Você está na página 1de 13

AGENTES POLÍTICOS: LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA VERSUS

LEI DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE


Ricardo Hoeveler Costa

RESUMO
A aplicabilidade da Lei de improbidade administrativa (LIA) aos agentes políticos
não é assunto pacífico na doutrina e jurisprudência. Este trabalho pretende
demonstrar que, conjuntamente com as leis que disciplinam os crimes de
responsabilidade, a Lei de improbidade administrativa também é aplicável aos
agentes políticos. Estes indivíduos indubitavelmente respondem por atos de
improbidade, logo, a divergência está em definir se a responsabilização deve se
dar com base na Lei dos crimes de reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-
Lei nº 201/67), com base na Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92)
ou em ambas (dualidade de sanções). Através do método hipotético dedutivo e
pesquisa bibliográfica, com enfoque jurisprudencial, ficará evidente a solução
que melhor realiza e fortalece o princípio constitucional da moralidade na
Administração Pública, solução esta, por certo, que deve ser defendida.
Palavras-chave: Agentes políticos. Improbidade administrativa. Crimes de
responsabilidade.
1 INTRODUÇÃO
Ao regulamentar os artigos 37, p. 4º, e 15, inciso V, ambos da Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB), a Lei nº 8.429/92 (LIA) se tornou uma
espécie de “código de conduta” do agente público brasileiro, além de uma
esperança para a população, pois até então inexistia no Brasil instrumento legal
apto a responsabilizar adequadamente os agentes públicos ímprobos (BATISTI,
2015, p. 120).
Anteriormente à Constituição da República de 1988 foi editada a Lei nº 1.079/50,
assim como o Decreto-Lei nº 201/67, diplomas normativos, ambos
recepcionados, que dispõem sobre os crimes de responsabilidade (para os
agentes políticos) e regulam seu respectivo processo e julgamento.
Com o surgimento da Lei de Improbidade Administrativa muito se polemizou
sobre o seu alcance ou não aos agentes políticos. No momento atual, no qual se
busca conferir às normas jurídicas a máxima efetividade no combate à
corrupção, tal polêmica subsiste pertinente, estando ainda indefinida na doutrina
e jurisprudência, como se verá no decorrer do trabalho científico.
Este artigo pretende mostrar que, conjuntamente com as leis que disciplinam os
crimes de responsabilidade, a Lei de Improbidade Administrativa também é
aplicável aos agentes políticos, os quais são uma categoria de agentes públicos
indispensável para o funcionamento da Administração Pública.
De certo, os crimes de responsabilidade possuem natureza política e penal,
portanto, não se confundem com os atos de improbidade administrativa, que
possuem natureza cível, ou seja, natureza extrapenal, o que afasta qualquer
hipótese de ofensa à regra do ne bis in idem. Tais normatividades, nitidamente,
possuem escopos diversos, o que será demonstrado através do emprego de
método hipotético dedutivo e ampla pesquisa bibliográfica.

2 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: CONCEITO E BASE


CONSTITUCIONAL
O termo “improbidade administrativa” pode ser conceituado como instituto
integrante do gênero da imoralidade administrativa, sendo espécie que se define
pela conduta desonesta perpetrada por agente público, conduta esta que pode
lhe proporcionar enriquecimento ilícito, causar lesão ao erário ou atentar contra
os princípios da Administração Pública (ALVARENGA, 2001, p. 86).
Como contraponto, probidade administrativa significa abster-se do
emprego irregular de recursos públicos, do excesso de poder e do desvio de
finalidade, abster-se de causar dano aos negócios da Administração Pública em
prol de particulares, do abuso das prerrogativas inerentes ao cargo público para
obter vantagem ilícita, ou seja, probidade significa o desempenho de qualquer
função pública com honestidade (FIGUEIREDO, 2004, p. 42).
Nessa toada, o dever de probidade administrativa foi previsto claramente no art.
4° da Lei nº 8.429/92:
Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou
hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância
dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e
publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
(BRASIL, 1992, grifos nossos)
Em breve síntese, improbidade administrativa significa o abandono, pelo agente
público, do seu dever de probidade no exercício da função pública, o que é
passível de gerar a responsabilização cabível, nos termos da lei.
Ademais, acerca da improbidade administrativa, que mereceu atenção especial
do poder constituinte originário, existe previsão em vários dispositivos na
Constituição da República de 1988, a saber:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja
perda ou suspensão só se dará nos casos de: [...]
V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de


qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: [...]
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a
suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública,
a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação
penal cabível.
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentem contra a Constituição
Federal e, especialmente, contra: [...]
V - a probidade na administração;

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,


precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente: [...]
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de
responsabilidade, os Ministros de Estado e os
Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica,
ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos
Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e
os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
(BRASIL, 1988, grifos nossos)
Conforme dicção do inciso V do artigo 85 da CRFB, transcrito acima, atos do
Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente,
contra a probidade da administração, em outras palavras, são atos de
improbidade administrativa.
Com efeito, mencionado inciso configura o fundamento da Lei nº 1.079/50, que
define os crimes de responsabilidade, bem como seu processo e julgamento.
Ressalte-se que tal norma, datada dos anos 50, foi recepcionada pela
Constituição de 1988.
Contudo, o regime jurídico sancionatório dos atos de improbidade não se resume
à Lei nº 1.079/50, encontrando guarida também no Decreto-Lei nº 201/67 (dispõe
sobre a reponsabilidade de prefeitos e vereadores), no regime da Lei de
improbidade (Lei nº 8.429/92), e no sistema da recente Lei anticorrupção (Lei nº
12.846/13).
3 LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA VERSUS LEI DOS CRIMES DE
RESPONSABILIDADE
Nos termos do art. 85, inciso V, da CRFB, ato de improbidade pode ensejar crime
de responsabilidade (BRASIL, 1988). Ou seja, agentes políticos respondem por
atos de improbidade. A divergência, portanto, está em definir se a
responsabilização do agente político deve se dar com base na Lei dos crimes de
reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67), com espeque na Lei
de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) ou em ambas (dualidade de
sanções).
Destarte, por sua relevância, a discussão já chegou, inclusive, ao Supremo
Tribunal Federal (STF), na Reclamação Constitucional 2138/DF (BRASIL,
2008b). Além disso, atualmente se encontra em tramitação no STF o Recurso
Extraordinário com Agravo (ARE) 683235/PA (reautuado como RE/976566), o
qual teve sua repercussão geral reconhecida (BRASIL, 2013). O ponto em
análise nos autos é a possibilidade de julgamento de prefeitos com fundamento
tanto na Lei de Improbidade Administrativa quanto no Decreto-Lei nº 201/67.
O julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 683235/PA (BRASIL,
2013), que firmará a posição do STF em relação à aplicação das sanções da LIA
aos chefes dos Executivos municipais, bem como a Reclamação Constitucional
2138/DF (BRASIL, 2008b), já julgada pelo Supremo, estão no centro de toda a
discussão sobre a possibilidade de aplicação da Lei de Improbidade
Administrativa aos agentes políticos.
Na Reclamação Constitucional 2138/DF (BRASIL, 2008b) o STF entendeu que
a atual Constituição distingue o regime de responsabilidade dos agentes
políticos do regime conferido aos demais agentes públicos, assim como não
admitiu, para os agentes políticos, a concorrência dos dois sistemas de
responsabilização (Lei dos crimes de responsabilidade e Lei de improbidade
administrativa). Em suma, o Supremo entendeu, neste caso específico (inter
partes), que a responsabilidade dos agentes políticos, com fundamento no
princípio da especialidade, deve se dar com base na Lei dos crimes de
reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67), e não com fulcro na
Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).
Destaque-se que a decisão da Reclamação Constitucional 2138/DF não possui
efeito vinculante nem eficácia erga omnes, além de ter sido decidida pela exígua
maioria de apenas um único voto. Segue parte da ementa:
EMENTA: [...] II. MÉRITO. II.1. Improbidade administrativa.
Crimes de responsabilidade. Os atos de improbidade
administrativa são tipificados como crime de
responsabilidade na Lei n° 1.079/1950, delito de caráter
político-administrativo. II.2. Distinção entre os regimes de
responsabilização político-administrativa. O sistema
constitucional brasileiro distingue o regime de
responsabilidade dos agentes políticos dos demais
agentes públicos. A Constituição não admite a
concorrência entre dois regimes de responsabilidade
político-administrativa para os agentes políticos: o previsto
no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime
fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n°
1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a
ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger
também atos praticados pelos agentes políticos,
submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-
ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I,
"c", da Constituição. II.3. Regime especial. Ministros de
Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por
normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c";
Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de
competência previsto no regime comum da Lei de
Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). II.4.
Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo
Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo
Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-
administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da
Constituição. Somente o STF pode processar e julgar
Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade
e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a
suspensão de direitos políticos. II.5. [...] Incompetência dos
juízos de primeira instância para processar e julgar ação
civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente
político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo
Tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme
o art. 102, I, "c", da Constituição. III. Reclamação Julgada
Procedente. (BRASIL, 2008b, grifos nossos)
Inobstante o entendimento firmado na Reclamação 2138/DF, exposto acima, a
composição dos membros da Corte se alterou, de tal sorte que o julgamento do
Recurso Extraordinário com Agravo 683235/PA (BRASIL, 2013), ainda
pendente, esclarecerá a atual posição do STF em relação à possibilidade de
aplicação das sanções da Lei de improbidade administrativa aos agentes
políticos, com destaque aos chefes dos Executivos municipais.
O tópico questionado no Recurso Extraordinário com Agravo trata da viabilidade
ou não do processo e julgamento de prefeitos, com espeque na Lei nº 8.429/92,
por atos de improbidade administrativa (BRASIL, 2013).
4 SUJEITO ATIVO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E
PRINCÍPIO DA ISONOMIA
A improbidade administrativa foi alçada a um patamar diferente dos crimes de
responsabilidade na Constituição de 1988. Além disso, inexiste disposição
constitucional que exima os agentes políticos, que inegavelmente respondem
por crimes de responsabilidade, de quaisquer das sanções por ato de
improbidade administrativa (art. 37, § 4º). Previsão normativa infraconstitucional
que criasse imunidade desta estirpe, por seu turno, seria inegavelmente
inconstitucional, eis que não cabe ao legislador ordinário limitar o alcance do
mandamento constitucional.
Por conseguinte, enquanto o sujeito passivo do ato de improbidade
administrativa é o ente público lesado (art. 1º, da Lei nº 8.429/92), o sujeito ativo,
de maneira ampla, será qualquer agente público (administrativo ou político),
servidor ou não, bem como eventuais beneficiários:
Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei,
todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem
remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou
vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades
mencionadas no artigo anterior.

Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que


couber, àquele que, mesmo não sendo agente público,
induza ou concorra para a prática do ato de improbidade
ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
(BRASIL, 1992)
Com base nos dispositivos acima, o sujeito ativo do ato ímprobo pode ser
caracterizado como:
[...] aquele que pratica o ato de improbidade, concorre para
sua prática ou dele extrai vantagens indevidas. É o autor
ímprobo da conduta. Em alguns casos, não pratica o ato
em si, mas oferece sua colaboração, ciente da
desonestidade do comportamento. Em outros, obtém
benefícios do ato de improbidade, muito embora sabedor
de sua origem escusa (CARVALHO FILHO, 2012, p. 1064).
O princípio da isonomia, verdadeira norma constitucional, consiste em uma
igualdade dinâmica e justa, aplicável aos indivíduos na exata medida de suas
semelhanças e dessemelhanças. Todos os agentes públicos estão vinculados
ao dever de probidade, logo, diante de sua violação devem se submeter, por
isonomia, ao mesmo regime de responsabilização. Entendimento diverso, além
de inconstitucional, seria injusto.
Isso posto, destaque-se que a Lei de improbidade administrativa, por se dirigir
indistintamente a todos os agentes públicos, gênero este que engloba os agentes
políticos, revela-se em consonância com o princípio constitucional da isonomia,
inclusive, fortalecendo-o no ordenamento jurídico nacional.
5 AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: NATUREZA JURÍDICA
Conforme voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski na Petição 3.923-
8/SP, é importante frisar que o art. 37, p. 4°, da CRFB, distingue nitidamente as
sanções impostas aos atos de improbidade administrativa das sanções
tipicamente penais. O dispositivo em comento traz um rol de sanções a serem
aplicadas aos atos de improbidade, contudo, determina que isso se dará sem
prejuízo da pertinente ação penal. Com efeito, majoritariamente entende-se que
a ação de improbidade administrativa não possui natureza penal, mas sim
inquestionável natureza cível.
No mesmo sentido do art. 37, p. 4°, da CRFB, o art. 12 da LIA:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e
administrativas previstas na legislação específica, está o
responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes
cominações, que podem ser aplicadas isolada ou
cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: [...]
– grifo nosso. (BRASIL, 1992, grifo nosso)
Inobstante algumas das condutas previstas como atos de improbidade
igualmente sejam previstas como crimes, os atos de improbidade não são
considerados infrações penais. Seguindo lógica similar, a existência da mesma
sanção em áreas diferentes (penal, improbidade, e responsabilidade política)
também não torna da mesma natureza o processo que as impõe. Corroborando
o exposto, segue fragmento da ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 2.797/DF, em que o STF estabeleceu a face essencialmente civil da ação
de improbidade:
EMENTA: [...] 5. De outro lado, pretende a lei questionada
equiparar a ação de improbidade administrativa, de
natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os
mais altos dignitários da República, para o fim de
estabelecer competência originária do Supremo
Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal
sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas
espécies. (BRASIL, 2006, grifos nossos)
Em complementação, o entendimento de Alexandre de Moraes:

A natureza civil dos atos de improbidade administrativa


decorre da redação constitucional, que é bastante clara ao
consagrar a independência da responsabilidade civil por
ato de improbidade administrativa e a possível
responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao
utilizar a fórmula "sem prejuízo da ação penal cabível”.
(MORAES, 2007, p. 353-354).
Outro argumento para afastar a natureza penal dos atos de improbidade
administrativa, previstos no rol trazido pela Lei nº 8.429/92, está na não
taxatividade deste. Por ser aberto, englobando comportamentos variados, trata-
se de um conceito jurídico indeterminado, incompatível com o princípio da
reserva legal, princípio balizador da tipificação penal de condutas (BATISTI,
2015, p. 126).
A definição do rito processual e do órgão jurisdicional competente para o
processo e julgamento do agente público ímprobo depende diretamente da
natureza jurídica da ação de improbidade administrativa, daí a relevância deste
ponto. A natureza cível da ação de improbidade afasta, por exemplo, o foro por
prerrogativa de função constitucionalmente previsto, nas demandas de natureza
penal, para alguns agentes políticos. Portanto, em regra, cabe inicialmente ao
juízo cível de primeiro grau processar e julgar as demandas propostas com fulcro
na Lei nº 8.429/92 (ALVES, 2011, p. 509-510).
6 DA CONCORRÊNCIA DOS CAMPOS DE REPSONSABILIDADE DO
DIREITO
De início, com o fito de fazer contraponto à natureza dos atos de improbidade,
segue breve explicação sobre a natureza jurídica dos crimes de
responsabilidade:
[...] são infrações político-administrativas definidas na
legislação federal, cometidas no desempenho da função,
que atentam contra a existência da União, o livre exercício
dos Poderes do Estado, a segurança interna do País, a
probidade da Administração, a lei orçamentária, o exercício
dos direitos políticos, individuais e sociais e o cumprimento
das leis e das decisões judiciais. (MELLO, 1980, p. 98, grifo
nosso)
Por conseguinte, ciente da existência de esferas distintas e independentes de
responsabilidade que podem atingir os indivíduos (cível, penal e administrativa),
a responsabilização do agente público por ato de improbidade, nos termos da
Lei nº 8.429/92 (natureza cível), não colide com a sua responsabilização por
crime de responsabilidade (natureza política e penal), eis que estamos diante de
esferas diferentes do Direito, o que afasta qualquer risco de violação ao princípio
do ne bis in idem. Existem precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
neste mesmo sentido: Reclamação 2790/SC, DJe 04/03/2010.
É comum que uma mesma conduta capaz de provocar dano à Administração
Pública, com reflexos cíveis, seja prevista como crime e configure infração
administrativa. Logo, como as searas mencionadas possuem natureza e
fundamentos diversificados, é possível, sem qualquer incompatibilidade, que o
indivíduo suporte responsabilização cível, penal e administrativa, sendo isso
muito tranquilo e pacífico. Os campos de responsabilidade do Direito concorrem,
não se excluem, consoante se infere da doutrina:
Todos os agentes públicos que praticam infrações estão
sujeitos a responder nas esferas penal, civil, administrativa
e político-administrativa. Nenhuma razão existe para que
os agentes políticos escapem à regra, até porque, pela
posição que ocupam, têm maior compromisso com a
probidade administrativa, sendo razoável que respondam
com maior severidade pelas infrações praticadas no
exercício de seus cargos. (DI PIETRO, 2013, p. 901, grifo
nosso)
Em contraste, é importante esclarecer que, quanto à natureza jurídica, existe
entendimento minoritário no sentido de que tanto os atos de improbidade quanto
os crimes de responsabilidade possuem natureza de infrações politico-
administrativas, logo, por serem equivalentes, se confundiriam. Em síntese,
devido a esta identidade, ofenderia a regra do ne bis in idem a incidência dos
dois sistemas de responsabilização sobre uma mesma conduta (BIANCHINI,
2008, p. 49).
7 DA VIABILIDADE DA DUALIDADE DE SANÇÕES (PETIÇÃO 3.923-8/SP)
Outrossim, uma análise mais detida da argumentação trazida na Petição 3.923-
8/SP, que brevemente será feita a seguir, pode sinalizar para o entendimento
atual da Suprema Corte acerca da aplicabilidade, ou não, da Lei de improbidade
administrativa aos agentes políticos, entendimento este, que certamente
influenciará no futuro julgamento do já mencionado Recurso Extraordinário com
Agravo 683235/PA, cuja repercussão geral foi reconhecida.
Veja a ementa da Questão de Ordem em Petição 3.923-8/SP:
EMENTA: [...] O pedido foi indeferido sob os seguintes
fundamentos: 1) A lei 8.429/1992 regulamenta o art. 37,
parágrafo 4º da Constituição, que traduz uma
concretização do princípio da moralidade administrativa
inscrito no caput do mesmo dispositivo constitucional. As
condutas descritas na lei de improbidade administrativa,
quando imputadas a autoridades detentoras de
prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de
responsabilidade. (BRASIL, 2008a, grifo nosso)
Em seu voto, proferido na Petição 3.923-8/SP, o Relator Senhor Ministro
Joaquim Barbosa trouxe relevante argumentação no sentido da viabilidade da
dualidade de sanções no que toca aos agentes políticos, possível tanto na seara
da improbidade administrativa, quanto com fulcro nos crimes de
responsabilidade (BRASIL, 2008a).
Para o Ministro, em sede de improbidade, existe no Brasil uma
normatividade dúplice, cada qual com finalidades constitucionais diversas: a Lei
de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) e a Lei dos crimes de
responsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67). Destaca também
que, embora com escopos diferentes, ambas as normatividades buscam
proteger o princípio constitucional da moralidade na Administração Pública
(BRASIL, 2008a).
Enquanto a LIA (BRASIL, 1992), derivada do art. 37, p. 4º, da CRFB,
busca prevenir e reprimir a ocorrência de atos antiéticos e desonestos por
agentes públicos, a Lei dos crimes de responsabilidade (fundada no art. 85,
inciso V, da CRFB) é voltada à apuração da responsabilidade política, buscando
retirar do poder o agente político faltoso (BRASIL, 1950). Assim sendo, patente
tratar-se de institutos díspares, porém complementares, e que não se excluem,
inobstante originados dos mesmos fatos.
Enfim, segundo o Ministro Joaquim Barbosa, a ordem constitucional
brasileira não rejeita a possibilidade de duplicidade de sanções. Desde que o
escopo das demandas punitivas seja diverso, inexiste bis in idem (BRASIL,
2008a). Como já demonstrado, as responsabilizações por ato de improbidade e
por crime de responsabilidade claramente possuem objetivos não coincidentes.
Neste diapasão:
Ora, com afirma Eduardo Bim, se o nosso ordenamento
jurídico admite, em matéria de responsabilidade dos
agentes políticos, a coexistência de um regime político com
um regime puramente penal, por que razão haveria esse
mesmo ordenamento jurídico de impedir a coabitação entre
responsabilização política e improbidade administrativa?
Noutras palavras, se a Constituição permite o mais, que é
a cumulação da responsabilidade política com a
responsabilidade penal, por que haveria de proibir o
menos, isto é, a combinação de responsabilidade política
com responsabilidade por improbidade
administrativa? (BRASIL, 2008a, p. 14-15, grifo nosso)
Ademais, em respeito ao regime democrático, afastar a possibilidade de
duplicidade de sanções aos agentes políticos não seria adequado, tampouco
razoável, eis que, quanto maior o status e poder do indivíduo, proporcionalmente
maior também deve ser sua responsabilidade, nunca o inverso. Petição 3.923-
8/SP:
[...] um dos postulados básicos do regime democrático,
aquilo que no direito norte-americano se traduz na
elucidativa expressão “accountability”, e que consiste no
seguinte: nas verdadeiras Democracias, a regra
fundamental é, quanto mais elevadas e relevantes as
funções assumidas pelo agente público, maior há de ser o
grau de sua responsabilidade, e não o contrário [...]
(BRASIL, 2008a, p. 15-16, grifo nosso)
Na mesma linha de raciocínio, trecho do voto do Ministro Carlos Velloso
na Reclamação 2138/DF:
Isentar os agentes políticos da ação de improbidade
administrativa seria um desastre para a administração
pública. Infelizmente, o Brasil é um país onde há corrupção,
apropriação de dinheiros públicos por administradores
ímprobos. E isso vem de longe. (BRASIL, 2008b, p. 176,
grifo nosso)
8 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (ARE) 683235/PA
Recordando, o ARE 683235/PA, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo
STF, versa sobre a possibilidade ou não do processo e julgamento de prefeitos,
com supedâneo na Lei nº 8.429/92, por atos de improbidade administrativa
(BRASIL, 2013).
Dentre outras finalidades, a Lei nº 8.429/92 foi introduzida no ordenamento
nacional com vistas a garantir a tutela da aplicação dos recursos públicos em
favor da coletividade, sobretudo em âmbito municipal, representando poderoso
instrumento de combate à corrupção. Nas palavras do Ministro Carlos Velloso:
No “ranking” internacional dos países onde há corrupção,
estamos muito mal colocados. Esse “ranking” é
organizado, em regra, por organizações não
governamentais que combatem esse mal. Precisamos,
portanto, nos esforçar, cada vez mais, para eliminar a
corrupção da administração pública. Ora, o meio que me
parece mais eficiente é justamente o de dar a máxima
eficácia à Lei de Improbidade. Refiro-me, especialmente,
às administrações municipais. Temos mais de cinco mil
municípios. Em cada um deles, há um promotor
fiscalizando a coisa pública municipal. Abolir a ação de
improbidade relativamente aos agentes políticos
municipais seria, repito, um estímulo à corrupção.
(BRASIL, 2008b, p. 176-177, grifos nossos).
Atualmente no país existem milhares de ações civis públicas de improbidade
administrativa tramitando contra prefeitos municipais (BRASIL, 2008b). Partindo
dessa premissa, a vitória no Supremo do entendimento segundo o qual os
agentes políticos não respondem nos termos da LIA, em uma análise
consequencialista, ocasionaria a paralização dessas inúmeras demandas, o que
seria, de fato, desastroso. Veja:
E mais: administradores ímprobos que foram condenados
a restituir dinheiros aos cofres públicos poderiam pedir a
repetição desses valores, porque teriam sido condenados
por autoridade judicial incompetente. (BRASIL, 2008b, p.
177).
Com efeito, por todo o exposto, patente que o entendimento mais
adequado e que deve prevalecer no ARE 683235/PA é aquele que concede
máxima eficácia à Lei de improbidade e, consequentemente, máxima eficácia
aos princípios constitucionais, com destaque aos princípios vetores da
Administração Pública. Os agentes políticos, assim como qualquer agente
público, devem se sujeitar à Lei de improbidade administrativa. Entender o
contrário seria um retrocesso, sobretudo no combate à corrupção.
Os prefeitos, portanto, devem responder por atos de improbidade tanto
com base na sua Lei específica que tipifica os crimes de responsabilidade
(Decreto-Lei nº 201/67), quanto com fundamento na Lei de improbidade
administrativa, posição esta que, claramente, fortalece o princípio da moralidade
na Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB).
9 CONCLUSÃO
Como visto, o cabimento da Lei de improbidade administrativa aos agentes
políticos é objeto de muita discussão. Argumenta-se que estes estariam sujeitos
a regime próprio e especial de responsabilização, portanto, suas infrações, que
seriam necessariamente infrações político-administrativas, se amoldariam à Lei
dos crimes de responsabilidade. Tal posicionamento foi o acolhido pelo STF na
Reclamação 2138/DF. Asseverou-se que a Constituição não admite a
concorrência entre dois regimes de responsabilização politico-administrativa aos
agentes políticos, devendo ser afastada, consequentemente, a Lei de
improbidade administrativa.
Ao longo do artigo vários argumentos foram apresentados no sentido de
desconstruir a tese fixada na Reclamação 2138/DF. Inicialmente constatou-se
que inexiste qualquer disposição constitucional, tampouco infraconstitucional,
que exima os agentes políticos de serem responsabilizados na seara da
improbidade administrativa. Ao abarcar democraticamente todos os agentes
públicos a LIA realiza o princípio constitucional da isonomia, sendo este um de
seus pontos fortes
Além disso, a natureza jurídica dos atos de improbidade administrativa é cível,
não se devendo confundir tais atos com as infrações de natureza politico-
administrativa, como é o caso dos crimes de responsabilidade. Ademais,
conforme a precisa argumentação esposada na Petição 3.923-8/SP, o escopo
das normatividades em testilha também é indiscutivelmente diverso, o que
reforça o argumento de que estas se complementam, nunca se excluem.
Com efeito, as esferas dos atos de improbidade e dos crimes de
responsabilidade são independentes e não se eliminam, podendo existir
judicialmente de forma concomitante e autônoma, embora derivadas da mesma
conduta, e possibilitando resultados finais completamente distintos. Este é o
entendimento mais adequado e que se espera que seja acolhido no ARE
683235/PA, ainda pendente de julgamento no STF. O Ministério Público Federal,
através de parecer ofertado nos autos, manifestou-se exatamente neste sentido.
Também é razoável se presumir que a reponsabilidade de um agente político,
quanto mais alta a sua posição hierárquica na Administração, igualmente deva
se elevar de forma proporcional. Defender que os agentes políticos mais
graduados estão isentos da Lei de improbidade enquanto todos os demais
agentes públicos a ela se subjugam é uma subversão da lógica do sistema.
Por fim, pode-se inferir que aplicar a Lei de improbidade em sua máxima eficácia
é, por todos os indícios, um meio eficiente de combate à corrupção. Assim sendo,
não assiste razão aos que defendem a impossibilidade de coexistência da
responsabilidade cível e política por atos de improbidade administrativa. Ou seja,
os agentes políticos, além da Lei dos crimes de responsabilidade, estão
submetidos também à Lei 8.429/92. Essa é a posição que melhor realiza e
fortalece o princípio constitucional da moralidade na Administração Pública.
REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Aristides Junqueira. Reflexões sobre Improbidade Administrativa
no Direito Brasileiro. In: BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro
Paulo de Rezende. Improbidade Administrativa – questões polêmicas e
atuais. São Paulo: Malheiros editores, 2001.
ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. 6.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
BATISTI, Nélia Edna Miranda. PIMENTA, Julia Acioli. A aplicabilidade da Lei de
Improbidade Administrativa aos agentes políticos. Revista do Direito Público.
Londrina, v.10, n.3, p.119-140, set/dez., 2015.
BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. Agentes políticos não estão sujeitos à
lei de improbidade administrativa. In: BOLZAN, Fabrício; MARINELA,
Fernanda. Leituras complementares de direito administrativo. Salvador:
Juspodivm, 2008.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967. Diário Oficial da
União, Brasília, 27 de fevereiro de 1967.
BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Diário Oficial da União, Brasília,
12 de abril de 1950.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Diário Oficial da União, Brasília,
03 de junho de 1992.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade
2.797/DF. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça, Brasília, 19
de dezembro de 2006.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem em Petição 3.923-8/SP.
Relator Ministro Joaquim Barbosa. Diário de Justiça, Brasília, 28 de setembro
de 2008a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 2138/DF. Relator Ministro
Nelson Jobim. Diário de Justiça, Brasília, 18 de abril de 2008b.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso
Extraordinário com Agravo (ARE) 683235/PA. Relator Ministro Cezar
Peluso. Diário de Justiça, Brasília, 28 de junho de 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26. ed. São Paulo:
Atlas, 2013.
FIQUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo:
Malheiros, 2016.
MELLO FILHO, José Celso de. Crimes de responsabilidade: processo e
julgamento de governador de estado. Justitia. São Paulo, v. 42, n. 109, p. 98,
abr./jun., 1980.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas,
2007.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39. ed. São
Paulo: Malheiros, 2016.

Ricardo Hoeveler Costa


Advogado. Graduado em Direito pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Público
pela PUC/MG. Pós-Graduado em Direito Público pela Fundação Escola Superior
do MPMG em convênio com a Universidade FUMEC.
Inserido em 05/12/2017
Parte integrante da Edição no 1489
Código da publicação: 4342

Você também pode gostar