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BODAS DE CIÚME

CENA COTIDIANA: ANGELA NOS SEUS AFAZERES DOMÉSTICOS,


PASSANDO ENCERADEIRA, QUANDO ELE, BRINCALHÃO,
PERGUNTA:

NÉLIO: Angela, você me engana,não?

ANGELA: Que, querido?

NÉLIO: Me engana, não? (FAZ CÓCEGAS NELA) Me engana? Hein?


Diz! Diz ! Me engana, né?

ANGELA: (DESLIGANDO A ENCERADEIRA) Aí, Nélio.Para. Há, há, há,


há, há. Que pergunta...

NÉLIO: Não me engana? Olhe bem pra mim. Nos meus olhos. Agora,
diz: me engana?

ANGELA: Claro que não, Nélio. Mas que pensamento...

NÉLIO SENTA-SE, OLHA BEM PRA ELA, ABRE UM


LIVRO, "OTELO" DE SHAKESPEARE, QUE É ÔCO, NÃO
TEM UMA PÁGINA, SÓ UM REVÓLVER DENTRO.

NÉLIO: (GRAVEMENTE) Porque, se eu descobrir que você me engana.


Angela, eu te mato. Te mato, Angela. Te mato! (E PÕE-SE A
"LER" O LIVRO. DE REPENTE, FICA TRANSTORNADO
E DÁ-LHE UMA BOFETADA NA CARA) Vagabunda!

ANGELA: ...Nélio!

(OUVE-SE A EMPREGADA DA VIZINHA, CANTANDO)

VOZ OFF: "Sassassaricando/ todo mundo leva a vida no arame..."

NÉLIO: Está ouvindo?

ANGELA: "É a empregada da vizinha que tá cantando.


NÉLIO: Todo dia a essa mesma hora...Não seria para me avisar?

ANGELA: Avisar o quê, Nélio?

NÉLIO: Que você anda levando a vida no arame, sassaricando na


minha ausência!

VOZ OFF: (CANTANDO) Sassassaricando...(CHAMANDO) Dona Angela!

NÉLIO: Ela está falando com você, Angela.

ANGELA: ...Certamente é para me pedir alguma coisa.

VOZ OFF: Dona Angela, a senhora não teria uma xícara de açúcar?

NÉLIO: Você tá adoçando a vida de quem, Angela? De quem?

ANGELA: Meu Deus, Nélio. Nãããããããããoooooo!!

NÉLIO: (ESBOFETEANDO) Vagabunda!

ANGELA: ...Nélio, você me bateu?


NËLIO: (ARREPENDENDO-SE) Perdão, Angela. Perdão! Eu não queria. Não
queria.( CAI DE JOELHOS)

ANGELA: Acabou o óleo de soja. Preciso ir ao supermercado.

NÉLIO: (DESCONFIADO) Por que você vai tanto nesse supermercado? Que é
que você vê lá?

ANGELA: Nélio, nós precisamos comer, querido. Comer! Não podemos


só viver de ciúmes. Tenho que comprar água sanitária, ODD,
Melita..

NÉLIO: Que perfume é esse?

ANGELA: Tava mexendo com criolina...

NÉLIO: Como posso ter certeza de que você vai mesmo ao


supermercado?

ANGELA: Te trago o ticket, querido, das compras, como sempre...


NÉLIO: (DESESPERADO) Angela, você vai embora?

ANGELA: Já volto, Nélio. Lê o seu livro e me espera que eu já volto.

NÉLIO: Angela, espere. Vou com você. (PÕE O REVÓLVER NA


CINTA)

ANGELA: (VOLTANDO) Ah, não, Nélio. Pelo amor de Deus, não vá atrás de
mim. Eu já tô indo lá em Jacarepaguá porque você já fez
escândalos em todos os supermercados do Leblon!

NÉLIO: (DESCONFIADO) ...Jacarepaguá?

ANGELA: E, por favor, vê se não fica telefonando pra lá, tá? Que eu fico
constrangida deles ficarem chamando o meu nome pelo
auto-falante. E não dá tiro na janela, tá? Você já acertou no pé
do porteiro e eles não tem nada com isso, Nélio, com esse teu
ciúme horroroso. Você já quebrou todos os vidros lá embaixo,
querido. Não tem uma vidraça inteira aqui no quarteirão. O
síndico já reclamou tanto, Nélio, tanto...(E SAI )

NÉLIO: (CORRENDO DRAMÁTICO ATÉ A JANELA, GRITANDO) Angela!


ÂÂÂÂÂNGELAAAA!!!!
PEGA O REVÓLVER. APONTA LÁ PRA BAIXO MAS NÃO DISPARA.

PASSAGEM DE TEMPO

ANGELA VOLTANDO DO SUPERMERCADO, COM VÁRIAS E PESADAS


SACOLAS DE COMPRAS.

NÉLIO: (CORRENDO PRA ELA) ...Angela! Angela!! (ABRAÇANDO-A)

ANGELA: ...Cuidado, Nélio. Você vai quebrar os ovos.

NÉLIO: Ovos? De quem, Angela? De quem?

ANGELA: (EXAMINANDO) Os nossos, que eu comprei, pra fazer uma


omelete.

NÉLIO: (DESCONFIADO) Desde quando você gosta tanto assim de ovos,


Angela?
ANGELA: Ai, tô morta! Vim carregando essas sacolas pesadíssimas... Ia
pedir um carregador pra trazer, né, tinha uns loirinhos lá
bonitinhos... Mas, desconfiado como você é, né, Nélio, achei
melhor, não.

NÉLIO: Viu alguém no supermercado?

ANGELA: Umas duzentas pessoas.

NÉLIO: Minha pequena Desdêmona... Cadê o lenço que eu te dei?

ANGELA: Que lenço , Nélio? (REPARANDO QUE ESTÁ SEM O


LENÇO) ... O lenço? Não sei. Devo ter perdido , devo Ter
deixado...

NÉLIO: Onde , Angela?

ANGELA: No balcão do...

NÉLIO: Balcão de quem?

ANGELA: Ou pode ter sido o vento que...levou!

NÉLIO: (ACARICIANDO-LHE O PESCOÇO) Desdêmona descuidada.


Onde você vai? Volte aqui Angela?

ANGELA: Dá um tempo, Nélio. Preciso ir ao banheiro, querido. É só um


minutinho.

NÉLIO: Eu não quero que você vá.

ANGELA: Mas eu preciso ir , querido, vim louca para... Você sabe como
são sujos os toiletes dos supermercados. Já pensou se eu
pegasse alguma doença? Como é que eu iria explicar, não é
mesmo?

NÉLIO: Se você me ama de verdade, Angela, não vá.

ANGELA: Mas isso independe da minha vontade, Nélio. Você quer que
eu estoure? Quer?

NÉLIO: Angela, não acha doce morrer de amor?


ANGELA: ( INDO) Ah, vai plantar batata.

NÉLIO: Âââângela!!

ANGELA: Ai, Nélio. Cada grito que você dá. Você ainda me mata de
susto.

NÉLIO: Fique, Angela. Não me deixe. Por favor, Angela. Não me


deixe.

( ELA DÁ UM RISINHO CRUEL E ENTRA NO BANHEIRO, FECHANDO


A PORTA. ELE ESMURRA A PORTA, DESESPERADO)

NÉLIO: ÂÂÂÂÂÂÂNGELA!!!! ÂÂÂÂÂÂÂNGELA!!!!

ANGELA: (OFF) Não enche.

( ELE DÁ UM TIRO NA FECHADURA)

ANGELA: ...Nélio, você destruiu a porta!

NÉLIO: Tem um homem aí dentro.

ANGELA: Acha, Nélio, que eu ia enfiar um homem onde, aqui dentro?


Na privada?

NÉLIO: O basculante está aberto. Ele pulou.

ANGELA: Só se fosse um anão, pra passar por esse basculante.

NÉLIO: Eu ainda acabo te matando, Angela. A hora que eu pegar... Te


cuida, Angela. Te cuida. ( E AFASTA-SE. ELA CORRE
PARA O TELEFONE)

ANGELA: Alô, mamãe? A senhora pode me dizer quem foi essa tal de
Desdêmona, que o Nélio fala tanto?...Que? Foi assassinada
pelo marido ciumento? Por Otelo? (PEGA O LIVRO. ABRE,
MAS O REVÓLVER NÃO ESTÁ DENTRO) Estou com
medo, mamãe. Nélio está cada dia mais ciumento. O ciúme é o
tempero do amor? Mas mamãe, acho que tá temperado
demais. Não tô conseguindo digerir... ( OUVE-SE ELE
CHEGANDO)
NÉLIO: (OFF) Angela!

ANGELA: Ele chegou. Tenho que desligar, mamãe. (DESLIGA E FINGE


QUE FAZ ALGUMA COISA. ELE ENTRA E VAI DIRETO
AO TELEFONE. FAREJA TENTANDO DESCOBRIR
QUEM ESTÁ DO OUTRO LADO DA LINHA)

NÉLIO: Ah, se eu pego quem está do outro lado da linha...

ANGELA: Era mamãe, Nélio.

NÉLIO: Já te disse que não gosto que você fale com estranhos. (
DÁ-LHE UMA BOFETADA)

ANGELA: ...Que foi que eu fiz, Nélio?

NÉLIO: Esqueceu que dia é hoje, vagabunda? Esqueceu? Diga que


esqueceu.

ANGELA: Como é que eu poderia esquecer esse dia, Nélio? Eu jamais


poderia esquecê-lo, Nélio. Jamais. Nem que eu quisesse.

NÉLIO: Ainda posso te ver entrando na Igreja, Angela. Tão ingênua...

ANGELA: Sim. Como fui ingênua...

NÉLIO: Tão doce, tão pura, tão meiga... e ao mesmo tempo tão
safadinha.(DÁ-LHE UMA BOFETADA)

ANGELA: (OLHANDO-SE AO ESPELHO) Oh, Deus. Três anos. E eu já


envelheci tanto... (CONTROLANDO-SE) Olhe, até comprei
esse nigligé, querido. (MOSTRA UM EMBRULHO) Para
comemorar-mos a data. Vou vestir.(TRANQUILIZANDO-O)
Eu volto já. Eu não demoro. (VAI PRO QUARTO. OUVE-SE
LATIDOS DE CÃO E GRITOS DE ANGELA. ELA VOLTA,
TODA RASGADA)...Nélio, tem um pastor-alemão no quarto!

NÉLIO: Eu comprei.

ANGELA: ...Comprou?

NÉLIO: Pra impedir que você bote homens lá dentro enquanto eu


estiver fora. E não tente suborná-lo que ele foi bem treinado.
ANGELA: Mas, Nélio, ele quase me arrancou a perna.

NÉLIO: Menos um atrativo para você oferecer aos seus


amantes.(OFERECENDO UM DRINK PARA ELA) Ainda
acabo te matando, Angela.

ANGELA: (FAZENDO TIM-TIM) Quem ama não mata, querido.

( BEIJAM-SE E VÃO PARA A CAMA, PASSAGEM DE TEMPO . ELES


JÁ FIZERAM AMOR. NÉLIO DORME, SEM CAMISA. ANGELA ACENDE
UM CIGARRO E FALA À PLATÉIA)

ANGELA: Estou me lembrando da nossa lua-de-mel . Em Poços. Nossos


passeios, abraçadinhos, na charrete. (IMITANO O SOM DA
CHARRETE) Trim, trim, trim. Crác. Trim, trim, trim, crác.
Nessa época, Nélio já era ciumento. Dizia que eu não tirava o
olho do charreteiro. Desconfiava até do pôtro. (OLHA O
MARIDO COM TERNURA ) Na nossa primeira noite, Nélio
havia bebido um pouco à mais. E enquanto ele dormia,
estirado na cama, incosciente...(NÉLIO ACORDA.
LEVANTA MEIO CORPO DA CAMA. MAS ELA, DE
COSTAS, NÃO PERCEBE E CONTINUA)... fui até à janela
e pus-me a observar, na penumbra, um bando de rapazes que
jogavam futebol ali na frente, na pracinha. Eram, na sua
maioria adolescentes, imberbes, com espinhas na cara. Os
gritos juvenis que saiam daquelas gargantas, o movimento ágil
daquelas pernas suadas, rijas, lisas e musculosas...

(VOLTA-SE E VÊ QUE ELE ESTÁ D PÉ, ATRÁS DELA, TIRANDO


LENTAMENTE A CINTA)

ANGELA: ...Nélio! Pra que é que você está tirando essa cinta?

NÉLIO: Adúltera!
ANGELA: Não, Nélio. Você está entendendo mal. É imaginação sua,
querido.

(ELE DÁ UMAS CINTADAS NELA)

ANGELA: Guarda essa cinta, Nélio. Para! Você está doente, Nélio.
Do-en-te!!!
(ELE CAI)

ANGELA: (AMPARNADO-O , COMOVIDA) Oh, querido, você vai ficar


bom. Eu te prometo. Vamos arrumar um bom médico para
cuidar de você.

(ELE COMEÇA A SOLUÇAR)

NÉLIO: Angela...

ANGELA: Ouça, os passarinhos já estão recomeçando a cantar. Essa


noite de horror já está terminando. Veja, Nélio, o sol sempre
se levanta! (ELE SOLUÇA CONTRA O PEITO DELA)
Vamos voltar a ter nossa casa , querido. Nosso lar! O espírito
mau que se apossou de você já se foi , Nélio. Já se foi.

NÉLIO: ...Tem certeza?

ANGELA: Sim, querido. Agora tudo está bem. Tudo está bem.

(AFAGA A CABEÇA DELE CONTRA O PEITO. ELE LEVA AS MÃOS


ATÉ O PESCOÇO DELA E VAI ACARICIANDO-O, ACARICIANDO-O,
ACARICIANDO-O, ENQUANTO AS LUZES VÃO CAINDO EM
RESISTÊNCIA)

FIM

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