardanapos de papel colorido e copos de cio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e ner-
papelão alusivos à data, espalhara balões sungados voso, e todos riram, menos sua esposa.
pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy
Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!” No centro A velha não se manifestava.
havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar
o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum.
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de
brincar no vizinho para não desarrumar a mesa. jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos
— nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversarian- para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria
te logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a aniversariante pudesse realmente aproveitar consti-
presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe tuindo assim uma economia: a dona da casa guardava
um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele os presentes, amarga, irônica.
seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde
as duas horas a aniversariante estava sentada à cabe- — Oitenta e nove anos!, repetiu Manoel aflito,
ceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa. olhando para a esposa.
— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe! E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação,
como se hesitando um momento ela toda caísse para a
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante
piscou os olhos. — Que força, segredou a nora de Ipanema, e não
se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente
E quando a mesa estava imunda, as mães enerva- surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
das com o barulho que os filhos faziam, enquanto as
avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então — Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir es-
fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela sas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda
do bolo, uma vela grande com um papelzinho cola- amarga.
do onde estava escrito “89”. Mas ninguém elogiou a
idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de
não estariam pensando que fora por economia de ve- terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de
las — ninguém se lembrando de que ninguém havia prato na mão, insinuando-se em fingidas acotovela-
contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a das de animação, cada um para a sua pazinha.
comida da festa que ela, Zilda, servia como uma es-
crava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos,
acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas,
muita força, entusiasmando com um olhar autoritário com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível
os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de desta, acompanhavam a distribuição com muda inten-
uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar sidade. As passas rolavam do bolo entre farelos se-
alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia cos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem
olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns as passas, acompanhavam atentas a queda.
cantaram em português e outros em inglês. Tentaram
então corrigir: e os que haviam cantado em inglês pas- E quando foram ver, não é que a aniversariante já
saram a português, e os que haviam cantado em portu- estava devorando o seu último bocado?
guês passaram a cantar bem baixo em inglês.
E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela olhava ausente para todos, sorria.
acesa, meditava como junto de uma lareira.
— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios!, res-
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo pondeu José radiante.
da mãe encorajadora, apagou a chama com um único
sopro cheio de saliva! Por um instante bateram pal- — Está certo, está certo!, recolheu-se Manoel con-
mas à potência inesperada do menino que, espantado ciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está
e exultante, olhava para todos encantado. A dona da certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-
casa esperava com o dedo pronto no comutador do lhe rápido pelos músculos da cara.
corredor — e acendeu a lâmpada.
— Hoje é dia da mãe!, disse José.
— Viva mamãe!
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-
— Viva vovó! cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante
piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua famí-
— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido. lia. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se
ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga
— Happy birthday!, gritaram os netos, do Colégio mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais
Bennett. dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos.
E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar,
62 e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os e todas elas com as orelhas cheias de brincos — ne-
piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisne- nhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
tos que não passavam de carne de seu joelho, pensou
de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete — Me dá um copo de vinho!, disse.
anos, era o único a ser a carne de seu coração, Ro-
drigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo
Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intu- imobilizado na mão.
mescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele
seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os ou- — Vovozinha, não vai lhe fazer mal?, insinuou cau-
tros, a aniversariante. Oh! O desprezo pela vida que telosa a neta roliça e baixinha.
falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera
dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e — Que vovozinha que nada!, explodiu amarga a
rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de
tempo devidos com um bom homem a quem, obe- maricas, cornos e vagabundas!, me dá um copo de
diente e independente, ela respeitara; a quem respei- vinho, Dorothy! — ordenou.
tara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe
honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em
aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade se- pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isen-
quer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à tas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifes-
luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? tava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na
O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunis- mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco,
tas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham
sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão.
a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força E olhavam impassíveis.
insuspeita cuspiu no chão.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: as-
— Mamãe!, gritou mortificada a dona da casa. Que tuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressi-
é isso, mamãe!, gritou ela passada de vergonha, e não vos, preparados, todos esperaram pela tempestade.
queria sequer olhar os outros, sabia que os desgra-
çados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse Mas não só a aniversariante não explodiu com a mi-
a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para séria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu
dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, ja- no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se
mais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — nada tivesse acontecido.
Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A
senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamen-
todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos ou- te, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi
tros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e
tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quan- risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro
do ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se momento uníssono com os outros quando a tragédia
estivessem de acordo que a velha não passava agora vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve
de uma criança. que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos
o apoio dos três filhos que agora se misturavam trai-
— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então doramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela
confessando contrita para todos. analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum mode-
lo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar ves-
Todos olharam a aniversariante, compungidos, res- tido preto com colar de pérolas, o que não era moda
peitosos, em silêncio. coisa nenhuma, não passava era de economia. Exami-
nando distante os sanduíches que quase não tinham
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada!
meninos, embora crescidos — provavelmente já além Só comera uma coisa de cada, para experimentar.
dos cinquenta anos, que sei eu! — os meninos ainda
conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
haviam escolhido! E que mulheres os netos — ain- As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas
da mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. com a atenção voltada para dentro de si, à espera de
Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles cola- alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com
res falsificados de mulher que na hora não aguenta um sorriso amável, o estômago cheio daquelas por-
a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os carias que não alimentavam mas tiravam a fome. As
crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e
Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada. 63
já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia,
Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, — Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reu-
suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? nirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se
alguém perguntou com uma curiosidade negligente, de que Jonga é quem fazia os discursos.
indicando-a de longe com a cabeça, mas também não
responderam. Acenderam o resto das luzes para preci- — Da mãe, vírgula!, riu baixo a sobrinha, e a prima
pitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam mais lenta riu sem achar graça.
a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão
pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem — Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais
ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetra- olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio
va pelas janelas como um peso. disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.
— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da des-
levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários pedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José
se ergueram sorrindo. esperando de si mesmo com perseverança e confiança
a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como
cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa
armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas com o lenço — como Jonga fazia falta nessas horas!
palavras propositadamente atropeladas que lhe di- Também fora o único a quem a velha sempre aprova-
ziam tentando dar um final arranco de efusão ao que ra e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E
não era mais senão passado: a noite já viera quase quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele,
totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela pondo um muro entre sua morte e os outros. Esque-
e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já cera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar
estavam histéricas. firme e direto com que desde sempre olhara os outros
filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de
— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, he-
indagava-se a velha nas suas profundezas. roico, risonho.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E de repente veio a frase:
E para aqueles que junto da porta ainda a olharam
uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia — Até o ano que vem!, disse José subitamente com
ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos,
fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem,
com aquela mudez que era a sua última palavra. Com hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.
um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela se-
ria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que es-
a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. pertamente sempre vivia mais um ano.
Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo
sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remé- — No ano que vem nos veremos diante do bolo ace-
dio amava talvez pela última vez: É preciso que se so!, esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoan-
saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que do o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e
a vida é curta. diante do bolo aceso!, disse ele bem explicado, per-
to de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo,
era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para compreendendo a alusão.
nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodri-
go, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela Então ela abriu a boca e disse:
mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma
vez olhou para trás implorando à velhice ainda um si- — Pois é.
nal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante,
enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamen-
uma vez Cordélia quis olhar. te certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os
olhos úmidos:
Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma
velha à cabeceira da mesa. — No ano que vem nos veremos, mamãe!
— Não sou surda!, disse a aniversariante rude, — Até o ano que vem!, repetiu José a indireta fe-
64 acarinhada. liz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos
ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo,
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa pensaram, precisava tomar cuidado com o coração.
tinha dado certo. Até o ano que vem!, gritou José eloquente e grande,
e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas
As crianças foram saindo alegres, com o apetite es-
já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele
tragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingan-
ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além
ça no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas
eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num de alguns pensarem que felizmente havia mais do
prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia que uma brincadeira na indireta e que só no próxi-
menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar mo ano seriam obrigados a se encontrar diante do
trabalho e querer empurrar a velha para as noras — bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escu-
pisado o último degrau, com alívio os convidados se ro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um
encontraram na tranquilidade fresca da rua. Era noite, ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles
sim. Com o seu primeiro arrepio. sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo
menos noventa anos”, pensou melancólica a nora
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, de Ipanema. “Para completar uma data bonita”,
disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos pensou sonhadora.
olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Al-
guns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contin-
à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscu-
ramente que na despedida se poderia talvez, agora sem gências, estava a aniversariante sentada à cabeceira
perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma.
a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte
e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pe- era o seu mistério.
dia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se
separar, andando meio de costas, sem saber como se (Conferir: LISPECTOR, Clarice. Laços de Família.
desligar dos parentes sem brusquidão. Rio de Janeiro: Rocco, 1998: 54-57)
Se você:
1) concluiu o estudo deste guia;
2) participou dos encontros;
3) fez contato com seu tutor;
4) realizou as atividades previstas;
Então, você está preparado para as
avaliações.
Parabéns!
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