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A Ur “dos caldeus”, a Bíblia e a arqueologia.

Ao lermos o livro de Gênesis, capítulo 11, versículo 28, nos deparamos com a seguinte
passagem:

“Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã; e vieram até Harã, e
habitaram ali”.

Ur, que durante um tempo teve sua existência posta em dúvida, até sua descoberta
arqueológica, entre o final do século XIX e o início do século XX, é uma cidade muito antiga,
uma das mais antigas do mundo, foi nela que se descobriu o código de leis mais antigo já
encontrado, o código de Ur-Nammu, que precede o de Hammurabi em pelo menos 500 anos!

Apesar dessa vitória arqueológica para o livro do Gênesis a denominação “dos caldeus” para a
cidade de Ur provou-se em grande medida equivocada, hoje sabemos que esse epíteto é na
verdade um erro de narrativa e cronologia que o escriba que compôs esse relato do Gênesis
cometeu, permitam-me explicar o porquê...

O termo “caldeu” era o “nome pátrio” de uma tribo semítica que habitava onde hoje é o
território da atual Síria, trata-se mais especificamente de um clã dos arameus (os Caldú), povo
que vivia na bacia do médio Eufrates lá pelo final da era do bronze e, portanto, muito longe de
Ur, que pela mesma época começava a ser habitada por um povo misto entre amorritas e
sumérios. Pois bem, como começa a confusão? A confusão começa quando o relato foi escrito,
naquela época, muito depois da idade do ferro já ter começado os caldeus, lá pela época do
segundo império babilônico, migraram para a região do baixo Eufrates, onde se encontravam
as cidades da Babilônia, de Ur, Nippur, etc., estabelecendo sua língua, o Aramaico, como língua
franca em todo o oriente médio, fato que durou até a idade média, diga-se de passagem.

Todavia, é preciso entender que os escribas e cronistas hebreus, e posteriormente judeus, não
se referiam aos caldeus enquanto povo, nem no Gênesis nem em Daniel, ou qualquer outro
livro, “caldeu” para os escribas bíblicos era na verdade um termo similar a “mago”, ou
“adivinho” se preferirem, aliás o próprio nome “mago” faz referência a outro “nome pátrio” de
uma outra tribo a dos magís, estes de origem irâno-persa, trata-se, portanto, de uma certa
referência que o escriba quis passar no texto ao fato de que na sua visão, o patriarca originário
da linhagem de Israel era proveniente de uma terra supersticiosa e idólatra, numa certa
generalização de que “caldeu” era sinônimo de “pagão”.

Há também nesse sentido uma outra interpretação, que não é exatamente excludente da
primeira, mas que também vale a pena ser citada, a de que os israelitas eram na verdade, ou
melhor, se viam de certa forma, como arameus (aqui cabe citar que na antiguidade, tanto o
próto-hebraico, quanto o próto-aramaico eram inteligíveis entre si, como são o português e o
espanhol nos dias de hoje!), não podemos nos esquecer que Terah (também chamado Taré em
algumas traduções), pai de Abrão, era segundo o relato bíblico um líder tribal em Haran e
parte de seu clã, incluindo ele próprio, permaneceu na terra dos arameus, e essa identificação
com os caldeus também provenha daí.

Vejamos também que, Labão, pai de Raquel e Lia e, portanto, sogro do próprio Jacó, depois
chamado “Israel”, era não apenas arameu, de sangue e nascimento, como também ávido
praticante de idolatria e adivinhação (feita por intermédio dos Terafins, ídolos domésticos,
protetores do clã), vejamos o que diz o capítulo 25 do Gênesis, versículo 20, sobre Labão:
“ Abraão gerou Isaac. Isaac tinha a idade de quarenta anos quando se casou com Rebeca, filha
de Batuel, o arameu, de Padã-Arã, e irmã de Labão”.

Mais a diante, no capítulo 31 do Gênesis, temos nos versículos 19 e 20, que tratam da fuga de
Jacó de Haran, temos a dupla confirmação dessas afirmações:

“Raquel, aproveitando um momento em que seu pai fora tosquiar suas ovelhas, roubou os
terafin de seu pai; e Jacó enganou Labão, o arameu, ocultando-lhe sua fuga”.

Tudo isso ajuda a compor essa associação entre “caldeu” e “mago” ou “adivinho” que depois
irá se consolidar no restante da narrativa bíblica como um sinônimo de indivíduos que
exercem práticas idólatras.

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