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FACULDADE SUDAMÉRICA

FERNANDO MEDEIROS PEREIRA FILHO

A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES À


ATUAÇÃO DOS AGENTES DA PERSECUÇÃO PENAL:
Abordagens sobre a (in)constitucionalidade da Lei 13.869/19, e os reflexos
desta nas atividades das Polícias, do Ministério Público, e dos
Magistrados.

CATAGUASES - MG
2021
FERNANDO MEDEIROS PEREIRA FILHO

A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES À


ATUAÇÃO DOS AGENTES DA PERSECUÇÃO PENAL:
Abordagens sobre a (in)constitucionalidade da Lei 13.869/19, e os reflexos
desta nas atividades das Polícias, do Ministério Público, e dos
Magistrados.

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de


Direito da Faculdade Sudamérica, como requisito
parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.
Professor Orientador: Cláudio Réche Iennaco

CATAGUASES - MG
2021
FERNANDO MEDEIROS PEREIRA FILHO

A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES À ATUAÇÃO


DOS AGENTES DA PERSECUÇÃO PENAL:
Abordagens sobre a (in)constitucionalidade da Lei 13.869/19, e os reflexos
desta nas atividades das Polícias, do Ministério Público, e dos
Magistrados.

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso


de Direito da Faculdade Sudamérica, como requisito
parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.
Professor Orientador: Cláudio Réche Iennaco

Aprovado em: de de

BANCA EXAMINADORA:

Professor Orientador: Cláudio Réche Iennaco

Professor Avaliador

Professor Avaliador

Professor Avaliador
AGRADECIMENTOS

Venho agradecer primeiramente a Deus por me possibilitar essa conquista, me


concedendo saúde e sabedoria em todos os momentos dessa jornada de cinco longos anos.

Agradeço à minha mãe Jaciana, pelo apoio incondicional em todos os momentos da


minha vida, pois, sem ela, eu jamais teria cursado Direito nessa nobre faculdade. Sei o quanto
ela está feliz neste momento por ver seu filho completando uma graduação, não há palavras
para expressar minha gratidão.

À minha namorada, por acreditar em minha capacidade e estar presente nos


momentos mais difíceis até aqui, sua obstinação e perseverança me inspiram dia a dia a lutar
por um futuro melhor.

Aos meus colegas de classe e amigos que fiz durante o estágio no fórum da Comarca
de Miraí/MG, os quais eu lembrarei pelo resto da vida, e aos companheiros da 02ª e 03ª
Promotoria de Cataguases/MG pela oportunidade e por todo conhecimento adquirido.

Um sincero “Muito Obrigado!” para cada uma as pessoas supracitadas por cada coisa
que fizeram e fazem por mim, pois, mesmo que eu não diga sempre, sou imensamente
agradecido a todos.
“Não fui eu que ordenei a você? Seja forte e
corajoso! Não se apavore nem desanime, pois
o Senhor, o seu Deus, estará com você por
onde você andar".
Bíblia Sagrada, Josué 1:9.
RESUMO

O presente artigo tem como objetivo revelar os reflexos das mudanças geradas pela
Lei n. 13.869/2019, especialmente à atuação dos policiais, de membros do Ministério Público
e de magistrados, trazendo à tona uma discussão quanto a uma possível
(in)constitucionalidade da nova Lei de Abuso de Autoridade e, por outro lado, demonstrar
seus reflexos positivos ao sistema de justiça brasileiro.

Palavras Chave: Abuso de Autoridade. Mudanças. Constitucionalidade.


ABSTRACT

This article aims to reveal the consequences of the changes generated by Law number
13.869/2019, especially the role of police agents, prosecutors and magistrates, bringing up a
discussion about a possible (un) constitutionality of the new Abuse of Authority Law and, on
the other hand, presenting its positive aspects to the current scenery from Brazil.

Keywords: Abuse of Authority. Changes. Constitutionality.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 8

2 BREVE COMPARATIVO ENTRE A ANTIGA E A NOVA LEI DE ABUSO DE


AUTORIDADE........................................................................................................... 10

2.1 A ANTIGA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE – LEI 4.898/65.................................10

2.2 CONTEXTO POLÍTICO-HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA NOVA LEI DE


ABUSO DE AUTORIDADE – LEI 13.869/19........................................................................11

2.3 ASPECTOS GERAIS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE.......................13

3 OS IMPACTOS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE À ATUAÇÃO DE


AUTORIDADES POLICIAIS, MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E
MAGISTRADOS........................................................................................................ 16

3.1 O ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO....................................................................16

3.2 A VEDAÇÃO AO CRIME DE HERMENÊUTICA.........................................................19

3.3 OS EFEITOS DA CONDENAÇÃO E AS PROTEÇÕES AOS AGENTES PÚBLICOS


20

4 AS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE (ADIs) n° 6234, 6236,


6238, 6240 E SEUS ASPECTOS CONTROVERSOS...............................................23

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................26

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 28
8

1 INTRODUÇÃO

O ponto inicial para a laboração do artigo em tela foi esclarecer sobre o


enfraquecimento, ou não, das autoridades que compõem a persecução penal, seja ela em sua
fase preliminar, tal como a fiscalização e investigação de atos ilícitos, ou no procedimento
principal, qual seja o processo penal propriamente dito, bem como se a lei criminaliza as
funções essenciais dos agentes que estão investidos nas referidas funções, ferindo assim suas
independências.
O fim da década passada foi marcado por grandes investigações de corrupção no
contexto da operação “Lava Jato”, a qual resultou na prisão de grandes políticos e
empresários, bem como uma forte desconfiança entre as instituições brasileiras. Diante desse
cenário, surgiu a Lei 13.869/2019, vulgo Nova Lei de Abuso de Autoridade.
Nesse ínterim, a legalidade da Nova Lei de Abuso de Autoridade foi muito discutida
no que tange a um possível viés revanchista do novo texto legal, além de ser alvo de diversas
Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs).
Diante dessa perspectiva, foi possível perceber a preocupação de diversas classes
representadas por suas respectivas associações quando frente às possíveis limitações que
entendem sofrer, a exemplo das entidades representativas dos Magistrados, Delegados,
Promotores e Procuradores, os quais se tornaram o principal foco dos novos tipos penais
trazidos pela lei 13.869/2019.
Nesse contexto, ainda que a nova lei objetive preservar os direitos e garantias
fundamentais do cidadão perante aos eventuais abusos do Estado, não se pode ferir a
independência e separação dos poderes, tampouco a autonomia resguardada à Polícia
Judiciária, Ministério Público e a imparcialidade dos Magistrados.
Outrossim, nos ditames do princípio do in dubio pro reo1, é indubitável que não se
pode cercear a liberdade ou qualquer outro direito fundamental indiscriminadamente, mas por
outro lado não se entende razoável criar tipos capazes de impactar de maneira acentuada as
condutas daqueles que executam de forma legítima o serviço estatal, sob a égide de ser
abusivo o seu exercício. Mas será que a entrada em vigor da Lei 13.869/19 tem o condão de
cercear o ofício das autoridades que atuam investigando, denunciando ou julgando condutas
criminosas? Essa pergunta será

1
Princípio do Direito Penal que significa: na dúvida, a favor do réu.
9

amplamente respondida, no decorrer do trabalho em tela.


No segundo capítulo, será feita uma sucinta comparação entre a antiga Lei nº
4.898/1965 e a Nova Lei de Abuso de Autoridade, demonstrando todo contexto político que
redundou o surgimento desta, bem como seus aspectos positivos, vez que a alteração
legislativa definiu melhor as condutas, bem como tratou o tema de forma mais proporcional
sendo ainda incisiva tanto na proteção da vítima como na tipificação dos crimes.
No terceiro capítulo, por sua vez, o estudo em questão responderá se os novos
institutos trazidos pela nova lei foi mesmo capaz de impactar negativamente o exercício
das funções públicas no âmbito da persecução penal, em especial as atividades de
Policiais, dos Magistrados, dos Promotores e Procuradores, a fim de revelar se a lei sob
análise realmente reprime, ou não, a atuação de tais autoridades. Por derradeiro, o terceiro
capítulo trará à tona a discussão da possível inconstitucionalidade do supracitado
diploma normativo, urgindo expor algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade
propostas ao Supremo Tribunal Federal por diferentes entidades de classe, com o intuito de
salientar o polêmico processo de criação que a lei vivenciou com acalorados
enfrentamentos políticos e grandes debates, fatos esses que impulsionaram o
desenvolvimento do trabalho acadêmico
em questão.
A presente pesquisa será desenvolvida sob a abordagem qualitativa, aos moldes da
metodologia bibliográfica, com auxílio dos estudos doutrinários nacionais, das ações movidas
em sede da possível inconstitucionalidade de lei federal e dos artigos pertinentes ao tema,
fundamentados no Direito Penal e Processual Penal, e sobretudo pautado na Constituição
Federal de 1988.
10

2 BREVE COMPARATIVO ENTRE A ANTIGA E A NOVA LEI DE ABUSO


DE AUTORIDADE

Ao refletir sobre o tema Abuso de Autoridade, depreende-se que o excesso de poder


que por vezes acompanha a autoridade pública é altamente prejudicial à máquina estatal e
coloca o homem, enquanto ser, refém de um ego alheio.
Nesse panorama, muito já se viu a população, de uma forma geral, ser refém da
autoridade pública, pois esta muitas vezes quis exigir respeito através da imposição do medo.
Nesse sentido não é difícil afirmar, ou pelo menos pensar, o quanto é ruim à sociedade
conviver em um contexto de poder daqueles que deveriam servir e atuar em nome da Lei.
Diante dessa problemática, fora criado institutos com o intuito de viabilizar a
proteção da população frente aos possíveis abusos do Estado, surgindo assim a Lei 4.898/65,
tipificando condutas por parte dos agentes públicos em uma época onde o próprio conceito
de autoridade era totalmente deturpado. Entretanto, passados quase 55 anos de vigência da
referida lei, pretérita até mesmo à Constituição Federal e promulgada em um período
completamente alheio ao vivido hodiernamente, era notória a defasagem da norma e sua
necessidade de atualização.
Frente a essa perspectiva, nasceu a Lei 13.869 de 2019, denominada Nova Lei de
Abuso de Autoridade, a qual, novamente, assim como a norma anterior, surgiu em uma época
turbulenta do Brasil, contudo, trazendo inúmeras inovações que a diferenciou da antiga Lei
4.898/65, o que será sucintamente demonstrado nos subcapítulos a seguir.

2.1 A ANTIGA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE – LEI 4.898/65

A Lei nº 4898/65, expressamente revogada pela Nova Lei da Abuso de Autoridade, foi
promulgada em um dos momentos mais obscuros da história do Brasil, a ditadura militar.
Nessa época, os embates políticos eram muito mais vorazes, o que acabava ocasionando em
excessos por parte das autoridades que detinham o poder à época, impulsionando o
surgimento da primeira lei brasileira que penalizava o abuso de autoridade. Porém, para
Adriano Sousa Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hoffmann, a lei era inofensiva:
11

A anterior Lei de Abuso de Autoridade, Lei nº 4.898/65 teve como mérito


possibilitar à vítima de qualquer abuso de poder por parte de um agente público
levar tal fato ao conhecimento das autoridades públicas. Todavia, essa Lei anterior,
editada durante o regime militar, foi muito criticada por conter tipos penais abertos e
por cominar penas irrisórias. Todas as 19 infrações penais eram de menor potencial
ofensivo, que não acarretavam prisão em flagrante nem instauração de inquérito
policial (apenas termo circunstanciado de ocorrência) e ensejavam prescrição em
apenas 3 anos. (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2020, p. 24).

Diante disso, além dos tipos penais abertos, vale ressaltar que as sanções da antiga lei
de abuso de autoridade possuíam pena máxima de seis meses de detenção e multa, e era
consequentemente encarada como crime de menor potencial ofensivo. Nessa ótica, percebe-
se que a Lei 4.898/1965 “era tímida e quase simbólica, principalmente por causa das penas
quase insignificantes e facilmente alcançáveis pela prescrição” (SOUZA, 2020, p. 13).
Nesse diapasão, embora, penalmente e processualmente, a antiga lei fosse ineficiente,
é louvável salientar que a norma promulgada em 1965, em pleno Regime Militar, já
pretendia resguardar a lisura da atividade estatal e, ao mesmo tempo, proteger o cidadão de
bem diante das investidas ou ameaças aos seus direitos fundamentais resguardados pela carta
Magna tais como honra e imagem. Contudo, para Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha,
a referida lei necessitava de modernização:

A lei anterior, editada durante o governo militar, carecia de uma revisão mais
apurada, em especial nas suas consequências, por demais tênues diante da gravidade
das condutas. Ficava difícil aceitar que comportamentos abusivos do agente estatal
pudessem ser rotulados, sem exceção, como de menor potencial ofensivo. Não
faltavam vozes bradando a proteção deficiente do bem jurídico tutelado (direitos e
garantias do cidadão). (GRECO; SANCHES, 2021, p. 12)

Realizadas essas sucintas considerações acerca da primária Lei de Abuso de


Autoridade, é oportuno apresentar o processo de promulgação da nova norma, a Lei 18.869 de
2019, a fim de esclarecer suas motivações, apontar suas críticas, e, analisar o contexto de
surgimento da lei em estudo.

2.2 CONTEXTO POLÍTICO-HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA NOVA LEI DE


ABUSO DE AUTORIDADE – LEI 13.869/19

A Nova Lei de Abuso de Autoridade é fruto de um ambiente turbulento de


desconfiança entre instituições brasileiras e de grandes investigações que o Brasil
12

viveu nos últimos anos, sobretudo de corrupção.


Em consequência disso, o novo texto legal sofreu bastantes críticas devido às supostas
intenções dos legisladores, haja vista que nasceu em um cenário de revanchismo entre
Magistrados, membros do Ministério Público e Políticos, decorrentes da Operação Lava Jato.
Nesse viés, sob os argumentos de Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha:

A revisão que redundou na Lei 13.869/2019, no entanto, veio colorida de


revanchismo, qualidade negativa presente abertamente nos discursos de boa parte
dos parlamentares, gerando censuras e indisfarçável controvérsia na comunidade
jurídica e na população em geral. (GRECO; SANCHES, 2021, p.13).

Em contrapartida, para Guilherme Nucci:

A nova Lei de Abuso de Autoridade foi editada em época equivocada, pois pareceu
uma resposta vingativa do Parlamento contra a Operação Lava Jato. Mas, na
essência técnica, trata-se de uma lei absolutamente normal, sem nenhum vício de
inconstitucionalidade. (NUCCI, 2020, p. 01).

Ultrapassando essa polêmica discussão acerca do momento em que a lei fora


publicada, fato é que as recentes tipificações impactaram condutas daqueles que executam, de
alguma forma, o serviço público dando ensejo às atitudes consideradas abusivas, sejam por
excessos ou por desvio depoder, e, assim, definindo as devidas sanções para tais desrespeitos.
Neste sentido, Rogério Sanches Cunha e Rogério Grecco prelecionam que nova lei tem como
finalidade “modernizar a prevenção e repressão aos comportamentos abusivos de poder no
trato dos direitos fundamentais do cidadão, colocando em mira a conduta de autoridades e
agentes públicos” (GRECO; SANCHES, 2021, p. 12)
Entretanto, a principal ideia para a criação da nova lei não foi somente
promover mudanças, mas também criar novas tipificações ampliando não só as condutas
típicas amparadas pela lei anterior, mas aumentar o rol de abrangência de servidores
abarcando, de tal modo, não somente os policiais, mas membros dos poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário além dos integrantes do Ministério Público. Contudo, será
demonstrado posteriormente que os 24 (vinte e quatro) tipos penais descritos na Lei
13.869 de 2019, alcançam, predominantemente, aqueles que atuam no Poder de Polícia, na
Persecução Penal, bem como na função de Juiz de
Direito.
13

2.3 ASPECTOS GERAIS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

A Lei 13.869/19, ao entrar em vigar no dia 3 de janeiro de 2020, como 45 (quarenta e


cinco) artigos, impondo 45 (quarenta e cinco) tipos de condutas abusivas contra os agentes
públicos de todo o país, bem como revogou expressamente a lei anterior, com mesmo fim de
combater abusos cometidos por funcionários públicos, que antes eram disciplinados pela
antiga Lei n.º 4.898/1965, conforme os ensinamentos de Greco e Sanches (2021).
Entretanto, o conceito de autoridade pública trazido anteriormente Lei 4.898/65 era
muito amplo, e, para NUCCI (2008), as condutas dispostas no art. 3º da referida lei não
descreviam, convenientemente, as condutas típicas, ferindo assim o princípio penal e
constitucional da taxatividade, sendo passíveis de subjetividade na interpretação. Nesse
sentido, ao comparar a antiga lei com a vigente atualmente, sob a perspectiva do sujeito ativo,
percebe-se que estes continuam os mesmos, contudo a nova lei trouxe um rol extensivo com a
intenção de “cercar a definição de agente público, para que realmente possa se reprimir
excessos cometidos por autoridades, como policiais, juízes, promotores de justiça, entre
outros” (MARQUES; MARQUES, 2020, p. 22).
Ainda para MARQUES e MARQUES (2020), a mudança é notória e tem o condão de
punir todo aquele que está investido em emprego, cargo, mandato eletivo ou função pública:

“Será sujeito ativo do crime de abuso de autoridade:


- qualquer agente público
- Servidor Público ou não
- Da administração direta, indireta ou fundacional
- De qualquer dos 3 Poderes da República
- Da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e de Território.

E para os efeitos dessa lei, reputa-se agente público:


- Todo aquele que exerce,
- Ainda que transitoriamente ou sem remuneração,
- Por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de
investidura ou vínculo,
- Mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade da Administração
Pública. (MARQUES e MARQUES, 2020, p.22).

Nesse aspecto, a concretização do cometimento do crime de abuso independe do


efetivo exercício do cargo ou função, bastando para tal que o sujeito ativo se valha da
condição de agente público ao tempo do fato, descartando assim que a conduta seja
contemporânea ao exercício de tal cargo ou função. É o que ensina Renee do Ó
14

Souza ao dizer que:

As férias ou licenças não desligam os vínculos jurídicos entre o agente público e o


Estado, razão pela qual, desde que a autoridade se valha do cargo e cometa algum
abuso, pode-se incorrer na Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade. (Souza, 2020, p.
40)

Da mesma forma, o ensinamento de Renato Brasileiro de Lima merece ser transcrito:

Subsistirá a infração penal, portanto, ainda que o agente se encontre licenciado, em


férias ou não tenha assumido o cargo, mas já tenha sido, por exemplo, aprovado no
concurso público ou nomeado formalmente para exercer determinada função.
(LIMA, 2020, p. 45)

Sob a ótica do sujeito passivo, percebe-se a existência de uma composição dupla nesse
polo de passividade, enraizadas na Lei 13.869/19, assim como já se notava na lei revogada, o
que CAVALCANTE (2020, p.01) chama de “dupla subjetividade passiva”, ou, de acordo com
LIMA (2020), pluriofensividade, pois tanto o cidadão comum quanto o próprio Estado podem
ser vítimas do cometimento de abuso, este último por ter a imagem comprometida por maus
representantes, além do risco de ocasionar um dano ao erário.
Noutro giro, urge ressaltar que embora a nova lei trate o cometimento de abuso como
um crime próprio, ela permite que o particular concorra na qualidade de coautor ou mero
participe. Para esta conjugação basta o que o particular saiba a real qualidade do autor,
conforme ensina o Código Penal ao dizer que “Não se comunicam as circunstâncias e as
condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime” (BRASIL,1948, art. 30)

Ao imergir às mudanças trazidas pela lei nº 13869/2019 e compará-las com a revogada


lei n. 4898/1969, ficou evidente que a nova norma penal previu também novos efeitos da
condenação, ratificada pelo art. 4°, in verbis:

Art. 4º- São efeitos da condenação:


I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o
juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação
dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;
II - a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo
período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;
III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública.

Por fim, conforme os ensinamentos de CAVALCANTE (2020), foi possível


15

constatar ainda, que a lei n.13869/2019 foi mais minuciosa frente a alguns tipos penais, a
exemplo do art. 10°, pois se for decretada condução coercitiva manifestadamente
desnecessária por juiz ou delegado de polícia, responderá qualquer um destes por crime de
abuso de autoridade, já que tal medida executória, além de estar em desacordo com decisões
do STF por incompatibilidade com a Constituição Federal, agora também está definida como
crime da Lei de Abuso de Autoridade
Outrossim, a exemplo do supracitado tipo penal, a grande maioria dos delitos
previstos na nova lei possuem alvos preferenciais enquadrados como sujeito ativo de crime de
abuso de autoridade, dentre estes tipos estão: instaurar investigação de ação penal ou
administrativa sem indício (exceção: investigação preliminar sumária devidamente
justificada); decretar prisão fora das hipóteses legais; continuar interrogando suspeito que
tenha decidido permanecer calado ou que tenha solicitado a assistência de um advogado;
interrogar à noite quando não é flagrante; e procrastinar investigação sem justificativa ; não se
identificar como policial durante um interrogatório.
Dessa maneira, fica claro que a Lei 13.869/19, embora traga um amplo rol de sujeitos
ativos de crimes de abuso de autoridade, tendo em vista sua redação, com termos como
“interrogar”, “instaurar investigação”, “decretar’’, os quais demonstram que somente aqueles
que detêm competência para tal conduta, será sujeito ativo nesta pratica delituosa.
16

3 OS IMPACTOS DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE À ATUAÇÃO


DE AUTORIDADES POLICIAIS, MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E
MAGISTRADOS

Dentre as 45 condutas previstas como crimes de abuso de autoridade na Lei 13.869 de


2019, 31 (trinta e uma) delas têm como sujeito ativo o delegado de polícia; 21 (vinte e um) os
membros do Ministério Público; 26 (vinte e seis) o policial; e 16 (dezesseis) os magistrados,
deixando evidente, portanto, quem são os principais alvos da Nova Lei de Abuso de
Autoridade.
Com isso, para algumas categorias operadoras do Direito, a exemplo da Associação
dos Magistrados Brasileiros (AMB), A Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público (CONAMP), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a
Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e a Associação Nacional dos Delegados de
Polícia Federal (ADPF), a nova lei foi um retrocesso, pois, ao passo que se visou proteger um
direito, transforma o exercício da atividade policial, persecutória e jurisdicional um risco
inaceitável em um Estado Democrático de Direito. Nesse viés, afirma Renato Brasileiro de
Lima:

“Há nítida intenção de buscar uma forma de retaliação a esses agentes públicos
visando ao engessamento da atividade-fim de instituições de Estado responsáveis
pelo combate à corrupção”. (LIMA, 2020, p. 54).

Mas será mesmo que as mudanças trazidas pela Nova Lei de Abuso de Autoridade são
realmente capazes de enfraquecer as atividades dos agentes públicos atuantes na Persecução
Penal, sejam eles policiais, delegados, membros do Ministério Público ou Magistrados? Essa
pergunta será amplamente respondida, a partir dos subtópicos a seguir.

3.1 O ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO

Para responder o questionamento anterior, é necessário, inicialmente, fazer uma


reflexão do artigo 1° §1º, da nova lei n°13.869/2019, que revela, em suma, que cometerá
crime o agente público que, no exercício das próprias funções ou a pretexto de exercê-las,
abuse do poder ao qual lhe é atribuído para prejudicar outrem, privilegiar terceiros ou si
próprio, ou por mero capricho ou satisfação pessoal.
17

Nas lições de Renato Brasileiro de Lima (2020), prejudicar a outrem é qualquer


conduta que transcenda o regular exercício da função pública, com o evidente propósito de
prejudicar a terceiro. O mero capricho, por sua vez, é uma vontade repentina, carente de
qualquer justificativa, ou seja, um propósito totalmente arbitrário. Por último, a satisfação
pessoal se manifesta opostamente à satisfação do interesse público, quando o agente pratica
determinada conduta imbuído de um sentimento que lhe é próprio, capaz de provocar prejuízo
alheio.
Este aspecto relevante que a nova lei trouxe foi o dolo específico necessário à
configuração dos crimes de abuso de autoridade, também chamado de “elemento subjetivo
especial” (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2020, p. 123), o qual rechaça, de início, a
possibilidade de punir uma conduta culposa, ou, ainda, dentro da legalidade motivada pelo
estrito cumprimento de dever legal, conforme nos ensina Gabriela Marques e Ivan Marques:

“Não há previsão de condutas culposas, por incompatíveis com o desvio de


finalidade da função pública e o excesso de poder dos agentes públicos, quando o
agente público atuar além de sua competência e no campo dos dolos específicos
indicados no art. 1º”. (MARQUES e MARQUES, 2020, p.71).

Nesse sentido, pode-se concluir que esse especial fim de agir “deverá ser apontado,
especificamente, na peça inaugural da ação penal (…), caso não conste essa particular
motivação (…), a denúncia ou a queixa deverão ser rejeitadas” (GRECO e CUNHA, 2021, p.
12), pois, como já visto, além do dolo genérico (presente em todo crime doloso), a lei nº
13.869/19 também exige um dolo específico, e sem as finalidades específicas do seu art. 1º,
§1º, não há que se falar em crime da Lei de Abuso de Autoridade.
No entanto, Renee do Ó Souza já alertava sobre a necessidade de cautela na
apreciação do dolo específico pelos julgadores:

“A análise acerca do elemento subjetivo tem elevada importância prática para evitar
que o servidor, temeroso de eventual responsabilização penal, deixe de cumprir o
seu dever de ofício, notadamente diante de uma situação na qual as circunstâncias
levam a crer que isso é exigido, situação que levará à prática de infrações que
expõem um número indeterminado de pessoas a riscos e perigos. Assim, se o
funcionário agiu movido pela vontade de atingir o fim público, não incide no crime
de abuso de autoridade.
Essa ponderação nem sempre é tarefa fácil, como no caso do policial que atua
revistando pessoa que, vestindo um pesado agasalho num dia ensolarado, caminha
de um lado para outro, nervosamente, em frente a um banco. Há, nesse exemplo,
causa provável a legitimar a atuação policial, mas a zona de penumbra entre o estrito
cumprimento do dever legal e o abuso de
18

autoridade nesse caso demonstra o quão tormentoso é a questão no dia a dia dos
agentes públicos. Essa dificuldade de análise tende a ser observada na comprovação
material da finalidade específica prevista nesta norma do § 1º do art. 1º da Lei
13.869/2019, afinal, os delitos de abuso de autoridade situam-se em uma zona de
tensão entre o respeito aos direitos individuais e o interesse na preservação de bens
coletivos, como a segurança pública.” (SOUZA, 2020, p. 19)

Diante dessa perspectiva, é notório que as forças policiais, as quais exercem a árdua
tarefa de preservar a ordem pública atuando nas trincheiras do combate ao crime, são as mais
suscetíveis de incorrerem em crime de abuso de autoridade. Nessa ótica, também se enxerga o
promotor ou procurador de justiça, promovendo as ações penais públicas, e,
consequentemente, buscando a efetiva punição aos criminosos. Outrossim, tem-se o
magistrado, quem exerce a função jurisdicional, impondo suas decisões e sentenças. Nessa
esteira de raciocínio, é o que preleciona Renato Brasileiro de Lima:

O dia a dia de qualquer agente público, seja quando efetua uma prisão em flagrante
(v.g., Policial Militar) ou quando cumpre um mandado de prisão temporária (v.g.,
Delegado de Polícia), seja quando oferece uma denúncia (Promotor de Justiça) ou
quando decreta a indisponibilidade de ativos financeiros (Juiz), é marcada por uma
sujeição corriqueira ao descontentamento dos jurisdicionados, praticamente um
efeito intrínseco da própria função pública. (LIMA, 2020, p.24).

Todavia, urge desmistificar que não há que se falar em deixar de atuar, em


contrapartida, aos crivos da prevaricação ou desídia funcional, sob o fundamento de não
querer ser alvo de processos, mas sim procurar exercer o compromisso fiel com a lei e com a
sociedade brasileira atuando com probidadee retidão, honrando assim o brasão da instituição e
os ditames constitucionais. Nesse diapasão, para Renato Brasileiro de Lima:

Partindo da premissa de que a Lei n. 13.869/19 não criminaliza nenhuma conduta


legítima por parte de um agente público, mas tão somente aquelas em que este
excede os limites de sua competência ou quando pratica um ato com finalidade
diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei, assim agindo com a
finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro,
ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, não há por que se temer a nova
Lei de Abuso de Autoridade, muito menos permitir que sua entrada em vigor sirva
como obstáculo ao escorreito exercício de toda e qualquer função pública. (LIMA,
2020, p.24).

Além disso, vale ressaltar que o legislador se preocupou em assegurar que as


autoridades, ora atingidas pela Lei 13.869/19, não se abstivessem de exercer suas funções de
maneira escorreita, a fim de que não fossem alvos de eventuais processos criminais. Nesse
viés, NUCCI (2020) elogiou o cuidado legislativo ao lembrar que a
19

Nova Lei de Abuso de Autoridade foi a primeira a trazer, além do dolo genérico, os elementos
subjetivos específicos de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda,
por mero capricho ou satisfação pessoal”, os quais serão analisados em todos os tipos penais
da lei.
Contudo, convém salientar que ao divergirem na interpretação do referido dolo
específico em uma determinada situação, estarão abarcados pelo art. 1º, § 2º da Lei 13.869/19,
que veda expressamente o chamado crime de hermenêutica, cuja explanação apresentar-se-á
no tópico seguinte.

3.2 A VEDAÇÃO AO CRIME DE HERMENÊUTICA

Segundo depreende-se do supracitado artigo, “a divergência na interpretação de lei ou


na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (BRASIL, 2020, art. 1º §
2º). Dessa maneira, os eventuais receios de agir por erro ou entendimentos diversos são
preservados pela ausência do dolo específico do § 1º. Pois, para GRECO e CUNHA (2021, p.
17) “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas exclui o dolo
configurador do crime de abuso de autoridade”, não restando então, qualquer possibilidade de
existência do que o renomado jurista Rui Barbosa compreendia como “crime de
hermenêutica2” (BARBOSA, 2016, p. 228). Nesse sentido, Adriano Sousa Costa, Eduardo
Fontes e Henrique Hoffmann lecionam:

Teríamos que admitir que o sujeito, pelo fato de pensar juridicamente de modo
diverso, praticaria fato típico com o fim específico exigido pelo tipo (beneficiar,
prejudicar, capricho ou satisfação pessoal). A própria localização topográfica da
norma (abaixo do elemento subjetivo) confirma que se trata de excludente de
finalidade específica. (COSTA, FONTES, HOFFMANN, 2020, p 49).

Atente-se que o temor desenvolvido diante dos riscos de se cometer um deslize frente
a uma decisão, ou simples atuação, que pudesse ocasionar qualquer sanção tipificada pela
nova norma penal foi saneado e ratificado pelo trecho de jurisprudência destacada abaixo:

(...) 1. Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in


judicando e in procedendo, razão porque para aconfiguração do delito de

2
Responsabilização criminal do operador do direito, sobretudo o magistrado, pelo entendimento divergente aos
tribunais superiores, na avaliação de fatos ou de provas.
20

abuso de autoridade há necessidade da demonstração de um mínimo de “má fé” e de


“maldade” por parte do julgador, que proferiu a decisão com a evidente intenção de
causar dano à pessoa.
2. Por essa razão, não se pode acolher denúncia oferecida contra a atuação do
magistrado sem a configuração mínima do dolo exigido pelo tipo do injusto, que, no
caso presente, não restou demonstrado na própria descrição da peça inicial de
acusação para se caracterizar o abuso de autoridade. (STJ. Corte Especial. APn
858/DF, Rel. Min Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/10/2018).

Diante desse cenário, um promotor, ao entender que o fato é típico, pode promover a
ação penal, ao ponto que outro Parquet3, frente à mesma situação, pugnar por arquivamento,
concluindo pela atipicidade da conduta. Da mesma forma, o delegado avaliando a prova e
compreendendo cabível a prisão em flagrante ao fato, e, de forma divergente, outra autoridade
policial, analisando a mesma prova, entenda que os requisitos para a aplicação da prisão
cautelar não restaram preenchidos, não existirá crime de abuso de autoridade.

3.3 OS EFEITOS DA CONDENAÇÃO E AS PROTEÇÕES AOS AGENTES


PÚBLICOS

Sobre os efeitos da condenação previstos no art. 4º da Lei 13.869/19 – já citados


anteriormente – faz-se necessário ressaltar que a inabilitação para o exercício do cargo,
mandato ou função pública ou até mesmo a perda desses “somente podem ser aplicados, nos
termos do parágrafo único do referido art. 4º, quando reconhecida a reincidência específica
em crime de abuso de autoridade” (GRECO e CUNHA, 2021, p. 42). Contudo, como bem
assevera Gabriel Marques e Ivan Marques:

“Mesmo um agente público sendo reincidente em crime de abuso de autoridade,


pode o magistrado entender que não aplicará para ele o efeito da condenação de
perda do cargo, mandato ou da função pública, caso não encontre fundamentação
idônea para fazê-lo” (MARQUES E MARQUES, 2020, p.45)

Desta feita, mesmo que ocorra a reincidência em crime de abuso de autoridade, os


efeitos da condenação dos incisos I e II presentes no art. 4º da Nova Lei, segundo o parágrafo
único do mesmo artigo, esses efeitos não são automáticos, e necessitam de devida
fundamentação na sentença condenatória.
Além de todo o exposto, no que tange às penas elencadas na Nova lei de Abuso

3
Representante do Ministério Público.
21

de Autoridade, estas se apresentam maiores quando comparadas à antiga Lei 4898/65, que
possui pena máxima detenção por 6 (seis) meses. Entretanto a Lei 13.869/19, ao trazer penas
de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos; e 1 (um) a 4 (quatro) anos, não trouxe muitas mudanças
práticas, tampouco prejudicou o agente público, afinal, como bem elucida Guilherme de
Souza Nucci:

Quanto às penas, é preciso ressaltar que várias delas demonstram crimes de menor
potencial ofensivo e outras apontam para a viabilidade de aplicação de suspensão
condicional do processo. Enfim, não há um único delito que significa pena de prisão
como primeira hipótese. Na realidade, o crime de abuso de autoridade é grave, mas
não está sendo tratado nem como hediondo nem tampouco com severidade no
tocante às penas cominadas, admitindo, claramente, penas restritivas de direitos,
mesmo quando não couber transação ou sursis processual. (NUCCI, 2020, p. 05)

Nesse contexto, não haverá, primariamente, a pena de prisão em nenhuma das 45


(quarenta e cinco) condutas previstas na nova lei, tendo em vista a existência de penas que
não ultrapassam 2 (dois) anos e a inexistência de penas mínimas superiores a 1 (um) ano, o
que ocasiona a possibilidade de suspensão condicional do processo e a transação penal
previstas na Lei dos Juizados Especiais (lei 9.099/95).
Outrossim, é fulcral salientar que os crimes da Lei 13.869/19 “possuem pena máxima
de 4 anos, ou seja, todos os agentes condenados, se primários, receberão o regime aberto de
cumprimento de pena” (MARQUES E MARQUES, 2020, p. 41), em outras palavras, a nova
lei não foi feita para prender ninguém.
Frente ao exposto, não se pode o servidor, que cumpre suas funções em nome da lei
com probidade e retidão temer qualquer intempérie normativa e abster-se de cumprir suas
funções, sob o argumento de não incorrer em eventual crime da Lei 13.869/19. Sob esta ótica,
Renato Brasileiro de Lima declarou:

Com a devida vênia, posturas como estas não se justificam em hipótese alguma.
Primeiro, porque revelam um certo “comodismo” por parte do agente público, que
se abstém de exercer sua função de maneira regular para não ser objeto de alguma
representação criminal. Segundo, porque demonstram completo desconhecimento da
Lei n. 13.869/19, que não pune qualquer conduta legítima adotada por um agente
público. Terceiro porque demonstram, à primeira vista, que agentes públicos são
figuras frágeis, covardes e medrosas, enfim, que têm medo de exercer regularmente
suas funções. Tais atributos, a nosso juízo, não são inerentes à grande maioria dos
agentes públicos, profissionais absolutamente qualificados e idôneos, que
certamente jamais deixariam de agir conforme os estritos ditames legais com receio
de eventuais “incômodos” proporcionados pela perspectiva de serem objeto de
notitia criminis devido à prática de supostos crimes de abuso de autoridade, contra
eles oferecidas por investigados, acusados, advogados e defensores, a título de
represália decorrente da adoção de determinada medida legal que lhes fosse
desfavorável (LIMA, 2020, p.54).
22

Além do mais, estes agentes estarão protegidos pela própria Lei de Abuso de
Autoridade, através de seu artigo 30º, que tipifica a instauração de investigação ou a
promoção da persecução penal sem justa causa como crime. Outrossim, o Código Penal
Brasileiro também detém mecanismos de tutela ao agente público por meio de seus artigos
339 e 340, ao, respectivamente punir a comunicação falsa de crime e a denunciação caluniosa.
À luz deste raciocínio, é possível inferir que a vontade de querer ter o servidor público
punido por cometimento de abuso de autoridade é sobreposta pelo anseio coletivo de
resguardar os princípios constitucionais e zelar pelo funcionamento estatal. Entretanto, apesar
de, nas perspectivas de muitos juristas e determinados doutrinadores, a lei tenha surgido
como algo que vai respaldar as autoridades que exercem suas funções com retidão, aos
limites da lei. Na contramão do que muitos afirmam, as diversas associações representativas
entendem que a edição da Nova Lei de Abuso de Autoridade tenha tido como principal
interesse vingar aqueles
envolvidos diretamente com a persecução penal, sobretudo envolvidos com a Operação Lava
Jato. Este embate técnico de divergentes opiniões será demostrado em suas diversas
perspectivas e, assim, poderá restar clarividente a analise acerca da constitucionalidade em
questão.
23

4 AS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE (ADIs) n° 6234, 6236,


6238, 6240 E SEUS ASPECTOS CONTROVERSOS

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6234, ajuizada no Supremo Tribunal


Federal pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais dos Tributos dos Municípios e
Distrito federal (ANAFISCO) destaca a subjetividade concedida à expressão abuso de
autoridade com a utilização de termos abertos e vagos ensejando interpretações das mais
variadas, podendo assim ocasionar não só uma penalidade considerada “injusta” ao servidor
ou autoridade, mas também prejudicar o exercício do ofício público.
Por sua vez, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6236, ajuizada pela Associação
dos Magistrados Brasileiros (AMB) para combater pontos da Nova Lei de Abuso de
Autoridade, fica evidente o entendimento da entidade quanto a existência de uma suposta
criminalização de condutas oriundas do labor jurisdicional desenvolvida pela categoria. Para
ela, entender que o magistrado age com o objetivo de prejudicar uma determinada pessoa,
atua por querer satisfazer o próprio ego, ou, ainda, possibilita o proveito a ele próprio, ou a
terceiro, coloca em risco a independência e a liberdade judiciária, ameaçando a decisão
fundamental, ao passo que provoca um temor diante da possibilidade de serem julgados por
suposto cometimento de crise de abuso frente a uma decisão.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), através da
ADI nº 6.238, entende que alguns tipos penais da Lei 13.869/19 criminalizam a atuação
funcional de membros do Ministério Público e ferem o exercício quanto autonomia e
independência por querer retaliar e engessar a atuação de membros do Ministério Público,
além de ferir princípios como o da proporcionalidade e taxatividade consagrados pela
Constituição Federal.
De outra ponta, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do
Brasil (ANFIP) depreende que alguns artigos da lei prejudicam a atuação da categoria frente
ao medo de se tributar, visto que, segundo a entidade, a nova lei não é clara em seus conceitos
e de tal maneira, poderá limitar a atuação dos auditores acuados pelo temor de serem
responsabilizados às escuras da lei.
Por fim, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) ajuizou no
STF a ADI nº 6266, objetivando a suspensão de dispositivos da lei de abuso. A entidade de
classe argumenta que a lei é genérica ao tipificar como crime
24

diversas condutas, sem, todavia, especificar por que devem ser consideradas abuso de
autoridade.

Diante desse contexto de discussão acerca da (in)constitucionalidade da Lei 13.869/19


em sede da suprema corte, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, atuou, na
qualidade de Amicus Curiae4, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.236 - proposta
pela Associação dos Magistrados Brasileiros, exposta anteriormente - por entender ser
improcedente os pedidos formulados, argumentou ao STF (2020) que encarar a Lei de Crimes
de Abuso de Autoridade como um atentado contra a dignidade da Magistratura é obviamente
ignorar o que perfaz o exercício de sua importantíssima função pública.

Neste sentido, a entidade defende que o poder exercido pelas autoridades das diversas
esferas deve estar em submissão aos ditames limitadores regidos pela Constituição Federal e,
assim, em sintonia com os princípios expressos norteadores da administração pública, dessa
forma, entende pela constitucionalidade da Nova Lei de Abuso de Autoridade.
No âmbito doutrinário, Guilherme de Souza Nucci (2020) defende a Lei 13.869/19
como uma norma comum, sem qualquer tipo de inconstitucionalidade, pois, diferente da lei
anterior, a nova lei “deixou claríssimo que um abuso de autoridade somente ocorre quando
manifestamente excessiva foi a atitude do agente público” (NUCCI,2020).
Sobre os supostos termos vagos presentes no elemento subjetivo especial constante no
art. 1º §1º da Lei 13.869/19, Guilherme Nucci argumenta:

Qual lei penal estabelece, como norma geral, que além do dolo é preciso buscar o
elemento subjetivo específico (dolo específico)? Esta é a primeira. Deve-se,
inclusive, elogiar o cuidado legislativo em colocar, de maneira destacada, que todos
os tipos penais configuradores de crime de abuso de autoridade exigem, além do
dolo, a especial finalidade de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a
terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
São variadas alternativas finalísticas, embora todas sejam particularmente
reprováveis, razão pela qual se o agente público prender uma pessoa apenas para
prejudicá-la; somente para se beneficiar disso; exclusivamente por capricho (vontade
arbitrária ou birrenta) ou unicamente para satisfação pessoal (regozijo),
indiscutivelmente estão abusando do seu poder. (NUCCI, 2020, p. 02).

4
amigo da corte
25

Nesse ínterim, não há que se falar em inconstitucionalidade em ralação ao dolo


específico, exigido em todos os tipos penais da Lei 13.869/19, pela ofensa ao princípio da
taxatividade, pelo contrário, tal instrumento protege o agente público, garantindo- lhe que este
só será punido quando, estritamente, abusar do poder que lhe fora atribuído com a finalidade
específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero
capricho ou satisfação pessoal.
Ainda nesse viés, no que tange à inconstitucionalidade da nova lei sob o fundamento
de violar atividades típicas de autoridades policiais, judiciais, fiscais ou do Ministério Público,
impedindo o exercício de suas competências constitucionais, Renato Brasileiro de Lima
(2020) bem contrapõe, como já demonstrado em outrora, que a lei não pune nenhuma conduta
idônea praticada por agente público e por isso “não há porque se temer a nova lei de Abuso de
Autoridade, muito menos permitir que sua entrada em vigor sirva como obstáculo ao
escorreito exercício de toda e qualquer função pública” (LIMA, 2020, p. 24)
Afinal, o que a lei pune é o exercício das funções pelas autoridades públicas de forma
descabida ou extrapolada, quando, por exemplo, um Promotor ou Delegado instaura
procedimento investigatório de infração penal, sem qualquer indício da prática de crime, para
prejudicar outra pessoa, ou, a título de exemplificação, um Magistrado constrange alguém a
depor, sob ameaça de prisão, para benefício próprio ou de terceiros.
Com efeito, malgrado os esforços argumentativos acerca da inconstitucionalidade da
Nova Lei de Abuso de Autoridade pelas supracitadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade,
é imperioso explicitar que a Lei 13.869/19 não traz cercamento à autonomia das autoridades,
tampouco as suas respectivas independências funcionais, e sim combate vigorosamente
eventuais abusos, impedindo que as autoridades públicas, sob a égide de fazer justiça a
qualquer preço ou em busca de satisfações pessoais, extrapolem os limites legais e firam
direitos e garantias fundamentais de cidadãos comuns.
26

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do presente estudo, foram analisados variados pontos de vistas acerca da


Lei 13.869/19, com intuito de chegar à conclusão se a referida norma refletia negativamente
no ofício das autoridades que exercem seu respectivos papeis na persecução penal, bem como
se a nova lei respeitava, ou não, os preceitos da Constituição Federal de 1988.
No primeiro capítulo foi realizado, inicialmente, um breve panorama acerca de como o
trabalho se desenvolveria, onde foram apresentadas ambas as leis de abuso de autoridade,
antiga e nova, demonstrando a questão problema do contexto de surgimento da Lei 13.869/19.
Naquele momento, hipóteses acerca das mudanças trazidas pela Nova Lei de Abuso de
Autoridade foram levantadas, se tais mudanças afetariam as atividades de persecução e
julgamento de crimes, bem como se a lei era (in)constitucional.
Já no segundo capítulo, restou revelado o contexto de autoritarismo da antiga Lei nº
4.898/65, e que esta era preenchida por dispositivos ineficazes e tipos penais extremamente
abertos, passíveis de subjetividade, o que acabara por enfraquecer a lei e impossibilitar sua
aplicação, pois os próprios dispositivos contribuíam involuntariamente para a breve perda da
pretensão de se punir.
Neste mesmo capítulo, fora explicitado que nova lei de Abuso de Autoridade nasceu
em cenário conturbado, à sombra do contexto da Operação Lava Jato, e por isso,
primordialmente, havia certo receio de que a nova norma pudesse limitar a atuação das
autoridades, sobretudo, aos Magistrados, Delegados e Membros do Ministério, colocando em
risco suas independências, pela subjetividade concedida à expressão abuso de autoridade e que
assimpoderia ensejar interpretações prejudiciais ao oficio por transparecer ser um instrumento
de perseguição.
Entretanto, no terceiro capítulo, sobejou vastamente demonstrado que a Lei 13.869/19
não trouxe qualquer impedimento à autonomia das autoridades, porquanto, na verdade ela foi
benéfica à atuação dos servidores por definir melhor as condutas, por tratar o tema de forma
mais proporcional, por dar mais segurança a quem exerce uma conduta legítima, por ser mais
rígida e eficaz para inibir e punir aqueles que querem vestir-se das roupas do excesso de poder
e, assim, tranquilizar mais o cidadão de bem que muitas vezes era refém desta. Afinal, embora
se saiba que a grande maioria das autoridades que exercem a função jurisdicional, policial
e ministerial,
27

atuam com probidade e legitimidade, todavia, assim como em todas as áreas, existem aqueles
que agem às margens da lei, em busca de seus próprios interesses.
Diante dessa análise, ficou evidente, portanto, que a Nova Lei de Abuso de
Autoridade, definitivamente, não interfere negativamente na atuação dos agentes públicos
frente à persecução penal, seja efetuando uma prisão em flagrante, instaurando uma
investigação, promovendo a ação penal, ou até mesmo impondo uma decisão.
De outra ponta, no quarto capítulo, concluiu-se pela constitucionalidade da Lei
13.869/19, pois, através da divergência entre os argumentos de autoridades e as Ações Diretas
de Inconstitucionalidade apresentadas, foi possível perceber que não há óbice algum em
estabelecer quais condutas serão passíveis de punição por abuso de autoridade, ao contrário,
ao estabelecer limites proporcionou-se mais segurança às autoridades que executam suas
atividades em consonância com a lei, punindo tão somente aqueles que exercem condutas em
desconformidade com ela, seja por excederem limites, seja por atuarem com fins diversos do
estabelecidos por tais dispositivos legais.
Depreende-se, portanto, que não há porque deixar de atuar, aos crivos da prevaricação
e desídia funcional, sob o fundamento de não querer ser alvo de processos, mas sim procurar
exercer o compromisso fiel com a lei e com a sociedade brasileira. Além do mais, a lei é
dotada ferramentas de proteção ao agente público em casos de eventual excesso de poder -
desde que não haja manifesta vontade do mesmo - ou até mesmo em um cenário de
interpretações diversas entre diferentes autoridades, o servidor terá respaldo garantido na lei.
Dessa forma, o agente público que age compromissado com a lei e nos limites desta há
de se orgulhar, pois estará aos olhos do poder punitivo executor somente aquele merecedor de
tais sanções. Por conseguinte, o fiel seguidor dos princípios da administração pública terá o
exercício de suas funções dignificado.
28

REFERÊNCIAS

BRASIL. CASA CIVIL. Secretaria -Geral. Lei nº 13.869 de setembro de 2019.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2019/lei/L13869.htm >
Acesso em 08/05/2021.

BRASIL. CASA CIVIL. Decreto-lei mº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del2848compilado.htm >
Acesso em 08/05/2021.

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<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/652052213/acao-penal-apn-858-df- 2017-
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impossibilidade da condução coercitiva de réu ou investigado para
interrogatório. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=381510> Acesso
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Lei de Abuso de Autoridade. Disponível em


<https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/lei-de-abuso-de-autoridade- parte-
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COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; Hoffmann, HENRIQUE.


Carreiras policiais – Lei de Abuso de Autoridade. Salvador, BA:
Juspodivm, 2020.

CUNHA, Rogério Sanches; GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade - lei 13.869/2019


comentada artigo por artigo. Salvador, BA: Juspodivm, 2020.

CUNHA, Rogério Sanches; GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade - lei 13.869/2019


comentada artigo por artigo. Salvador, BA: Juspodivm, 2021.

DIRETORIA DO CONSELHO FEDERAL DA OAB. Lei do Abuso de


Autoridade. Disponível em:
<https://www.migalhas.com.br/quentes/309439/oab-apoia-lei-do-abuso-de- autoridade
>Acesso em 17/04/2020.

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XXIII, Tomo III. Disponível em:
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29

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador,BA:


Juspodivm, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Especial Criminal Comentada. Salvador,


BA: Juspodivm, 2020.

MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São


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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. São Paulo:
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SOUZA, Renee do Ó, Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade.


Salvador, BA: Juspodivm, 2020.

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