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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 1

BIOGRAFIA

BENIGNA AGNELO UATE

É moçambicana e nasceu em 1993, na província de Gaza.

habilitações em Educação e Assistência Social, pela Universidade


Pedagógica, onde foi, na altura, distinguida como melhor estudante
do curso.

Foi a poesia que, logo cedo, abriu a porta para o seu interesse pelas
letras, tendo declamado o seu primeiro poema aos 8 anos. A Escola

ali concluiu o ensino médio .

Estreia na literatura, com as unhas todas sujas de sangue.

2 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Aviso Legal:
É proibida a reprodução parcial, ou total desta obra, através de qualquer for-
ma, meio, ou processo económico, digital, fotocópia, internet, sem a prévia

Fevereiro que rege os direitos de autor e conexos.

Ficha Técnica

Título ___________________
Sujei as unhas com sangue.
Inter Escolas Editores

Autora Maputo - Moçambique


Benigna Agnelo Uate

Coordenação Email: editores@interescolas.co.mz


Inter Escolas Editores Www.interescolas.co.mz

_____________________
Capa || Maquetização
Agostinho Félix Visconde
Deposito legal n. NICC

Linguística
Gerson Pagarache

Editora
Inter Escolas Editores

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 3


Agradecimentos 6

Capítulo 1 - Cálice do arrependimento 09

Capítulo 2 - Gwaza Muthini 14

Capítulo 3 - Ó, mente mendiga! 15

Capítulo 4 - Covardes desmascarados 23

Capítulo 5 - Mestre da manipulação 24

Capítulo 6 - A maldição da bênção no deserto 35

Capítulo 7 - Os defeitos são enfeites da vida 36

Capítulo 8 - Pelos três mortos 41

Capítulo 9 - IImprovisos Planejados 49

Improvise até que seja um plano perfeito. 59

Capítulo 10 - Cálice da alienação 60

Capítulo 11 - Imaculada maculada 70

Capítulo 12 - Impacientes duplamente pacientes 78

Capítulo 13 - Bisnetas de imperadores 80

Capítulo 14 - Mandamentos do Depravado 84

Capítulo 15 - Curva do equilíbrio 85

Capítulo 16 - O regresso do feitiço 93

94
Capítulo 17 - Sonhos utópicos 103

121

122

138

139

155

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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 5
DEDICO
Sujei as Unhas com Sangue

Aos que, tomando decisões próprias, exaltam a pátria amada!

Em memória dos seus heróis de corpos mortos e corpos vivos.

Honrado aos meus vivos, dedico S.U.S:

Ao Eliezer Uate, que faz de mim uma heroína no reino das repu-
diadas; Ao Agnêncio Uate, o adolescente sonhador e promissor.

SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


AGRADECIMENTOS

muito obrigado aos que, directa e indirectamente, apoiaram esta

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PREFÁCIO

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-

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CÁLICE DO
ARREPENDIMENTO
Capítulo 1

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Não beba do vinho do arrependimento,
mas da água da responsabilidade.

Se pudesse viajar ao passado, faria tudo diferente. Este é o desejo san-


guinário da Mara que vive perdida na própria verdade. Pensar que se
teve uma escolha na construção do passado é uma forma de acredi-
tar na reverência do tempo diante da majestade que o ser humano
é. O ponteiro é esta magna estrutura social, política, cultural e religiosa que nos
une dividindo, para por nós reinar. Se assim não fosse, todos seríamos
iguais em tudo, nem mesmo as circunstâncias que nos trazem a esta
página da vida estariam isentas.
Estou sendo obrigada a acreditar que os heróis são criados pelos
fracos que não tiveram ousadia de morrer por alguma causa, com
desculpa de se estar preso à vida e à pré-disposição de matar para
viver.
Aos olhos de uma criança ingénua, os pais são super-heróis.
Esta imagem somente desmorona quando ela percebe que os seus
heróis também falham, fracassam, choram e não lhe podem ofere-
cer as estrelas. O mais surreal neste fenómeno é: o que esboroa essa

do nível das expectativas criadas sobre eles, como quem diz: o nível
da frustração experimentada em tudo depende do nível das expectativas criadas.
Quem muito espera, muito se poderá frustrar.
Do mesmo modo, quem menos espera, menos se frustra. Quem for indife-
rente, menos humano se tornará. Esta é uma das ciladas presentes nos
caminhos de todos.
Cabe a cada um tomar decisões próprias, que lhe farão escapar

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-

Qual é o poder desse lugar?

tenciona viver.

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com sangue, para conhecer melhor o caminho de volta ao seu verda-
deiro museu. É exactamente isto que faz com que a sua história nun-
ca mais seja mal contada por qualquer um, que mal conhece onde
você nasceu; e jamais será acreditada por si, sem que estejam nela
suas digitais, porque quem escreve melhor a sua história é quem a

motivo.

é gratuita e é de todos para todos. Viver assim diminui a possibilida-

que faz do outro e de nós mesmos vítimas.


A resposta menos insana e mais razoável leva-me a uma terra
por nós conhecida e visitada, um lugar fantástico que esconde as
riquezas da nossa natureza, as proezas de se ser quem somos, que

tudo ouvido, tudo experimentado, tudo conhecido, quando reagi-


mos com susto ao ouvir de uma criança pura em processo do bap-

-
ber donde vem, um adulto com os olhos já cansados de ver e ouvir,
o que lhe faz pensar em ter erroneamente decidido crescer, e de um
idoso que está esperando a morte como um ganho, não por ter bem
vivido, mas por ter morrido vivendo. Infelizmente, o velho morre
de forma misericordiosa possível declarando categoricamente: sujei
as unhas com sangue.
Tudo mudou. Tudo não é mais igual. Os heróis não devem con-
tinuar sendo almas vivas em corpos mortos. Na obscuridade das

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Lorem ipsum

Como não continuarão crescendo os infortúnios, sendo regados pelo seu san-
gue, ó minha virgem?

R
P A

santos.

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-

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GWAZA MUTHINI
Capítulo 2

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Do ventre da virgem, nasce Gwaza
Muthini

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da zona, porque isto poderá aumentar suas medalhas de sem vergo-
nha e de tolos, o que não são. Estou com mau pressentimento, a mi-
nha respiração parece mais um som de batuque debaixo da tambeira
de Ngungunhane, mas tudo bem. O organismo adapta-se a tudo,
talvez este seja o novo modelo de respiração, adaptável às condições
em que estou envolvida.

Mar, mar, mar


Linda como tu não conheço,
M

Podemos conversar? Ando mais cansada do que nunca, escuto a


todos, compreendo até o incompreensível, sou uma pequena huma-
na e imperfeita que vive como uma esponja engolindo lágrimas de
infortúnios alheios, de todos cuido e de mim quem cuida.

Mesmo sem querer, penso que, mais uma vez, molharei meu
corpo por ti. Aí venho, Mar. Acolhe-me como sempre. Envolve-me
com a tua força. Quero-te sentir nas minhas vicissitudes. Por favor,
faz-me este milagre.

Seis passos em direcção à água. A mulher pisa o mar com a


potência de um exército derrotado. Das pernas frágeis, desvia a ver-

-
reza dois minutos de silêncio. Suspense e pausa no tempo. Levanta,
quebra suas dúvidas e incertezas, e questiona:

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– O que está acontecendo contigo, menina? Eu te ajudo a sair.

Após retirar a menina do mar, a mulher indaga-se internamente.


Por que esta menina se afoga? Por que ela tira a própria vida, aqui no
mar? O pulso diz que ainda há vida nesse corpo. A menina somente
está inconsciente.

Sem permissão. Sem ensaios. Sem malabarismos como as que


fazem as mulheres do meu bairro diante de um admirador secre-
to, ofereci-lhe o beijo-da-vida, através da respiração boca a boca.
A adolescente tosse, recupera a consciência e assusta-se. Enquanto
isso, a mulher heroína diz dentro de si:

– Perdoa-me por te ter beijado com garra, com força e com


paixão, como se tivesse ficado as últimas décadas sem dar e receber
um beijo verdadeiro. – E ela continuo. – Na verdade, quando te
vi embriagada de água, viajando a Cidade dos Dois Pés Juntos, lem-
brei-me de que o único modo de lhe trazer a vida é beijando-te.Em
algum momento, hesitei beijar-te, mas quando lembrei dos beijos
falsos e hipócritas por mim dados e recebidos, percebi que, talvez a
natureza me esteja dando a oportunidade de oferecer a alguém um
beijo verdadeiro.

– Menina, por que tiras a tua própria vida? – A mulher quis


saber.

Este ponto de colisão evidencia que quando duas almas frágeis


se encontram, uma mais perdida que a outra, carregando consigo
memórias de uma vida mal vivida, ou pré-determinada por circuns-
tâncias irredutíveis, duas coisas, pelo menos, acontecem: cristodên-

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cia e conscidência. A mulher de vermelho vai a fundo da situação.
Ela é amante do profundo. Talvez seja isto que a torna tão neurótica
e recheada de dilemas mal resolvidos.

Ainda com o seu ego excitado, corpo tremendo, pele arrepiada,


mãos geladas, lábios carnudos e murchos, a mulher suspira palavras

– Quem és tu?

A menina, com tom internamente sarcástico, aformoseado de


raiva e rancor, como quem construiu um palco de rompimento no
seu ser. Aliás, a sua batalha interna é muito forte, parece que existe
uma legião de demónios que nela vivem e lutam dia e noite, para que
um dentre eles abandone o seu corpo de alma recôndita adornada

Neste momento, se não tivesses interrompido a minha viagem


para a Cidade dos Dois Pés Juntos, tenho a certeza de que estaria
numa mesa real, atulhada de tudo o que devia ter saboreado antes, e
mais, estaria reunida com os meus, nós os quatro juntos formando
a família perfeita.

Mas a senhora, metida a besta, convidou-se onde não foi cha-


mada. Os meus problemas são muito sérios. Ninguém me poderá
salvar deles além da morte.

da morte, não existe mais dor, arrependimentos, ódio, rancor ou


sofrimento.

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A menina tremia, com a pele meio amarelada, semblante meio
contraditório, como se as suas palavras viessem da boca, e não da
alma. Ela respira palavras em forma de escudo de auto-protecção
e responde:

– Não sentes o que sinto.

– Não irás entender.

Disfarçando o olhar, a mulher de vermelho, com olhos de águia,

pressagia categoricamente consigo:

– Estás certa. Não sinto o que sentes, porque não estou na tua
pele. Se fosse possível, trocávamos tudo para compreender que o
teu corpo talvez carregue o peso mais leve que o meu.

Entretanto, não me foi feito o que a ti foi, mas também não te


foi feito o que a mim foi. Não mataram os meus sonhos, mas foram
atacados severamente e sem compaixão, muito menos misericórdia.
Mesmo assim, não os deixei morrer. Não me afoguei no mar. Con-
tinuamente, afogo-me nas águas estagnadas que nascem dos meus
olhos. Temos a dor como algo em comum. Podemos usá-la ao nos-
so favor. Isso é possível. O mais importante para mim é o facto de
estares respirando. Isso prova que ainda existe vida em ti, que existe
sonhos por realizar. Se respiras, então o teu corpo ainda não se ren-
deu. Por que a tua alma se rende? Será que ela tem mais cicatrizes
do que teu corpo?

Por acaso a tua alma está ferida mais do que a tua pele? A tua
alma é de vidro? – Encerra a mulher.

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– Nasci sobrevivendo. – A menina devolve. – Passei fome mui-
tas vezes, sem roupas, sem camisola no inverno. Ia à escola descalça,
com cadernos num plástico. A casa onde cresci é como uma sombra
de bananeira. Se não murcha com o sol, destila com a água. Isto tudo
pode ser suportado por uma alma de vidro? – Questiona a menina.

Para a mulher, sobreviver ou viver são tão subjectivos como


pensamentos de um bêbado sedento, que pede por água, esperando
aguardente. Por isso, não deve ser muito importante responder a

a vida.

– Não me posso colocar no teu lugar, porque este lugar é teu.


A vida é assim mesmo, o que é teu, teu o é; o que é meu, meu o é.

A vida, as escolhas, as decisões que hoje nos unem neste clima


um pouco silencioso e vazio, pertencem-te. Tudo o que te aconte-

nas circunstâncias a que foste exposta. Sinto-me vazia sem nada a


lhe oferecer, a não ser palavras, que neste momento podem ser um

Conheço o efeito das tuas dores, das tuas experiências. A raiva, o


ódio, o rancor, a impotência, conheço-os e domino-os mesmo dian-
te de um bom som de batuque navegando na timbila.– A mulher
continuou, esperando a resposta mais racional possível da menina.

Para a tua segurança, eu nunca te irei ajudar. Olha muito bem


para mim, invade a minha alma se puderes.Escreve isto no quadro do
teu coração. Ninguém te irá ajudar. Nunca te esqueças disto, nin-

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-
dadeiro e transparente à menina.

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AJUDA-TE, É O MAIS FÁCIL

A energia, a força, o tempo, os recursos usados


Para implorar e esperar por ajuda alheia,
Podem ser mais úteis quando usados para ajudar-se a si,
O que é muito fácil no reino dos vencedores do vitimismo.

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Ó, MENTE MENDIGA.
Capítulo 3

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A mendicidade é um câncer a precisar de
quimioterapia

se chama vida.

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o teu interesse em viver e marrabentar aos passos do universo.

quem a sente.

-
-

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– Isso é para os fortes. – Comenta a menina.
– Tu nasceste forte , menina. – A mulher retruca e continua.
Lembra-te, se eram milhares de balas a caminho do alvo, somen-
te tu chegaste lá, superou as barreiras e fecundou o óvulo. A vida
é sempre uma corrida. Somente irás parar de correr quando a morte
te abraçar, segurar-te pela mãos e sussurrar-te aos ouvidos: vem
comigo ao descanso.
Logo que obedeceres a esta voz, farás a corrida mais forte da
tua vida. Lutarás para viver, caminhando, ao mesmo tempo, em di-
recção à morte. O por quê vivo e para quê vivo ajudar-te-ão a entregares-te
para a morte ou a continuar a viver. Tens por que viver ou somente
vives porque o sol de junho nasce e brilha para todos?
A corrida da vida é a mais perigosa de todas. Neste caminho,
há quem matará os teus sonhos sem que, necessariamente, te mate.
E tu, como cúmplice, terminarás o trabalho mal feito, matando a ti

morte. Mas não me entreguei, o que foi uma decisão altruísta para
mim mesma. Tal como eu, tu também podes escolher os próximos
eventos da tua vida. Continuar a viver à velocidade da morte é a
forma mais bruta de caçá-la, mesmo ela fugindo.
Isto é o que me constrange na morte. Ela foge quem por ela
busca; e acha quem por ela foge. Escuta, menina. Se não decides o
que fazer com a tua condição, esta decidirá por ti. Tudo depende de
ti, como sempre dependeu. Ninguém é vítima, somos mentores ou
cúmplices da nossa realidade.
– Pára! – Grita a menina e, com remorso, continua. – Queres
realmente saber quem sou e por que estou aqui?
– Por que estou aqui?’’ minhas vontades malgovernadas trouxe-

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-

-
-

entender.

da caneta.

memorizar por onde passava e sem me importar com quem estava


cidade Frieza
-

cinzas.

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par daquela fusão aliciante. Foi assim que descobri outros mundos
dentro de mim. Uau! Uau! Uau! Repetia incansavelmente. Era tão
fantástico quanto a publicidade enganosa segundo a qual muito di-
nheiro equivale ao sucesso.
– Sendo o sucesso subjectivo, – Interveio a mulher. – Creio que
não seja determinado pela quantidade dos zeros na conta bancária,

– O futuro era melhor. Para experimentá-lo, era necessário so-

menina ripostou.
Com os olhos curvados para a terra, prostrando-se diante das
-
sem os meios, esquecendo-se da exclusão dos empobrecidos, por
serem os próprios meios. Na verdade, se o pobre aplica este princí-
pio na vida real, ele amaldiçoa-se.
Uma infortunada que tenta vencer a pobreza com a velocidade

Tudo isso é evidente, mas negligenciado. A menina não se interes-


sou com o impacto do que estava a fazer para sair das grades da
pobreza. O mais importante era estar livre, em nome de um futuro
melhor e mais fácil possível.
‘‘Fecha os olhos e morde os dentes’’, segundo a menina, esta é a
lei do pesadelo do futuro fácil que custa a alma, o corpo e o espírito.

quase desistia da fusão, mas a coragem segurou-a da garganta engas-


gada, repetindo que as suas roupas azuis jamais lhe dariam a metade
do que se ganha na Cidade Frieza; ampliou a sua visão e segurou-a
pela testa, mostrando em H.D. a vida fácil, tudo o que se merece

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ter, o que todos desejam ter, porque, mesmo alguns vendem a alma,
ainda que seja por trezentos e sessenta e cinco dias de bonança, para
depois terem que pagá-la eternamente.
Por isso não poderia mais voltar para trás, porque já havia co-
locado a mão no arado, continuou com aquele ritual em forma de
fusão aliciante, que literalmente é simples e nada.
Aliciou-se satisfazendo suas vontades. Com a força da coragem,
descobriu em si uma potência jamais experimentada, nem sentida
de fazer acontecer, de agir. Segundos depois, começou a sentir uma
dor que não havia sentido antes, como se a tivessem aberto a porta
usando uma chave errada. Depois de tantas tentativas frustradas,
sendo aberta com menos delicadeza, arrombaram-na.
Respirando dor, raiva, impotência e chorando lágrimas de arre-
pendimento, a menina segura a mulher com medo, pavor e vontade

que a dor que ela experimentou e o beijo da vida que a mulher lhe
deu tiveram o mesmo efeito: trazer-lhe à realidade. A dor e o prazer
são tão diferentes e estranhos um do outro, mas ambos roubam o
sono a qualquer um, tal como a fome e a abastança. A fome tira o
sono. A abastança também.
Este clima dispersador evidencia que a cidade Frieza nunca é em
cima do pódio, como tem sido apresentada, porque está construída
por baixo, para que nunca desmorone, mesmo que os valores sociais
desabem. Ainda que as crianças faltem com o respeito aos adultos e
estes abusem das crianças, por aí em diante, a cidade nunca irá des-
moronar, porque é o berço da depravação social, construída debaixo
dos princípios normalmente aceites em cada sociedade.
A menina não havia subido. Na verdade, havia descido com a

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-

Foi uma vez que a Mara era virgem.

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-

criando buracos menores.

-
Sujei as unhas
com sangue, o que me aconteceu? o que me aconte-
ceu? não era assim.

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SE NÃO SABES O QUE ACONTECEU, NADA
ACONTECEU
Quem continua fazendo da sua vida mera distração social,
nunca terá noção do que acontece.
E continuará sendo autêntico frívolo
na agenda de quem sabe fazer acontecer.

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COVARDES DESMASCARADOS
Capítulo 4

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Esmague a máscara assim que ela cair.

– Faça de conta que nada aconteceu. – Disse Aliciação que a


consolou, continuando. – Esta é a nova forma de viver sem o peso
da consciência.

Aliciação com veemência e saturação.

Sinto-me mais fria que o iceberg. Diga-me a verdade, ainda que me

mais nada a perder, hipócrita. Você foge quando o mundo desmo-


rona, como se esta engenharia toda somente tenha sido de mim
feita. Você não é diferente de certas pessoas que deixei no passado,
um bando de covardes e agitadores, que somente atiçam o fogo e,
quando se espalha e transforma-se em queimadas descontroladas,
fogem. Voltam ao bairro e são os primeiros a questionar: quem será
que acendeu aquele fogo?
– Maraaaa, és virgem. – Disse-me a Coragem de forma irónica
e vergonhosa, com um semblante mentiroso, de quem somente não
quer se responsabilizar.
– Se não te lembras do que te aconteceu, então, nada te aconte-
ceu. Continua a viajar nos mundos escondidos em ti, talvez sejam as
melhores celas de punição para a tua falta de prudência.
– Dormindo à vontade como dormes, nunca mais ouses ques-
tionar-me o que acontece quando dormes, nesse tom sarcástico,

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mal-educado, adornado de hipocrisia, por acaso sou eu sua guardiã?
– Eu sou a Vontade. – Foi a vez da Vontade intervir. – Bem
governada, eu sou remédio. Mal governada, eu sou veneno. Sempre
te disse o que deves fazer. O que é bom para ti apresento-te sem
cessar, mas sempre é responsabilidade tua calcular as consequências
de me obedecer ou não. Jamais deixarei de te convidar a fazer tudo
para ter tudo. Não me negarei por ti. Cabe a ti manter teus princí-
pios. Tenho escravos que me obedecem de forma cega, mesmo para
tirarem a própria vida por amor a mim, por isso não me faltes com
o respeito, Mara. Aqui eu sou o Rei, faço uns matarem por prazer
e outros salvarem por esforço; outros roubam por ganância, alguns
dividem o que tem por humanismo. Os glutinosos até lhes faço co-
mer, vomitar e comer de novo, mas todos têm o poder de escolha
por isso não são vítimas.
Nunca obriguei alguém a obedecer-me. Eu sou a máquina do
que tudo é e do que está por vir. Claro que existem os que me
chamam de boa vontade, outros me amaldiçoam por má vontade.
Esses todos adjectivos dependem da tua visão. O que para mim é
pertinente é que tudo de bom e de mau que você vê em mim diz
mais sobre ti do que sobre mim. Agora nem um, nem o outro me
faz aumentar ou diminuir o meu conceito sobre mim.
A Vontade palestrava enquanto Mara mergulhava em agonia.
– Aprende a dormir com os olhos abertos, a sonhar os sonhos
vivos, a amar se amando, a tocar deixando digitais, a voar despindo-
-se das asas, porque depois do pódio, volta-se ao chão. Tudo o que
sobe desce. Este é o começo de tudo, até de ti. Será que tu não sabes
que o chão cobiça o pódio e é por isso que todos correm para lá,

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-

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-

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-

visites o teu íntimo, se bem que conheças a porta de ti, que somen-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 45


tar desta culpa partindo dela mesma, porque por detrás da culpa,
Existem evidências das possibilidades no impossível de se escapar
da sua condenação.
Com um semblante nu, a mulher diz, por Gwaza Muthini , é
possível desvendar as verdades na mentira e estas podem servir de
alicerce na viagem sem destino, com única condição:
Invasão à cidade sonâmbula

Onde não se sabe o que se viveu;


Mas se viveu.
Não se sabe por que se viveu;
Mas se viveu até se sentir à flor da pele.
Não se sabe por quanto tempo lá se chega;
Mas chega-se deambulando com os pés de uma consciência distante.
Tudo se resume a isso:
Susto, esquecimento, perdição e sonambulismo.
Viveu-se. Sem lembranças,
sem se sentir, sem motivos e sem nada por contar.
Nesta cidade, tudo é possível, dependendo do seu nível do so-
nambulismo, porque os mais sonâmbulos fazem até o impossível.
A cidade sonâmbula oferece mil e uma possibilidades que, como
algemas mentais, prendem aqueles que as obedecem, nos eternos
sonhos ambulatórios.
– Mara, menina ingénua. – Diz a Mulher. – Tu não sabes o que

nas ditaduras alheias do que nas tuas próprias opiniões, usas a força
tentando tirar a própria vida em vez de usá-la para ajustar as con-
tas com o teu inimigo; perdes prudência por acreditar que todos te

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ajudam por serem bondosos. Não. Alguns aproveitam-se das tuas
necessidades para exporem a sua supremacia.
Aprende a sentir o sabor da comida pelo olfacto, antes de provar
a cicuta com a língua e degustar o veneno com o paladar e seres mais
uma cobaia. Cobaia não. Mais uma vítima de venenos testados nos
laboratórios.

acreditar na força do pregador e não no poder do prego. Ainda acre-


ditas no conto de fadas e não na tua dura realidade. Até que ponto
temes a verdade diante dos teus olhos?
– Por hoje chega. – Encerra Mara.
– Sujaram-te as unhas com sangue. – A mulher retrucou, apoca-
líptica. – Arrombaram-te o Éden e descobriram o paraíso. Delicia-
ram-se e saíram-se como bêbados embriagados de prazer. Sem vol-
tarem para trás e salvarem-te da urina venenosa jogada em ti, que te
subiu ao útero, foram-se como covardes. Queimaram-te o cérebro

fora de ti, coisificada e com medo de tudo, até de ti.


– Por favor! – Implora Mara. – Por favor, ajude-me. Leve-me a
sua casa para passar alguns dias, depois me viro. Por favor, não me
deixe aqui no mar, não tenho mais para onde ir, seja a minha última
solução.
– Levo-te comigo! – A mulher consente com compaixão. – Aju-
do-te a salvares-te de ti mesma, a libertares-te dessa dor.
Movida pela generosidade, a mulher decide levar Mara a sua
casa. Levanta-se do chão e sacode a areia pura do mar. Contempla o

e sorrindo furtivamente.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 47


De seguida, carrega Mara nas costas, como se esta fosse uma
bebé adulta, oferecida pelas águas. Ela chega a pensar em mudar-lhe
o nome para “Maisás”, a tirada das águas, tal como aconteceu com

A mulher ignora os olhares estranhos de todos que se pergun-


tam:
Será que é uma das suas pacientes neuróticas? Como saber se não lhe podemos
perguntar?
Enquanto isso, os preguiçosos amaldiçoam-na. Esta mulher é
estranha; não contrata nem uma ajudante? Prefere cuidar daquela
mansão sozinha? Se não for gulosa, esconde alguma coisa dentro da
sua casa. O marido também é esquisito. Esconde-se dentro daque-
le caixão de carro, de vidros fumados. Talvez pela noite dentro se
transforme em cobra. Tudo é possível nessas bandas. Por isso, mil
vezes ser pobre sem dever ao diabo. Olha a escrava. Por que uma
senhora destas carregaria nas costas um mulherão daqueles, se não
for com propósitos demoníacos?
– Preciso abrir o portão. – Avisa a mulher, para que a Mara desça
de suas costas.
– Moras aqui? – Espanta-se.

minha casa.
Enquanto isso, Mara conversa consigo mesma: esta é a vida que
gostaria de um dia ter. Esta é a casa dos sonhos de qualquer pessoa.

Olha o carro dela! E ainda vai à praia a pé! Realmente, Deus dá carne
a quem não tem dentes.
As escadas são esbeltas. A sala lembra os aposentos do Rei Salo-

48 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


mão. Caso ela tenha orado para ter tudo isso, Deus ouviu-a.

se esquece que, horas atrás, tentava suicidar-se. Parece encontrar


novos motivos para continuar a viver. Ela renova-se.
– Aqui é o balneário. – Informa a mulher. – Posso-te dar banho
ou consegues por conta própria?
– Pode sim. – Mara consente, com lágrimas nos olhos, vergonha
no cenho e alegria no semblante.
– Ficará tudo bem. Não chora mais. – A mulher consola-a ter-
minando de a dar banho. – Eu cuidarei de ti até onde puder. Vamos
ao quarto.

– Não.
– Então, o quarto pintado à rosa, por quê?
-
to, para que no dia que ela viesse aos meus braços, encontrasse tudo

– A vida é injusta. Eu quero uma boa vida e não a tenho. Você

– Quem te disse que tenho boa vida? – Questionou a mulher.


– Tens casa bonita, tens carro, tens tudo bonito, tens o que to-
dos querem ter. – Mara respondeu.
– Mara, Mara, Mara! A qualidade de vida não é determinada
pelo que se tem, mas sim pelo que se é. Entenderás isso um dia.
Descanse nesta cama. Vou à cozinha preparar uma sopa rápida para
si.
Enquanto desce as escadas, a mulher questiona-se: será que
DEUS está escrevendo certo em linhas tortas na minha vida? Tudo

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 49


indica que a mulher saiu do mar com ondas gigantes de incertezas:

pedi. Acho que não. Deixa de ser incrédula, mulher. Talvez sim. Seja
feita a sua vontade, DEUS. Não me quero magoar de novo. Meu
avô sempre repetiu:
e se aliena é o pilão e o pilador.
Na cozinha, a mulher prepara sopa de legumes e deixa-a ferver
enquanto sobe as escadas para oferecer roupas a Mara. Minutos vol-
vidos, Mara toma a sopa que refrigera a alma e queima as entranhas.
Mara agradece com alegria no rosto: esta é a vida que nasci para ter;
é para isto que estou no mundo.
– Amanhã trabalharei fora da cidade e voltarei daqui a três dias.

-
mente.
– Tudo bem. Amanhã de manhã irei cavar a tua história e os
teus segredos, não com uma pá, mas com e por amor. Cuidar-te-ei
como se fosses minha e tu cuidarás de mim como se de mim fosses.
Prometes?
– Promessa é dívida. – A mulher declarou. – E uma dívida deve
ser paga.
O sol afundava no horizonte dando lugar à noite. As duas mu-
lheres tombam no sono, uma nos braços da outra, respirando o
mesmo ar, trocando calor e oferecendo-se os verdadeiros abraços
da vida.
A noite dos sonhos reais da Mara é, pela primeira vez, tranquila,
com sossego e paz, sem medo que a chuva caia e entre pelas chapas
esburacadas e a molhe com frieza e gelo; sem ter que escutar a

50 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


marimba dos mosquitos. Esta é a melhor noite para a mulher
também, uma noite que deveria ser eterna, mas o seu alarme psico-
lógico desperta-a. Ao levantar-se da cama, Mara assusta-se e ques-
tiona:
– Para onde vais tão cedo nesta madrugada?
– Não estou madrugando, Mara! – Foi a resposta da mulher,
com uma tranquilidade dos budistas. – Estou acordando para a vida.
– Mas a esta hora? – Mara insiste.
– As preocupações da vida me despertam. Não preciso do alar-
me. Este é o princípio pelo qual o dorminhoco chama o próximo de
sortudo, um dia compreenderás. Ensinar-te-ei a levantar para a vida,
para te auto-ofereceres os caprichos que inventas merecer, para ser
uma Mara livre e dona de si. Mas se tu fores dorminhoca, serás men-
diga até do próprio salário. Levanta cedo sempre, Mara, que não me
chamarás de sortuda.
– Compreendo. – Mara assente, ainda irresoluta. – E o ar-condi-
cionado, por que desligas?
– Quero-te ensinar uma brincadeira que atrai demónios e lhes
puxa como quem tira água de um poço profundo. Sempre quis fazer

– Há muito tempo que não brinco, vamos a isso. – Mara aceita


o convite com prontidão.

regra. Eu também te irei obedecer depois, como cabra-cega.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 51


52 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
MESTRE DA MANIPULAÇÃO
Capítulo 5

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 53


O que te manipula, controla-te, governa-te.

– Senta-te, Mara. Fecha os olhos. Faz tudo o que ouvir, sem


questionar nem interromper. Não faças o que eu disser, mas o que
tu ouvires e veres. O vencedor ganha 3 dias de vontades satisfeitas,
este é o prémio.
– O que é isso? – Interpela Mara.
– O vencedor pode ir passear, pode sentar-se como Rainha,
pode pedir que lhe lavem as mãos e os pés, que lavem as suas rou-
pas, que façam seus trabalhos de casa. Esse é o prémio.
A mulher rezava para que te mates, se fosse a vencedora, não lhe
pedisse cérebro de crocodilo, mas algo que lhe pudesse oferecer sem

podem-te tirar a alma. Não se aconselha a ninguém a jogar três dias


de vontades satisfeitas, porque ainda te podem pedir que se mate, só
para satisfazer as vontades alheias.
– Como se descobre o vencedor? – Mara quis saber.

Era um jogo misterioso. Assim é a vida, somente vence quem

sacrifícios; não se olha para quem se está deixando para trás.


Os vencedores do jogo da vida são os que não desistem, mesmo
quando não aguentam mais, mesmo quando não tem mais motivos
para continuar, mesmo quando nada faz mais sentido neste emara-
nhado de circunstâncias, ousam continuar, por eles ou pelos outros.
A vitória tem um efeito orgásmico. Só quem já a experimentou

54 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

-
renidade.

obra.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 55


-

-
-

-
-

como os outros me tratam.

56 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


ele gostou de mim? Está apaixonado? Se sim, apaixo-
nou-se rapidinho. Será o príncipe encantado, que me vem resgatar do nada que
sou, ou será o meu pai reencarnado?

Mara marginal.

-
meira vez.
-

estranho.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 57


carro.

das suas vítimas.


-

58 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-
-

procurando a quem roubar, matar e destruir.

-
-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 59


Por vezes molha com chuva indo comprar muita quantidade de
tomate para revender. Ela veste capulana encardida, mas este mês
comprou-me pensos que usarei única vez e deitar. Nunca consegue
comer sem que eu coma. Ela é tudo para mim e sou ingrata para ela.

Prometo a mim mesma não repetir o erro. Saio de casa sem


tomar chá, sem comer a mandioca. Vou ter com a minha amiga Pre-
cipitação. Conto-lhe tudo o que me ocorreu hoje, desde a saída da
escola à minha chegada a casa do carro de vidros fumados.
– Agarra essa sorte. – Diz-me Precipitação e acrescenta. – Sai da
pobreza. Amanhã não usa outro caminho. Encontra-te com esse tio.
Se não o quiseres, apresenta-me a ele. Não desejas trocar as mechas?
Não queres mudar de roupas? Teu uniforme azul já está encardido.
As tuas colegas trocam de uniforme todos os trimestres. Pensas que
são os pais que compram? Segue a lei da oportunidade: Calcinha no
chão, dinheiro na mão. – Diz-me Precipitação
– O que é isso? – Pergunto, perdida.
– Vais saber. – Garante-me a Precipitação. – Depois contas-me
como foi.
Precipitação fala como se eu não fosse uma pessoa com digni-
dade. Humilha-me por ser pobre. Volto à minha casa triste, arrepen-
dida e, de súbito, com vontade misteriosa de voltar a encontrar-me
com o tio. Talvez ele seja boa pessoa, que me pode adoptar e ajudar
a minha mãe.
Anoitece. Na cama, debato-me se amanhã irei ao encontro do
bendito tio.– Kokorikooo! – O alarme na boca dos galos acorda-nos.
Tomo banho com água fria. O meu hábito, no inverno, somente é
lavar os olhos para tirar ramelas. Depois disso vou à escola. Mas na-

60 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


phandar comida

princesa, meu príncipe.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 61


A VISÃO TRANSFORMA
A REALIDADE

A tua realidade actual é a soma da tua actual visão,

Reactualiza os pensamentos, muda a visão


que transformarás a tua realidade.

62 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 63
64 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
A MALDIÇÃO DA BÊNÇÃO NO
DESERTO

Capítulo 6

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 65


A maldição de alguns, é bênção dos outros

o mesmo caminho de ontem, o mesmo que detesto por causa da

-
dras nem a poeira. O universo ao redor tem a cor-de-rosa.

-
-

-
Mara marginal, mas de Mara Marandza.

66 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

xabalakate
-

bem.

***

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 67


-

68 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


loja. Deito-me cansada na cama com colchão de seda. Minha mãe
vem à cabeça e sinto remorso. A coitada não tem culpa de ser pobre.

O meu namorado massageia-me. Digo-lhe que quero dormir.


Ele responde-me que irei dormir depois de brindarmos a esta pri-
meira noite. A noite ainda é uma criança, sussurra ele. É um feto,
corrige.
Eu nego tomar o cálice de vinho porque não bebo. Nunca bebi
e nem quero aprender a beber. Ele insiste e diz que é um relaxante.
– Toma um trago para atenuar os nervos, depois descansarás à
vontade.
– Persuade-me.
Tomo. Gosto. Tomo o segundo. É mesmo relaxante como san-
gue na zumbilandia. O copo está caindo das minhas mãos. Estou
tonta. Mesmo assim, termino a garrafa de vinho pela boca como se
de água se tratasse.
-
nas parecem paredes. Estou noutro mundo. Sinto suas mãos tocan-
do o meu corpo como um violino, manejando-me como um papel,
de ponta a outra. Dobra-me. Estica-me. Estou delirando e surgem-
-me vontades estranhas de passear minha língua no seu corpo, do
calcanhar ao tecto da sua careca. Ele pára de tocar o meu corpo de
violino. Começa a chupar-me como quem chupa uma cana-de-açú-
car, e engole o próprio bagaço, sem se engasgar. Toca-me os seios
como quem exprime água de uma esponja. Transbordo de prazer
e de sensações estranhas. Não consigo mais explicar exatamente o
que estou sentindo.
– Concentra-te, Mara. Diz-me somente o que vês! – Afirma a

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 69


mulher.
– Ele abre-me as pernas como quem corta uma maçã ao meio.
Desce da cabeça para baixo demarcando as minhas saliências e reen-
trâncias com a sua língua. Usa os seus braços como compasso e

inocência vagarosamente, através do fogo que sai de dentro de mim


para fora, queimando os meus valores, interesses e princípios. Ele
continua-me pegando. Pergunta-me o que quero que me faça.
– Seja o meu médico e enfie-me a pinça. Seja o meu pintor, mer-
gulhe o seu pincel em mim e pinte-me de todas as cores. Seja o meu
Titanic, afogue-me neste mar de fogo até que eu vire cinza.
Sinto algo duro descendo pela minha barriga; passa pelo um-
bigo; dança Xitxuketa na minha cintura; desce devagar em direcção
aos jardins da babilónia; tenta entrar, não consegue. Tenta de novo
e não consegue.
-
tiono.
– Não é grande não, princesa. – Responde ele, suado e viril. – É
da dimensão da tua coragem. Pega!
– Não quero pegar. – Devolvo. – Somente quero senti-lo.
Chama-me de princesa enquanto volta a tentar a entrada. Cha-
ma-me de majestade enquanto força a entrada. Sinto uma dor indes-
critível. Parece que, internamente, algo toca o meu estômago e quer
sair pela boca.
A dor é tão intensa que mordo os dentes para não assustar as
pessoas vizinhas e fecho os olhos para suportar o processo. Apago.
Acordo cansada e triste. Já é manhã. Os lençóis estão ensan-
guentados. Estou indo os lavar. Minha mãe ensinou-me a lavar meu

70 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


próprio sangue. Ele encontra-me lavando e vocifera dizendo que o
hotel irá lavar. Acato a sua ordem em silêncio. Ele vai ao trabalho e
deixa-me com um cartão de crédito para as compras e a sessão de
manicure e pédicure, e ainda contrata um taxista.
Fico ansiosa. Não sei que raios é pedicure e manicure. Visto -
-me rápido. Desço as escadas. Lá está o taxista, que me abre a porta

esplêndida.
Passam-se alguns dias. O meu namorado surpreende-me com as
chaves da minha nova casa, que ele a chama de apartamento. Aos
dezasseis anos já tenho casa própria. Nem a doutora e moralista
da minha professora tem casa igual. Desloco os meus pertences, os
meus cabelos, os meus sapatos, os cremes e as roupas. Enquanto
desço as escadas do hotel, subo a uma vida por mim almejada e ao
bairro dos sonhos de todos.
Chegados ao apartamento, o meu namorado diz-me que não irá

Ele diz que tem uma esposa, uma impotente e frustrada porque

comigo?
– Estou trabalhando fora da cidade. – Respondeu ele. É isso
que eu digo para ela. Sou o tipo de homem que não lhe deixa faltar
comida, roupas, luxúria e tudo.
– Agora, Mara. – Adverte ele. – Não me liga. Eu irei-te ligar.
Não me escreva, eu irei-te escrever. Não faça nada, senão estragas
tudo. Este relacionamento somente irá continuar se tu obedeceres

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 71


a isto e te comportares bem. Tudo está nas tuas mãos. De hoje em
diante, a nossa felicidade depende de ti. – Dirige-me estas palavras
enquanto me beija na testa e sai pela porta do apartamento, eu hirta,
estatuada.
Estou sozinha. Entediada. Tenho nova casa, novas coisas, mas
estou sem a minha mãe, sem as minhas amigas. Acho que não estou
feliz. Acho que eu era feliz na pobreza sem saber. Não posso rir
como sempre ri. Não posso ser eu mesma. Nem fui fazer exame na
escola, mas tudo bem, escola não acaba este ano.
Sete dias depois, meu cavalheiro entra pela porta, sem nunca me
ter ligado, nem me escrito. Abre as mãos e oferece-me um buquê de

nós baptizamos a nossa dança aliciante, um em cima do outro. Ele


continua e delimita-me as saliências e as reentrâncias, bem melhor
que a primeira vez. Com ele, cada momento é único, inesquecível e
viciante. Ele é bem melhor do que os jovens que por aí andam, bê-
bados, cansados e fedorentos. Concluo que estou viciada de prazer.
Assim foram os últimos meses mais importantes da minha vida,
até que acordei vomitando dois dias consecutivos, a enjoar-me com
tudo e com nada. Apresentei a situação à Precipitação, que me in-
formou que só poderia ser gravidez, e sugeriu que consultasse um
médico.

72 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


DO SONHO AO PESADELO

Se nenhum dos teus sonhos já se transformou em pesadelo,


então és um sonâmbulo de olhos fechados.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 73


74 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
OS DEFEITOS SÃO ENFEITES DA
VIDA

Capítulo 7

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 75


Os Defeitos São Enfeites da Vida

não me liga -

e decepcionada.

76 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

Para o teu bem, tu irás abor-


tar, sim,

isso princesa, mais


boneca,

-
o melhor é ir esta
manhã fazer o combinado.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 77


-

Precipitação, amiga do meu coração,


Nunca deixes de usar o preservativo. Escuta, se o HIV não te tirar a vida,
arrancar-te-á os sonhos e o modo de viver; irá controlar os teus hábitos, será a
tua condenação, a pena de morte, mesmo que continues viva. Continuamente,
irás viver em pânico e a tua vida não será a mesma.
Contaram-nos a pior mentira: que poderíamos viver normalmente sendo
HIV positivo. Fizeram-nos isto para nos tirarem o medo de contrair o vírus e
estarmos vulneráveis a ele. O HIV foi romantizado, amiga. Todos estão com
medo de serem pais e temem engravidar porque não se querem responsabilizar,
por isso é mais fácil hospedar um vírus no próprio corpo, viver eternamente com
ele lembrando-se, todos os dias, da sua existência na hora da medicação.
Não sou a pessoa indicada para te aconselhar, mas escuta, mesmo os outros

que você e as outras durmam com homens sem preservativos, pela certeza de que

lhes traz neto. Parece haver mais aceitação familiar quando se volta doente sem

78 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Por mim, mesmo que coloques implante para prevenir a gravidez, usa o
preservativo para te protegeres. O implante é um instrumento manipulador, que
nos faz pensar que se pode fazer sexo com qualquer um em qualquer lugar. O
HIV é um presente que garante um futuro doente eterno sem possibilidade de

doente é uma honra para quem?


Foi-me dito que os antirretrovirais actuais reduzem a carga viral se a pessoa
obedecer a medicação. É por isso que os desgraçados sem coração podem-te levar

Avisa o teu irmão, Acelerado, que as bandidas daqui onde estou têm unhas

propósito, porque são vingativas, dizem que não irão morrer sozinhas.
Escapa, amiga. Seja heroína. Livra-te desta guerra. Perdoa-me por tudo.
Um dia a gente irá se ver, disso podes ter a certeza.

Chorando, dormi sem mandar a mensagem a Precipitação pen-


sando que havia ligado a internet. Mas não. Escrevi tudo em vão?

Na madrugada, estão entrando homens no meu apartamento.


Abrem a porta. Eu pergunto em voz alta amor, vieste-me ver? De re-
pente, chutam-me na barriga, batem-me muitas vezes, soqueiam-me
na cabeça e chamam-me de vigarista e de oportunista. O líder olha
para as minhas pernas e ordena que parem. Anuncia que me quer
degustar. Tira-me as roupas. Estou pedindo-lhe para levar preserva-
-
vel. Estou repetindo que o homem que lhes mandou vir bater-me

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 79


deu-me HIV e que se eles me violarem sem preservativo, também
serão infectados. Que consultem o resultado do teste na gaveta.

– a verdade é que o teste de que falava era de gravidez, mas


somente quem foi a escola seria capaz de distinguir os testes. O
espancador desiste e veste-se perguntando-me se tenho pena dele?

– Tenho medo de te dar SIDA. – Informo, derrotada e dolori-


da. – E mais, eu e você somos vítimas daquele homem que também
matou meus sonhos. Você foi comprado para vir matar outra pobre
como você sem nenhum motivo, eu poderia ser sua irmã e você
poderia ser meu irmão. Não te posso deixar ter HIV. Tira a roupa,
viola-me e mata-me de uma vez. Por favor, me mata, minha Mãe
morreu por AVC quando fugi de casa, meu pai morreu quando eu
tinha dois anos, me mata, quero ir estar com a minha família, eles
conhecerão seu neto, me mata, por favor.

Minha mãe morreu por minha causa, por estress, pela dor. Mor-
reu sozinha e abandonada, com fome, sem banho, sem ninguém,
por minha causa. Foi descoberta morta, porque o seu corpo estava
cheirando mal, nem teve último banho, por minha causa. Me mata.
Para a família do meu pai, nunca existi, morri com ele quando ti-
nha dois anos, não me conhecem, nunca procuraram saber algo de
mim, não tenho mais nada a perder, me mata, leva os meus cabelos,

Mara
arrependida.

Me viola com preservativo, este será o último bem a fazer na


vida, te satisfazer morrendo, talvez isso me traga redenção. Estou

80 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 81


-

82 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 83
84 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
PELOS TRÊS MORTOS
Capítulo 8

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 85


Viver é um intervalo entre uma morte
e a outra

Mas antes de seguir com a minha vida, devo-me vingar: devo


ajustar as contas com quem me tirou da pobreza para a desgraça. Há
apenas três saídas: ou ele mata-me, ou eu mato-o, ou morremos jun-
tos. Juro pelos meus três mortos que uma dessas opções será a saída.
Estou potencialmente activada e com coragem. Não estou mais
frágil, muito menos doente. A comida deu forças aos meus múscu-
los. A vingança e o ódio abraçam o meu espírito.
– O que vês, Mara. Concentra-te e diz-me.
– Vou vingar-me.
– Sim, Mara, vais-te vingar de quem?
Tim tim tim, a campainha toca e a brincadeira termina.
– Ganhei o jogo ou não? – Pergunta Mara.

Mara dizer de quem quer se vingar. Ela desce as escadas irada com
o toque da campainha.
– Volto já, Mara. – A mulher diz. – Vou ver a porta.
Ela abre a porta e depara-se com um buquê de flores que esconde o
rosto do seu marido. Este a saúda com um beijo na testa e juntos
vão ao quarto.
– Por acaso a senhora acordou muito cedo e arrumou o quarto?
– O marido questiona após constatar o quarto muito organizado.
– Mal chegou e está com ciúmes? – A mulher devolve em tom
de gracejo.
– De quem, de ti? – O marido brinca e oculta o ciúme. – Não

86 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


seja paranóica.
– A verdade é que dormi noutro quarto. – Revela a mulher.
– Por que razão? – O marido quis saber.
– O meu sonho de ser mãe foi realizado. – A mulher responde

chamarei.
– Continuas a tomar decisões sozinha. – O marido abana a ca-
beça em jeito de desaprovação. – Não podias ter feito isso, sem
antes me consultar.
– Há coisas que não se negoceiam. A escola oferece este po-
der de dizer sim e não até ao marido. Empoderamento e emancipa-
ção é isto. Daqui a nada eu vou trabalhar. Ficas com a casa.
– Já reparou que quando eu volto do trabalho, tu vais? Somos
um casal de desencontrados.

-
sas.
A mulher sobe ao primeiro andar e informa Mara para descer e
tomar sopa. De seguida, informa o mesmo ao marido.
– Maisás, este é meu marido. Marido, esta é a Maisás, a menina
de quem te falei. – A mulher faz as apresentações e informa. – Pre-
parei tudo e conservei na geladeira. Escolham o que quiserem e
comam. Eu volto em três dias.
– Maisás, vamos ao quarto para me ajudar a vestir. – Pede a
Mulher.
A mulher veste o seu vestido vermelho de rendas, com uma
capa de tecido de algodão puro, tudo diante da Mara. A mulher pede
que Mara a feche o zipe.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 87


– Já está. – Mara responde.

que quiseres fazer, excepto mergulhar na piscina. De hoje em diante,


o que é meu é teu, e o que é teu é meu. Irei legalizar tua adopção para

chance de te corrigires.

88 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 89
90 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
IMPROVISOS PLANEJADOS

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 91


Improvise até que seja um plano perfeito.

África, África, minha terra


África, África minha herança
África, África espelho da humanidade
África, África eu sou.

92 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

mais uma chance.

-
taciona o carro e desce.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 93


-

um.

-
-

94 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


não conseguirá ver, mas olhando o poder donde você é, facilmente
compreenderá.
Qual é o aroma da Mara? O que você vê na sua alma quando a
olha? E os seus olhos te fazem viajar até onde? O que ela suspira?
Isto é muito importante para compreender o poder que onde ela
cresceu exerceu sobre ela, não se esqueça, qualquer atitude dela não
se resume ao facto de ela ser boa ou má, mas sim ao poder que
foi exercido sobre ela. Não é culpada. Muito menos vítima. É uma
cúmplice.
Minha menina, vestiste-te desse vermelho glamoroso e aliciante
qual sangue diante de vampiros sugadores da identidade. Vestiste
essas botas e esse penteado só para vir comprar sonho? Ou a tua
visita é um improviso?
– Olha, anciã. As botas me ajudam, pois não se sabe como nos
será a estrada. Às vezes ela tem matope, noutras tem picos, mas é
obrigatório por ela passar. Isto não é negociável, anciã, e mais na
multidão das incertezas que me consomem, até sobre a Mara, acre-
dito estar num labirinto, ou jogo dos deuses, que me conduziram até
si. Se programei aqui estar ou não, não interessa, o importante é
que as circunstâncias que por mim não foram criadas me trouxeram
a si. Por quê, não sei, de mim você sabe tudo, fale-me de si, conte-
-me suas histórias do passado. A propósito e com todo o respeito,
por que está assim, Anciã de Todos os Tempos?
– Como estou, minha menina?
Vulnerável e instrumentalizada anciã
Sombria como terror
Vivido pelos meus
Algures

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 95


Malnutrida te sinto
Alimentada de mentiras
Enjoada de hipocrisia
Tão frágil, tão abatida,
Tão nada.
Cansou de jejuar
Cansou de engolir amores mornos
Cansou de abraçar amigos frios.
Por que assim estás, anciã?
Te levaram à terra sonâmbula
Passeou nas ruas das dores
Hospedou-se na solidão
Dançou ao som das balas
Alimentou-se da frieza
Visitou a indiferença
Perdeu-se de si, anciã.

96 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


subjectivas quanto a dor e o prazer. Então, hoje ouvirás a verdade
que não compartilho com um “despacho de carácter e desperdício
de personalidade”.
– De que verdade se refere? – A mulher quer saber.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 97


GANHAR É PERDER
Ganhar é

aceite perder para ganhar.

98 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


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CÁLICE DA ALIENAÇÃO

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 101


– És uma vencedora perdedora, minha menina. Quando te

Quando construíste o muro da tua casa, perdias a oportunidade de


receber qualquer faminto à tua porta. Quando decidiste casar cedo,
perdias a oportunidade de ser feliz para casar. Casaste para ser feliz,
e ganhaste o casamento perdendo a felicidade. Não te preocupes.
Estás muito bem-adaptada.
O ser humano é incrível pela sua capacidade de se adaptar fa-
cilmente a tudo, até a um balneário que fede. Hoje realizarás o teu
sonho da verdade, que te dará a oportunidade de continuar inocen-
te, ou por outra, deixarás de te ver como resultado do teu esforço,
teu trabalho, porque não é bem assim. Este lugar tem poder e exer-
ce poder sobre todos. Até sobre mim existe um poder forte sendo
exercido por eles.
– Quem são eles?
– Tu os conheces. – A anciã responde. – Nunca te comportes
como se não os conhecesses.
– Senão? – Pergunta a Mulher.
– Senão te tornas numa alma viva em um corpo morto. Eu exis-
to por ti, e não tu por mim.
– Não seja contraditória, anciã. Você é mais velha que eu, como
você existiria por mim? Não deveria ser o contrário? Deixe-me con-
tar uma piada. Não zangue.
– Já estás muito à vontade nesta fábrica. Continua à vontade. –
A anciã consente.
– A menopausa pausa a mente, nem? – Questiona a Mulher.
– Nunca pensei que isto pudesse acontecer contigo. Sempre foste

102 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-
-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 103


de outro ventre.

Tudo isto é minha responsabilidade: ganhei dinheiro e perdi a


minha essência. Deixei-me prostituir e vender-me no passado. So-
mente descansei quando entrei na menopausa.

– Disto não sabia.

-
trário para não ter que sujar tua unhas com sangue e resgatar uma
velha como eu. Fui vendida. Desejas comprar-me?

– Por quanto? – A mulher pergunta em prontidão e oferece. –


Eu tenho muitos bens. Posso hipotecar tudo. Posso deixar de inves-
tir em tudo e resgatar a Senhora. Fracassar consigo é desgraçar tudo.
Esta é a maldição deste lugar. – Diz a Mulher.

– Não sei por quanto me venderam. Não prestei atenção. Talvez

esqueceram-se de mim por estarem viciados e alucinados na bebida,


que me foi dada para lhes dar. Disseram que era o melhor leite que
substituía o do peito. Eu dei-lhes na total inocência ou falta de res-
ponsabilidade, embebedava-lhes desde cedo do cálice da alienação.
Hoje estão tão alienados que constroem bares dentro deste lugar de
livros alienadores, que bebem, recomendam e depois vomitam em
toda rua, toda esquina, todo lugar.
Olha só a mais nova, a mimada, a caçula, minha última proeza

104 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Diplominha. Actualmente, a mais amada de todos, até por quem me
envolvi no passado. Tem um hábito humilhante, vomita sua aliena-
ção por onde passa e suja quem a toca, mesmo assim todos se poem
a rir. Às vezes penso que ela tem um efeito hipnótico, porque se
fosse o meu Oprimido fazendo isto, já estaria banido até da convi-
vência familiar. Sabes por quê? Por causa do seu nome, Oprimido.
Esta situação prende-me nesta esteira e deixa-me impotente. Estou
colhendo deitada na esteira os frutos da minha tolerância e subjec-
tividade.
Diplominha é exibicionista demais. Anda nua por aí. Apresenta-se
a todos os seus amantes, como se fosse a mulher mais extraordiná-
ria de todos os tempos. Às vezes temo que o seu pai a leve a fazer
exame de DNA, o que nunca deve acontecer, ainda descobre que
a essência de Diplominha é papel carimbado e os números que ela
apresenta como sendo sua idade são falsos.

responsabilizar por todos os seus escândalos, por tudo e em tudo.


Os seus amantes amam-na quando a têm nos braços. Mas no fundo
não têm nem noção do preço pago para que nunca perca sua honra
nestas terras.

que, na avenida 24 de julho, escutei uns jovens repetindo que Diplo-


minha não é de nada, e que era inútil. Repetiam que é melhor con-
tinuar sendo um solteiro analfabeto, do que usar os recursos para
lobolar Diplominha somente para tê-la no quarto, porque o único
lugar onde ela cabe é debaixo da almofada, em cima da cama. Eles
diziam que Diplominha não abre novas oportunidades de emprego
a ninguém. E se for para tê-la nos braços é somente para exibir.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 105


Saí daquele lugar com vergonha. É doloroso ouvir todas aque-

decisões.

Sim, Diplominha é vítima das decisões tomadas por mim. Se eu


voltasse ao passado faria tudo diferente, quando ela ainda era cha-
mada de DIPLOMA. Na altura, quem com ela andava era respeitá-
vel, era honrado.

Diploma ainda parecia uma noiva virgem até aos lábios, repleta

papel, negociada a quem paga mais. Hoje, há quem rouba, mata,


engana estando segurando Diplominha nas mãos. Sem vergonha, mu-

– Não tires lágrimas, menina de vermelho. Esta é a minha rea-


lidade e eu vivo com ela. Todos são obrigados a viver com a sua
realidade. senta-te neste pilar: saber estar. É o mais confortável que
tenho aqui na fábrica e o menos usado. Saber estar parece ser pedra
nos rins de alguns, parece ser incomodo. Muitos negam saber estar

de cabelo.

-
zes este pilar é màgico, poucos sabem disto, eleva-se até às nuvens
com destino às estrelas. O processo de levar alguém a estrela é in-
visível, somente o resultado é evidente. Quem ousa a saber estar é
aplaudido como se fosse uma estrela, isto é segredo, não conte a

dias para subirem, sentarem neste pilar somente para serem como

106 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-
-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 107


-

as coisas.

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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 109
110 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
IMACULADA MACULADA
Capítulo 11

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 111


A inocência termina onde os olhos se abrem

-
-

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-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 113


desenhar. Tenho-os dito que ainda que citem suas teorias de quinta

pés do Corrupto.

Corrupto, a lama deste bairro, que sujou até a sua essência. Feliz
ou infelizmente ele é muito inteligente, sarcástico e é o verdadeiro

deseja ter braços esticados do corrupto, olhos de serpente, cabeça


dura do corrupto, pernas gigantes como do Corrupto, porque ela

quando na verdade é tudo o contrário.

concorda. Falei-lhe que esta fábrica está nestas condições graças ao


corrupto. Se eu soubesse que tudo o que de mim aprendia depois ia
usar contra mim, nunca o teria ensinado.

Corrupto aperfeiçoou os seus demónios ambulantes. Multipli-


cou-os. Por isso está espiritualmente em todo lugar. Para a sua des-
graça, também está perdendo o controlo da situação, porque estes
demôniozinhos ambulantes não só roubam como matam para en-
cobertar as provas. Estão destruindo até os bens comprados pelo
corrupto, sabes por quê? São almas famintas e insaciáveis.

-
rupto, porque ele consegue tudo o que deseja sem escrúpulos e sem
pudor na cara. O Corrupto tem a coragem de te roubar sorrindo e
abraçando. É difícil pensar que do ventre de uma mulher saiu algo
tão bizarro e pervertido. Ainda que diga a Ima o contrário, ela cobi-
ça o Corrupto demais, talvez por serem gémeos.

114 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

por si.

repetido:

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 115


escondem a vergonha da sua casa, quem leva a sujeira para a rua
é imprudente. Ela discorda porque só foi ensinada a aceitar, nunca
a criticar. Sabe aceitar e concordar, nunca nega nem discorda. Ela
nunca criou nada, por isso esta fábrica virou uma réplica das outras
fábricas. Até as suas palavras são uma cópia, isto me envergonha.
A minha Imaculada é licenciada, mas nunca te fará um discurso de
dois minutos com palavras próprias. A sua obsessão em admirar o
Corrupto, em querer ser, ter e viver a vida do Corrupto, é o que lhe
faz ser uma presa nos grilhões da fraude e da incompetência.

-
-
pel. Pode até ser uma mentira nua e crua, basta que esteja no papel
que Ima a aceita. O papel para ela justifica tudo, parece que os seus
olhos são cegos para ver que a casa onde ela vive não corresponde
ao valor escrito no papel, por isso me pediu que não fosse mais a
visitar se eu não levasse comigo novas abordagens escritas no papel.

– Vais desistir da Imaculada? – A mulher quis saber.

– É muito mais fácil mudar o Corrupto e o Depravado, do que


mudar Imaculada. – A velha responde.

– Cada um com a sua essência, escolhas são escolhas.

– Realmente, escolhas são escolhas. – A mulher concorda com


compaixão.

Um homem que trazia vestes brancas surge.

– Bom dia. Como está, cuidador da anciã?

116 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 119


-
mo-pobreza.

– Ndzo pfuka handza ha hanya.


bantu.

120 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


e me transformar em fantasma, quem escapará? O exército de ig-
norantes fracassados, que estou oferecendo em nome da minha re-
compensa fracassada, constrói escolas que caem com sopro de duas
idosas famintas. As chapas dobram-se como esteiras, as estradas
cavam-se para a vossa maldição. Olha a tinta do palácio, brilhou so-
mente três dias em nome dos três dígitos da minha recompensa. Os
relatórios precisam de microscópio para serem percebidos. As pon-
tes são pontes. E tudo se renova todos os dias como a casa de papel.

se não morrer de doenças, morrerá nas mãos da Destemida irmã da


Paciência. Essas são as verdadeiras gémeas, filhas da anciã de todos
os tempos.

-
presa.

– Sim, nasceram no mesmo dia, à mesma hora. Elas têm a mes-


ma aparência e vestem tudo igual. Comem a mesma comida e a
mesma bebida de Imhotep
são totalmente diferentes. A Justiceira Balança Justa, a mais velha da
Destemida e paciência, sabe que estou fazendo de conta e que isto
lhe vai custar muito caro também. Na verdade, já está custando mais
caro que a minha recompensa.

– Tu conheces Diliza ao som do batuque?

– Não. – A mulher respondeu. – Nunca ouvi falar.

vicioso. Vai e vai. Vem e vem. Tu passarás pela mesma situação,

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 121


até que mudes de comportamento, de atitudes, de visão, de pensa-
mentos e do carácter. Quando a tua cabeça girar como ponteiro de
relógio, passarás pelo mesmo ponto todos os dias pensando estar
experimentando algo novo. Na verdade, o novo aí é o dia. O círculo
é o mesmo. Faz da tua cabeça o relógio. Deixa as circunstâncias gira-
rem, sem mudar a tua essência. O projecto recompensa pretende ré-
-alfabetizar doutores daqui a vinte anos. Ontem quase morria de rir.

– Por quê? – A mulher quis saber.

– Só hoje descobriram que, no meio de cem crianças aqui no


bairro, somente seis sabem ler e escrever e somente três compreen-
dem o que escreveram em nome dos meus três dígitos. Ndzo pfuka
handza ha hanya. Procurar-me-ão de joelhos e pagarão com lágrimas
-
do do teu marido Depravado pensa que és estúpida e que não estás
no domínio das suas acções. Gostaria de estar contigo quando o
mostrares a tua verdadeira face, para me rir dele e humilhá-lo.

Olha, menina, o Forasteiro está próximo daqui. Sinto-o porque


por onde anda somente exala ameaças e morte. Nunca o subestimes.
Acredita que a minha fome pode-me motivar a transformar pau de
giz em farinha para comer, beber água tingida e enganar o estôma-
go, molhando a garganta para vir gritar como um sacio na sala. Em
parte, pode ter suas razões: A fome motiva e cria iniciativas, alma de
vidro. O ridículo é que perde seu tempo controlando mais a mim
do que a si. Por isso está próximo da tua queda. Quando sujares as
tuas unhas com sangue, pega esta esponja colada à madeira. Apaga
a tua realidade e escreve de novo no quadro do teu coração, onde
1
O mesmo que ‘‘louco’’ nas línguas bantu da zona centro de Moçambique.

122 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


somente tu verás. Apaga sempre que estiver insatisfeita. Escreve
de novo sem medo de errar. Se errares, se corrija-te. Mas nunca
repitas os mesmos erros.

Diplominha, a mais amada por todos, é simples papel e carimbo,


reduzida a um enfeite curricular. Por isso, quando ela traz as suas
amigas para aqui à busca de emprego, eu somente reparo para elas
e não para a Diplominha. Vejo o que há de comum entre elas e as
suas mentes. Sem nada de comum, sem emprego. Conheço quem
sabe, mesmo sem vir acompanhada da madrinha Diplominha. E
quem não sabe. Escolho os que devem dar continuidade a esta fá-
brica e quem não é digna de aqui entrar. Não são os números que
me impressionam. Quando oprimiram a anciã lhe exigindo núme-
ros, ofereci-lhe o cálice da redenção, jurando pela ciência e dizendo
que lhes darei números extraordinários, acompanhados de burrice.
Estão facilitando o meu trabalho da produção de legião de ignoran-
tes. Se é isso o que ainda querem, é o que ainda vos darei. Até que
alguém suje as unhas com sangue mudando as abordagens.

Olha, alma de vidro, se hoje me pedires que eu mate o Depra-


vado por ti, eu mato-o. Se o quiseres ver na garrafa, teu desejo é
uma ordem. Tudo posso fazer. Mas coloca isto em tua cabeça: não
o mudarei se ele não decidir mudar por si. Por isso, o projecto cinco
por um nunca mudará se eles não mudarem as decisões tomadas
sobre a fábrica e sobre a anciã. Quem me dera ouvir que, de hoje
em diante, querem que lhes dê uma legião de superdotados. Querem
uma geração preparada para viver com e pela educação. Surpreen-
der-te-ias, alma de vidro. Isto não se constrói de boca para fora. Mas
de atitudes e novas abordagens.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 123


-
de. Agora, Destemida, Depravado, Corrupto, Forasteiro, tudo isto
é quantidade e torna esta fábrica naquilo que é. Que sujeira nojenta!
São a deterioração desta sociedade. Já estão, até, nos portões do in-
ferno para corromper quem lá deseja entrar por nada. Esta raça de
vergonha não parece ter sido encubada no ventre de alguém. Queres
um marido extraordinário? Paga por isso. Se o quiseres dzan’wuan’w ua
não me pagues, somente me exija que eu o farei com menor esfor-
ço. Amanhã acordará repetindo tudo o que tu disseres. Sem inovar.
Sem acrescentar e sem propor. Tudo está nas tuas mãos. Agora vá,
a Anciã chama por ti. Fico a preparar-te uma fusão de saberes: sa-
ber-saber, saber ser, saber estar e saber fazer, o mais prazeroso de
todos. Este último far-te-á atingir orgasmos extraordinários na tua
vida, se conheceres o teu próprio corpo, porque a libido está espa-
lhado da planta dos pés a ponta do cabelo. O mesmo se aplica a uma
sociedade, que tem muitas zonas erógenas, mas poucos são os que
ousam excitar esse prazer social.

– Anciã? – A mulher aproxima-se da anciã. – Como consegues


viver e conviver com o Feiticeiro? Ele é muito mau. Totalmente
perigoso. Como ousa produzir ignorantes, uma legião ou exército
de ignorantes engravatados neste bairro? Ele merece punição. Ele
está-se vingando em pessoas erradas; não foram estas crianças que

– Disse-te que também faz de contas que está cuidando de mim?


A verdade é que já não cuida da minha cabeça, não engoma as mi-
nhas roupas, não me esfrega as rasga-mantas, às vezes duvido que está
aqui por mim. Acho que é por falta de opções mesmo. – Diz a An-

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matando sem piedade.

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“SEM OPÇÃO”

Viver sem opção é uma opção

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IMPACIENTES DUPLAMENTE
PACIENTES
Capítulo 12

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 131


a esquerda e encontra a Dra. Destemida, conversando ao telefone.
– Dra. Destemida, por favor, ajude-me. Fui ferida.
– Toma a receita. Já escrevi o teu nome completo. – Responde a
Dra em prontidão, entregando-lhe a receita.
– Mas Doutora, como assim já tenho a receita? – A mulher es-
panta-se. – Pelo menos observe o meu ferimento.
– Queres ensinar-me o meu trabalho? – Pergunta a Doutora
Destemida. – Se sabes que te devo observar, observa-te pessoal-
mente. Podes sair. A pessoa que cuida das feridas não sou eu. Devias
agradecer pelo meu bom humor de hoje, pelo menos te prestei o
favor de te atender e dar-te esses antibióticos. Tenho muito a fazer,
podes-te retirar. Se desejas mais e melhor do que isso, procura-me
depois da floresta da corrupção, na Clínica Saúde se Compra. Vem
preparada para comprá-la, como sugere o nome da clínica. Para a
tua segurança, saiba que lá se vende mais do que os antibióticos. Se
isto fosse mentira, o Forasteiro não se ia arriscar em cima de cavalos

Ouve, ó cunhadinha. Lá temos melhores máquinas e melhores


tratamentos. Eu sou melhor lá também porque as exigências e a

vende-se a saúde como se vendem os sonhos. O sangue é igual para


todos. Não existe sangue de prostituta, de alienada ou de marginal.
Por que gostas de te fazeres de perfeita? Vejo que estás sem vontade
até de fazer piada. Podes desviar à esquerda, lá encontras minha
irmã gémea, a Dra. Paciência. Se tiveres paciência, sairás sorrindo.
– Você está prostituindo a saúde. – A mulher contesta.

132 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


– Quem não é prostituta? – Contra-argumenta a Dra. – E tu que
casaste com o Depravado?
Escuta, todos aqui têm almas sedentas e insaciáveis. Os remé-
dios sempre serão desviados. Os materiais também. Queres-te fazer
de perfeita, vai dar uma aula motivacional de boas práticas sociais
àqueles que esperam pela paciência aí no banco do desespero. A

importa mais, mas tarde ou cedo será igual a mim, ou pior. Quando
compreender que a compaixão não vence a pobreza de ninguém,
recorrerá a corrupção. E como estará atrasada para aprender a cor -
romper, será descoberta no mesmo instante. Num piscar dos olhos.
Muitos vem e vão eu assisto a isto sentada aqui nesta mesma cadeira.
A mulher sai trémula e desfalecida da sala da Dra. Destemida.
Ela curva à direita e encontra muitas pessoas, algumas deitadas no
chão, outras sentadas no banco do desespero. A mulher dirige-se a uma
senhora com uma criança no colo, outra nos pés, a terceira nos bra-
ços, e pensa consigo mesma: esta mãe somente não engravida quando já
estiver grávida. De seguida, saúda-a.
– Como estás, senhora?
-
mitos e diarreia.

– Não tenho número. Somente sei a quem sigo. Sou a última


pessoa.

– Sim, vou.
– Como te chamas?
– Sem Opção.– Responde a senhora. – Por isso devo aturar esta

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 133


– Mais uma vez, sinto muito. – A mulher anui.
– Por quê? Pela minha condição? Já estou habituada e acostuma-
da. – Esclarece sem Opção. – Se o chefe do bairro e do quarteirão,
por decreto, fossem obrigados a nunca mais irem comprar a saúde
-
cina da vida teria todos os serviços e daria muita vida a quem aqui
visita, e mais, a Doutora Destemida não estaria muito à vontade.
– Não sei o que dizer, Sem Opção. Não te posso abraçar nem
saudar, ainda te sujo as unhas com sangue. Como vês, estou san-
grando. Vou à luz do mundo conversar com o Sal da Terra. Tenho
uma ferida maior na alma, do que esta que vês no meu braço.
– Na luz do mundo, não só peça chuvas de bênçãos, milagres e
dinheiro, mulher. Ore para que um dia todos os chefes do bairro e
do quarteirão sejam obrigados, por decreto, a cuidar da sua saúde
-
cina da vida, desde o próprio muro até o seu interior.
A Dra. Paciência consegue, pelo menos, manter pessoas como

Que a Dra. Paciência nunca mude a sua essência, tal como já mudou
a Dra. Destemida.
A mulher despede-se de Sem Opção e dirige o seu carro em di-
recção a casa da sua cunhada Justiceira Balança Justa, que maquiou

ainda negra e preta como a noite.

vida. Não é atoa que Justiceira somente se veste de preto para igua-
lar-se aos demónios que visitam a sua casa continuamente. A mulher

134 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

trazer testemunhas.

-
quina deste bairro.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 135


-

136 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


para postar nas redes sociais. Sal da Terra sentava-se numa mesa
recheada e atulhada.
– A paz do senhor. – A mulher saúda.
– Muita paz. – Sal da Terra retorquiu. – Não estamos a atender
neste momento.
– A casa do Senhor está aberta, por isso entrei. – A mulher volta
a insistir.
– Não estamos a atender. Volte noutro dia. Mas antes de vir,
lave-se com água; limpe o seu corpo e as suas roupas, depois volte
para lavar a sua alma com água viva que também limpará as suas
ânsias.

que extraiu virtudes do Senhor Jesus tocando em suas vestes e deci-


de extrair as virtudes do Sal da Terra com o seu colar Rubi. Toca no
seu pescoço, como quem se está coçando e deixa cair, de propósito,
o seu colar Rubi.
– Senhor Sal da Terra, perdoe-me por lhe importunar. – Atreve-
-se a mulher, caminhando em direcção a Sal da Terra. – Deixei cair
aqui o meu colar que me custou muito caro; é de rubi.
Os dois olham para o chão. A mulher levanta o seu vestido e
mostra propositadamente as botas ao Sal da Terra. Minutos volvi-
dos, ela acha o colar, agradece e despede-se.
– Espere, irmã. – Sal da Terra reage.
A mulher diz para si mesma. Fácil.
– Sim, Senhor!
– Em que lhe posso ajudar mesmo?
– Pode deixar, Senhor Sal da Terra. Agora tenho um problema
mais grave. Devo levar este colar ao joalheiro para avaliar se está

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 137


quebrado.
-

para conversarmos.

Como vou entesourar nos céus se todas as rique-


zas vêm de lá?

iphone

138 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Pense, tudo isto foi adquirido com que dinheiro?
-
-

El Shaddai, -

amarada, sua endemoniada.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 139


-

– Depois de tu teres casado, tornei-me a dona deste quarenta

140 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


xima
-
-

Porque não me levou contigo a tua casa quando te casaste?

-
-

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-

– -

Opostos nunca formarão uma família unida na


base da oposição, -

com mais uma menina na casa da praia.

chips

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-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 143


O ÚLTIMO JURAMENTO
Todo juramento só se torna em último se for sentenciado pelas obras.

Sem isso, será mais um.

144 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 145
146 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
BISNETAS DE IMPERADORES
Capítulo 13

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 147


-

incita-a ao último juramento.

xingomane, mapiko, Nyau,

148 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


– Farei o que Ngungunhane faria, Resiliência. Sinto a força de
Mondlane nas minhas veias. Estou possuída pela indignação e pe-
las lamentações das violadas, das prostituídas, das negociadas e das
exploradas. Farei com o Depravado o que Samora faria com um
ambicioso.

Também faz o mesmo. Ouve a voz de Samora no teu íntimo.


Faz sem tremor. Sem covardia. Faz com detalhes. Faz sem ensaios.
Permite-te sentir a exuberância de Samora no teu sangue e entrega-
-te.

– Não me faças rir, Cultura. Tu não estudaste muito. Não sabes


muito sobre esses heróis.

– Saiba que eu os conheço mais do que pensas, Resiliência. Se


o Depravado presentear-te a morte, recebe-a, não temas morrer,
todos morreremos. Agora jura comigo:

Jura que aceitará o presente da morte como guerreira.


Jura que morrerás como heroína.
Jura que morrerás resistindo.
Jura que morrerás devolvendo Paz à tua alma.
Jura que morrerás exaltando a pátria.
Jura que morrerá tomando decisões próprias.

Resiliência, os heróis são criados por covardes que tiveram medo


de morrer por algo. Escolhe a morte para ser lembrada eternamente
como alma viva.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 149


As duas irmãs saem da casa da mãe. Uma legião de dois solda-
dos. Cada uma escolhe o seu destino desconhecido, recheado de
circunstâncias que excedem qualquer previsão de uma mente sã.
Obstinadas e indomáveis como búfalo ferido, cada uma segue a sua
direcção. Uma para o Norte. A outra para o Sul.

possibilidade de se morrer por balas perdidas antes de se chegar ao


Depravado. O caminho para o Sul é mais perigoso, porque oferece

o Sul como caminho vence, porque Sul é como ferro que se destrói
com a sua própria ferrugem.

O caminho do Sul oferece prazeres baratos e assassinos, atu-

o Sul é um caminho. Quem faz do Sul destino morre arrependido.


Cultura deve ter noção de que o caminho do Sul cobra muito san-
gue, mas poucas vezes, enquanto o do Norte cobra muito sangue e
muitas vezes.

– Se alguém aqui no bairro dar-se a mordomia de morrer antes


do nosso regresso, que seja sepultado pela dimensão da sua covar-
dia. Se, até daqui a seis horas, o sol de junho brilhar e nada de ex-
traordinário acontecer, fracassamos, Resiliência. E se o sol de junho
não brilhar, falhamos. Se o centro não continuar unindo o Norte e
o Sul, acabou para si, Resiliência Pátria Amada. – Sentenceia Cultu-
ra. – Mas lembre-se que as nossas almas vivas não descansarão. Elas
limparão estas terras da depravação, da corrupção, dos ladrões e dos
sujos. Olha para a tatuagem de Ngungunhane na tua mão. Lembre-

150 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-se de onde tu vens. Tu és bisneta de Imperadores e Imperatrizes,
não de simples escravos. Tu nasceste no império de Gaza, faz disso
tua armadura, Resiliência.

Pela primeira vez, vê-se iluminação nos olhos de Resiliência. Ela


recupera a energia e desloca-se em direcção ao Depravado para o
fulminar. Por outro lado, Cultura dirige-se tocando o batuque para
invocar os espíritos, e canta em várias línguas bantus. Devo atrair a
coragem de Josina e emprestá-la à Resiliência, para que a use e faça o que deveria
ter feito há muito tempo, Cultura pensa consigo mesma.

***

da praia, vivendo como dois pombos. Resiliência caminha em direc-


ção aos dois para ajustar as contas. Enquanto isso, Cultura invoca os
seus heróis, aqueles que considera almas vivas em corpos mortos,
para juntos protegerem e salvarem Resiliência Pátria Amada, porque
acredita não ser fácil vencer Depravado sem ajuda superior.

Os espíritos estão sendo invocados e perturbados pelo som de


batuque nas mãos da Cultura. Os espíritos são importunados pelo
discurso épico e excitados pelo seu respeito diante deles. Um deles
ousa questionar a Cultura.

– Cultura, será que até os mortos não merecem mais descanso


neste bairro?

– Merecem, sim. – Cultura responde. – Somente estou aqui para


vos implorar socorro.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 151


enquanto dormem.

-
-

-
-

-
-

man-
ghandwi, mbalele mbalele, mathokozana,

152 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


As crianças do bairro estão sem princípios, sem valores, sem
normas, são pequenos cataventos. Estão sujando até as unhas dos
inocentes. As mulheres daqui até conseguem enganar o marido da
noite, imagina os seus maridos de dia, os reais. As mulheres deste
bairro lutaram com demónios e tornaram-se diabas. Elas incentivam

fosse mais um aperitivo para a mesa do Depravado, por isso andam


desnudadas sem qualquer pudor. Confundiram a liberdade com a
libertinagem. Imitam grosserias de sujos e mal lavados deste bair-
ro. Viciam-se nas drogas e no sexo ainda cheirando leite do peito.
Falam palavrões degradantes. Constroem para si bibliotecas rechea-
das de vocabulários antes exclusivos ao Depravado e ao Forasteiro.
Gritam estarem a lutar com Depravado e Forasteiro. Esquecem-se
que quem com monstros luta, monstro se torna. Foi para isto que
morreram? Convido-vos a uma introspecção. Atrevam-se a aceitar
o meu convite.

– Os mortos não podem vagar pelo mundo dos vivos. – Res-


ponde o Espírito.

– Por quê? E se eu tiver a bebida canhu, sope, mujabarão, xiguema,


xiguinya, tihaka e nyama torrada na brasa do sol para vos servir?

-
-
-lhes bebida e comida, os espíritos negaram. O que mais eles podem
desejar ela questiona-se. Talvez eu me ofereça como sua esposa. Não posso

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 153


falhar com Resiliência.

O alienador voltou,
Dentro de terno e gravata.
Não me chama mais de indígena,
Trata-me como sócia.
Não veio com armas,
Mas com dinheiro.

Se não ensina a matar como terrorista,


Ensina a matar como educador.
Se não ensina a envenenar,
Ensina a cultivar o veneno.

154 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Disfarçado de pastor,
Vende a salvação.
Disfarçado de empreendedor,
Tira-nos as riquezas,
Até os glóbulos vermelhos de sangue
Não escapam.

Disfarçado de solidário,
Promove a preguiça e a pobreza.
Disfarçado de altruísta,
Condena-nos à mendicidade
Nas nossas próprias terras.

Disfarça-se de ovelha,
Quando é lobo.
Comporta-se como cordeiro,
Quando é porco.
Dança, pula, abraça-me,

E mesmo assim, acha-se


Superior.

A sua agenda
É dividir-nos para reinar
É promover a guerra
É alienar a educação.
É vender a saúde.
É hipotecar a justiça.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 155


É lavar o cérebro. Até dos fetos.
É aniquilar-me das terras
Samorianas,
É acabar com os meus rastros
De todas maneiras,
O alienador quer-me matar.

este massacre.

156 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Quem corromper o destruiremos. Entende que se sairmos da
Cidade dos Dois Pés Juntos até tu poderá arrepender.

– Por que me arrependeria? – Cultura quis saber.

– Tiraremos a paz e o sono daquele que roubar do pobre.

Tiraremos a saúde de um membro familiar daquele que desviar


medicamentos do hospital. Morrerá como lixo, sem referências, sem
nada aquele que corromper. Quem mostrar a sua nudez a uma crian-
ça, viverá nu mesmo dentro de terno e gravata. Isto não terá volta.
Ainda queres que a gente prolifere este bairro, para colocar a ordem
sem cessar?

– Sim, almas vivas em corpos mortos. – Cultura respondeu em


viva-voz. – Mantenho a minha palavra. Sou cultura, não sou incons-
tante. Tenho noção do que estou fazendo e sei o preço disto, mesmo

vive neste bairro.

– Então, vamos. – Responde o Espírito. – Vamos à casa do De-


pravado salvar Resiliência Pátria Amada.

Ao longo da caminhada em direcção ao Depravado, os espíritos


batem em jovens encontrados a beber nas ruas, encarnam-se em
agentes policiais e prendem quem mal estaciona o carro. Queimam

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 157


a casa de quem havia roubado um til do pobre, para sentir a dor na

encontradas pelo caminho e chega a casa da praia. Entra pela jane-


la e vai directamente para o quarto. Eram quatro horas da manhã.
Mara sonhava revivendo o pesadelo do dia que foi espancada, agre-
dida brutalmente pelos homens contratados pelo Depravado. Ela
assusta-se e grita saltando da cama.

– Sujei as unhas com sangue!

Depravado assusta-se com o grito da Mara e salta da cama tam-


bém. Olha a sua frente e depara-se com Resiliência ao espelho.

Esfrega os olhos em sinal de descrença. Pensa que é um sonho.


Volta a olhar para o espelho e Resiliência continua ali.

Os três reencontram-se. A raiva invade as suas mentes como um


ciclone em formação. O chão torna-se num tecto de palha, e o tecto
-
vado, Resiliência Pátria Amada, quebra o suspense e aplaude três
vezes aos pombinhos.

– Mara, Mara, Mara. – Declara como se parabenizasse a rapa-


riga.

– Resiliência, por que trouxeste esta bandida, esta marandza na


nossa casa? – Depravado intervém. – Ela seduziu-me. Não tenho
culpa. Mais uma vez, a tua falta de prudência te fez juntar o gato e
o peixe. Manda-a embora daqui. Ela veio-nos envenenar e destruir
o nosso casamento. Olha para mim, Resiliência. Não tenho culpa. A
responsável desta toda situação és tu.

158 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

-
-

Mara Marandza

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 159


aqueles infelizes que contratei foram
incapazes de se livrar de ti. Se eu soubesse teria feito isto há muito tempo, assim

-
sação de livramento cria.

Resiliência cuido depois, não preciso matá-la, um bom manicómio resolverá isto.

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-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 161


MANDAMENTOS DO DEPRAVADO
Todo depravado é embaixador do seu reino

162 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 163
164 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
MANDAMENTOS DO DEPRAVADO
Capítulo 14

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 165


Responsabilize-se por tudo quanto ele tem feito e é

-
-

2. Por trás de um grande homem há uma grande mulher

-
Por trás de um grande homem existe uma grande mulher. Essa mulher é a
sua mãe.

3. Ser mulher é ser inferior ao homem.

166 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

5. Mulher deve ser delicada.

-
lher. A delicadeza é desnecessária.

6. Ser mulher é fácil.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 167


7. A mulher deve depender de homem

– Mentiroso sem escrúpulos. Cada um foi feito de forma ex-


traordinária. Mulher independente não admite abusos, mentiras,
traições, falta de respeito, muito menos machismo opressor. A mi-
nha independência para si é câncer maligno. Por isso que detesta
minhas pequenas vitórias, despreza as minhas proezas. Não me sabe
elogiar. Nunca soube nem me parabenizar, desgraçado.

8. Estar casada é um troféu

– Para quem, Depravado? Para mim? Claro que não. O casamento

em si mesmo. Mas um meio. Como meio, cada uma pode escolher outros
meios que se adequem às suas vontades. Ser solteira, por exemplo.
Sempre tive medo de divorciar, mas não por mim, pela vergonha
e por medo do que iam dizer-me; por ter acreditado que, se eu me
divorciasse, estaria a perder meu troféu. Para sua informação, casar-
-me-ei de novo, não como troféu, mas como demonstração de um
amor a alguém que não seja como você. Leve isso consigo para a
Cidade dos Dois Pés Juntos.

9. Mulher somente ascende ao poder quando se prostitui.

Mentiroso. Se estas empresas não estivessem alienadas por um


bando de depravados e predadores sexuais como você, saberia o que
uma mulher é capaz de fazer dentro do escritório. Se não usassem as
crianças nas orgias sexuais, experimentariam o verdadeiro orgasmo
da sabedoria dos pensamentos de uma mulher educada. E se não
promovessem quem que por vós é instrumentalizada, aplaudiriam

168 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

10. Um homem vale mais que dez mulheres

-
-

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 169


eu lesse, que me informasse, que opinasse, que apresentasse o meu
VIP Africano, porque me queria como mais uma no exército de ig-
norantes deste bairro. Fracassou. Sabe por quê, Depravado? Nunca
me esqueci de onde venho e sei aonde vou. Você, Depravado, con-
tinuamente corta as raízes da “Cultura”, o caule da “Educação”,
as folhas da “Instrução” e os frutos da “Liberdade” de quem
tem destino. Por isso, com a sua raça de gente, manterei distâncias
honestas e evitarei aproximações hipócritas.

170 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 171
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CURVA DO EQUILÍBRIO
Capítulo 15

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 173


Somente mentes planas atravessam a
curva do equilíbrio.

– Eu assistia-te, Depravado. Nunca tive fobia sexual. Fingi estar


neurótica nestes últimos anos para não dormir consigo, sabe por
quê? Aquela interesseira da sexta rua contou a uma conhecida mi-
nha que você a procurava dia e noite. Ela era seropositiva. Foi ela
quem lhe contaminou. Antes de se deitarem no bordel, eu já sabia
de tudo sobre o vosso encontro. O seu dinheiro comprou cúm-
plices, enquanto a minha honestidade trouxe-me amigos. Já parou
para pensar no porquê de eu nunca ter feito escândalos no seu hotel
Contaminação? Não poderia descer do alto nível que sou, atrás de um
depravado como você é.

– Olhe muito bem para este último corpo de uma mulher que
você verá. Algumas das suas cangaceiras tinham estas reentrâncias e
saliências? Algumas das suas garotas digitais tinham seios de massa-
la como estes? Na verdade, cada uma de nós é única e diferente da
outra, por isso não existe comparação nenhuma entre nós, infeliz-
mente estúpidos como você tentam humilhar uma mulher diante da
outra. Eu nunca lutaria, humilharia, nem desprezaria Mara, por ser
mais uma vítima sua, Depravado.

Você é ridículo, Depravado. Viveu pensando que é a mim quem


humilhava e traia quando dormia com catorzinhas e garotas digitais.
Você destruiu a si mesmo. Na próxima encarnação, capriche na

174 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


: traia uma juíza por uma médica; traia uma
professora por uma enfermeira; traia uma engenheira por uma empreendedora;
traia uma guerreira por uma resiliência, porque isto, sim, é traição. Ao contrário
disto, é desperdício de traição.

– -
-

Minha esposa não presta, muito menos me merece


Não suporto mais aquela senhora, já não a amo
Somente estou com ela por pena
Somente estou com ela pelas crianças
Nem sei como um dia casei aquela mulher, talvez cego estava
Ela nem chega aos meus pés

Somente estou com ela por pena


Somente estou com ela pelas crianças
Não tem noção do esforço que faço
Para continuar dividindo com ela a cama

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 175


Ela não é metade de mulher que você é, boneca
Somente estou com ela por pena
Somente estou com ela pelas crianças

É uma inútil que nem cozinhar sabe


Relaxe, bebé, aquela ultrapassada nunca me vai separar de si
Somente estou com ela por pena

Somente estou com ela pelas crianças

– Você cantou muitas vezes esse hino a Mara. – A mulher con-

para que eu a trouxesse na nossa casa que, dentro de minutos, será


apenas minha. Você contou-a onde eu trabalhava, o que eu fazia,
até minhas fotos você mostrou-a, por isso ela achou-me. Na cama,
Mara era uma princesa para si. No táxi, Mara era uma princesa para
o taxista.

Saiba, agora, que a gravidez dela não era sua, mas do taxista,
que a tratava como princesa de verdade. Saiba, ainda, que eu nunca
na Clínica
Saúde se Compra.

As mulheres deste bairro são astutas mais do que você e seus


amigos pensam. Elas dormem com qualquer um, mas não escolhem

nem? Mesmo a sua madrasta, Anciã de Todos Tempos, ofereceu Di-

Resiliência para de discursar. Sente a garganta seca. Enquanto


Depravado desfalece no chão, a mulher decide ir à cozinha tomar
água e regressar para continuar com o discurso. Na cozinha, ela tira

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-

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riosa, uma voz.

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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 179
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O REGRESSO DO FEITIÇO
Capítulo 16

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 181


O que vai por sete caminhos, volta por um

As duas irmãs, Resiliência e Cultura, despedem-se e afastam-se,


uma para o mundo dos vivos, a outra para o mundo dos mortos.
Mais uma vez, cada uma segue o seu caminho nesta viagem. En-
quanto dirige o seu carro, Resiliência experimenta uma tranquilidade
inexplicável. Ela segue em direcção à sua Mansão.

Em sua casa, enquanto tenta tomar um copo de leite e ver tele-


visão, a campainha toca, o que a deixa exasperada. Era a Justiceira
Balança Justa, que entrava em sua casa sem pedir licença e exigindo
explicações sobre o paradeiro do seu irmão Depravado.

– Por acaso sou guardiã do Depravado? – Resiliência responde.

– O que você fez com o meu irmão? – Justiceira insiste.

– O seu irmão sempre desapareceu, voltando depois de uma ou


duas semanas. Você nunca veio a minha casa para fazer escândalo.
Por quê hoje? O que você fez com o meu marido Depravado?

cunhada Justiceira. Por acaso está aqui para criar álibi? Traíram-se
nos negócios? Passaram-se a perna?

– Onde está o Depravado, sua estéril? – Questiona Justiceira.

– Nunca fui estéril. Fingi ser, todo este tempo, somente para

182 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


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– O meu irmão não merecia este tipo de morte. Não merecia ser
humilhado desta maneira.

– Ninguém merece, Justiceira. Olha muito bem para mim. Sem


piscar, Justiceira. Lembre-se, nas suas audiências, que ninguém me-
rece sentir a injustiça na pele. Você é a última instância neste bairro.
Você é a última esperança deste bairro. Sempre que você falhar de

minha casa decidida a combater o crime em nome do seu irmão. As


circunstâncias de hoje fazem-te compreender melhor e muito bem
a dor de quem por si um dia procurou e não achou. De hoje em
diante, a sensação de impotência, de dor, de decepção será experi-
mentada neste bairro por todos aqueles que roubarem aos pobres,
oprimirem os necessitados e destruírem sonhos. Já pode descer as
escadas e sair da minha casa, preciso terminar o meu leite fresco.

– Você não irá cuidar do corpo do meu irmão? – Justiceira vê o


seu mundo desmoronado como tapete no calcanhar da Resiliência.

– Ele sempre teve muitas mulheres. Deixo esse espaço a quem


o ama mais do que eu.

Justiceira sai da casa do seu falecido irmão, com pernas bambas,


derrotada, frustrada e impotente. Ela sente-se sozinha nas ruas. Ela
cai por terra e arrepende-se de tudo e de todos que injustiçou. Se
pudesse voltaria atrás e faria tudo diferente. Aconselharia o seu ir-
mão Depravado a proceder por bem e continuaria vivo.

184 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


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Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 185


186 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
SONHOS UTÓPICOS
Capítulo 17

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 187


Que a sua coragem exceda os sonhos utópicos;
quiçá se realizem!

Em forma de visão ou mau sonho, Resiliência vê o seu espírito


saindo do seu corpo e se dirigindo à cidade dos dois pés juntos,
onde é mostrada a alma do Depravado sendo escravizado sem direi-
-
-se. Se Mara tivesse abortado quatro ou seis gravidezes, assim estaria
amamentando o mesmo número de crianças aqui na cidade dos dois
pés juntos? Ai de quem tenha abortado inúmeras vezes.

Resiliência vê também uma mesa que sai do norte a sul, com um


eixo no centro, onde se jogava ntxuva . Na mesa, jogavam Eduar-
do Mondlane, Daviz Simango, Samora Machel e Afonso Dlakama,
enquanto Ngungunhane sentava-se no ponto mais alto do império
como se fosse o imperador.

– Aqueles senhores dividem a mesma mesa? – Espantada e in-


crédula, a mulher pergunta ao espírito que vagava ali próximo.

– Sim. – Responde o espírito.

– Não é possível! Isto é uma utopia. Isto é inconcebível. Isto é


inimaginável. Isto é uma quimera. – Resiliência continuava estarre-
cida. – Eles são de tribos diferentes, não faz sentido que dividam a
mesma mesa.

– Eles têm algo em comum. – Disse o espirito.

– O quê? – Resiliência quis saber.

188 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


– Sujaram as unhas com sangue. – Revelou o espírito. – São
moçambicanos.

– Continuo incrédula!

– O que você está vendo é a verdade. Não existe Makondes,


Machanganas, Marongas, Chopes, Masenas, Mandaus, Manyugwes,
aqui. Aqueles são um povo só. Vocês é que lutam um contra o outro
por causa dos vossos interesses egoístas, matam-se e destroem-se
por nada. Você deveria entender isto, antes de se juntar a nós. Resi-
liência Pátria Amada, escuta:

Resista como Ngungunhane, não se entregue facilmente. Morra


resistindo. Mora sendo você. Não se deixe alienar. Não se renda.
Una este povo como Mondlane, não desista nunca. Se lhe presen-
tearem a morte, não tema, abrace-a. Viva unido e morra unindo.
Viva como Mondlane. Seja o eco da unidade nacional. Seja ousada
como Machel, não tolere o intolerável, corrija na hora, despromova
o corrupto, prenda o forasteiro, devolva o feitiço ao feiticeiro, liber-
te a anciã da opressão. Faça um Gwaza Muthini na Dra. Destemida.
Seja como Machel, morra na batalha, não como uma covarde, nunca
mais deixe o seu sangue regar as suas terras. Cultive o amor, a paz,
a liberdade, a democracia, porque Machel já regou estas terras com
o seu sangue.

Sonhe como Simango. Dê luz aos aprisionados. Dê esperança


ao perdido. Transforme o nada em um sonho vivo e realizado. Mor-
ra sonhando como Simango. Pise o chão como Dlakhama. Pise a
terra até que ela lhe obedeça. Deixe as suas digitais por onde passar
para que se lembrem que daqui passou Resiliência Pátria Amada.

2.
Jogo tradicional moçambicano. Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 189
volte ao seu corpo. Exalte a pátria tomando decisões pró-
prias. Os seus heróis vivos em corpos de homens têm dito isso, exalte a pátria e
tome decisões próprias. Não despreze estas palavras.
-
-

Porque se Ngungunhane estivesse por aqui tiraria.


Se Mondlane estivesse aqui uniria todo lixo para reciclar.
Se Machel estivesse entre nós, ordenaria que o lixo se retirasse.
Se Simango estivesse cá, por nós, o lixo seria enfeite deste lugar e teria brilho.
E se Dlakhama estivesse entre nós, faria com que este lixo se arrependesse de
cá estar.
– Mas esses não estão aqui, como sabeis. – A mulher responde. – Eu estou
aqui. Exaltarei a pátria tirando o lixo. Esta é uma decisão própria. Decisões
próprias não prejudicam a maioria.

190 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


-

bairro.

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 191


– Mar, fecha a tua boca. Ri de fora para dentro como prometido.
As pessoas já não gostam de ver a alegria dos outros, sentem-se in-
comodadas com o sorriso alheio, imagina o teu? Se rires de novo no
meu bairro, os humanos virão com plásticos de escória e sujarão as
tuas unhas com sangue. Não rias para nós. Ri para ti, Mar.
– Tudo bem. Já estou calma. Prometo rir para mim. Mas, não
criem motivos que incitem a minha vontade de rir. Avisa os teus
amigos que aqui na minha área não quero sujidade de ninguém. Não
quero que joguem lixo em mim. Não sou contentor. Não quero que
brinquem comigo, senão eu brinco convosco.
Mas, a propósito, porque hoje decidiste contar-me isso? Por que
mudaste, amiga? Hoje nem queres molhar o teu corpo e afogar a
tua alma com as minhas águas. Não te queres embriagar nas minhas
ondas e se esquecer das tuas neuroses. Não queres misturar as tuas
lágrimas com as minhas águas para que sejam eternas. Não te queres
perder nas minhas profundezas, que excedem as profundezas das
tuas obscuridades. Não queres salgar as feridas do teu coração com
meu bálsamo?
– Não. Não preciso mais. Estou curada. Estou curada do ódio,
da superioridade, do tribalismo, da arrogância, do oportunismo. Nas
minhas veias corre o sangue da paz.
– O lugar onde nasceste já tem esse poder?
– Sim. O que sabes sobre o poder do lugar onde nasci?
– Olha para mim. Invade a minha essência. Espelha-te nas minhas
ondas. Viaja no horizonte do meu silêncio. Olha-me de cima para
baixo. Olha-me bem, sem piscar. . Tenha coragem de engolir esta

192 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate


Não sejas utópica. Sente o toque. Abraça o aroma deste lugar.

– O que tens, Mar? Estás a assustar-me.

– Sujei as unhas com sangue. Este é o poder gratuito deste


lugar.

– Mar, o que queres dizer quando dizes que sujaste as unhas


com sangue?

– Pensa. Repensa. Chega a conclusões próprias, alma pertur-


bada com odor a neuroses. O que fez com as tuas obsessões, que te
prendiam nos sonos ambulatórios? A tua obstinação como iceberg
de que modo derreteu, alma sofrida? Carregas memórias de uma
vida mal vivida. Vem até mim te lavares. Afoga-te nas minhas ondas.
Molha-te em mim. Como conseguiste transformar-te no que hoje
vejo em ti, Resiliência Pátria Amada?

.......SUJEI AS UNHAS COM SANGUE........

Fim

Benigna Agnelo Uate || SUJEI AS UNHAS COM SANGUE 193


194 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
Capítulo 1 - Cálice do arrependimento 11

Capítulo 2 - Gwaza Muthini 19

Capítulo 3 - Ó, mente mendiga! 29

Capítulo 4 - Covardes desmascarados 41

Capítulo 5 - Mestre da manipulação 53

Capítulo 6 - A maldição da bênção no deserto 65

Capítulo 7 - Os defeitos são enfeites da vida 75

Capítulo 8 - Pelos três mortos 85


91
Capítulo 9 - Improvisos Planejados

Capítulo 10 - Cálice da alienação 101

Capítulo 11 - Imaculada maculada 111


131
Capítulo 12 - Impacientes duplamente pacientes

Capítulo 13 - Bisnetas de imperadores 147

Capítulo 14 - Mandamentos do Depravado 165

Capítulo 15 - Curva do equilíbrio 173


181
Capítulo 16 - O regresso do feitiço

Capítulo 17 - Sonhos utópicos 187

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196 SUJEI AS UNHAS COM SANGUE || Benigna Agnelo Uate
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