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Separando o joio do trigo: erro não é (mais) im­

probidade
Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio. Visiting Scholar na University of Miami Law School. Doutorando em
Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Master of Laws pela New York University of Law. Mestre
em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Presidente do Centro Brasileiro de Mediação e
Arbitragem – CBMA. Presidente da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution – RBADR.
Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Brasil – IAB. Advogado. Árbitro. Sócio fundador
de Schmidt – Lourenço – Kingston. Procurador do Município do Rio de Janeiro. E-mail: gustavo.
schmidt@slk.adv.br.

Resumo: Efeito colateral da ampliação, no Brasil, dos instrumentos de controle da atividade


administrativa estatal, com a consequente e mais intensa responsabilização dos agentes públicos,
é o surgimento de uma cultura de medo na gestão pública. Aquilo que hoje se convencionou
chamar por “apagão das canetas” ou “Direito Administrativo do Medo”. A paralisia decisória é,
em boa parte, efeito direto e imediato do receio que recai sobre os gestores públicos, na tomada
de decisões, fruto dos excessos cometidos (voluntariamente ou não) por alguns integrantes dos
órgãos de controle externo. Defende-se neste ensaio, sob uma perspectiva teórica e dogmática,
que, à exceção de eventual erro grosseiro, escolhas equivocadas do gestor público jamais
poderiam ser confundidas com a prática de atos de improbidade administrativa. Mais do que
isso, com a reforma promovida pela Lei nº 14.230/2021, mesmo o erro grosseiro deixou de ser
encarado como ato ímprobo, o que não significa que não possa ser penalizado em outras esferas
do controle estatal.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Erro administrativo. Erro grosseiro. Dolo. Respon­


sabilidade.

Sumário: 1 Introdução – 2 Erro: legislação aplicável. Conceito. Modalidades – 3 O erro adminis­­tra­


tivo – 4 Erro administrativo grosseiro – 5 Erro não é mais improbidade – 6 Conclusões – Referências

1 Introdução
É fenômeno relativamente recente, no campo do Direito Administrativo, o
estudo do erro do gestor público. Até porque, ao menos até a entrada em vigor
da Constituição de 1988, a penalização do administrador estatal, por eventuais
ilícitos, era algo raro e excepcional. Equívocos administrativos, na prática, não

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geravam maiores consequências para aqueles que nele incidiam. Já dizia Hely
Lopes Meirelles, em seu clássico “Direito Municipal Brasileiro”:

Ao prefeito, como aos demais agentes políticos, se impõe o dever de tomar


decisões governamentais de alta complexidade e importância, de interpretar
as leis e de converter os seus mandamentos em atos administrativos das mais
variadas espécies. Nessa missão político-administrativa é admissível que o
governador erre, que se equivoque na interpretação e aplicação da lei, que
se confunda na apreciação da conveniência e oportunidade das medidas
executivas sujeitas à sua decisão e determinação. Desde que o chefe do
Executivo erre em boa-fé, sem abuso de poder, sem intuito de perseguição ou
favoritismo, não fica sujeito à responsabilização civil, ainda que seus atos lesem
a Administração ou causem danos materiais ou morais a terceiros. E assim é
porque os agentes políticos, no desempenho de suas atribuições de governo,
defrontam-se a todo o momento com situações novas e circunstâncias
imprevistas, que exigem pronta solução à semelhança do que ocorre na
Justiça, em que o juiz é obrigado a decidir ainda que na sua ausência ou na
obscuridade da lei. Por isso mesmo, admite-se para essas autoridades uma
margem razoável de falibilidade nos seus julgamentos.1

A Carta de 1988,2 contudo, amplia sensivelmente as prerrogativas, com­


petências e poderes de investigação dos órgãos de controle, seja do Ministério
Público,3 seja dos Tribunais de Contas,4 com o justo propósito de permitir que
possam promover um mais efetivo combate à corrupção, à desonestidade, à
devassidão no trato da coisa pública.
A reboque disso, são aprovados sucessivos diplomas legais, no campo
da tu­tela da probidade administrativa, voltados para coibir atos de corrupção,
conforme servem de exemplo, dentre outros, a Lei de Improbidade Administrativa
(Lei nº 8.429, de junho de 1992), a Lei de Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135,
de 4 de junho de 2010), a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683, de 9 de
julho de 2012), a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 1 de agosto de 2013), a Lei
das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013) e o Pacote
Anticrime (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019).5

1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 572-574.
2 Vale conferir, a propósito, os arts. 70 a 75 e 127 a 130, todos da Constituição Federal.
3 Veja-se, a respeito do papel do Ministério Público, das prerrogativas e dos princípios institucionais que norteiam a
atuação dos integrantes da carreira: MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do promotor de justiça. 2. ed. ampl. e atual. São
Paulo: Saraiva, 1991, p. 41-57 e 71-87.
4 Sobre as competências e prerrogativas do TCU, vide: CAMPELO, Valmir. O tribunal de contas no ordenamento jurídico
brasileiro. Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal, Brasília-DF, vol. 29, 2003, p. 83-94.
5 FRANCE, Guilherme de Jesus. A evolução da legislação brasileira contra a corrupção. In: MOHALLEM, Michael Freitas;
RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert (Coord.). Diagnóstico institucional: primeiros passos para um plano nacional
anticorrupção. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2017.

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Efeito colateral da ampliação dos instrumentos de controle da atividade


administrativa estatal, com a consequente e mais intensa responsabilização dos
agentes públicos, é o surgimento de uma cultura de medo na gestão pública.
Aquilo que hoje se convencionou chamar por “apagão das canetas” ou “Direito
Administrativo do Medo”.6 Já dizia Marcos Juruena, “dorme tranquilo quem
indefere”.7 A paralisia decisória é, em boa parte, efeito direto e imediato do receio,
verdadeiro pavor, que recai sobre os gestores públicos, na tomada de decisões,
fruto dos excessos cometidos (voluntariamente ou não) por alguns integrantes
dos órgãos de controle externo.
A introdução da cláusula geral do erro administrativo, no art. 28 da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, com o objetivo de limitar
a responsabilização dos agentes públicos a atos e opinião eivadas de dolo ou
erro grosseiro foi uma clara reação a isso. Assim como também o foi a aprovação
da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, ao fundamento de que as alterações
promovidas na Lei de Improbidade ofereceriam maior segurança jurídica ao
gestor público, no exercício da atividade administrativa estatal, e evitariam
injustiças.8
A tese a ser desenvovida neste ensaio, sob uma perspectiva teórica e
dogmática, é a de que, à exceção de eventual erro grosseiro, escolhas equivocadas
(erros, na acepção técnica da palavra) do gestor público jamais poderiam ser
confundidas com a prática de atos de improbidade administrativa. Mais do que
isso, com a reforma promovida pela Lei nº 14.230/2021, mesmo o erro grosseiro
deixou de ser encarado como ato ímprobo, o que não significa que não possa ser
penalizado em outras esferas do controle estatal.
Para tanto, o presente ensaio será dividido em quatro grandes tópicos.
Primeiro, será feito um breve estudo sobre o conceito de erro, a partir do conhe­
cimento jurídico construído em outras searas do direito, como o direito civil,

6 Sobre o tema: SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos
agentes públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020; MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene. LINDB no direito público:
Lei 13.655/2018. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
7 JURUENA, Marcos apud BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O art. 28 da LINDB: A cláusula geral do erro
administrativo. In: Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito público na lei de introdução às normas
do direito brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), nov. 2018, p. 206.
8 Vide, a título ilustrativo, nota publicada por mais de 30 (trinta) catedráticos, advogados e magistrados aposentados
do STJ, em defesa da aprovação do PL 2.505/2021, ao argumento de que seriam “inúmeros os prefeitos, governadores,
secretários, procuradores e servidores públicos processados por supostos atosde improbidade administrativa em
tese, sem terem cometido qualquer ato irregular e muitas vezes sem haver nem mesmo acusação formal de desvio
de valores”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/9/99CAB3718E8FDC_nota-improbidade-
administrativ.pdf. Acesso em: 05 ago. 2022.

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o direito penal e o direito tributário. O tópico subsequente será dedicado à


compreensão do erro administrativo e de suas particularidades. Em seguida,
será explorado o conceito de erro administrativo grosseiro, conforme cláusula
geral prevista no art. 28 da LINDB e, também, o regramento que chegou a ser
introduzido pela já expirada Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020.
No último tópico, a partir das premissas teóricas fixadas no curso deste trabalho,
o conceito de erro administrativo será confrontado com os ilícitos descritos na
Lei de Improbidade Administrativa, a revelar que, na redação original da Lei,
havia amplo espaço para a responsabilização dos administradores públicos por
erros praticados, o que foi minimizado com a aprovação da Lei nº 13.655/2018
(e as modificações que introduziu na LINDB) e deixou de ser possível com a
Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021). Ao final, serão
compendiadas algumas importantes conclusões a respeito do assunto.

2 Erro: legislação aplicável. Conceito. Modalidades


Diferente do que se observa no campo do Direito Administrativo, são inú­
meros e conhecidos os estudos sobre as consequências jurídicas do erro na esfera
do Direito Civil,9 do Direito Penal10 e até mesmo do Direito Tributário.11 Isso se dá
porque, diferentemente do que ocorre no Direito Administrativo, nos demais
ramos do Direito, ora aludidos, o erro há muito recebe tratamento legal expresso.
Assim, já dispunha o Código Civil de 1916 que o erro, quando substancial, seria
causa de anulação do negócio jurídico:12

Art. 86. São anuláveis os atos jurídicos, quando as declarações de vontade


emanarem de erro substancial.

9 BEVILÁCQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1955, p. 201; PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 144; GOMES,
Orlando. Introdução ao direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 325; AMARAL, Francisco. Direito civil –
Introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 508; BATALHA, Wilson de Souza Campos. Defeitos dos negócios
jurídicos. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 90; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Vol. 1. 7. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p. 389.
10 GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994; BITENCOURT, Cezar
Roberto. Manual de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 48.
11 Por todos, veja-se: CARVALHO, Paulo de Barros. Erro de fato e erro de direito na teoria do lançamento tributário.
Revista de Direito Tributário, n. 73, 1998, p. 5-15.
12 “Quanto ao erro, o consentimento, que pré-elidiria a contrariedade a direito, o pré-exclui: o consentimento fundado
em erro não é, no mundo fáctico, consentimento, mas simples aparência; de anulabilidade somente se poderia
cogitar se o suporte fáctico, embora deficiente, houvesse entrado no mundo jurídico, e isso não se deu. O mesmo
raciocínio há de ser feito quanto aos outros vícios de vontade” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado
de direito privado. Tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 349).

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Art. 87. Considera-se erro substancial o que interessa à natureza do ato, o


objeto principal de declaração, ou alguma das qualidades a ele essenciais.

Art. 88. Tem-se igualmente por erro substancial o que disser respeito a
qualidades essenciais da pessoa, a quem se refira a declaração de vontade.

Art. 89. A transmissão errônea da vontade por instrumento, ou por interposta


pessoa, pode argüir-se de nulidade nos mesmos casos em que a declaração
direta.

Art. 90. Só vicia o ato a falsa, causa, quando expressa como razão determinante
ou sob forma de condição.

Art. 91. O erro na indicação da pessoa, ou coisa, a que se referir a declaração de


vontade, não viciará o ato, quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se
puder identificar a coisa ou pessoa cogitada.13

O Código Penal, por sua vez, preconiza que o erro é causa de exclusão da
tipicidade (erro de tipo14) ou da culpabilidade (erro de proibição15), conforme
arts. 20 e 21:

Erro sobre elementos do tipo


Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o
dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas cir­
cunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.
Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como
crime culposo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

13 O Código Civil de 2002 manteve, em linhas gerais, o tratamento que a legislação pretéria deu ao tema. Nesse sentido,
estabelecem os arts. 138 a 144 do diploma civil em vigor: “Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as
declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal,
em face das circunstâncias do negócio”; “Art. 139. O erro é substancial quando: I – interessa à natureza do negócio, ao
objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais; II – concerne à identidade ou à qualidade
essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;
III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico”;
“Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”; “Art. 141. A
transmissão errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos casos em que o é a declaração direta”;
“Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio
quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada”; “Art. 143. O erro de
cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade”; “Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio
jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade
da vontade real do manifestante”.
14 Sobre o assunto, veja-se: GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. V. 1, Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 388-389.
15 Vide, a propósito: NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 150.

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Erro determinado por terceiro


§2º – Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.

Erro sobre a pessoa


§3º – O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de
pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima,
senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.

Erro sobre a ilicitude do fato


Art. 21 – O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do
fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a
um terço.
Parágrafo único – Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem
a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias,
ter ou atingir essa consciência.

Também o Código Tributário Nacional, de 1966, ocupou-se do erro,


elencando-o como hipótese que autoriza a retificação de eventual declaração
pelo contribuinte (art. 147, §1º), e de revisão do lançamento tributário, pela auto­
ridade administrativa, na forma de seus respectivos arts. 147, §2º, e 149, III:

Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo


ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à
autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis
à sua efetivação.
§1º A retificação da declaração por iniciativa do próprio declarante, quando
vise a reduzir ou a excluir tributo, só é admissível mediante comprovação do
erro em que se funde, e antes de notificado o lançamento.
§2º Os erros contidos na declaração e apuráveis pelo seu exame serão retifi­
cados de ofício pela autoridade administrativa a que competir a revisão
daquela.

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade admi­


nistrativa nos seguintes casos:
(...)
IV – quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer ele­
mento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória.

O erro decorre de uma falsa representação da realidade. Corresponde a uma


manifestação viciada da vontade, fruto da má compreensão dos fatos ou do con­
teúdo da lei. Na clássica lição de Clóvis Beviláqua:

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Erro é o estado da mente, que, por defeito do conhecimento do verdadeiro


estado de coisas, impede uma real manifestação da vontade. Particulariza-se,
nesta definição, o erro nas declarações de vontade, e nisto consiste o motivo
da preferência, que aqui lhe é dada.16

Orlando Gomes aponta que o erro não estaria propriamente na manifestação


de vontade e sim na inadequada apreensão dos fatos (ou do direito) pelo
declarante. Tendo, dizia ele, “sobre um fato ou sobre um preceito noção inexata ou
incompleta, o agente emite sua vontade de modo diverso do que a manifestaria,
se deles tivesse conhecimento exato, ou completo”.17
Nas relações privadas, o erro de cunho substancial, quando razão deter­
minante para a prática do ato, vicia o próprio negócio jurídico, autorizando a
sua anulação. Tem-se por substancial aquele erro que “interessa à natureza
do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a
ele essenciais” (art. 139, I, CC/2002), que “concerne à identidade ou à qualidade
essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha
influído nesta de modo relevante” (art. 139, II, CC/2002) ou que, “sendo de direito
e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do
negócio jurídico” (art. 139, III, CC/2002).
Ainda que existam evidentes divergênciais conceituais sobre o tema, parece
existir um certo consenso, em todas as searas do direito,18 19 20 21 de que o erro se

16 BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Campinas: Servanda, 2007, p. 298-299.
17 GOMES, Orlando. Op. cit., p. 325.
18 No direito tributário: “O firme entendimento desta Corte Superior é no sentido de que erro de direito ou a alteração de
critério jurídico não autoriza a revisão do lançamento, mantendo-se o vigor do enunciado sumular n. 227, do extinto
TFR, que assim dispõe: ‘A mudança de critério jurídico adotado pelo Fisco não autoriza a revisão de lançamento’.
Ocorre, contudo, que a Corte de origem firmou o cabimento da revisão do lançamento, por configurado erro de fato”
(STJ, AgInt no REsp n. 1.919.181/GO, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 16/8/2021, DJe de
18/8/2021).
19 No direito processual civil: “A suscitada inaplicabilidade ao caso dos precedentes utilizados pelo acórdão rescindendo
não caracteriza erro de fato, mas apenas hipotético erro de direito, o que não é suficiente para fundamentar o
cabimento da rescisória com base no art. 485, IX, do CPC/1973” (STJ, AR n. 5.609/DF, relator Ministro Og Fernandes,
Primeira Seção, julgado em 27/11/2019, DJe de 10/12/2019). Em sentido semelhante, no campo doutrinário, leciona
Sérgio Rizzi: “Dessas exigências (para a configuração do erro de fato) a primeira circunscreve o objeto do erro ao (s)
fato (s). A contrario sensu, o erro de direito não autoriza a ação rescisória sob este fundamento. O erro no art. 485, IX,
não é error iuris, mas só error facti” (RIZZI, Sérgio. Ação rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 119).
20 No processo penal: “HABEAS CORPUS. PEDIDO DE REVISÃO CRIMINAL IMPROCEDENTE. 1 – A finalidade precípua
da revisão criminal é a correção de erros de fato ou de direito acaso verificados em processos já findos. Assim, em
princípio afasta-se a estreita via do habeas corpus para exame de pedido revisional julgado improcedente, dado
que a prova da ilegalidade deve ser feita de forma cabal e pré-constituída, circunstância não ocorrente porque não
articulada qualquer afronta a uma das hipóteses do art. 621 do CPP. 2 – Ordem denegada” (STJ, HC n. 6.393/PB, relator
Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, julgado em 17/8/1999, DJ de 6/9/1999).
21 É verdade que, na seara do direito penal, há quem sustente, como Cezar Roberto Bitencourt, que “o erro jurídico-
penal, independentemente de recair sobre situações fáticas ou jurídicas, quando inevitável, será relevante. Não há, na
verdade, coincidência entre os velhos e os novos conceitos. Mudou toda a sistemática. A ultrapassada classificação

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divide em duas categorias básicas: o erro de fato e o erro de direito. No primeiro


caso (do erro de fato), a manifestação de vontade se dá de maneira distinta
daquela que teria sido a declarada, se tivesse o agente perfeito conhecimento da
realidade fática. Parte o declarante, ao expressar-se, de fatos inexistentes (total
ou parcialmente), como se tivessem efetivamente acontecido, o que interfere na
formação da sua vontade e na própria escolha feita. Há erro de fato, por exemplo,
quando uma pessoa compra uma bijuteria, partindo da premissa que seria a joia
de ouro (e não mera imitação). Ao passo que, no segundo caso (do erro de direito),
a vontade declarada se afasta daquela que teria sido, caso tivesse o declarante a
perfeita compreensão do direito (lei ou regulamento) aplicável.
Cabe a ressalva, apenas, que, no direito penal, tem maior relevância jurídica
os conceitos de erro de tipo e erro de proibição. O primeiro afasta a própria tipi­
cidade da conduta. Diz-se, nesse sentido, que a falsa representação da realidade
quanto a algum dos elementos que compõem o tipo penal exclui a tipicidade
e, portanto, o próprio ilícito criminal. Suponha-se, a título ilustrativo, que uma
pessoa, em um momento de lazer com os amigos, certo de que está manejando
uma arma de brinquedo, aperte o gatilho e venha a disparar um projétil contra
um terceiro, involuntariamente, matando-o. À falta da intenção dolosa, fica
afastada a conduta típica e, portanto, a prática do crime de homicídio. Já o erro
de proibição se assemelha ao erro de direito. Nele, incide aquele que desconhece
(e não tinha como conhecer) a ilicitude da conduta. Conforme ensina Edgard
Magalhães Noronha:

O erro de proibição pode ser traduzido como aquele no qual incide o agente
que, por falso conhecimento ou desconhecimento, não tem possibilidade de
verificar que o comportamento é ilícito, sendo inevitável tal situação. Portanto
exige dois elementos: a inevitabilidade e a impossibilidade do conhecimento
sobre a ilicitude do fato. Trata-se, portanto, de um erro sobre a ilicitude do fato,
através do qual o agente supõe lícita a ação cometida.22

de erro de direito e erro de fato baseava-se na situação jurídica e na situação fática. A problemática, hoje, é diferente;
enfoca-se outra questão: a tipicidade e a antijuridicidade (ilicitude). Ou seja, o erro pode recair sobre a tipicidade ou
sobre a injuricidade” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 48). Complementa Luiz Flavio Gomes que, “[c]omo
ambas essas formas de erro são igualmente relevantes para o Direito Penal, a antiga antinomia que se criara entre
elas cede lugar a uma distinção puramente conceitual, da qual não se podem extrair efeitos jurídicos opostos – a
escusabilidade de uma e a inescusabilidade de outra. O certo será dizer-se que ambas podem, ou não, ser escusáveis,
dentro de certos critérios” (GOMES, Luiz Flávio. Op. cit., p. 19).
22 NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 150.

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Ocorre que, no campo do Direito Administrativo, muito em função da au­


sência de disciplina legal expressa a respeito do assunto, até bem recentemente
inexistiam estudos de maior densidade sobre o erro. Isso muda, todavia, a partir
da edição da Lei nº 13.655/2018, com a inserção na Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942) da chamada cláusula geral
do erro administrativo. Reza, a propósito, o art. 28 da LINDB:

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou


opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

É a partir dela que ganha corpo o estudo, no Brasil, do erro do administrador


público, conforme trabalhos pioneiros de Pedro de Hollanda Dionisio,23 Gustavo
Binenbojm,24 André Cyrino25 e Fernando Leal,26 dentre outros.

3 O erro administrativo
O erro, na perspectiva do administrador público, pode ser encarado como
uma incompleta ou imperfeita percepção da realidade (fática ou jurídica) que
induz o agente público à tomada de uma decisão distinta daquela que teria
adotado, se tivesse perfeita ciência dos fatos ou do direito aplicável. Pode ser
exemplificado com a realização de uma obra emergencial para a contenção de
encosta, sem a realização de prévia licitação (art. 75, VIII, da Lei de Licitações27),
sob a premissa fática (pois, erro de fato) de que havia o risco iminente de
desmoronamento, premissa essa que se revelou posteriormente incorreta, tendo
estudos subsequentes demonstrado que a encosta era mais sólida do que se
supunha.
Já um exemplo de erro administrativo de direito estaria na contratação,
pelo ente estatal, para a prestação de serviços de limpeza predial, de entidade

23 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamento e
parâmetros. Rio de Janeiro: GZ, 2019.
24 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 203–224.
25 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 203–224.
26 LEAL, Fernando. A cláusula geral do erro administrativo e o dever de precaução. A&C – Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte, ano 21, n. 84, p. 109-146, abr. /jun. 2021. DOI: 10.21056/aec.v21i84.1535.
27 “Art. 75. É dispensável a licitação: (...) VIII – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada
urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços
públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente
para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas
de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da
emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já
contratada com base no disposto neste inciso”.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 79
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

sem fins lucrativos, voltada estatutariamente para a pesquisa, o ensino ou o de­


senvolvimento institucional, sob o premissa sincera de que haveria auto­ri­za­ção
legal no art. 24, XIII, da Lei nº 8.666/1993 (a anterior Lei de Licitações).
Ocorre que, muito embora o referido inciso do art. 24 considere dispensável
a licitação “na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou
estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional,
ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada
detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos”,
a jurisprudência do Tribunal de Contas da União pacificou-se há muito tempo no
sentido de só admitir “as contratações com dispensa de licitação fundamentada
no art. 24, inc. XIII, da Lei nº 8.666/93 quando, comprovadamente, houver nexo
entre esse dispositivo, a natureza da instituição contratada e o objeto contratual,
este necessariamente relativo a ensino, a pesquisa, ou a desenvolvimento
institucional”.28 Nesse sentido, a contratação direta, sem licitação, carateriza nítido
erro de direito, pois parte de uma equivocada representação da realidade, de que
haveria autorização legal para não licitar, sempre que o contratado seja instituição
brasileira filantrópica, de inquestionável reputação ética e profissional, voltada
para a pesquisa, o ensino ou o desenvolvimento institucional. Ignora, contudo,
que a jurisprudência do TCU (assim como toda a doutrina) firmou orientação
no sentido de que seria condição para tanto, ainda, que o objeto da contratação
guarde nexo com alguma das atividades referidas no aludido dispostivo de lei.
Errar, no entanto, é da natureza humana. E mais:

Só erra quem se propõe a acertar. Do bom gestor espera-se que tente, inove,
tome decisões e cometa erros, até que consiga acertar (...) Não se pode ignorar,
como bem leciona Fernando Leal, que ‘o administrador público... nem sempre
decide sob condições de certeza a respeito dos efeitos que as suas escolhas
produzirão na realidade ou é capaz de reunir as informações necessárias para
privilegiar uma decisão ótima sem incorrer em custos muito altos ou mesmo
proibitivos’.
Mais do que isso, o gestor toma dezenas de decisões diariamente. Obviamente,
vai errar em algum momento. É o que dele se espera. Inovar pressupõe a
assunção de riscos. Exige tentativas e experimentalismo.29

28 TCU, Processo nº TC 000.728/98-5, Decisão nº 30/00, relator Ministro Guilherme Palmeira, Plenário, julgado em 26/1/00,
DOU de 4/2/00. No mesmo sentido, dentre tantos outros: TCU, Decisão nº346/99, relator Ministro Lincoln Magalhães
da Rocha, DOU de 22.06.99.
29 SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Estímulos persecutórios excessivos: uma reflexão sobre a lei de improbidade admi­nistra­
tiva. In: Migalhas, 23 de julho de 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/6/7840FDF4E3BBA3_
Estimulospersecutoriosexcessiv.pdf. Acesso em: 05 ago. 2022.

80 Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023
SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

De fato, considerando as limitações cognitivas que recaem sobre todo


e qualquer indivíduo, as complexidades inerentes à atividade administrativa
estatal (quer sob a perspectiva técnica, quer sob a perspectiva temporal), a
necessidade de encontrar soluções novas para problemas mal resolvidos ou até
então inexistentes, o contigente de decisões que precisam ser tomadas pelos
gestores públicos diariamente, é natural que tentem, inovem, assumam riscos
e que incidam em erros, sem que isso possa importar em qualquer penalização.
Merece atenção, em especial, a figura do erro de prognóstico, assim entendido
aquele que deriva de equívoco sobre projeção a respeito da realidade futura.
Nele, a partir das informações disponíveis, o agente público vislumbra um porvir
que não se concretiza, desperdiçando, ainda que de forma bem intencionada,
recursos do erário em projetos, soluções, escolhas que, se pudesse ele antecipar
melhor o futuro, não teriam sido feitas.30
Por isso mesmo, há que existir um espaço de acomodação do erro na gestão
pública. Daí falar Pedro de Hollanda Dionisio, inclusive, em um direito31 ao erro do
administrador público no Brasil. O gestor público teria uma autorização legal para
errar. A regra do art. 28 da LINDB, na dicção de Gustavo Binenbojm e André Cyrino,
teria “o escopo de proteger o gestor com boas motivações”.32 Cuidaria do “gestor
que quer fazer uma boa administração a partir de abordagens inovadoras, mas
tem medo de agir”,33 tutelando-o “com incentivos positivos de inovação no trato
da coisa pública”.34 O limite da proteção legal estaria na figura do erro grosseiro.

4 Erro administrativo grosseiro


Cabe divisar, por sua óbvia relevância na esfera jurídica do gestor público, o
erro tolerável35 (corriqueiro, comum, trivial) do erro grosseiro. Aquele – perceba-se
– não é passível de penalização; já este último autoriza a responsabilização do
agente público, nos termos do art. 28 da LINDB.

30 Como bem anota Fernado Leal, a “definição de erro de fato proposta por Dionísio parte de um descompasso entre
as crenças do administrador sobre a realidade e essa tal qual se apresenta ou se apresentava efetivamente. O erro,
portanto, decorreria da ignorância ou do conhecimento imperfeito de fatos presentes ou pretéritos que informam ou
informaram uma decisão administrativa. Essas referências temporais, no entanto, não devem excluir a possibilidade
de erro quando a tomada de decisão erguer a pretensão de se justificar sobre os efeitos que pode vir a produzir.
Equívocos sobre projeções imperfeitas do futuro também não devem ser desprezados. Nesse âmbito, o que está em
aberto é a possível caracterização de erros decorrentes de prognósticos como erros decisórios capazes de produzir
efeitos jurídicos sobre o administrador” (LEAL, Fernando. Op. cit., p. 119).
31 DIONISIO, Pedro de Hollanda. Op. cit.
32 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 206.
33 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 206.
34 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 206.
35 DIONISIO, Pedro de Hollanda. Op. cit., p. 115-153.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 81
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

O caso da ciclovia Niemeyer (também conhecida como ciclovia Tim


Maia), no Rio de Janeiro, é um bom exemplo para análise. Ali, se ficar provado
que os estudos técnicos que precederam a obra e que embasaram o projeto
consideraram as normas técnicas aplicáveis e as informações disponíveis, para
assegurar a segurança estrutural da construção, não haverá que se falar em
responsabilização dos agentes públicos envolvidos, ainda que eventualmente
tenha havido algum erro de fato nos cálculos realizados.
Com efeito, um dos argumentos deduzidos em favor dos engenheiros da
Administração Municipal é o de que não consideraram a possibilidade de uma
onda gigantesca se chocar contra as rochas e, com o choque, ser impulsionada
para o alto até alcançar a ciclovia e romper com a viga de sustentação, porque na
série histórica examinada, em mais de cinquenta anos, nunca teria havido uma
onda como aquela. Tendo isso como premissa fática, os técnicos da Administra­
ção Municipal, a partir de uma falsa representação da realidade, teriam concluído
que não havia risco para a estrutura montada, tendo aprovado o projeto e a obra.
Haveria aqui um erro de fato sem significância para o direito administrativo
sancionador.
Poder-se-ia falar em erro grosseiro, apenas e por hipótese, se ficar evidenciado
que ressacas semelhantes acontecem anualmente, com a produção, de forma
relativamente recorrente, de ondas de tal magnitude naquela região costeira. Aí,
a depender das demais circunstâncias envolvidas no caso (o que já escapa ao
objeto do presente estudo), talvez se pudesse admitir a penalização dos servi­
dores públicos envolvidos no ocorrido.
O caso acima, sem prejuízo da necessidade de maior aprofundamento quanto
às circunstâncias fáticas e práticas nele envolvidas, confirma a importância de se
tentar oferecer alguns parâmetros para a identificação de eventual erro grosseiro,
para fins de responsabilização dos gestores públicos e demais agentes estatais.
Houve – é verdade – uma tentativa de definir o erro grosseiro na Medida
Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, no bojo da adoção das medidas de
combate à Covid-19. Ali, conceituou-se como erro grosseiro, no campo da gestão
pública, “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave,
caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência
ou imperícia” (art. 2º).36

36 Não se ignora que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Incons­
titucionalidade nº 6.427, conferiu “interpretação conforme a Constituição ao art. 1º da MP 966/2020, para explicitar
que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade a quem compete decidir deve exigir que a opinião técnica trate

82 Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023
SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

Mais do que isso, ocupou-se o referido ato normativo, em seu art. 3º, de
tentar oferecer alguns parâmetros para a aferição casuística da existência de erro
grosseiro:

Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:


I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;
III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência
ou emergência;
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado
a ação ou a omissão do agente público; e
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para
enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive
as econômicas.

Preocupava ao Governo Federal, naquelas circunstâncias excepcionais e sem


precedentes, de emergência sanitária, que decisões tomadas em uma cenário
de incerteza radical, com reduzidas informações disponíveis, pudessem resul­
tar na responsabilização dos agentes públicos na área de saúde. A exposição de
mo­tivos encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional é didática
a respeito:

(...)
6. O agente público, hoje, para salvaguardar vidas e combater os efeitos
econômicos e fiscais da população brasileira se vê diante de medidas que
terão impactos fiscais extraordinários para as futuras gerações, de compra de
equipamentos por preços que, em situação normal, não se julgaria ideal, de
flexibilizações na interpretação de regras orçamentárias que antes pareciam

expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos
por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios
constitucionais da precaução e da prevenção”. Na ocasião, no entanto, também consignou o Min. Luís Roberto
Barroso, no voto condutor, que o julgamento em questão ficaria restrito à MP nº 966/2020, sem que fosse examinada
a constitucionalidade do art. 28 da LINDB. Antecipou o Ministro, a propósito, apenas o seguinte: “deixo de me
manifestar, por ora, sobre a complexa questão, que também decorre da LINDB (e de seu decreto regulamentador
por arrastamento), de saber se é possível limitar a responsabilidade dos agentes públicos em geral aos casos de erro
grosseiro ou de dolo e, portanto, excluir sua responsabilidade na situação de culpa simples ou de erro escusável, que
é o objeto da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A questão envolve, de um lado, uma leitura do alcance
do princípio republicano e do art. 37, § 6º, CF; e, de outro lado, uma compreensão aprofundada sobre as circunstâncias
e particularidades do processo decisório dos agentes públicos em situações de incerteza, urgência e assimetria de
informações, bem como dos problemas relacionados ao exercício do poder de controle sobre tais autoridades. Já
adianto que há duas coisas muito ruins para a administração pública e o bem comum: de um lado, administradores
incorretos e, de outro, administradores corretos que têm medo de decidir o que precisa ser decidido, por temor de
retaliações futuras” (STF, ADI 6421 MC, relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/5/2020, DJe de
12/11/2020).

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 83
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

indiscutíveis, dentre outras. Em suma, hoje, o gestor se vê diante de vários


choques negativos estruturais simultâneos, da dificuldade de previsibilidade
de cenários e de situações que lhe demandam decisões contrárias a parâmetros
antes conhecidos.
(...)
8. Portanto, para que os gestores possam continuar guiados apenas por dois
objetivos – salvar vidas e evitar um colapso econômico do País –, é necessário
que tenham um altíssimo grau de segurança jurídica. É preciso que suas
decisões mais impactantes, tomadas de boa-fé e voltadas para esses objetivos,
sejam livres das amarras futuras de processos de responsabilização. É preciso
que o gestor saiba que, especialmente nessa situação, não deve temer que suas
ações sejam confundidas com as práticas ilegais daqueles que eventualmente
se aproveitarem do momento para corromper.37

É verdade que a aludida Medida Provisória não foi convertida em lei, tendo
o seu prazo constitucional de vigência expirado em 10 de setembro de 2020.38
Ainda assim, ali surgiram (ou ao menos receberam reforço) alguns importantes
parâmetros para a aferição da prática de erro grosseiro, quer com relação à sua
conceituação, quer com relação às circunstâncias que ajudam a identificá-lo no
caso concreto.
Erro grosseiro é aquele equívoco, fruto de uma imperfeita ou inexata
percepção da realidade, que qualquer um identificaria, nas circunstâncias
vivenciadas pelo agente público. Deriva de culpa grave, fruto da ausência de
adoção de cautelas mínimas na prática de determinado ato, traduzindo-se em
um elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. Há que ser aferido
casuisticamente, com um olhar pragmático,39 considerando a complexidade da
matéria, a urgência da decisão, as informações disponíveis, as circunstâncias
práticas e concretas envolvidas no caso e o nível de incerteza existente. Tem
perfeita aplicação aqui o art. 20 da LINDB, que assim estatui:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados


os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas
públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

37 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-966-20.pdf. Acesso em: 05 ago.


2022.
38 Vide o Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 123/2020. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Congresso/adc-123-mpv966.htm. Acesso em: 05 ago. 2022.
39 Sobre o tema, vide: ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando. Pragmatismo como [meta]teoria da decisão
judicial: caracterização, estratégias e implicações. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e teoria constitucional
contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 171-211.

84 Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023
SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

Não há uma fórmula aprioristicamente correta para identificá-lo, não


podendo os órgãos de controle “julgar nas nuvens”40 e decidir “com base em
valores jurídicos abstratos” (art. 20 da LINDB). Por isso, há que ser vista com certa
preocupação a tentativa do STF, como o fez no julgamento da MP nº 966/2020,
de estabelecer uma fórmula abstrata para definir, no auge da pandemia da
Covid-19, que configuraria “erro grosseiro o ato administrativo que ensejar vio­
lação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adver­
sos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos;
ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autori­
dade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que
baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos
e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e
entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos
princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se torna­
rem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.41 Como bem atentou
Fernando Leal:

Nas versões afirmadas nos dois julgados relacionados ao contexto da


pandemia do novo coronavírus, a precaução parece deslocar para o Supremo
– ou qualquer outro controlador – o poder de definir qual solução em favor da
saúde da população deve ser privilegiada nos casos de dúvida científica. E essa
pode ser uma mensagem problemática para pautar o agir da Administração
não só em um contexto singular, como o de pandemias, como em qualquer
outro. Por um lado, a proibição de atuar em caso de dúvida, além de criticável,
torna o reconhecimento de um espaço para a acomodação do erro não
doloso ou grosseiro do gestor público que tenta ou precisa agir para lidar com
incertezas, na prática, inviável. Como visto, exceto nos casos de tomada de
decisão sob condições de certeza, quando houver risco determinável ou a
mera possibilidade de se imaginar, mesmo que de maneira difusa e imprecisa,
que certos cursos de ação podem produzir efeitos capazes de afetar a saúde
ou o meio-ambiente, ao administrador só resta, diante de critério tão exigente,
a inação. Mas não agir em um cenário que impõe um dever de ação, como
o típico de uma pandemia, pode criar um dilema insuperável para o gestor
público, que poderia ser responsabilizado por omissão. Por outro lado, na forma
de um diretriz valorativa que, na dúvida, impõe a preferência pela alternativa
decisória ‘em favor da saúde da população’, a precaução também inviabiliza o

40 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Direito GV/ Malheiros, 2014, p. 79.
41 STF, ADI 6421 MC, relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/5/2020, DJe de 12/11/2020.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 85
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

espaço do erro inapto a gerar responsabilização pessoal do administrador ao


criar espaços amplíssimos para a atuação de controladores.42

A decisão pode ter tido a melhor das intenções: de assegurar que, no bojo
de uma emergência sanitária global, o Governo Federal respeitasse os protocolos
sanitários fixados pelos organismos internacionais e o conhecimento técnico
já produzido sobre o assunto. Reconhece-se, ainda, que os efeitos dela podem
eventualmente ter sido amplamente benéficos no combate à pandemia da
Covid-19. Ainda assim, considerar, de antemão, num típico cenário de incerteza
radical (que era o caso), que é erro grosseiro a inobservância dos princípios da
precaução e da prevenção, no âmbito do direito à saúde pública, conforme a
tese fixada pelo STF, poderia ter servido de argumento, em sentido oposto ao
pretendido, para inviabilizar a distribuição de vacinas, já que, em um momento
inicial, havia dúvidas genuínas quanto à eficácia delas e mesmo quanto aos riscos
que representavam para quem recebeu a sua aplicação.

5 Erro não é mais improbidade


É cediço que, na redação original da Lei nº 8.429/1992 (conhecida como Lei
de Improbidade Administrativa), o legislador optou, com o pretenso e deliberado
propósito de melhor combater a corrupção,43 pela tipificação genérica e aberta,
de caráter principiológico, dos chamados atos de improbidade administrativa.
Nesse sentido, o art. 11 da Lei contemplava a possibilidade de penalização dos
agentes públicos por violação aos princípios da administração pública nele
exemplificativamente referidos.44 Na dicção legal:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os


princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições,
e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele
previsto, na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

42 LEAL, Fernando. Op. cit., p. 138-139.


43 A Lei de Improbidade Administrativa é fruto de projeto de iniciativa do Poder Executivo, conforme a Mensagem
nº 406, de 14 de agosto de 1991. Na exposição de motivos, assinalou Jarbas Passarinho, então Ministro da Justiça do
Governo Collor, que a proposta tinha o deliberado intuito de combater “a prática desenfreada e impune da corrupção,
no trato com os dinheiros públicos”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-8429-2-junho-
1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html. Acesso em: 05 ago. 2022.
44 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 743-745.

86 Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023
SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições
e que deva permanecer em segredo;
IV – negar publicidade aos atos oficiais;
V – frustrar a licitude de concurso público;
VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII - revelar
ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva
divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o
preço de mercadoria, bem ou serviço;
VIII – descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação
de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades
privadas;
IX – deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na
legislação;
X – transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na
área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento
congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de
setembro de 1990.

É verdade, como bem enfatizou o Min. Alexandre de Moraes em seu voto no


julgamento ainda em curso do Recurso Extraordinário com Agravo nº 843.989,45
que a jurisprudência firmara-se, sob a égide da legislação pretérita, no sentido
de que o dolo seria elemento subjetivo do tipo previsto no aludido art. 11. Nada
obstante, a orientação prevalente no STJ sempre foi a de que “o elemento subjetivo,
necessário à configuração de improbidade administrativa censurada nos termos
do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, é o dolo genérico de realizar conduta que atente
contra os princípios da Administração Pública, não se exigindo a presença de dolo
específico”.46 Significa dizer que, para a caracterização da improbidade, bastava
a mera voluntariedade do agente na prática do ato, dispensando-se a prova de
que o atuar administrativo havia sido deliberadamente direcionado para uma
intenção ilícita (o chamado dolo específico). Exemplificando, bastava a decisão

45 “Observe-se que, apesar da LIA, em sua redação original, somente permitir, excepcionalmente, responsabilidade a
título culposo nas condutas definidas em seu artigo 10, o legislador pretendeu reafirmar a necessidade do elemento
subjetivo – DOLO – também nos artigos 9º e 11 – que sempre foram tipos eminentemente dolosos –, incluindo as
expressões ‘mediante a prática de ato doloso’ e ‘ação ou omissão dolosa’, respectivamente. A ratio desse reforço
legislativo foi reafirmar a total impossibilidade de responsabilização objetiva por ato de improbidade administrativa
em qualquer de suas condutas, bem como a inexistência de atos de improbidade administrativa culposos nos artigos
9º e 11. A necessidade de apontar os fatos e imputações de cada um dos réus, mesmo que não se exija a mesma
rigidez de tipicidade do campo do Direito Penal, sempre foi exigência legal, pois não há responsabilidade objetiva que
possibilite as sanções da Lei de Improbidade Administrativa, devendo ser demonstrado o elemento subjetivo do tipo,
ou seja, o dolo, e, anteriormente à nova lei, excepcionalmente, em condutas do art. 10, o elemento normativo culpa”
(STF, Rext n. 843.989, relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgamento iniciado em 3/8/2022).
46 STJ, REsp n. 951.389/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 9/6/2010, DJe de 4/5/2011.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 87
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

de promover a contratação direta, sem licitação, ainda que sob a percepção de


que ela seria possível em determinada hipótese, para que eventual violação ao
princípio da impessoalidade ficasse caracterizada, ensejando a responsabilização
do agente responsável por ato de improbidade.47 Não havia a necessidade de
fazer prova de que a intenção do agente público era, deliberadamente, a de burlar
o procedimento licitatório. Confira-se, a propósito do tema, o seguinte trecho do
voto condutor do Min. Herman Benjamin, no Recurso Especial nº 951.389/SC:

Conforme recentemente decidido pela Segunda Turma do STJ no REsp


765.212/AC, de minha relatoria, mas com valiosos subsídios jurídico-
doutrinários aportados pelo eminente Ministro Mauro Campbell, o elemento
subjetivo necessário à configuração de improbidade administrativa cen­
surada pelo art. 11 da Lei 8.429/1992 é o dolo genérico, consistente na
vontade de realizar ato que atente contra os princípios da Administração
Pública. Essa já era, em linhas gerais, a posição da Primeira Turma, na esteira
da qual passa a se alinhar a Segunda Turma, no que tange à exigibilidade de
dolo na tipificação da infração ao art. 11.
Não se impõe a presença de dolo específico, ou seja, de comprovação de
intenção especial do ímprobo, além da realização de conduta tida por incom­
patível com os princípios administrativos.48

A verdade é que, fruto da orientação firmada pelo STJ, todo e qualquer erro
administrativo, por mais irrelevante que fosse, poderia ser enquadrado, em tese,
como violação a algum dos princípios que regem a atividade administrativa
do Estado, tal e qual insculpidos no caput do art. 37 da Constituição Federal,
porquanto nele (no erro) não deixa de existir a voluntariedade do agente (o dolo
genérico), mesmo que fruto de alguma falha de percepção sobre a realidade,
levando-o à tomada de uma decisão que não teria sido adotada, se perfeita fosse
a ciência dos fatos ou do direito aplicável. O erro rompe com o dolo específico,
mas não com o genérico. Afasta a intenção ilícita, mas não a voluntariedade.

47 Veja-se, dentre tantos outros, o seguinte precedente do STJ: “ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 10, VIII, DA LEI 8.429/1992. DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO. DANO
IN RE IPSA À ADMINISTRAÇÃO. 1. A jurisprudência do STJ entende que o prejuízo decorrente da dispensa indevida
de licitação é presumido (dano in re ipsa), consubstanciado na impossibilidade da contratação pela Administração
da melhor proposta. 2. O próprio art. 10, VIII, da Lei 8.492/1992 ‘conclui pela existência de dano quando há frustração
do processo de licitação, inclusive abarcando a conduta meramente culposa. Assim, não há perquirir-se sobre a
existência de dano ou má-fé nos casos tipificados pelo art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa.’ (Resp 769.741/
MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 20.10.2009). 3. Recurso Especial não provido” (STJ, REsp n. 1.685.214/
MG, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 19/12/2017).
48 STJ, REsp n. 951.389/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 9/6/2010, DJe de 4/5/2011.

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SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

Não bastasse isso, o art. 1049 da Lei nº 8.429/1992 admitia, textualmente, a


responsabilidade meramente culposa, nas hipóteses de improbidade admi­
nistrativa por lesão ao erário. Reforçava o art. 5º da Lei, ainda, que “[o]correndo
lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa”, “dar-se-ia o
integral ressarcimento do dano”.
Ocorre que todo o erro, à exceção daqueles inevitáveis ou de difícil evita­
bilidade, revela inobservância de regras mínimas de cautela. Corresponde a
algum grau de culpa, ainda que leve ou mesmo levíssima. A pessoa erra porque,
em alguma medida, não atentou para algum aspecto da realidade (fática ou

49 Na redação original: “Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação
ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação
dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: I – facilitar ou concorrer por qualquer
forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores
integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; II – permitir ou concorrer para
que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das
entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis
à espécie; III – doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos
ou assistências, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º
desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie; IV – permitir ou facilitar
a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1º
desta lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado; V – permitir ou facilitar a
aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado; VI – realizar operação financeira
sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea; VII – conceder
benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá–lo indevidamente VIII – frustrar a licitude de processo
licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los
indevidamente; IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; X – agir
negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio
público; XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma
para a sua aplicação irregular; XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; XIII
– permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer
natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, bem como o
trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades; XIV – celebrar contrato ou
outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar
as formalidades previstas na lei; XV – celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação
orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei; XVI – facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para
a incorporação, ao patrimônio particular de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores públicos
transferidos pela administração pública a entidades privadas mediante celebração de parcerias, sem a observância
das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; XVII – permitir ou concorrer para que pessoa
física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a
entidade privada mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares
aplicáveis à espécie; XVIII – celebrar parcerias da administração pública com entidades privadas sem a observância
das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; XIX – frustrar a licitude de processo seletivo para
celebração de parcerias da administração pública com entidades privadas ou dispensá-lo indevidamente; XIX
– agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela
administração pública com entidades privadas; XX – agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das
prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas; XX – liberar recursos
de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas
pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XXI – liberar recursos de parcerias firmadas
pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de
qualquer forma para a sua aplicação irregular”.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 89
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

jurídica). Deixa passar, por um lapso de atenção ou de cuidado, um aspecto de


fato ou de direito que, se tivesse sido mais cautelosa, teria considerado.
Assim é que, quer porque o erro não afasta a mera voluntariedade do ato
praticado, quer porque nele em geral incide o administrador público em algum
grau de culpa, havia amplo espaço nos tipos abertos e principiológicos dos
arts. 10 e 11 da Lei de Improbidade, na sua redação original, para a responsabili­
zação de administradores públicos por mero erro administrativo. Efeito disso é
que a Lei nº 8.429/1992 funcionava:

(...) como um entrave à atuação administrativa do Estado. Instituiu uma matriz


de responsabilidade caótica para o gestor público, ao ponto em que, no mais
das vezes, não tem ele como saber, de antemão, aquilo que lhe é permitido,
ou não, fazer. Na prática, pune severamente o erro administrativo; e não a
desonestidade, a corrupção ou a devassidão no trato da coisa pública.
Efeito disso é que poucas pessoas honestas, com sucesso profissional e pa­
trimônio construído a duras penas, estão dispostas a seguir a vida pública.
É sintomático que personalidades reconhecidas, com um histórico pro­fis­
sional vitorioso, como é o caso do Ministro Joaquim Barbosa, do apresen­
ta­dor Luciano Huck e do ex-atleta olímpico e técnico de volleyball
Bernardinho, tenham cogitado a possibilidade de disputar eleições para
cargos no Poder Executivo, mas depois desistiram (...).
Punir o erro administrativo só serve para construir uma cultura burocrática, que
estimula o não fazer. É conhecida nas repartições públicas a figura do servidor
público que só sabe dizer ‘não’. A verdade é que o ‘não’, em um ambiente
de tanta insegurança jurídica, de tanta incerteza, constitui instrumento de
autopreservação. Entre dizer um ‘sim’ e assumir riscos na sua esfera pessoal,
ou dizer um ‘não’ e dormir tranquilo, todos tendem a dizer o ‘não’. Aí a origem
do fenômeno que ficou conhecido como ‘apagão das canetas’.50

Teve a redação original da Lei, sem sombra de dúvida, papel decisivo em


instalar, na esfera da gestão pública, um clima de inegável insegurança jurídica,
contribuindo sobremaneira para a criação do fenômeno já alcunhado neste
trabalho de “apagão das canetas” e, também, de “Direito Administrativo do
Medo”.51
A aprovação, em 2018, da LINDB é uma nítida resposta ao cenário retratado,
de medo, de receio, de insegurança jurídica, criado no seio da gestão pública.
A cláusula geral do art. 28, ao restringir a penalização do administrador público

50 SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Op. cit.


51 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Op. cit.

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SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

às hipóteses de dolo ou erro grosseiro, cria um espaço de necessária tolerância


ao equívoco administrativo. Volta-se para “oferecer segurança jurídica ao
agente público com boas motivações, mas falível como qualquer pessoa”,52 e
para contribuir para a criação, na esfera estatal, de uma cultura que promova a
inovação e atraia gestores honestos e capacitados.
A responsabilidade por erro grosseiro, no âmbito do microssistema de tutela
da probidade administrativa, vigorou até a promulgação da Lei nº 14.230, de 25 de
outubro de 2021 (a Reforma da Lei de Improbidade). Isso porque o novo Diploma
Legal passou a exigir, como condição para a caracterização da prática de ato de
improbidade administrativa, a existência de conduta dolosa, qualifi­cada pelo
dolo específico. Não há mais, no ordenamento jurídico brasileiro, a impro­bidade
culposa. É o que dispõe, em especial, o art. 1º, §§ 1º a 3º, da Lei:

Art. 1º (...)
§1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas
tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis
especiais.
§2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado
ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do
agente.
§3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas,
sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por
ato de improbidade administrativa.

De fato, mesmo o desfigurado Projeto de Lei nº 10.887/2018,53 de autoria do


Deputado Roberto Lucena, já anunciava, em sua justificativa, a importância da
eliminação da modalidade culposa de improbidade administrativa, por autorizar
a punição do agente público por mero erro administrativo:

Bastante significativa é a supressão do ato de improbidade praticado me­


diante culpa.
De um atento exame do texto, par e passo da observação da realidade,
conclui-se que não é dogmaticamente razoável compreender como ato de
improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negli­gên­cia,
uma imprudência ou uma imperícia. Evidentemente tais situações não dei­
xam de poder se caracterizar como ilícitos administrativos que se submetem

52 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Op. cit., p. 221.


53 Desfigurado porque sofreu diversas emendas, até resultar na Lei nº 14.230/2021.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 91
GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

a sanções daquela natureza e, acaso haja danos ao erário, às consequências


da lei civil quanto ao ressarcimento.54

Nesse sentido, não há mais que se falar na modalidade culposa e nem,


muito menos, na mera voluntariedade do administrador como elemento sufi­
ciente para a caracterização de ato de improbidade administrativa. Exige a nova
lei, textualmente, “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito
tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”
(art. 1º, §2º). Resultado disso é que o erro, mesmo o grosseiro, foi integralmente
excluído do campo de incidência da lei de improbidade administrativa.
Isso – perceba-se – não significa que um servidor público não possa mais
responder em caso da prática de erro grosseiro. Entendeu o legislador, apenas,
que fica afastada a penalização do gestor público nas sanções previstas na Lei de
Improbidade, nada impedindo, nada obstante, que se sujeite ele, se for o caso, à
responsabilização civil, por outras vias de controle, como a ação popular, a ação
civil pública, a ação ordinária, etc.

6 Conclusões
Até bem recentemente, parcos eram os estudos sobre o erro administra­
tivo no Brasil. Isso muda, sobretudo, a partir da edição da Lei nº 13.655/2018 e a
inserção da chamada cláusula geral do erro administrativo no art. 28 da LINDB.
O erro, na perspectiva do administrador público, pode ser encarado como uma
incompleta ou imperfeita percepção da realidade (fática ou jurídica) que induz o
agente à tomada de uma decisão distinta daquela que teria adotado, se tivesse
perfeita ciência dos fatos ou do direito aplicável. Por sua vez, erro grosseiro é
aquele que qualquer um identificaria, nas circunstâncias vivenciadas pelo agente
público. Deriva de culpa grave, revestindo-se de um elevado grau de negli­gência,
imprudência ou imperícia. Há que ser aferido casuisticamente, tendo em conta
a complexidade da matéria, a urgência da decisão, as informações disponíveis
à época dos fatos, as circunstâncias práticas e concretas e o nível de incerteza
existente. Não há uma fórmula aprioristicamente correta para identificá-lo, não
podendo os órgãos de controle aferi-lo “com base em valores jurídicos abstratos”
(art. 20 da LINDB).

54 Projeto de Lei nº 10.887/2018, de autoria do Deputado Roberto Lucena. Disponível em: https://www.camara.leg.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01d4hphenlcg6v8cguhhz43fv421993707.node0?codteor=1687
121&filename=PL+2505/2021+%28N%C2%BA+Anterior:+pl+10887/2018%29. Acesso em: 04 ago. 2022.

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SEPARANDO O JOIO DO TRIGO: ERRO NÃO É (MAIS) IM­PROBIDADE

Sob a égide da redação original da Lei de Improbidade Administrativa, havia


amplo espaço nos tipos abertos e principiológicos dos arts. 10 e 11 para a res-
ponsabilização de administradores públicos por mero erro administrativo. A uma
porque a orientação que se consolidou no STJ foi a de que, para a carac­terização
da improbidade do art. 11 da Lei, bastaria a mera voluntariedade do agente na prá-
tica do ato (dolo genérico), dispensando-se a prova de que o atuar admi­nistrativo
havia sido deliberadamente direcionado para uma intenção ilí­cita (o chamado
dolo específico). Assim, todo e qualquer erro administrativo, por mais irrelevante
que fosse, poderia ser enquadrado, em tese, como violação a algum dos princí-
pios que regem a atividade administrativa do Estado, tal e qual inscul­pidos no
caput do art. 37 da Constituição Federal, porquanto nele (no erro) não deixa de
existir a voluntariedade do agente (o dolo genérico), mesmo que fruto de alguma
falha de percepção sobre a realidade. O erro rompe com o dolo específico, mas
não com o genérico. Afasta a intenção ilícita, mas não a voluntariedade. A duas
porque, à exceção daqueles inevitáveis ou de difícil evitabilidade, o erro em geral
revela algum grau de inobservância a regras mínimas de cautela. Corresponde a
algum grau de culpa, ainda que leve ou mesmo levíssima. A pessoa erra porque,
em alguma medida, não atentou para algum aspecto da realidade (fática ou jurí-
dica). Deixa passar, por um lapso de atenção ou de cuidado, um aspecto de fato
ou de direito que, se tivesse sido mais cautelosa, teria considerado. Por incidir
em algum grau de culpa, por mais leve que seja, poderia o agente público ser
acusado da (e responder pela) prática de improbidade, na forma do art. 10, caso o
equívoco gerasse algum prejuízo ao erário.
Tudo isso alimentava o fenômeno do “apagão das canetas”. A aprovação,
em 2018, da LINDB é uma nítida resposta ao cenário de medo, de receio, de
insegurança jurídica, criado no seio da gestão pública. A cláusula geral do art. 28,
ao restringir a penalização do administrador público às hipóteses de dolo ou erro
grosseiro, cria um espaço de necessária tolerância ao equívoco administrativo.
A possibilidade de penalização do gestor público por erro grosseiro, no âmbito
do microssistema de tutela da probidade administrativa, vigorou até a Reforma da
Lei de Improbidade. O novo Diploma Legal (de 2021), modificando o tratamento
legal conferido ao tema, passou a exigir, como condição para a caracterização da
prática de ato de improbidade administrativa, a existência de conduta dolosa,
qualificada pelo dolo específico. Não há mais hoje que se falar na modalidade
culposa e nem, muito menos, na mera voluntariedade do administrador como
elemento suficiente para a caracterização de ato de improbidade administrativa.

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GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

Como consequência, mesmo o erro grosseiro foi integralmente excluído do


campo de incidência da lei de improbidade administrativa, o que não significa
a ausência de responsabilidade daquele que nele incidir. Nada impede, com
efeito, que o agente público responda civilmente, por ação própria, na hipótese
de causar prejuízo a alguém, por erro grosseiro.

Abstract: A side effect of the expansion, in Brazil, of instruments to control state administrative
activity, with the consequent and more intense accountability of public agents, is the emergence
of a culture of fear in public management, in what has been called “blackout of pens” or
“Administrative Law of Fear”. Decision-making paralysis is, in large part, a direct and immediate
effect of the fear that falls on public officials, because of the excesses committed (voluntarily
or not) by some members of external control bodies. This essay argues, from a theoretical and
dogmatic perspective, that, apart from a possible gross error, mistakes made by public officials
should never be understood as acts of corruption (or administrative misconduct). More than that,
with the reform promoted by Law 14.230/2021, even the gross error should no longer be seen as
such, which does not mean that it cannot be penalized in other spheres of state control.
Keywords: Administrative Misconduct. Administrative Error. Gross Error. Deceit. Responsibility.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da


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SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Separando o joio do trigo: erro não é


(mais) improbidade. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23,
n. 265, p. 71-95, mar. 2023.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 23, n. 265, p. 71-95, mar. 2023 95

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