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Algumas considerações sobre a origem da escrita e sua evolução entre os diferentes povos

antigos.

Hoje em dia utilizamos o artifício da escrita em quase todas as atividades do nosso dia-a-dia,
seja para conversarmos com nossos amigos pelo “Whatsapp”, comentarmos uma postagem
engraçada no “Facebook”, ou mesmo para pedimos comida a distância através de aplicativos
como o “Ifood”, estamos sempre escrevendo, todavia, as coisas nem sempre foram dessa
forma!

Durante a maior parte da história conhecida do homem a escrita foi um artigo de luxo,
dominada por uns poucos privilegiados e sempre restrita aos círculos do poder; para
demonstrar esses fatos tão comuns na antiguidade temos o exemplo exaustivo do Egito antigo;
estima-se que um escriba médio na terra dos faraós demorava em torno de 10 a 12 anos para
dominar todos os “macetes” da escrita hieroglífica e, além disso, praticamente todos os
personagens importantes da administração do novo império (período de maior esplendor da
civilização egípcia) passaram em algum momento de sua infância pelas famosas “casas da
vida”, que nada mais eram do que escolas para escribas, anexas a grandes bibliotecas que
eram sediadas nos templos; a própria Nerfertari, primeira grande esposa do poderoso faraó
Ramsés II, mandou esculpir em uma das cenas de sua tumba, no vale das rainhas, os dizeres
“louvo a Toth (que na língua egípcia era chamado de “Djehut”) senhor do conhecimento, eu
sou uma escriba”.

Obs. O caso de Nerfertari é muito peculiar pois foram muito poucas as mulheres que no antigo
Egito receberam essa designação.

Apesar disso, a primeira forma de escrita da qual temos conhecimento surgiu na Suméria –
região que hoje compreende o sul do atual Iraque – por volta do ano 3.500 a.C, apelidada
pelos assiriólogos do século XIX de cuneiforme, que literalmente significa “feita em forma de
cunha”, esta evoluiu do desenho pictórico típico da arte estilizada do neolítico para uma forma
mais ou menos padrão de escrita ideográfica, muito similar a aquela que foi adotada
posteriormente pelos chineses, e que continua em uso até os dias de hoje.

Nesse estágio de desenvolvimento a escrita e a numeração ainda não haviam se diferenciado


completamente uma da outra, de modo que os mesmos símbolos que eram utilizados para
pronunciar os nomes dos seres e dos objetos, também poderiam ser usados para enumerá-los
quando em pequenas quantidades, o que evidentemente demostra qual foi a primeira grande
vocação dos sistemas de escrita, servir como um aparato de registro contábil em apoio a
memória humana que já não conseguia acompanhar o crescimento da produção de riquezas
do início da era do bronze (...). Desse modo podemos dizer que os primeiros sistemas de
escrita são produto da tributação!

Logo após a sua fase ideográfica, relativamente breve, o cuneiforme foi rapidamente sendo
convertido em uma escrita fonética de forma silábica, ou seja, uma escrita em que cada
símbolo, ou conjunto de símbolos, ao invés de representar um objeto ou criatura, passava a
representar um determinado tipo de som comum a uma série de nomes distintos, talvez
associados aos primeiros sons do nome que originalmente esse símbolo representava, esse
novo tipo de escrita foi a base para todas as formas de escrita do antigo oriente médio – com
exceção obviamente do Egito, que apesar disso, teve que se adaptar a ela na elaboração de
material diplomático, principalmente no tocante as negociações de paz com os hititas, no
império novo – isso até a invenção do alfabeto pelos antigos fenícios, lá pelo século XII a.C, ou
seja, quase 1800 anos depois do surgimento da escrita na Mesopotâmia.

Obs. A invenção do alfabeto se deu muito provavelmente através de uma simplificação


sucessiva da escrita hieroglífica por parte dos comerciantes fenícios, e não da escrita
cuneiforme como alguns poderiam pensar, já que estes visitavam com certa regularidade para
as terras do Egito, praticando um intenso intercâmbio comercial e cultural, existem inclusive
provas contundentes dessa “transição alfabética” em minas de lápis-lazúli e sílex no Sinai,
onde se encontram lado-a-lado inscrições egípcias e fenícias quantificando a produção e
movimentação dentro da mina. Alguns arqueólogos atribuem esse logro a cidade de Biblos,
que foi durante muito tempo a maior fornecedora de cedro para as terras do Nilo, já outros
não serão tão enfáticos assim, todavia, o que sabemos é que os bibliotas trocavam uma parte
considerável de seu cedro por papiros, papiros estes que além do uso inteiro, para
correspondências, registros comerciais, etc., eram também exportados para povos como os
gregos, que além deste acabaram “importando” também o sistema de escrita alfabética,
legando aos livros o nome dessa importante cidade fenícia (em grego o termo livro é
pronunciado como biblion, numa clara homenagem a Biblos).

Dentre os motivos que levaram a passagem da escrita ideográfica para a escrita silábica e,
posteriormente, para a escrita alfabética estão uma série de fatores práticos típicos de cada
sociedade, que hoje não parecem ser muita coisa, mas que na época fizeram uma enorme
diferença.

A escrita silábica, por exemplo, se aperfeiçoou com a necessidade de crescente de se compor


textos que abarcassem discursos mais complexos e que por vezes continham algumas ideias
abstratas, como códigos de leis, narrativas mitológicas, hinos de adoração aos deuses, crônicas
dos grandes feitos reais, etc. A escrita silábica era perfeita para atender a essas medidas, pois
ao mesmo tempo que torna possível compor uma grande quantidade de textos mantinha mais
facilmente a salvaguarda do “segredo da escrita” e, portanto, a deixava sempre perto dos
grandes centros de poder.

Já a escrita alfabética é perfeita para os povos comerciantes, que necessitavam fazer a


informação circular o mais rápido possível e com o maior número de indivíduos possíveis,
vejamos que o nível de letramento das sociedades de escrita alfabética é simplesmente
astronômico quando comparado ao das outras, não atoa que sociedades de pequena
envergadura, geralmente organizadas em cidades-estados com alguma vocação comercial,
foram as que não apenas inventaram, como as que mais rápido adotaram esse tipo de escrita.

Outro fator importante e que geralmente é muito pouco citado são os materiais a disposição
daquelas sociedades para a escrita, eles tiveram um papel muito importante na forma como
cada povo escrevia e arquivava seus documentos!

Alfred Läplle, Teólogo, sacerdote e historiador alemão do século XX, afirma em seu livro “A
bíblia hoje: Documentação de história, geografia e arqueologia”, de maneira muito acertada,
que a superfície de escrita preferida para se redigir as proclamações reais, notícias de uma
vitória, ou as leis de uma forma geral eram as paredes de pedra, sobre as quais o texto era
cuidadosamente esculpido, um exemplo disso são as estelas de granito que comemoravam os
grandes feitos guerreiros dos faraós (como a famosa “Estela de Israel” ou “Estela de
Merneftá”) ou as pesadas estelas de dolomita em que foram escritas as leis do famoso código
de Hammurabi na Babilônia – posteriormente os metais, mais especificamente o bronze,
também serão usados com essa finalidade, como nas famosas XII tábuas das leis de Roma, mas
isso é característico de um período mais tardio, onde a tecnologia metalúrgica possibilitou
dispor de grandes quantidades de metal fundido em monoblocos – por outro lado, o próprio
Läplle afirma que para os intercâmbios epistolares de uso cotidiano, eram utilizadas em larga
escala as plaquinhas de argila, nelas ainda úmidas os símbolos eram gravados, logo após isso
as mesmas podiam ser postas a secar ao sol, ou em casos mais importantes cozidas em
grandes fornos de barro.

Leonel Casson, autor do livro “As bibliotecas do mundo antigo” ao tratar das bibliotecas da
chamada “antiguidade oriental” afirma que foi justamente o uso da argila como matéria prima
para os suportes da escrita o que ajudou a preservar bibliotecas inteiras, tanto na
Mesopotâmia, quanto nas regiões adjacentes (Síria, Turquia, Irã, etc.) que estavam sob sua
zona de influência, pois as atividades de saque e conquista comuns naquela época geralmente
envolviam a propagação de grandes incêndios pelos complexos palacianos, o que ajudou a
fortalecer e preservar as tabuinhas ainda mais.

Por outro lado, boa parte da mudança na composição dos símbolos cuneiformes, que acabou
se tornando com o tempo aquela escrita extremamente estilizada, foi o material de escrita
comum da Mesopotâmia, a argila, pois vivendo em um país muito pobre em árvores, e outros
materiais vegetais aproveitáveis para a composição de uma plataforma maleável para a
escrita, como era o papiro no Egito, seria completamente inútil tentar compor uma escrita
extremamente fluída e cheia de curvaturas, sendo adotada a base mineral com grande
facilidade e entusiasmo.

Já o papiro, abundante no Egito, possibilitou que os egípcios desenvolvessem uma escrita


muito mais fluída, de detalhes mais complexos e com o uso generalizado de pigmentação e
ilustrações que acompanhavam os seus textos, a exemplo disso podemos citar que na língua
egípcia os verbos desenhar e escrever se confundiam em uma só palavra, sendo o escriba
considerado um artista na mesma medida que um desenhista, ou um pintor.

Os gregos e romanos também utilizaram o papiro de forma mais ou menos generalizada ao


longo de sua história, todavia, o uso de outros materiais como o couro e posteriormente o
pergaminho, deste derivado, também foram de uso comum para estas civilizações, o couro já
era utilizado no oriente médio por povos como os hebreus, fenícios e assírios para se escrever
textos que deveriam ser gravados e transportados por longas distâncias, a resistência natural
do couro em frente ao papiro, e seu peso reduzido em vista da argila o tornavam ideal para
essa função, mas seu uso nunca se generalizou, o pergaminho, por outro lado, se generalizou
no mediterrâneo oriental após o embargo sofrido pelo rei Eumenes II de Pérgamo aos
preciosos papiros de Ptolomeu V do Egito, esse embargo foi produto da acirrada disputa entre
as bibliotecas de Alexandria e de Pérgamo, sendo está última mais nova e consideravelmente
ameaçadora para a primeira, os habitantes de Pérgamo se tornaram tão bons na fabricação
dessa nova plataforma de escrita derivada do couro que ela acabou tomando o emprestado o
nome de sua própria cidade!

Obs. O pergaminho foi muito importante para os povos que viviam afastados da bacia do
mediterrâneo, ou seja, fora de regiões quentes, como os habitantes do norte da Europa, por
exemplo, sem ele teria sido muito difícil fazer com que a escrita se difundisse entre essas
populações.

Entre os povos mesoamericanos, como os maias e os astecas, se utilizava como superfície de


escrita as cascas internas de árvores tratadas especificamente para isso, o seu aspecto final era
muito similar aquele do papiro, podendo ser escrito com uma tinta a base carvão e outras
tintas vegetais, além de ricamente decorado com vivos desenhos e cuidadosamente dobrados
e armazenados em verdadeiras bibliotecas nos templos, palácios e casas dos poderosos, a
escrita em casca de árvore foi uma das primeiras também em Roma, no seu período inicial, os
romanos tinham muita dificuldade em ter acesso ao papiro, fato esse que incentivou-os a uma
vez tendo dominado a escrita e adaptado um alfabeto próprio a adotar as cascas de certas
árvores como material corrente de escrita, apenas as correspondências dos patrícios ricos e os
documentos oficiais da República eram escritos nos caros papiros importados... prática muito
similar se repetiu já nos tempos do império, principalmente nas províncias distantes pobres
em papiros e pergaminhos, nelas os soldados e administradores romanos recorriam a
plaquinhas de madeira para servir de superfície de escrita, os casos mais famosos dessa prática
são oriundos da vila de Vindolanda que hoje se encontra no norte da Inglaterra.

Obs. Para os estudos, observações e anotações os romanos costumavam usar também a cera
de abelha, ela era derretida e depositada em suportes de madeira, após o seu resfriamento ela
poderia ser utilizada para escrita com o uso de um instrumento contundente chamado Stilus, o
Stilus era geralmente feito de metal, ou ferro, ou bronze, tendo uma extremidade perfilada e
pontiaguda – utilizada para escrever – e outra plana e achatada – utilizada para apagar os
erros – a grande vantagem do uso da cera para a escrita é que ela poderia ser reciclada
diversas vezes seguidas apenas raspando-se do seu suporte e a reaquecendo novamente.

Além das diferentes superfícies de escrita – também chamados de “suportes” pelos


especialistas em biblioteconomia – variaram também os instrumentos com os quais se
escrevia, os povos mesopotâmicos geralmente utilizavam pequenas canas feitas com os
caniços e juncos que cresciam as margens do Tigre e do Eufrates, eles eram cortados e limpos
com sua ponta ficando próxima ao formato de um estilete com os quais se gravavam as
famosas cunhas características do seu sistema de escrita, os egípcios, por sua vez, utilizavam
uma pequena cana de papiro que o próprio escriba mordia na ponta para quebrar as duras
fibras deste e tornar o escrever mais macio, esta era mergulhada em uma tinta negra de base
vegetal, ou seja, em uma emulsão a base de carvão, sendo que para as outras tintas
geralmente se utilizavam materiais de origem mineral como o cal, o antimônio, o óxido
ferroso, o óxido de cobre, etc.

Gregos e romanos, além do Stilus, já citado utilizavam também canetas de cânhamo, ou de


junco de diversos tamanhos e formatos – o próprio nome “caneta” vem de cana, sendo esta a
sua forma diminutiva – mas que geralmente eram cortadas em forma de pena, ou seja
levemente recurvadas, as tintas mais amplamente utilizadas na antiguidade clássica eram de
origem vegetal, Alfred Läplle nos diz que os romanos tinham preferência por uma mistura de
suco de bugalho e vitríolo, ou uma mistura de óleos e resinas vegetais com fuligem.

Obs. O uso de materiais de escrita de origem animal como as penas de ganso como caneta e o
uso de ovos de vespa esmagados como tinta remonta já a idade média e, portanto, não faz
parte do nosso período de interesse nesse texto.

Os recipientes para tintas poderiam variar de estojos de madeira, a potes de terracota, bronze,
ferro e mesmo o vidro que era mais caro e luxuoso, haviam também escrivaninhas específicas
para o trabalho dos escribas, os scriptorium, elas poderiam ser feitas de madeira (mais
comum), ou de pedra (alabastro, mármore, calcário, etc.) e continham apoios tanto para os
suportes de escrita, quanto para os materiais de apoio já citados.
Fontes.

A bíblia hoje: Documentação de história, geografia e arqueologia. Alfred Läplle. Edições


Paulinas, São Paulo. 1974.

História da escrita. Steven Roger Fischer. Editora Unesp, São Paulo. 2009.

Bibliotecas no mundo antigo. Lionel Casson. Vestígio, São Paulo. 2018.

Los escribas em el antiguo egipto. Extraído de: https://youtu.be/NtmTw6jLipw.

O fascínio do Antigo Egito: Os escribas, Extraído de: de

https://www.fascinioegito.sh06.com/escribas.htm.

El império romano. Los legionários de Roma. Extraído de:

https://youtu.be/pgRL9ePWbhQ.

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