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©Ariano Suassuna, 1972

Reservam-se os direitos desta edição à


EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 - 1° andar - São Cristóvão
20921-380- Rio de Janeiro, RJ - República Federativa do Brasil
Tel.: (21) 2585-2060 Fax: (21) 2585-2086
Printed in Brazil I Impresso no Brasil Ao Professor Muri/o Guimarães, em testemunho
de reconhecimento por tudo quanto lhe
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devo e com toda a minha amizade.
ISBN 978-85-03-00794-8
A. s.

Capa: AlExANDRE N óBREGA


Ilustração de capa: ARIANO SUASSUNA

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Suassuna, Ariano, l 927-


S933i Iniciação à estética I Ariano Suassuna. - 9• ed. - Rio de
9• ed. Janeiro: José Olympio, 2008.

ISBN 978-85-03-00794-8

1. Estética. 2. Arte - Filosofia. 1. Título.

CDD -111.85
08-1344 CDU-111.85
Sumário

Introdução 11

LIVRO 1
A Estética e seu Método 19

CAPÍTULO 1 Natureza e Objeto da Estética 21


CAPÍTUL02 As Opções Iniciais da Estética 27

LIVRO li
As Fronteiras da Beleza 41

CAPÍTULO 3 Teoria Platônica da Beleza 43


CAPÍTUL04 Teoria Aristotélica da Beleza 51
CAPÍTULO 5 Teoria Plotínica da Beleza 59
CAPÍTULO 6 Teoria Kantiana da Beleza 69
CAPÍTULO? A Beleza Segundo a Estética Idealista
Alemã 79
CAPÍTULO 8 Teoria Hegeliana da Beleza 87
CAPÍTULO 9 A Beleza - Síntese Realista e
O bjetivista 95
8 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 9

LIVRO Ili LIVRO V


As Categorias da Beleza 103 O Universo das Artes 277

CAPÍTULO 10 As Categorias da Beleza - CAPÍTUL027 Hierarquia e Classificação


Visão Objetiva 105 das Artes 279
CAPÍTULO 11 As Categorias da Beleza - CAPÍTULO 28 A Escultura 289
Visão Psicológica 115 CAPÍTUL029 A Arquitetura 299
CAPÍTULO 12 O Trágico 123 CAPÍTULO 30 A Pintura 311
CAPÍTUL031 A Música 321
CAPÍTULO 13 O Dramático 135
CAPÍTULO 32 A Dança e a Mímica 329
CAPÍTULO 14 O Risível e o Cômico 143
CAPÍTULO 33 A Literatura 335
CAPÍTULO 15 Teoria Bergsoniana do Risível 151 CAPÍTULO 34 As Artes de Espetáculo 343
CAPÍTULO 16 Teoria Kantiana do Sublime 173
CAPÍTULO 17 Teoria Hegeliana do Sublime 179
LIVRO VI
Os Métodos da Estética 351
LIVRO IV
A Arte 187 CAPÍTULO 35 A Estética Filosófica 353
CAPÍTUL036 Fechner e a Estética Empirista 363
CAPÍTULO 18 Concepção Tradicional da Arte 189 CAPÍTULO 37 A Estética Psicológica 373
CAPÍTULO 38 A Estética Historicista e a
CAPÍTULO 19 Teorias Kantiana, Hegeliana e
Sociológica 381
Tomista da Arte 199
CAPÍTULO 39 A Estética Fenomenológica 391
CAPÍTULO 20 A Beleza Artística e a da Natureza 213
CAPÍTULO 21 A Arte e a Natureza 221
CAPÍTULO 22 O Feio na Arte 231
CAPÍTULO 23 A Arte e a Moral 239
CAPÍTULO 24 Arte Gratuita e Arte Participante 249
CAPÍTULO 25 Ofício, Técnica e Forma, na Arte 261
CAPÍTULO 26 As Origens da Arte 269
Introdução

Devo confessar, de início, que hesitei bastante sobre a forma


sob a qual deveria reunir as reflexões realizadas durante todos os
anos em que ensinei Estética no Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Primeiro,
pensei em deixar de lado o aspecto didático, o que me criaria
condições de muito maior liberdade, para realizar obra pessoal e
criadora. Mas depois refleti que, afinal, no caso, seria talvez me-
lhor que o livro atendesse a duas finalidades, ambas ligadas à vida
universitária. Primeiro, seria ele uma espécie de prestação de con-
tas de como desempenhei minha tarefa de professor de Estética
de 1956 para cá; mas, por outro lado, na forma que terminei
resolvendo adotar, o livro teria, ainda, uma outra vantagem, do
ponto de vista didático: é que forma ele uma espécie de arcabouço
do curso que anualmente é ministrado aos estudantes de Estética
da nossa Universidade. Não conheço bem o que se passa com os
demais estudantes de Filosofia nas outras Universidades brasilei-
ras; mas, no Nordeste, o curso de Estética deve ser apenas uma
espécie de iniciação ao estudo da disciplina, e o presente livro foi
escrito tendo em vista esse fato, a fim de que os estudantes pu-
dessem usá-lo como guia em seus estudos.
A bibliografia nele usada, por exemplo, teve que atender à
possibilidade de consulta imediata pelos estudantes, pelo que se
12 A RIANO SUASSUNA INI CIAÇÃO À ESTÉTICA 13

procurou cingi-la aos livros que, por qualquer motivo, estavam do conhecímento. A iniciação à Estética não se dá sem aquele
mais ao alcance deles, durante o curso. Não adianta nada indi- deslumbramento ante a beleza e a Arte, que não é, senão, uma
car aos nossos alunos uma bibliografia ideal que nunca será por outra face do deslumbramento ante o mundo que já deve terdes-
eles compulsada. É mais útil e mais realista fundamentar o curso pertado, neles, o amor pela Filosofia. Para falar a verdade, qual-
em livros que os estudantes possam consultar nas bibliotecas da quer dos quatro ou cinco grandes textos estéticos pode servir para
Universidade ou então comprar imediatamente, na vigência das isso, e os estudantes escolherão o seu de acordo com o tempera-
aulas. Mas como nem mesmo isso é sempre possível, procurou- mento e o modo de ver as coisas de cada um. Os que eu recomen-
se, aqui, suprir os estudantes da provável falta, citando-se farta- do anualmente a meus alunos são: os Diálogos, de Platão,
mente os autores considerados indispensáveis a uma iniciação aos principalmente o "Pedro" e "O Banquete"; a Poética, de Aris-
problemas estéticos. Eu podia ter evitado qualquer citação e fei- tóteles; o Logos VI a "Enéada I", de Plotino; Arte Escolástica e
to, assim, um trabalho puramente pessoal: mas seria, isso, um
A Intuição Criadora em Arte e Poesia, de Jacques Maritain; a "Crí-
prejuízo para os estudantes, em proveito do escritor. Achei me-
tica do Juízo"; de Kant; e a Estética, de Hegel.
lhor colocar sobre cada assunto o número maior possível de opi-
Mas eu digo sempre aos estudantes que é melhor estudar um
niões, a fim de que os alunos pensassem e repensassem cada
só livro, qualquer que seja ele, com "raça", alegria e entusiasmo,
problema. Para ficar num só exemplo ilustrativo do procedimen-
do que estudar todos os livros do mundo friamente. Porque em
to didático aqui seguido: no ano em que foi iniciado o curso que
tais casos, um livro, mesmo menor, examinado e reexaminado
deu origem a esta Iniciação à Estética, não havia, em Português,
em todas as suas implicações, aplaudido aqui e ferozmente nega-
sobre a questão da metodologia, um trabalho ao mesmo tempo
claro e bem fundamentado como o de Moritz Geiger. É por isso do ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o
que ele vai profusamente citado aqui, através de uma tradução '!<\ssim Falou 'Zaratustra", de Nietzsche, na adolescência: ades-
argentina. Com isso, ao mesmo tempo indicava-se o livro aos coberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento.
estudantes, forçando-se um pouco sua leitura por parte deles, e
.... *
colocava-se o fundamental do que ali se encontra ao alcance dos
que, por qualquer motivo, não pudessem lê-lo ou obtê-lo. Somente
depois, em 1958, foi que uma editora da Bahia prestou aos estu- Às vezes, dando aulas, eu descobria que devia reduzir a indi-
dantes brasileiros de Estética o serviço de editar o excelente livro cação bibliográfica a um único texto. Em tais casos, costumo
de Moritz Geiger, em português. E para que bem se entenda o suprir, como posso, a leitura de outros com os presentes esboços
espírito com que fo i feito o presente manual, esclareço ainda que de aula. Ao mesmo tempo, realizo, em classe, a leitura integral
doei todos os exemplares dos livros aqui citados à Biblioteca do do "Pedro", a da pequena obra-prima, já referida, de Platino, e a
atual Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, a fim de da Poética, de Aristóteles; e indico para estudo somente a Estéti-
facilitar aos estudantes o acesso à bibliografia empregada no curso. ca, de Hegel. Apesar de não ser hegeliano, considero essa sua obra
O que é indispensável, porém, é a leitura cuidadosa e apaixo- a mais monumental que já foi feita no campo da Estética, supe-
nada, por parte dos estudantes, dos textos fundamentais da Es- rior, pela grandeza da concepção e pela variedade das idéias e
tética, os únicos capazes de despertar, neles, o amor por esse ramo sugestões, a todas as demais.
14 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 15

De tudo isso, decorre que se encontram citados aqui, lado a Eu, se aceito verdades parciais, trazidas ao entendimento do
lado, autores de pensamentos não só diferentes, mas, às vezes, mundo, da Beleza e da Arte, pelos pensadores mais diversos, é
até apostos. Não vejo por que motivo devamos recusar verdades para incorporá-las ao patrimônio da Filosofia, cuja importância
que foram incorporadas de uma vez para sempre ao entendimen- e cuja grandeza não me envergonho de afirmar, num tempo em
to do 1mmdo por obra de pensadores, solitários ou de sistemas, que todo mundo - sociólogos, psicólogos etc. - parece enver-
que, tendo uma visão geral talvez diferente da nossa, encontra- gonhar-se da Filosofia em nome da deificação da Ciência. O que,
ram aquelas verdades e conseguiram expressá-las de modo defi- aliás, não parece ter mais muito sentido, quando alguns dos
nitivo. É o caso, por exemplo, - já que estamos aludindo a Hegel maiores cientistas do século XX proclamam a importância da
- da colocação do homem, entendido como sujeito e liberdade, intuição e do transracional para o conhecimento, sabendo, como
diante da necessidade, das forças cegas e brutais do mundo, en- sabem, que tanto as grandes criações da Arte e da Literatura,
tendidas como objeto, idéia que foi trabalho e intuição da Filo- quanto as da Filosofia e da Ciência, partem de um núcleo só, a
noite criadora da "vida preconsciente do intelecto'', para usar uma
sofia idealista alemã do século XIX, com Schelling e Hegel à frente.
expressão de Maritain. Assim, o conhecimento é um só, e a Filo-
Isso não significa nenhuma profissão de fé ecleticista, de mi-
sofia também é uma só - e é por isso que acho que todos os que
nha parte. Em Filosofia, como em Arte e em Literatura, tomei e
trabalham em seu campo têm de deixar de lado o orgulho. Te-
tomo posição, é claro que sem exigir que os estudantes me sigam.
mos de perder a mania de inovar a qualquer preço, de sistemati-
Acredito, com Gusdorf, que
camente discordar dos pensadores que antecederam o nosso século
sarnente pelo temor de nada dizer de novo. Se Aristóteles fixou
"a adição de duas teorias incompletas não é suficiente para ofe-
bem as fronteiras do trágico, por exemplo, não vamos desprezar
recer uma teoria verdadeira". (Ceorges Cusdorf, Mito y Me-
sua contribuição à verdade nesse campo, somente para dizer algo
ta física, tradução argentina de Mythe et Métaphysique, por
diferente do que ele disse - atitude que me parece muito freqüente
Nestor Moreno, Buenos Aires, Editorial Nova, 1960, p. 33.)
entre os filósofos, do século XIX para os dias de hoje.

Assim, nesta Iniciação à Estética, por mais simplesmente


***
expositiva e informativa que seja ela, estão mais ou menos defi-
nidas as posições do autor. Vou, mesmo, mais longe: se outras
É claro que isso não significa, nem que o pensamento se deva
fossem as condições em que nos chegam os estudantes de Estéti-
esclerosar em repetições, nem que sua tarefa esteja encerrada:
ca, eu nem me ocuparia em organizar este manual. Partiria para
escrever, logo, um trabalho com o qual sonho há muito tempo,
"Se existe uma Filosofia eterna, philosophia perennis" - diz
uma "Introdução Brasileira à Filosofia da Arte". Mas para dar as um grande esteta contemporâneo - "ela não existe historica-
aulas ligadas a esse trabalho, seria preciso contar com estudantes mente senão através de filosofias atuais; e isto porque as exigên-
que já tivessem bons conhecimentos de Arte e de Literatura, as- cias permanentes do pensamento, se manifestam no interior de
sim como dos problemas iniciais da Estética, o que, como já dis- situações concretas que favorecem, mais ou menos, seu desen-
se, não é o caso das Universidades nordestinas. volvimento''. (Henri Couhier, "Situación Conte111poro11ea dei
16 ARIANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉTICA 17

Mal'', em El Mal está entre nosotros, tradução espanhola de Le mesmo em suas obras consideradas mais "gratuitas", "mágicas" ou
Mal est parmi nous, por Francisco Sabaté, Valencia, Fomento "idealistas". A Verdade é, como a Beleza, fruto da captação intuitiva
de Cultura Ediciones, 1959, p. 14.) do mundo, reformulada, no caso da Verdade, pelo pensamento, o
qual só tem uma fonte de aferição e retificação - o comércio fecun-
Com efeito, mesmo que a realidade não fosse inesgotável, do e contínuo com a luz do real. Esta valorização do real está pre-
bastaria a necessidade que tem cada geração - e mesmo cada sente até mesmo no pensamento de filósofos acusados de idealismo
um de nós - de resolver, por si só, cada problema, em nossa pró- por ideologias cientifistas e antifilosóficas. Um daqueles filósofos,
pria linguagem, para tornar o conhecimento aquilo que ele é por opondo-se ao ponto de partida idealístico em Filosofia, afirma:
natureza -a tentativa, incessantemente renovada, de explicar o
homem e o mundo. Talvez seja mais exato dizer, aliás, que o im- "O idealista, pelo fato mesmo de partir do pensamento para as
portante é tornar a linguagem comum em carne, e sangue, e coisas, não pode saber se aquilo que ele toma como ponto de
ossos, para cada pessoa em particular; e esta é a tarefa que cada partida corresponde, ou não, a um objeto. Quando perguntam
pensamento particular, cada geração, cada pessoa, têm de reali- ao realista como chegar ao objeto partindo do pensamento, o
zar, ao serem chamados a repensar o mundo. O próprio Gouhier, realista deve responder imediatamente que isso é impossível, e
falando de historiador, diz algumas palavras que podem se apli- que, precisamente aí está a razão principal de não ser, ele mes-
car a cada filósofo que, de cada vez, retoma e reaprende o terrível mo, idealista. Porque o realismo parte do conhecimento, isto é,
e luminoso caminho do conhecimento: de um ato do entendimento que consiste essencialmente em cap-
tar um objeto". (Etienne Gilson, El Realismo Metódico, tradu-
"Não lhe basta, jd, escutar certas respostas... Ele não conclui, ção espanhola de Le Réalisme Méthodique, por Valentin Garcia
por isso, que essas respostas sejam falsas. Constata um fato: uma Yebra, Madrid, Ediciones Rialp, 1952, p. 150.)
certa situação espiritual exige que a questão seja reexaminada
completamente. Se velhas soluções são boas, encontrar-se-ão de O outro tipo de ataque desfechado contra a Filosofia assim
novo necessariamente, mas numa linguagem que não parecerá como entendida aqui, parte não de "cientifistas" que distorcem a
nem morta nem estrangeira". (Ob. cit., p. 19.) verdadeira Ciência, mas sim, contraditoriamente, de filósofos e
pensadores ferozmente individualistas, do tipo hoje transitoria-
...... * mente representado pelos existencialistas. Investindo, com razão,
contra o racionalismo logicista e meio petrificado de Hegel - a
Aceito, dessa maneira, este arcabouço ortodoxo, ortodoxamen- quem, no entanto, o existencialismo deve tanto - terminam
te filosófico, podemos incorporar a ele contribuições captadas ao acusando a própria Filosofia de dogmatismo, de rigidez, e con-
desconhecido pelos pensamentos mais heterodoxos. Como já disse, fundindo as filosofias sistemáticas com as orgânicas.
sei que está mais ou menos fora de moda considerar valioso e firme Na verdade, como ficou dito atrás, a Filosofia não se opõe a
o conhecimento filosófico. Mas não importa: a Filosofia continua a uma abertura, tanto mais largas são suas vistas quanto mais fir-
ser o que sempre foi, um realismo, uma vocação de realismo - as- mes suas bases. Centra-se no ser, o que significa que não deixa o
sim como existe uma forma de conhecimento na Arte e na Poesia. homem de lado. Pelo contrário. Precisamente por isso, o homem
18 ARIANO SUASSUNA

tem reconhecido, na Filosofia, sua dignidade e sua primazia.


O que ela tenta, é, nada mais, nada menos, do que resolver o
problema do mundo para os homens, para cada homem em
particular. E seria, de nossa parte, uma covardia muito grande
abandoná-la, com o que ela tem de majestoso, de impotente e de
desesperado também, de ardente, de vigoroso, de sólido, de amor
LIVRO 1
pelo m1111do, pela vida e pelo homem, abandoná-la somente por
medo ou por um estéril espírito de novidade.
A ESTÉTICA E SEU MÉTODO
* * *

Por m otivos semelhantes, adoto, agora já no campo propria-


mente estético - e, é claro, deixando, como disse antes, aos estu-
dantes, inteira liberdade de pensamento - os primeiros princípios
de uma Estética filosófica. Acredito que somente religando a Es-
tética à Filosofia obtêm-se os fundamentos capazes de firmar o
conhecimento ante as variações do gosto e a chamada "relativi-
dade do juízo estético ". Deste fato, tratarei adiante com mais
vagar. Mas não quero entrar propriamente no corpo desta Inicia-
ção à Estética sem dizer que, consciente da modéstia de seus propó-
sitos e de 111i11has próprias limitações no campo do pensamento
puro, devo a visão geral seguida nele a muita gente. Alguns dos
pensadores que me ajudaram a ver o mundo com meus olhos -
coisa depois da qual nunca mais ele me pareceu frio e inerte -
são astros sagrados de primeira grandeza na Filosofia de todos os
tempos. Às vezes, tenho o atrevimento de discordar das suas idéias:
para glosar as palavras de Malebranche em relação a Descartes,
quando o faço é com o respeito e a grata consciência de que devo
principalmente a eles a visão do mundo que me permite fazê-lo .

ARIANO SUASSUNA
CAPÍTULO 1
NATUREZA E ÜBJETO DA ESTÉTICA

A Estética corno Filosofia do Belo ou da Arte

Enquanto a Filosofia não foi negada, nunca houve dificul-


dade em definir a Estética: tradicionalmente e sobretudo nas
épocas "clássicas", a Estética era definida como a "Filosofia do
Belo", e o Belo era uma propriedade do objeto, propriedade que,
no objeto e como modo do ser, era captado e estudado.
No Belo, por sua vez, cogitava-se tanto do belo da Arte
quanto do belo da Natureza. Profundamente marcada pelo pen-
samento platônico, a Filosofia tradicional supunha uma certa
hierarquia entre os dois belos, sendo que o da Natureza tinha
primazia sobre o da Arte.
É a partir do idealismo germânico que o belo da Arte come-
ça a ser considerado superior ao belo da Natureza. É curioso
que isso tenha acontecido por obra de um pensamento de
substrato platônico, como o de Hegel. Mas na verdade é Hegel
quem formula a idéia de que a Beleza artística tem mais digni-
dade do que a da Natureza, porque, enquanto esta é nascida uma
vez, a da Arte é como que nascida duas vezes do Espírito: razão
pela qual a Estética deve ser, fundamentalmente, segundo ele,
uma Filosofia da Arte.
22 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 23

A Estética como Ciência do Estético


campo estético, exatamente por entrarem em choque com a idéia
de medida, ordem e serenidade, característica do Belo. Mas
Ocorre que, também, nesse ínterim, principalmente por in-
depois que se chamou atenção para a necessidade de fragmen-
fluência de Kant, os pensadores já começavam a subdividir o
tar o campo estético, receberam elas definitivamente o selo de
campo estético: o Belo não ocupava mais, isolado, todo esse
legitimação. A esse respeito, afirma Edgard De Bruyne:
campo; era somente uma de suas categorias (a outra, para Kant,
era o Sublime). O fato não era novo, porém. Sabe-se, por exem-
"A Arte não produz unicamente o Belo, mas também o feio, o
plo, que Aristóteles considerava a Comédia como uma Arte do
horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam
feio, ligada à desordem e não à harmonia convencional, e, no
assuntos horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouque-
entanto, não se furtou a incluí-la no campo estético. Agora, cem. Será que é o mesmo o prazer que sentimos diante de Goya e
porém, tratava-se de definir e sistematizar a fragmentação do logres, ante os fetiches congoleses e os torsos gregos do período
campo estético. E surgiu a pergunta: "Seria válido definir a Es- clássico, ame o Partenon e os templos hindus? Será que são os
tética como a Filosofia do Belo, se o campo estético inclui cate- mesmos, por um lado, o prazer do Trágico e do Sublime, mistura-
gorias-como o Cômico-as quais nada têm a ver com o Belo"? dos de sentimentos desagradáveis, e, por outro, o prazer sereno e
Por outro lado, segundo esses pós-kantianos, a Estética deve harmonioso que nos causa o Belo puro? E sobretudo, com que
ser uma ciência, e não uma filosofia. Propuseram eles, então, o direito tomamos nós, como unidade de medida em nossas apre-
nome estético para denominar todo o campo e substituir a pala- ciações da Arte universal, aquilo que nós, europeus ocidentais do
vra Belo: o Belo seria uma das categorias do Estético, e a Estéti- século XX, consideramos como belo?" (Esquisse d'une Phi/osophie
ca, em vez de ser definida como "a Filosofia do Belo e da Arte", de l'Art, Bruxelas, Livraria Albert Dewit, 1930, p. 41.)
passava a ser a "Ciência do Estético".
E De Bruyne cita Worringer em seu apoio: "Na verdade" -
pergunta este - "o que é a nossa Estética européia"? E respon-
O Belo e o Estético de: "É a exposição sistemática das nossas reações psíquicas
diante da Arte clássica". (Ob. e p. cits.)
O nome Estético passou, então, a designar o campo geral da
Estética, que incluía todas as categorias pelas quais os artistas e
os pensadores tivessem demonstrado interesse, como o Trágico, Inconveniência Tautológica do Estético
o Sublime, o Gracioso, o Risível, o Humorístico etc., reservan-
do-se o nome de Belo para aquele tipo especial, caracterizado Registrando e oficializando o fracionamento do campo es-
pela harmonia, pelo senso de medida, pela fruição serena e tran- tético, e reservando o nome de Belo apenas para uma de suas
qüila - o Belo chamado clássico, enfim. categorias, os teóricos pós-kantianos trouxeram, desse modo,
De fato, o campo estético abrange várias categorias além do importante contribuição ao estudo da Estética. Foi graças a isso,
Belo. Algumas delas foram já consideradas como ilegítimas no por exemplo, que as Artes pré-clássicas, pós-clássicas e antidás-
24 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 25

sicas, mais dionisíacas do que apolíneas enfim, foram admitidas A Estética como Filosofia da Beleza
como legítimas no campo estético.
Entretanto, a definição da Estética como "ciência do Estéti- Para falar a verdade, quanto a essas questões de terminolo-
co" tem um inconveniente sério que F. Kainz resume assim: gia, adota-se a que se deseja, conforme diz Jacques Maritain
(Réligion et Culture, 2ª edição, Paris, Desclée de Brouwer, 1946).
"A palavra Belo exprime, em primeiro lugar, aquilo que nos Aqui, neste manual, levam-se em conta, em primeiro lugar, a
produz um máximo de satisfação plena e tranqüila do gosto força dos critérios tradicionais e a advertência de Kainz. Mas,
estético, como acontece, por exemplo, com as obras de na verdade, temos de concordar também: definir a Estética pelo
Rafael, as de Mozart ou as da época de maturidade de Goethe. Belo, como faziam os filósofos convencionalmente tradicionais,
É o que poderíamos chamar de Belo, no sentido próprio e seria recusar, primeiro, toda uma enorme quantidade de gran-
restrito da palavra. Entretanto, quando definimos a Estética des artistas que manifestaram preferência pela Arte do Feio e
como a ciência do Belo, não há dúvida de que tomamos, e não pelo Belo; depois, seria recusar, também, todas as agudas
temos necessariamente que tomar, como base desta defini- observações da Estética pós-kantiana sobre essas obras de arte
ção, uma acepção distinta e mais ampla deste conceito ... Daí, baseadas no Feio e no Mal, observações que representam uma
dizer-se que o objeto sobre o qual recaem as investigações conquista tão valiosa para o verdadeiro entendimento da Arte e
da Estética não é o Belo, no sentido usual, estrito e próprio da
da Beleza; e em terceiro lugar, a respeito da importância da Fi-
palavra, mas sim tudo o que influi esteticamente em nós,
losofia da Arte na Estética, temos bem presentes as palavras de
incluindo-se aí até certas ásperas categorias que lidam já com
Bergson, o qual adverte que, enquanto na Natureza, a Beleza é
o Feio ... A Estética deve definir-se, segundo alguns teóricos,
encontrada por acaso, na Arte ela é deliberadamente procurada
como a ciência do Estético. Mas esta definição, por ser
e realizada, motivo pelo qual a Filosofia da Arte deve ser, na
tautológica, não define nada". (Estética, tradução mexicana
de Vorlesungen uber Asthetik, por Wenceslao Roces, Méxi- verdade, o núcleo da Estética.
co, Fondo de Cultura Económica, 1952, p. 14.) Com tudo isso em vista, definimos a Estética como a Filoso-
fia da Beleza, sendo, aqui, a Beleza algo que, como o estético
Como se pode ver por essas palavras, Kainz é inclinado a dos pós-kantianos, inclui aquele amargor e aspereza que lhe via
adotar o critério pós-kantiano, mas chega à evidência de que Rimbaud - a fase negra de Goya, a pintura de Bosch e Breughel,
definir a Estética como "ciência do Estético" é não dizer nada. o luxuriante, monstruoso e contraditório barroco, as gárgulas
Isso a tal ponto que, apesar de suas inclinações, termina achan- góticas, o românico, as Artes africanas, asiáticas e latino-ameri-
do que é melhor voltar ao velho critério tradicional; e diz, tex- canas, os trocadilhos obscenos de Shakespeare, o trágico, o cô-
tualmente: mico - todas as categorias da Beleza e cânones da Arte, afinal;
e também, naturalmente, o Belo, nome que fica reservado àquele
"Parece-nos mais conveniente, ou um mal menor, se preferem, tipo especial de Beleza que se fundamenta na harmonia e na
voltar a incluir o conceito de Belo em nossa definição inicial". medida e que é fruída serenamente. A Filosofia da Arte, se bem
(Local citado.) que não esgote esta Filosofia da Beleza, é, sem dúvida, seu cerne,
26 ARIANO SUASSUNA

o que ela possui de mais importante. E, finalmente, escaparía-


mos ao dilema apontado por Kainz porque pretendemos, com
fundamento filosófico, que é possível determinar as fronteiras
da Beleza, e, conseqüentemente, pressentir sua natureza, seguin-
do-se um caminho realista, objetivo e transcendental.
CAPÍTULO 2
As ÜPÇÕES INICIAIS DA ESTÉTICA
O Campo da Estética

Como decorrência de sua natureza, a Estética é, então, uma


espécie de reformulação da Filosofia inteira em relação à Beleza
A Opção Ante o Irracionalismo
e à Arte. Por isso, temos que examinar a questão do método a
ser nela seguido, como uma introdução crítica ao estudo do
campo da Estética. Veremos também as questões principais de A Estética é então, conforme vimos, essa espécie de refor-
uma metafísica da Beleza; as categorias fundamentais da Bele- mulação da Filosofia inteira em relação à Beleza. Por isso, no
za; as mais importantes tentativas já empreendidas para estabe- campo da Estética, estudamos, entre várias outras coisas, as
lecer as fronteiras da Beleza; suas categorias fundamentais; a Arte, relações entre a Arte, o conhecimento e a Natureza; a possi-
considerada como forma de "conhecimento poético", como bilidade de penetração fi losófica do real; aproximamo-nos da
atividade criadora e enquanto concretizada em obras de arte; a essência da Beleza, cujos fundamentos pressentimos, e assim
Psicologia da Arte, com a criação e a fruição; as relações entre por diante. É, portanto, uma verdadeira visão do mundo em
a Beleza e a Ética; e finalmente teremos que examinar, nem que relação à Beleza que temos de empreender, na Estética; e, em
seja de passagem, as teorias das diversas Artes. vista da complexidade do campo estético, não admira que o
grande problema com que nos defrontamos ao enfrentá-lo, a
primeira grande opção ante a qual temos de nos decidir, seja
aquela criada pela tentação irracionalista. Nós nos pergunta-
mos se tem algum sentido indagar e afirmar, num campo onde
dominam o gosto, com suas inúmeras variações, e a chamada
relatividade do juízo estético. Mais ainda: somos tentados a
perguntar que vantagem existe, para a Arte e a Beleza, em se-
rem dissecadas friamente por um frio conhecimento abstra-
to. "A Arte e a Beleza'', parecem nos dizer os irracionalistas,
"são tão sagradas, vivas e fecundas quanto a vida, e submetê-
28 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 29

las às especulações da Estética é matá-las no que elas têm de Num caso e noutro, porém, é à inteligência e a uma Estética
mais nobre e atraente". Ou, como diz Moritz Geiger: que artistas e filósofos têm de pedir socorro para combater a
inteligência e a Estética. Num sentido mais ou menos semelhan-
"Toda ciência é mera forma artificial, que cinge e comprime o te, afirma Karl Jaspers:
corpo florescente da vida ... O supremo e intangível não é a ciên-
cia, mas a vida... O homem de ciência não deve penetrar no "Não existe maneira de escapar à Filosofia. A questão é somen-
santuário do estético; não deve pisar na zona proibida das pro- te saber se a Filosofia será consciente ou não, se será boa ou
fundidades vitais, que afloram à superfície, no estético". (Esté- má, confusa ou clara. Quem recusa a Filosofia, professa tam-
tica - Os Problemas da Estética, a Estética Fenomenológica,
bém uma filosofia, mas sem ser consciente dela." (La filosofia
Ed. Argos, Buenos Aires, p. 13-14.)
desde el punto de vista de la existenc1a, tradução mexicana de
Einfuhrung in die Phi/osophie, por José Gao Fondo de Cultura
Os que se inclinam pelo irracionalismo no campo estético, Económica, México-Buenos Aires, 1957, p. 11.)
são, principalmente, os artistas e os pensadores irracionalistas.
Neste último caso, o irracionalismo estético é somente um dos A mesma coisa sucede com os que recusam a Estética: clara
aspectos do irracionalismo adotado para a visão filosófica ge- ou confusa, racionalista ou anti-racionalista, todo artista tem sua
ral. Quanto aos artistas, são eles inclinados a olhar a Estética estética particular; é formulando uma estética que os pensado-
com desconfiança, justamente temerosos que se sentem eles de res irracionalistas a combatem; em qualquer dos casos, portan-
que ela queira legislar sobre a Arte, o que seria, de fato, uma to, tanto uns quanto outros professam uma estética e é dela que
ameaça à liberdade da imaginação criadora, fundamental em se valem para combater a Estética.
Arte. Na verdade, porém, desde que se tenham em vista as dis-
tinções necessárias, esses temores são infundados. A Estética não
fere a liberdade criadora da Arte, como veremos mais detida- Estética Objetiva e Estética Subjetiva
mente depois. Seu campo é outro, outros são seus métodos, outro
é seu objetivo; e incumbe, mesmo, à Estética, a defesa da Arte, A outra grande opção que temos a fazer, na Estética, é entre
às vezes até contra a opinião dos próprios artistas e escritores, o objetivismo e o subjetivismo. Até o advento da grande revolu-
quando saem do campo criador e começam a querer doutrinar ção estética kantiana, ninguém punha em dúvida o fato de que
sobre Arte e Literatura. a Beleza é propriedade do objeto estético - quadro, novela,
Quanto ao irracionalismo estético dos filósofos, é preciso poema, sonata, filme ou peça de teatro. Havia posições diferen-
que se diga, de início, que o verdadeiro racionalismo não disse- tes quanto à essência da Beleza, quanto ao problema de sua ver-
ca friamente nada, nem comprime a vida e o mundo em fórmu- dadeira natureza. Assim é, por exemplo, que encontramos um
las mesquinhas, pois é exatamente o contrário do conhecimento pensador como Platão afirmando que a beleza de um objeto
frio; não considera a inteligência despojada do direito ao obs- depende da maior ou menor comunicação que ele tem com uma
curo, ao intuitivo, ao transracional. Beleza superior, absoluta, divina, única Beleza verdadeira, que
30 A RIANO SUASS UNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 31

subsiste, por si só, no mun d o supra-sensível das Essências; e mente revolucionário de Kant consubstancia-se no seguinte
Aristóteles ensinando, logo depois, que a beleza do objeto de- parágrafo de sua obra:
p ende da ordem o u harmonia q ue exista entre suas partes.
A nenhum dos dois, porém, ocorreria que a Beleza não é uma "Para discernir se uma coisa é bela ou não, nós não relacionamos
propriedade do o bjeto, a lgo que se encontra no objeto, e sim a representação a seu objeto, mediante o entendimento, para o
u ma construção do espírito d o contemplador colocado d iante conhecer, mas ao sujeito e ao sentimento de prazer ou desprazer
do objeto. D aí d izer C harles Lalo: que ele experimenta, mediante a imaginação, aliada, talvez, ao
entendimento. O juízo de gosto não é, pois, um juízo de conheci-
"Discute-se ainda se a Estética deve ser objetiva ou subjetiva. mento; portanto, ele não é lógico, mas sim estético, entendendo-
Segundo a primeira hipótese, a beleza de um ser o u de uma obra se por isto aquilo cujo fundamento determinante só pode ser
(de arte) deriva das qual idades próprias a este ser o u a esta subjetivo". (Critica dei j uicio, tradução argentina de Kritik der
o bra. Estas se oferecem do exterior para o espírito do con- Urthei/skra(t, por Manuel Garcia Morente, Buenos Aires, EI
templador, mais ou menos como uma impressão luminosa se Ateneo, 1951, p. 227, § 1 - edição conjunta com a "Crítica da
imprime na sua retina. Não é ele quem as cria, e se ele intervém Razão Prática" e a "Fundamentação da Meca física dos Costumes".)
para modificá-las só pode ser para deturpá-las. Tal é a Beleza
absol uta, segundo Platão : como o Bem ou a Perfeição que re- Assim, de acordo com Kant, além da inteligência, segundo
flete, ela existe antes de nós, sem nós e fora de nós, no mundo cujas leis se pensa (razão teórica ou pura, entendimento), e da
supra-sensível das Idéias. Mais positivamente, o valor estético vontade (razão prática, que reina livremente no mundo do de-
de um animal depende do seu lugar mais ou menos elevado na ver moral), existe o juízo de gosto, no qual domina a sensação
escala dos seres, tal como os naturalistas a podem estabelecer; de prazer ou desprazer, através da qual se discerne se urna coisa
sendo todas as coisas de certo modo iguais, a beleza humana é é bela ou não. A Beleza é, assim, não uma propriedade do obje-
superior à beleza animal e esta à beleza vegetal ou mineral, se to, mas uma certa construção que se realiza dentro do espírito
assim se pode d izer". (Notions d'Esthétique, Paris, Presses Uni- do contemplador, uma certa harmonização de suas faculdades.
versitaires de France, 1952, p. 2.) Entre estas, destacam-se a imaginação e o entendimento, e a
harmonização entre elas é governada pelo sentimento de prazer
Note-se, de passagem, que as palavras finais de Lalo, se têm ou desprazer. A beleza de um objeto não decorre, então, de
algum sen tido em relação ao idealismo platônico, são um con - qualidades do objeto: é obra pura e exclusiva do espírito do
junto de absurdos dentro da concepção realista da Beleza, que sujeito, que a fabrica interiormente, diante do objeto estético.
se opõe frontalmen te a essa arbitrária escala de belezas natu- Daí d izer De Bruyne que, segundo Kant,
r ais, o q ue será examinado a seu tempo. Po r enquanto, p o rém,
passemos a examinar o ângulo sob o q ual Kan t, opondo-se vio - "o sujeito humano é formalmente espiritual e age necessaria-
lentamente à tradição mediterrânea no campo estético (corno mente segundo as condições de sua natureza espiritual. Pensa
já o fizera, aliás, em relação à Metafísica e à Filosofia Prática), segundo as leis ou categorias do entendimento. Age moralmen-
nrocurou deslocar a Beleza do obieto para o suieito. O pensa- te segundo a lei do dever. Goza da Beleza segundo as leis do
32 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 33

gosto. A Verdade, o Bem, a Beleza, não se encontram, portan- E Lalo continua, sintomaticamente já examinando o pensa-
to, nas coisas, abstração feita do espírito, mas decorrem de uma mento de Kant e afirmando que, para este
atividade espontânea, que é a lei fundamental de toda ação or-
denada. Em outros termos, resultam da aplicação da forma pura "a beleza de uma coisa não se liga à natureza desta coisa, mas
do sujeito às impressões sensíveis". (Ob. cit., p. 75.) ao livre jogo da imaginação e do entendimento, que pode se
produzir num contemplador por causa desta coisa, qualquer que
A grande contribuição de Kant, na Estética, foi chamar a seja a natureza dela fora dele". (Loc. cit.)
atenção para o fato de que a fruição da Beleza não é puramente
intelectual - corno parecem ter pensado os filósofos antigos - De modo que, depois de Kant, o panorama da Estética,
nem puramente sensível, corno queriam os sensualistas, incluin- com algumas raras exceções, é este: os estetas, ou afirmam
do-se, entre estes, Burke, citado nominalmente por Kant, que decididamente que a Beleza é algo que se constrói no espíri-
dele recebeu forte influência, ao relacionar a Beleza com a sen- to do sujeito - com todas as decorrências deste princípio,
sibilidade. entre as quais a mais importante é uma descrença cada vez
O criticismo kantiano iria influenciar, porém, de maneira maior na validade do julgamento - ou então optam por uma
talvez desastrosa para o pensamento, toda a Estética contempo- solução de meio-termo, de compromisso objetivista-subje-
rânea. De fato, a grande maioria dos estetas modernos, ou nega tivista. Tudo isso será estudado mais vagarosamente, no capí-
à Estética seu caráter filosófico, ou dá a impressão de pensar a tulo dedicado à concepção kantiana da Beleza, ou antes, à
m edo, a contragosto, intimidada pelo impacto do pensamento concepção kantiana do "ato de consciência que cria a Bele-
kantiano. Parece até que ficam sem saber até que ponto têm o za'', pois é isso - e não a Beleza - o que Kant estuda, segun-
do advertência de Florence Khodoss, numa introdução a
direito de afirmar ou negar alguma coisa, num campo no qual
o que domina é a construção particular do espírito de cada um. textos kantianos escolhidos. (Le ]ugement Esthétique, Paris,
Presses Universitaires de France, 1955.)
É assim que Lalo, apesar de um pouco mais independente do
É preciso assinalar logo, porém, que um pensamento inde-
que outros ante a crítica kantiana, não deixa de mostrar a pro-
pendente pode trazer esclarecimentos preciosos a esse respeito.
funda influência que dela recebeu, ao dizer:
Deve-se notar, aliás, que todos os estetas que se ligam direta ou
indiretamente à corrente pós-kantiana, subjetivista, deixam sem-
"A Estética subjetiva contesta, não sem razão, a existência dessa
Beleza exterior, que nada deveria à nossa natureza orgânica e racio- pre de lado, em seus ataques, a corrente realista e objetivista,
nal. A única beleza de que poderíamos falar, só existe em nós, por derivada do pensamento mediterrâneo. Preferem atacar o obje-
nós e para nós. Não é sua maneira de ser fora de nós, é nossa tivismo através da corrente platônica e de seus. herdeiros. Que o
maneira de pensá-los que faz a beleza dos objetos ou das pessoas, pensamento platônico ou neoplatônico é contestável em muitas
assim como também sua feiura. Porque em si eles não são belos coisas fundamentais, não há dúvida: o próprio Platão aperce-
nem feios: são o que são, e qualquer outra qualificação lhes é beu-se disso muito antes de seus críticos. É então explicável,
extrínseca e vem-lhes exclusivamente de nós". (Ob. cit., p. 2-3.) como se viu há pouco, com Lalo, que se escolha a corrente de-
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r ivada do platonismo para atacar o objetivismo. Edgard De objetos que formam o vastíssimo campo estético que deve ser
Bruyne, por exemplo, afirma: estudada e pressen tida a essência da Beleza. É a única maneira
de reabilitar os direitos da inteligência, recolocando a Estética
"Os conceitos metafísicos são aqueles que pretendem nos repre- dentro de seus princípios realistas e objetivistas, único modo de
sentar não o aspecto observável, mas a essência mesma das coisas,
lhe dar d ignidade como província do pensamento dentro do
e isto pelo que estas possuem de mais fundamentalmente comum.
campo de atividade e especulação da Filosofia.
De acordo com os (estetas) metafísicos, a Arte é portanto a revela-
ção de uma realidade superior, que não se pode atingir pelos mé-
todos científicos e que se afirma em virtude de um pensamento
que busca o Absoluto e a unidade última" (Ob. cit., p. 78 .) Estética Filosófica ou Estética Científica

O ra, em primeiro lugar, essa oposição, dentro do campo do Finalmente, a terceira grande opção da Estética consiste em
conhecimento, entre o científico e o filosófico, decorre de uma decidir-se ela pelo caminho lógico-filosófico ou pelo caminho
concepção muito estreita do que seja "o científico", concepção científico-experimental.
que deriva, também, do pensamento ka ntiano e que nós não Já se disse, atrás, que a corrente pós-kantiana tentou fazer da
aceitamos, inclusive para defender aquela parte intuitiva e cria- Estética uma "ciência do Estético". Baseados num conceito dema-
dora da Ciência, sua parte mais bela e nobre. Depois, se esse siadamente estreito e rígido do conhecimento científico, esses estetas
conceito de Arte e, conseqüentemente, da contemplação da passaram a olhar com desconfiança primeiro a Metafísica, depois a
Beleza, pode se aplicar aos idealistas, como Platão e Hegel, não Ontologia e por fim a Filosofia inteira. Dentro dessa idéia estreita
o pode - a não ser com muitas explicações e distinções - aos de Ciência, resolveram fazer da Estética uma disciplina "científi-
realistas, para os quais a Arte é uma faculdade criadora, dirigida ca", querendo restringi-la aos limites de uma ordenação, explica-
pelo intelecto integral, no que ele tem de puramente racional ção e sistematização dos fatos estéticos; pretendiam ser guiados,
mas também, e principalmente, no que possui de luminoso e nisso, única e exclusivamente, pelo método experimental. Basea-
puro, de obscuro e subterrâneo. Para nós, a Beleza é uma luz do dos na idéia kantiana de que a Beleza não é uma propriedade do
ser, do objeto, " uma luz que dança sobre a harmon ia", para usar objeto, mas sim uma construção do espírito do sujeito, não tarda-
as palavras de Plotino No caso da Arte, a imaginação, através ram esses estetas a considerar como fato estético fundamental a
do subconsciente espir itual e ativo, na " noite criadora da vida experiência estética, isto é, a experiência pessoal de cada um. Não
preconsciente do intelecto", imprime ao objeto estético -qua- importava mais o quadro, mas sim o que a pessoa experimenta
dro, poema, romance - uma fulguração, uma luz, para usar a dentro de si olhando um quadro: a Estética, então, logicamente,
expressão de Jacques Maritain . (Creative lntuition in Art and como decorrência disso, passaria a ser um capítulo da Psicologia
Poetry, Nova York, Bollingen Series, Pantheon Books, 1955, experimental. Toda especulação filosófica dentro da Estética pas-
passim). E é esta luz que o espírito do contemplador reencon- sou a ser considerada suspeita, espúria, "mística", idealista etc.
tra, captando-a deleitosamente na fruição da Beleza. Como Acontece, porém, que, depois de cortarem as ligações da
decorrência, se a Beleza é uma propriedade do objeto, é nos Estética com a Filosofia, surgiu o problema de encontrar prin-
36 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 37

cípios axiológicos, baseados nos qua is se realizasse aquilo q ue, uma espécie de meio-termo, um elemento de ligação entre a
exatamente, esses estetas se propunham, isto é, a ordenação e Estética fil osófica e a científica. Examinaremos ainda esse pro-
sistematização dos fatos estéticos. Antes, a Fi losofia era quem blema, quando tratarmos da questão do método; mas adiante-
fornecia esses princípios. Agora, de onde viriam eles ? mos logo, aqui, que a Estética lógica já reconhece novamente a
Como os primeiros defensores dessa idéia eram psicólogos, necessidade de se conhecer, no campo estético, pelas essências
afirmaram eles q ue os princípios axiológicos seria m fornecidos e a partir do objeto estético:
pela Psicologia. M as logo apa receram os sociólogos para dizer
que, mais importante do que a experiência individ ual e ra a co- "A análise lógica" - diz De Bruync - "é o método que procu-
letiva, social, de modo q ue a Sociologia era que devia fo rnecer ra exprimir, e m ter mos de de fi nição , a natureza ou a essência
das coisas. Seg ue as vias d a indução o u as da fenomenologia".
os princípios. As divisões e oposições foram tantas, que os estetas
(Ob. cit., p. 65 .)
contemporâneos, alarmados, estão procurando ansiosamente um
denominador comum q ue junte as diversas correntes e salve,
assim, a Estética, atualmente desgarrada e dilacerada entre o No extremo oposto aos que querem fazer da Estética uma
psicanalismo, o p sicologismo, o sociologismo, o historicismo etc. "ciência do comportamento estético", uma psicologia da cria-
Acresce que a Estética "científica'', para seguir ainda a idéia ção e da fruição, estão aqueles que acreditam que a Estética é
de Jaspers antes r eferida, é impotente para afastar a Fi losofia: uma disciplina filosófica, que procura captar as essências a par-
ela é filosófica, mesmo que não o deseje. Diz De Bruyne, a tal ti r do objeto estético. Aqueles q ue acreditam que a Filosofia pode
respeito: penetrar o real e pressentir a essência da realidade, sustentam,
como conseqüência, que a Estética só tem um caminho para se
"Na Estética científica ... n ão se deve ria constatar senão fatos, à
sobrepor ao caos que reina a tualmen te em seus estudos - caos
luz de m étodos positivos e abstração feita d e toda apreciação e esse surgido, em p arte, pela negação dos princípios filosóficos
d e todo princípio metafísicos. É assim que deveria ser; mas a fundamentais, mas tam bém, é justo que se diga, causado pela
realidade nos mostra que acontece o utra coisa. Nas obras cien- enorme variedade de problemas que no campo estético existem:
tíficas enco ntra-se toda espécie de termos filosóficos, que só ral caminho consiste em religar a Estétic::i à Filosofia, fazendo
pode m se r de finid os pela reflexão fi losófica, e não pela obse r- dela uma Filosofia da Beleza.
vação positiva. Muitas vezes, também, concepções filosóficas
estão na base da sistematização dos fa tos. Isto é flagrante, por
exemplo, nas obras de Levy-Bruhl e de Dur kheim". (Ob. cit.) Estética Filosófica e Métodos da Estética

Assim, cautelosamente, o s este tas contemporân eos estão Moritz Geiger acentua que o pior inimigo d::i Estética é o
voltando a reconhecer a necessidade de religar a Estética à Filo- irracionJlismo. (Estética - Os Problemas da Estética e a Estética
sofia. Os realistas e objetivistas do grupo considerado desdenho- Feno111e110/ógica, tradução argentina de Aesthetik - Phaeno-
samente "místico e intuitivo", negaram-se sempre a abandoná-la; me110/ogische Aesthetik, por Raimundo Lida, Buenos Aires, Argos,
e a Estética chamada lógica já aparece, modernamente, como 1. 951, p. 13-14, passim. Existe a tradução brasileira desta obra,
38 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 39

excelente para a iniciação aos métodos da Estética: é de Nelso11 vestigação no objeto estético e interessa-se pelas essências: seu
Araújo, Salvador, Bahia, Livraria Progresso Editora, 1958.) campo são os primeiros princípios do campo estético.
Na verdade, as outras duas correntes mais importantes - 2 Isso é o que, aliás, defende a Estética da acusação dos artis-
filosófica e a científica - entendem-se pelo menos num ponto: é tas de querer ela legislar sobre a criação da Arte, tolhendo a li-
possível o conhecimento no campo da Estética, a Estética é útil berdade criadora. A Estética não se confunde com a Crítica de
e não constitui nenhuma ofensa, nenhuma ameaça à Arte e à Be· Arte. Aliás, nem mesmo a verdadeira Crítica de Arte - muito
leza. Diferem somente no tocante à escolha dos meios a empre· mais próxima das obras de arte do que a Estética - deve querer
gar em seu estudo, ao modo de proceder-se à investigação estética. legislar sobre a livre invenção dos artistas, a qual excede, sem-
Já se acentuou antes, aliás, que a tendência mais ou menm pre, todos os esquemas que os teóricos, por acaso, tenham a
generalizada hoje em dia é superar as divergências, entre as es· pretensão de ditar. A Estética, além de não ser uma Crítica de
colas estéticas, que passam assim a ser consideradas apenas mé· A.rte, não pode nem poderia legislar sobre a Arte, porque é so-
todos que trabalham em conjunto e lado a lado - o métodc mente uma atividade reflexiva efetuada sobre os primeiros prin-
psicológico, o sociológico, o histórico, o psicanalítico, o indutivo, :ípios do campo estético; sobre o geral da Beleza e da Arte, e
o fenomenológico e assim por diante, todos legítimos e ajudan- 11ão sobre o particular e concreto. Para ficar bem claro: já se disse
do-se uns aos outros no sentido de abarcar o mais possível e :iue não compete à Estética julgar os romances de Zola; compe-
complexo campo da Estética. :e-lhe definir o que é um romance, em geral. Agora, se Zola sai
Na verdade, será excelente que se chegue à concórdia nessa ie seu campo criador e afirma que "a Arte deve imitar cientifi-
questão. Mas é preciso dizer que, a um falso acordo, é preferível :amente a vida", aí Zola foi quem saiu de seus limites e enun-
uma franca discordância; e a Estética filosófica só pode aceitar a :iou um princípio geral: aí compete à Estética mostrar que ele
solução proposta para o acordo se ela própria for, de início, con- :stá errado, pois toda verdadeira Arte não imita, recria, defor-
siderada uma espécie de "método superior", apto a delimitar as na e transfigura a realidade.
fronteiras do campo estético, a definir os termos e a fornecer os O verdadeiro esteta, porém, olha com carinho e respeito para
princípios axiológicos capazes de possibilitar a ordenação e o es- is obras e depoimentos dos artistas e escritores. Destes; ele tem
tudo dos fatos estéticos. Aí, sim: cada um dos outros métodos nuito o que aprender, quase tudo. Jacques Maritain, por um
aclarará um aspecto novo, olhando o campo estético por um ân- ado acentuando a independência da Arte, e, por outro, distin-
gulo diferente, dentro do arcabouço geral fornecido por uma Fi- ~uindo o campo estético do campo artístico, diz:
losofia realista, aberta (porque consciente de que o real é
inesgotável), mas possuidora de firme base ortodoxa. "O estudo dos primeiros princípios, tanto na ordem prática
quanto na especulativa, depende, certamente, da Filosofia. Mas
daí à própria obra (de arte), onde eles encontram sua última
As Essências, a Estética e a Arte a
aplicação, vai um grande abismo que só Arte pode salvar".
(Fronteras de la Poesia, tradução argentina de Frontieres de la
A Estética é estudada aqui, então, dentro de um entendimen· Poésie et Autres Essais, por] uan Arquimedes Gonzalez, Buenos
to filosófico, realista, objetivista e normativo. Procede sua in· Aires, 1945, p. 12.)
40 ARIANO SUASSUNA

Por outro lado, Henri Gouhier salienta a importância das


obras de arte e dos depoimentos dos artistas para o conhecimento
do campo estético, dizendo:

"Que, antes de tudo, fique isso bem claro: os filósofos não têm
nada a ensinar aos artistas e quando refletem sobre a Arte, são os
artistas que lhes fornecem tudo: obras e testemunhos. A Filoso-
fia não tem outra missão além daquela que Descartes, depois de LIVRO li
Sócrates, lhe confiou: transformar o pensamento verdadeiro, mas
confuso, em pensamento claro e distinto". (La Obra Teatral, tra- As FRONTEIRAS DA BELEZA
dução argentina de Z:Oeuvre Theâtrale, por Maria Martinez
Si erra, Buenos Aires, Editorial Universitária Eudeba, 1961, p. 9.)

Para concluir este capítulo, talvez valha a pena dizer que, a


rigor, deveria se seguir a ele o estudo dos diversos métodos. Mas
deixaremos isso para depois, por dois motivos. O primeiro é que,
tendo estudado as três grandes opções iniciais da Estética, vi-
mos, de fato, seis métodos - o racionalista, o irracionalista (na
medida em que se pode considerá-lo assim), o objetivista, o
subjetivista, o científico e o filosófico, este último considerado,
aqui, em sua natureza de método superior.
O outro motivo é que a parte metodológica da Estética é,
como não podia deixar de ser, por demais abstrata. Os estudan-
tes de Filosofia que estão se iniciando na Estética precisam, para
simpatizar mais com a matéria, de estudar algo mais concreto,
pelo menos de início. Aliás, costumo sempre, no curso, só deci-
dir por onde começar as aulas depois de verificar o nível de
aproveitamento e de interesse dos estudantes. Quando noto que
a turma é melhor, baseio logo as primeiras aulas na parte até
aqui explanada. Quando não, inicio logo pela segunda parte, "As
Fronteiras da Beleza", deixando toda a parte metodológica para
o fim, quando os estudantes já estão mais familiarizados com os
problemas mais concretos da Estética.
CAPÍTULO 3
TEORIA PLATÔNICA DA BELEZA

O Mundo das Idéias Puras

Estudar a Beleza é tocar, de maneira geral, em todos os pro-


blemas da Estética. Por exemplo: o fato de nos determos sobre
o problema de sua natureza, suscita, logo, a questão de saber se
ela pode ou não ser abordada fil osoficamente - fato que, como
já vimos, os irracionalistas negam, em nome da liberdade, prin-
cipalmente num campo como o da Arte, onde imperam os dons
individuais sempre desiguais e imprevisíveis. Tentaremos porém
aqui, pelo menos pressentir a essência da Beleza, servindo-nos,
para isso, das várias contribuições que os pensadores trouxeram,
a partir dos inícios do pensamento ocidental.
Como acontece ordinariamente no campo desse pensamen-
to, vamos encontrar as primeiras indicações a respeito da Bele-
za na obra de Platão, que nos fala pela boca de Sócrates, homem
real que foi ou personagem platônico em que se transformou.
Para Platão, dentro da sua grandiosa visão idealista do mundo e
do homem, a beleza de um ser material qualquer depende da
maior ou menor comunicação que tal ser possua com a Beleza
Absolu ta, que subsiste, pura, imutável e eterna, no mundo su-
pra-sensível das Idéias.
A teoria platônica da Beleza e da Arte depende, assim, de
sua visão geral do mundo. Para usar palavras de Ortega y Gasset,
44 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 45

Platão via o universo como dividido em dois mundos, o mundo co nhecimento: tanto num caso como noutro, o que acontece é que
em ruína e o mundo em forma. O nosso mundo, este mundo sen- a alma recorda-se das formas e verdades contempladas no mundo
sível que temos diante dos nossos olhos, é o campo da ruína, da das essências, antes que a alma se unisse ao corpo.
morte, da feiúra, da decadência. O mundo autêntico, o mundo
em forma do qual o nosso recebe existência e significação, é
aquele mundo das essências, das Idéias Puras, às quais acabamos "O Banquete" e o "Fedro"
de nos referir. É o mundo eterno e imutável que existe acima do
nosso e que chama o daqui para seu seio. Nesse mundo, a Verda- Os diálogos platônicos que mais se referem à Beleza são
de, a Beleza e o Bem são essências superiores, ligadas diretamente "O Banquete" e o "Fedro". No primeiro, o chamado "discurso de
ao Ser. Cada ser do nosso mundo em ruína, tem, no outro, um Sócrates" explica, quase que de modo definitivo, a teoria platônica
modelo: os padrões, ou arquétipos, situam-se entre os seres sen- da Beleza. Valendo-se do famoso mito da "parelha alada", Platão
síveis e as essências superiores da Verdade, do Bem e da Beleza. aconselha a seus discípulos o caminho místico, como o único apto
a elevar os homens das coisas sensíveis e grosseiras até o mundo
das Idéias. Para Platão, o caminho da alma que se quer elevar, é o
A Reminiscência :imor. Isto porque os seres humanos eram, a princípio, andróginos,
machos e fêmeas ao mesmo tempo. Separados, em duas metades,
Os críticos do platonismo já têm acentuado a pouca precisão cada alma vive procurando encontrar sua parelha. Mas somente os
das idéias platônicas sobre os arquétipos, algo que flutua entre o indivíduos inferiores ficam satisfeitos com a forma mais grosseira
sensível e o espiritual. Mas Platão tem, ainda, outros pontos fun- de amor, a do amor físico. O homem que deseja contemplar e uni r-
damentais em seu pensamento. A alma é invencivelmente atraída sc à Beleza, começa por essa forma primitiva de amor, apaixonan-
pela Beleza, pois sua pátria natural é o mundo das essências; e, do-se e desejando um belo corpo. Se ele é, porém, um homem
exilada neste nosso mundo, ela sente sempre saudade do outro. superior, em breve descobre que a beleza existente naquele belo
Segundo Platão, a alma humana, eterna, sofre uma decadência w rpo é irmã da beleza de outro corpo belo, o que o leva à conclu-
ao se unir ao corpo material. Precisamente por ser eterna, já con- s5o de que a beleza de todos os corpos é uma só. Vem daí, como
templou, no mundo das Essências puras, a Beleza Absoluta, de na- conseqüência, a destruição da forma egoísta e grosseira de amor
tureza divina; por isso, sente invencível saudade dela, vivendo, como que o prende a um só corpo: o amador passará a amar todos os
vive, aqui, em desterro permanente. Por isso, segundo Platão, a alma belos corpos, ou, para ser mais preciso, passa a amar não os cor-
sabe tudo e se nós não a acompanhamos nesse conhecimento é pos, mas a beleza existente neles, contemplada desinteressadamente.
porque a nossa parte material e grosseira faz com que nós nos es-
queçamos da maior parte daquilo que a alma sabe, por ter contem-
plado, já, a Verdade, a Beleza e o Bem absolutos. Existem almas O Caminho Místico
mais aptas do que outras a se recordar das verdades e belezas con-
templadas anteriormente. Assim, quem se dedica à Beleza, não a O estágio de aperfeiçoamento seguinte, será aquele em que
recria na Arte, quem se dedica à Verdade, não a descobre, pelo se considera a beleza da alma corno superior à beleza do corpo.
46 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 47

O amado r descobre que a bel eza corpórea é sujeita à ruína e à Banquete", em Diálogos, tradução brasileira de Jorge Paleikat,
d ecadência, enquanto a beleza moral resiste ao passar do tem- Livraria do Globo, 3ª edição, Porto Alegre, 1954, § 210, 211,
po. Então, ele contemplará a beleza que existe nos costumes e p. 167-168.)
nas leis morais, notando que a Beleza está relacionada com to-
d as as coisas e considerando, então, a beleza corpórea como Assim, pelo caminho do amor, primeiro físico e depois espi-
ritual, o homem pode se elevar da beleza sensível até a contem-
pouco digna de estima.
plação extática da Beleza Absoluta, única verdadeira e da q ual
todas as outras belezas menores participam, não sendo a beleza
A Be leza Absoluta das coisas sensíveis senão um pálido reflexo da Beleza Absoluta.
Diz Platão, textualmente:
No estágio de que estamos falando, o amante torna-se um
prisioneiro voluntário do " im enso oceano da beleza". Com o "De um corpo para dois; de dois para todos os belos corpos;
tempo, purificando-se sempre no sentido do m ais a lto e do di- dos belos corpos para as belas ocupações; destas aos belos co-
nhecimentos, até que, de ciência em ciência, se eleve por fim o
vino, tendo o espírito fortificado e e nriquecido por essa verda-
espírito à ciência das ciências, que nada mais é do que o conhe-
deira ascese, por essa "disciplina amorosa da contemplação'',
cimento da Beleza Absoluta". (Ob. cit., p. 168.)
estará atingido o estágio fi nal que é possível ainda aqui na terra.
O amante, num êxtase, n um arrebatamento,
Existe uma identificação final entre a Verdade, a Beleza e o
Bem, que são faces dife rentes do mesmo Ser divino. Daí a fór-
"verá então bruscamente certa Beleza de natureza maravilhosa,
mula platônica que ficou famosa : "A Beleza é o brilho ou esple n-
aquela que era, justamente, a razão de ser de rodos os seus tra-
d o r da Verdade". O texto de "O Banquete" que acabamos de
balhos anterio res. Verá algo que, em primeiro lugar, é eterno;
que não nasce nem morre; que não aumenta nem diminui; que, citar, parece acentuar o caráter de conhecimento que Platão atri-
além disso, não é em parte feio e em parte belo, agora belo, buía à fruição da Beleza, aqui identificada com a Verdade. E Platão,
d epois feio, belo em comparação com isto e feio em compara- afinal, ident ifica ambas com o Bem, ou virtude, quando diz, em
ção com aquilo, belo aqui e feio ali, belo para alguns e feio para textos como este:
os outros. Conhecerá a Beleza que não se apresenta como ros-
to, ou como mão, ou como qualquer outra coisa corporal, nem "Não te parece que, ve ndo assim adequadamente a Beleza, esse
como palavra, nem como ciência, nem como coisa alguma que homem seria o único apto a poder criar, não sombras de virtu-
exista em outra, como por exemplo, num ser vivo, ou na terra, de, mas a verdadeira Virtude, uma vez que se encontra em
ou no céu. Beleza, ao contrário, que existe em si mesma e por si contacto com a Verdade"? (Ob. cit., p. 169.)
mesma, sempre idêntica, da qual participam rodas as demais
coisas belas. Estas coisas belas, que participam da Beleza supre- Na verdade, d entro de uma concepção idealista como o
ma, ora nascem, ora morrem; mas essa Beleza jamais aumenta pensamento platônico, essa identificação é lógica e coerente.
ou diminui, nem sofre alteração de qualquer espécie". ("O Veremos, depois, essas idéias aparecerem, num caráter mais siste-
48 ARIANO SUASSUNA INICIA ÇÃ O À ESTÉTICA 49

m ático e explícito, no campo da filosofia idealista alemã. Mas o famosa teoria da reminiscência, que iria informar todo o p ensa-
fato é que outros textos platônicos acentuam m ais o caráter de mento platônico, não só quanto à contemplação da Beleza, da
pura deleitação da Beleza. É o que se d epreende, por exemplo, Verdade e do Bem, como a respeito dos métodos e processos cria-
do seguinte texto do "Fedro": do res da Arte. Eis um texto platônico referente à reminiscência:

"Quanto à Beleza, já te d isse, ela brilhava entre todas aquelas "A alma é imortal. Renasce u repetidas vezes na existência e
Idéias Puras, e, na nossa estada na terra, ela ainda ofusca com contemplou todas as coisas, existentes tanto na terra como no
seu brilho rodas as outras coisas. A visão é, ainda, o mais sutil de Hades, e por isso não existe nada que ela não conheça. Não é
todos os nossos sentidos. Mas não poderia perceber a sabedoria. de espantar q ue ela seja capaz de evocar à memória a lembran-
Despertaria amores veementes, se oferecesse uma imagem tão ça de objetos que viu anteriormente e que se relacionam tanto
clara e distinta quanto aquelas que podíamos contemplar para com a virtud e quanto com as outras coisas existentes. Toda a
além do céu. Somente a Beleza tem esta ventura de ser a coisa natureza, com efeito, é uma só, é um todo orgânico, e o espírito
mais perceptível e enlevadora". ("Fedro", ob. cit., § 250, p. 223.) já viu todas as coisas. Logo, nada impede que, ao nos lembrar-
mos de uma coisa (o que nós, homens, chamamos de saber),
todas as outras coisas acorram imediata e maquinalmente à nossa
A Reminiscência e o "Mênon" consciência. A nós, compete unicamente o esforço, a procura
sem descanso". ("Mênon", ob. cit., § 81, p. 79.)
Assim, parece lícito afirmar que, para Platão, a Beleza cau-
sava, antes de mais nada, enlevo, prazer, arrebatamento, de- Para concluir, faríamos, ainda, uma referência aos modelos
leitação. E se alguma dúvida houvesse, seria antes sobre o caráter ideais de todas as coisas, padrões ou arquétipos que, segundo Platão,
de deleitação, também emprestado no texto pla tônico citado, à existem no mundo das essências. Um cavalo pertencente à nossa
esfera inferior do mundo terrestre, seria tanto mais belo quanto
sabedoria, à Verdade, a qual, segundo suas palavras, "desperta-
mais se aproximasse do cavalo ideal que existiria, como idéia pura,
ria amores veementes", como se fosse também uma espécie de
no mundo das Idéias. A beleza do cavalo terrestre ou de uma mu-
bem a ser fruído e não somente conhecido. Isto leva Maritain a
lher terrestre era, segundo Platão, reflexo da Beleza Absoluta, re-
afirmar que "a sab edoria é amada por sua beleza, enquanto que
cebido através de seus respectivos arquétipos. As coisas corpó reas
a beleza é amada por si mesma ", distinguindo ele q ue "a beleza
são meras "imitações" desses modelos ideais, sombras pálidas e
é essencialmente deleitável: por isso, por sua própria essência e
grosseiras em comparação com a pureza e luminosidade das essên-
enquanto beleza, move o desejo e produz o amor, enquanto que
cias; e isso tanto é verdade das coisas da Natureza quanto até d as
a verdade, como tal, faz somente iluminar " .
idéias abstratas criadas pelo ho mem. Diz Platão:
Acentuemos, ainda, que, para Platão, como já se disse antes,
de passagem, a contemplação da Beleza era, em essência, uma
"A esfera e o círculo divinos são bem diferentes da esfera e do cír-
recordação. A al ma lembra, dificultosamente e como pode, reali- culo humanos, dos quais precisamos servir-nos, mas que são fal-
dades que contem plou, numa outra vida mais autêntica, da q ual sos". ("Filebo", citado por Pierre Maxime Schuhl, l'/aton e! l'Art
vivemos desterrados, como antes já referimos de passagem. É a de son Temps, Presses Universitaires de France, Paris, 1952, p. 57.)
CAPÍTU LO 4
TEORIA ARISTOTÉLICA DA BELEZA

A Beleza como Harmonia e Proporção

Mesmo os que se opõem à visão idealística de Platão não


devem subestimar a importância do grande grego para a fixa -
ção das fronteiras da Beleza. Parece que depois dele, e talvez por
causa daquela fórmula "a Beleza é o brilho da Verdade", essa
idéia de um esplendor, de uma luz, de um bril ho, ficou para sem-
pre ligada à noção de Beleza.
Entretanto, Aristóteles abandona inteiramente o idealismo
platônico, no que se r efere à Beleza como em outros campos.
Segundo seu pensamento - cujo organismo genial foi chamado
por Bergson de "a filosofia natural do espírito humano" - a
beleza de u m objeto não depende de sua maior ou menor partici-
pação numa Beleza suprema, absoluta, subsistente por si mesma
no mundo supra-sensível das Essências Puras. Decorre, apenas,
de certa harmonia, ou ordenação, existente entre as partes desse
objeto entre si e em relação ao todo. Quanto àquela forma espe-
cial d e Beleza que mais interessava aos gregos, o Belo, exigia ele,
ainda, outras características, entre as quais as mais importantes
eram uma certa grandeza, ou imponência, e, ao mesmo tempo,
proporção e medida nessa grandeza. Aristóteles afirma claramen-
te, na Retórica, que uma mulher bonita e bem proporcionada,
CAPÍTU LO 4
TEORIA ARISTOTÉLICA DA BELEZA

A Beleza como Harmonia e Proporção

Mesmo os que se opõem à visão idealística de Platão não


devem subestimar a importância do grande grego para a fixa -
ção das fronteiras da Beleza. Parece que depois dele, e talvez por
causa daquela fórmula "a Beleza é o brilho da Verdade", essa
idéia de um esplendor, de uma luz, de um bril ho, ficou para sem-
pre ligada à noção de Beleza.
Entretanto, Aristóteles abandona inteiramente o idealismo
platônico, no que se r efere à Beleza como em outros campos.
Segundo seu pensamento - cujo organismo genial foi chamado
por Bergson de "a filosofia natural do espírito humano" - a
beleza de u m objeto não depende de sua maior ou menor partici-
pação numa Beleza suprema, absoluta, subsistente por si mesma
no mundo supra-sensível das Essências Puras. Decorre, apenas,
de certa harmonia, ou ordenação, existente entre as partes desse
objeto entre si e em relação ao todo. Quanto àquela forma espe-
cial d e Beleza que mais interessava aos gregos, o Belo, exigia ele,
ainda, outras características, entre as quais as mais importantes
eram uma certa grandeza, ou imponência, e, ao mesmo tempo,
proporção e medida nessa grandeza. Aristóteles afirma claramen-
te, na Retórica, que uma mulher bonita e bem proporcionada,
52 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 53

mas pequena, pertence ao campo do Gracioso, mas não ao do Beleza, Aristóteles se preocupa com a medida e a proporção, e é
Belo, que exige, entre outras coisas, grandeza. por isso que se refere à grandeza que obedece "a certas condi-
O tratado que Aristóteles escreveu sobre a Beleza se per- ções", acrescentando:
deu, de modo que, para termos uma idéia de seu pensamento
sobre esse assunto, temos de nos valer de textos incidentais da "O Belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um orga-
Poética, anotações escritas para servir às aulas que o grande nismo vivo pequeníssimo não poderia ser belo, pois a visão é
confusa quando se olha por tempo quase imperceptível; e tam-
pensador dava sobre Teatro. Mesmo assim, muita coi~a pre-
bém não seria belo sendo enorme, porque faltaria a visão de
ciosa se encontra na Poética, mesmo além do particular do Te-
conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a to-
atro e referida ao mais geral da Beleza e da Arte. A definição
talidade". (Ob. e p. cits.)
aristotélica de Beleza foi dada de passagem no capítulo VII da
Poética. Diz ele: Essa referência à harmonia das partes de um todo - unidade
e totalidade - veio aportar na célebre fórmula dos aristotélicos:
"A Beleza - seja a de um ser vivo, seja a de qualquer coisa que
''A Beleza consiste em unidade na variedade".
se componha de partes - não só deve ter estas partes ordena-
Aliás, como não podia deixar de ser, e assim como disse-
das mas também uma grandeza que obedeça a certas condições".
mos a respeito de Platão, a visão aristotélica do mundo é fun-
(Poética, tradução portuguesa de Eudoro de Souza, Guimarães
damental para se entender sua idéia da Beleza. Para Aristóteles,
& Cia. Editores, Lisboa, 1951.)
o mundo, vindo do caos, passou a ser regido por uma harmo-
nia. Mas é como se ainda restassem vestígios da desordem an-
Note-se que, de propósito - e inclusive fazendo, às vezes,
terior, e parece-nos como se o mundo e os homens estivessem
um pouco de violência ao texto das traduções - manteve-se,
sempre numa luta incessante para levar adiante a vitória in-
aqui, uma certa indecisão entre o uso das palavras Belo e Beleza.
completa da harmonia sobre o caos. Esta concepção do mun-
É que, como logo veremos, se os gregos identificavam a Beleza
do e da vida como uma luta entre a harmonia desejada e os
com o Belo clássico, Aristóteles parece ter pressentido que a
destroços do caos ainda aqui existentes é fundamental no pen-
Beleza incluía várias outras categorias além do Belo. Por outro
samento aristotélico. Isso leva Edgard De Bruyne a afirmar a
lado, como acentuamos, esse que acabamos de citar é apenas um
respeito desse pensamento:
texto incidental, surgido não propriamente para definir a Bele-
za, mas para desenvolver um certo pensamento sobre a Tragé-
"Um dos caracteres mais fundamentais da Beleza é a harmonia,
dia. Serve, no entanto, de base a um pensamento realista, que o
a ordem, o equilíbrio. Presente na Natureza, a justa proporção
tem aliás, juntamente com as contribuições de outras filosofias,
reencontra-se na Matemática. Ela é o termo da atividade racio-
desenvolvido em todos os sentidos. nal. A lei fundamental do agir humano é a concepção e a cria-
De acordo com os conceitos nele expressos, as característi- ção da harmonia. Em toda vida humana, enquanto racional,
cas essenciais da Beleza seriam a ordem, ou harmonia, assim encontrar-se-á a harmonia. A Ciência é um sistema, logo é uma
como a grandeza. Mas, influenciado pelo conceito grego de harmonia. A vida moral unifica todos os atos para um fim su-
54 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 55

premo único: logo, desenvolve-se na harmonia. Enfim, nas cria- "A Comédia é, corno dissemos, imitação de homens inferiores;
ções da Arte, a rnulriplicidade converge para a unidade e reali- não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto
za a harmonia". (Esquisse d'tme Philosophie de l'Art, p. 290.) àquela parte do torpe que é o risível. O risível é apenas certa
desarmonia, certa feiúra comum e inocente; que bem o demons-
tra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disfor-
me, não tem expressão de dor". (Oh. cit., p. 74.)
O Conflito entre a Harmon ia e a Desordem

Assim, o Feio, encarado por Aristóteles, como uma desar-


A nosso ver, ordinariamente salienta-se a importância da idéia
monia, é então, aí, expressamente incluído no campo estético.
de harmonia, sem dúvida fundamental no pensamento aris-
Bernard Bosanquet acentua que talvez Aristóteles não tenha se
totélico, mas esquecem a outra parte, aquela da desordem, que
apercebido daquil o q ue ele chama seu "paradoxo implícito",
está patente na Poética, q uando, por exemplo, o grande grego
acrescentando que o grande pensador grego talvez não tenha
tratou da Comédia, como "imitação de homens inferiores e vi-
sequer notado o mundo de sugestões que suas palavras desper-
ciosos"; o que prova que, pelo menos implicitamente, Aristóteles
tavam. Não creio que Bosanquet tenha razão. Se nós nos aper-
admitia a desordem e a fe iúra como elementos aptos a estimu-
cebemos, por que Aristóteles não teria se apercebido? O que
lar a criação da Beleza, através da Arte.
acontece é que talvez a Poética já dê como pressupostos todos
É verciade q ue a grande contribuição de Aristóteles para a
os ensinamentos que se continham no extraviado trabalho que
Estética foi, primeiro, a de retirar a Beleza - consi derada nos
Aristóteles escreveu sobre a Beleza.
objetos sensíveis - da esfera ideal em q ue a colocara Platão,
tentando, corajosamente, encontrar sua essência nos próprios
dados das coisas, entendidas à luz de uma ontologia realista. Isso Aspecto Subjetivo da Beleza
faz da Beleza uma propriedade do objeto, propriedade particu-
lar sua, e não recebida como que por empréstimo de uma luz Outro fato importante a anotar é que, ao lado dessa defini-
superior, como queria Platão. ção objetiva da Beleza, Aristóteles encara, na Retórica, o mesmo
Mas, por outro lado e como segunda contribuição, o trata- problema sob um ângulo talvez mais do agrado da Estética pós-
do que Aristóteles deixou sobre a Tragédia é ainda povoado de kantiana, moderna. De fato, não é mais no objeto que ele estu-
sugestões valiosas de toda espécie, para a Estética. Assim, den- da, aí, a Beleza, mas sim nas repercussões que ela desencadeia
tro da linha do que vínhamos dizendo, é sabido que os pensa- no espírito do contemplador: "Beleza é aquele bem que é
dores antigos excluíam o Feio de suas cogitações sobre a Beleza aprazível somente porque é bem." Isto é, a Beleza é o objeto que
e a Arte, considerando-o estranho ao campo estético. Não dei- agrada ao sujeito pelo simples fato de ser apreendido e fruído.
xa, portanto, de ser admirável que Aristóteles tenha se referido É claro que o fundamento da filosofia de Aristóteles é rea-
expressamente à Comédia, Arte do feio, como fazendo, legiti- lista; mas isso vem, mais uma vez, provar aquilo que afirmamos
mamente, parte do campo estético. Diz ele, na Poética: de início: o verdadeiro pensamento objetivista e realista, nem
descura os aspectos psicológicos da Beleza; nem a contribuição,
56 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉT ICA 57

a colaboração do contemplador para a efetivação total e com- "Poucas dúvidas pode oferecer o foto de que Aristóteles, se bem
que inclinado a definir a Beleza em todas as suas relações ao
pleta da obra de arte; nem, sobretudo, rejeita, no espírito hu-
mesmo tempo, tenha traçado, de modo satisfatório, suas fron-
mano, aquelas zonas obscuras e subterrâneas das quais brotam
teiras''. (História da Estética, tradução argentina de]. Rovira
as intuições talvez mais importantes para o luminoso e puro Armcngol, Editorial Nova, Buenos Aires, 1949, p. 79.)
conhecimento.
Aqui, por exemplo, na Retórica, Aristóteles examina a fruição Bosanquet ai:iresenta, aí, como uma espécie de defeito, o que
da obra de arte e as características da Beleza do ponto de vista 111c parece uma grande qualidade de Aristóteles - o fato de
do sujeito, do ângulo psicológico; isto é, estuda o que acontece que ele procurou encarar a Beleza cm todas as suas relações ao mes-
no espírito do contemplador ao se colocar ele diante da Beleza, 1110 tempo. Mesmo assim, reconhece que ele traçou, de modo sa-

chegando à conclusão de que o prazer estético decorre da sim- 1isfatório, as fronteiras da Beleza. É que Platão e os platônicos, com
ples apreensão, gratuita e sem esforço, do objeto, pelo espírito ()S olhos fixos apenas no que a Beleza tem de transcendental, viram

do sujeito. 11a beleza das coisas corpóreas sombras da Beleza divina. Aristóteles

A nosso ver, porém, a contribuição mais importante de plantou os pés na terra, e olhou para as coisas. Foi mal entendido
Aristóteles quanto a essa parte da essência da Beleza, foi tentar pela maioria, que viu no seu pensamento alguma coisa que ele nunca
uma definição objetiva dela do ponto de vista realista e sem re- .1firmou: por exemplo, que a Arte devia imitar estreitamente a vida,
correr a outra coisa para explicá-la que não o próprio objeto. , rndo o realismo um "verismo" dogmático e mesquinho. Nada disso
Os herdeiros de Platão acham que isso implica numa con- .1contece. Como disse o poeta Ângelo Monteiro:
cepção estreita da vida e da Beleza. À primeira vista, pode pare-
cer que sim, principalmente depois que Descartes tentou exilar "Para Platão, a Arte teria de, forçosamente, se aproximar dos
seus arquétipos no mundo das idéias, porque o mundo sensível
o enigma e o obscuro do campo filosófico. Mas não se deve
não passaria, em última análise, de mera sombra do primeiro.
pensar que o verdadeiro realismo esqueça a natureza trans-
Daí porque o conceito de mímesis em Platão não tem a mesma
cendental da Beleza e o caráter inesgotável e profundo do real. propriedade que em Aristóteles, o qual toma a mírnesis (imita-
É preciso não esquecer a própria lição aristotélica: ção) corno a representação superior do sensível e não corno a
reprodução imperfeita do Absoluto''. (Ângelo Monteiro, "Da
"O realismo não é uma simples voz da imitação, mas a revela- Mímesis à Criação em Aristóteles", in Estudos Universitários,
ção da verdadeira essência das coisas". (Cf. Galina Tolmacheva, Universidade Federal de Pernambuco, 1973.)
Creadores dei Teatro Moderno, edição argentina, Ediciones
Centurion, Buenos Aires, p. 185 .)
l'ontos Fundamentais do Pensamento Aristotélico
O próprio Bernardo Bosanquet, que era hegeliano e, por-
tanto, insuspeito para elogiar Aristóteles, fica abismado diante Assim, resumindo, pode-se dizer que, para Aristóteles, a Be-
das intuições geniais do grande grego, patrono de todo o pensa- l o.~
é uma propriedade do objeto e consiste, principalmente
mento realista ocidental, chegando a afirmar: quando aparece como Belo, na harmonia das partes de um todo
58 AR IAN O SUASSUNA

que possua grandeza e medida. As três características principais


da Beleza são, portanto, harmonia, grandeza e proporção. A fór-
mula que traça as fronteiras da Beleza é "a unidade na varieda-
de". Aristóteles pressente, pelo menos, a fragmentação do campo
estético, tanto assim que considera a Comédia como uma Arte CAPÍTULO 5
do feio mas, mesmo assim, não se furta a incluí-la no campo es- TEORIA PLOTÍNICA DA BELEZA
tético. O realismo não se confunde com nenhum pensamento
estreito, pois o que ele empreende é a revelação da própria essên-
cia das coisas. Sob o ponto de vista da fruição, da contemplação
do sujeito, a Beleza é aquele bem que é aprazível porque é bem.
A Arte não é uma forma de conhecimento, a não ser que se enten- Platino e Aristóteles
da o conhecimento, aqui, como aquilo que os estetas modernos
chamam de "conhecimento poético". Apesar disso, o espírito, Pode-se dizer que o fundamento da visão de Plotino sobre a
ao ser movido pela Beleza, normalmente se põe a refletir sobre Beleza é platônico. Mas isso, para seguir sua visão geral, muito
aquilo que viu e lhe causou prazer. A Arte é, mais, um depoimen- aproximada da de Platão. De fato, o "Logos VI" da Enéada I
to do mundo, contido numa outra realidade, transfigurada. contém sugestões originais e valiosíssimas, sugestões que pare-
A realidade contém verdades tão altas e nobres quanto as que o cem anunciar boa parte do pensamento estético moderno, isto
idealismo pressente, transferindo-as porém exclusivamente para de Kant a Bergson ou Jacques Maritain.
o mundo superior das essências. Essas realidades podem ser atin- É verdade que Plotino parte de uma crítica a Aristóteles. Ten-
gidas, por um outro arrebatamento, na comunhão com a própria do este delimitado a Beleza, definindo-a objetivamente e realis-
corrente de vida dos seres, também inesgotável e profunda. Tal- ticamente como resultante da harmonia das partes de um todo,
vez, então, o pensamento platônico e o aristotélico sejam proces-
Plotino parte para seu pensamento estético investindo violen-
sos diferentes de acercamento da realidade íntima das coisas.
tam ente contra essa idéia aristotélica. Sem citar o nome de
O mundo é regido por uma harmonia que se reencontra na Arte
Aristóteles, é evidente que é contra ele que Plotino se dirige, ao
e no conhecimento. O pensador - seja cientista ou filósofo -
dizer:
procura encontrar na realidade os rastros dessa harmonia, os
quais evidenciam, através de relações, as leis do mundo. O artista
"Todo mundo, por assim dizer, afirma que a harmonia das par-
procura recriá-las, num universo em que a realidade se reconhe-
tes entre si e em relação ao todo, acrescido de um bom toque
ça, transfigurada.
de cor, constitui a Beleza para a vista. E, para os objetos da vis-
ta, assim como para todos os demais (objetos), a Beleza consis-
te em que sejam harmoniosos e proporcionados. De acordo com
isso, só o composto, e não o simples, é que seria necessariamente
60 ARIANO SUASSUNA
IN ICI AÇÃO À ESTÉTICA 61

belo. Para esses (que acreditam nisso), será belo o todo, mas as
Plotino diz, também, que, ao ouvirmos uma música, não é
partes, cada uma de per si, não terão beleza alguma, senão en-
quanto estejam integrando o todo, para que (assim) sejam be- somente o todo da sonata ou da sinfonia que nos agrada; é cada
las. E contudo é necessário que, se o todo seja belo, sejam belas som isolado, isto é, cada parte do objeto estético musical intei-
também as partes. Um todo belo não se integra de partes feias: ro, é belo. De fato, às vezes, ouvindo uma nota só de violino ou
todas hão de ter aprisionado a Beleza. Além disso, para essas fl auta, nós dizemos que tal som isolado é belo. Mas, da mesma
pessoas, as cores belas, assim como a luz do Sol, sendo, como maneira que para a cor, só poderíamos falar em "som simples"
são, simples e não lhes vindo a Beleza de harmonia nenhuma
se conseguíssemos apagar da memória, no momento de ouvi-lo,
(de partes), estariam excluídas da Beleza". (Enéada, vol. I, tra-
todos os sons desagradáveis que ouvimos desde o nosso nasci-
dução argentina de] uan David Garcia Baccá, Editorial Losada,
Buenos Aires, 1948, p. 168.) mento; sons que, ali, agora, servem de contraste para aquele som
que estamos ouvindo, e que, exatamente por esse contraste, é
Assim, para Plotino, a Beleza não podia consistir na harmo- que nos parecem belos. A frase de Plotino, porém, é incisiva.
nia das partes do objeto estético, como pensava Aristóteles, Pergunta ele, aos que aceitam, em princípio, a idéia aristotélica
porque, a ser assim, as coisas simples, como uma cor pura, por de que só os seres complexos podem ter beleza:
exemplo, não poderiam ser consideradas belas.
"Como poderia ser belo o ouro? E o resplendor da noite e os
astros, por que serão belos de ver? Pelo mesmo motivo, quanto
Beleza do Simples?
aos sons, a simplicidade afugentaria a beleza; e, no entanto,
freqüentemente, cada um dos sons de um todo musical belo é,
Talvez seja conveniente, de início, dizer que, quanto a
por si mesmo, belo também".
mim, não aceito a crítica de Platino a Aristóteles, se bem que
considere o "Logos VI" da Enéada I como um dos textos es-
téticos mais sugestivos que já foram escritos. Por um motivo Influência Platônica em Platino
só: é que, para o homem, não existe nem existirá jamais nada
que seja esteticamente apreciável como "simples", isto é, como Para enfrentar o impasse em que, segundo sua opinião, se
puro e uno. Nós dizemos que um azul ou um vermelho puro
via o pensamento aristotélico, Plotino envereda por um cami-
são belos; mas, ao dizer isso, estamos com a memória povoa-
nho neoplatônico. Liga novamente a beleza das coisas terrestres
da de outras cores. Dizemos que o azul do céu, num dia de
à participação numa Beleza absoluta, dizendo:
verão, é belo, mas, ao dizermos isso, ele está sendo compara-
do com outros céus, vistos noutro dia. Só haveria uma ma-
"Uma coisa material bela surge por participação numa idéia saída
neira de vermos a simplicidade total em matéria de cor: era
do divino", ou, como traduzem outros, "o corpo belo surge pela
se só existisse uma cor, no mundo. Mas aí, a noção de Beleza
comunicação com um logos vindo dos deuses". (Ob. cit., p. 170.)
ligada à cor nunca teria surgido.
62 AR IANO SUASS UNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 63

Aliás, a influência d e Platão é evidente a cada passo da pe- dois tipos . A Pin tura é, de fato, puramente visual: um cego não
quena obra-prima de Platino. Diz ele, por exemplo, que as be- pode jamais fruir da beleza de um quadro e, portanto, o sentido
lezas do sensível, as belezas do mundo terrestre, são da visão é fundamental, aí. Um surdo total não pode fruir a be-
leza de uma sonata. Mas para um poema ou um romance, não
"imagens eidéticas e sombras que, como escapadas, chegaram à
interessa qual o sentido que leva a obra ao intelccta: o que im-
matéria, adornaram-na e, ao surgir, nos transtornam". (Ob. cit.,
p. 171-172.) porta é que este apreenda o sentido das palavras, seja qual for o
sentido usado como veículo.
O caráter de êxtase e arrebatamento místico ligado à Bele- Plotino percebeu que os dois sentidos estéticos por excelên -
za, tão presente em Platão, aparece também muitas vezes nas cia eram a visão e a audição. Diz ele:
palavras de Plotino:
"Encontra-se a beleza sobretudo na vista; aclu-sc também no
"Estas têm que ser as emoções que surgem ante qualquer coisa ou1·ido". (Ob. cit., p. 167.)
bela : exultação, arroubo, anelo, amor, deleitável arrebatamen-
to". (Ob. e p. cits.) Entretanto, estava atenta para o fato que acabamos de su-
blinhar a respeita de Artes como o Romance, o Teatro e a Epo-
A reminiscência platônica encontra, também, eco em Plotino,
péia, mais ligadas ao comportamenta e às ações humanas. Tanto
que afirma, a certa a ltura de seu tratado:
assim que afirm a:

"Sendo a alma por natureza o que é e estando muito próxima a


"Mas para os que se elevam progressivamente <les<le a sensação
Essência suprema entre os seres, ante qualquer coisa que ela veja
pertencer a seu mesmo gênero ou que possua uma marca de para o supremo, há empresas belas, açõc:s e comportamentos
parentesco, regozija-se e se transporta, atrai-a para si e volta a belos". (Ob. e p. cits.)
recordar-se de si e de tudo o que é seu (que pertence à sua natu-
re za) (Ob. cit., p. 169.)
Plotino e Kant

Artes Visuais, Auditivas e de Ação Quando estudamos, de passagem, o pensamento kantiano,


chamamos ate nção para o fato de que, para Kant, além da inte-
Alguns estetas modernos, procurando classificar as Artes, têm ligência e da vontade, existe uma terceira faculdade, apta a jul -
partido, para isso, dos sentidos estéticos por excelência, a vista gar da Beleza. É o juízo de gosto, que Kant afirma ser governado
e a aud ição. Nessa linha, as Artes são classificadas em visuais, pela sensação de prazer e desprazer, dominado pela imaginação
como a Pintura, e auditivas, como a Música. Note-se, porém, livre, aliada, talvez ao entendimento.
q ue existem Artes co mo a Poesia ou o Romance q ue sendo mais Pl atino parece t er se antecipado a Kant, nisso, quando
intelectuais e de ação, não se enquadram bem em nen hum dos afirma:
64 A RIANO SUA SSUNA INICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 65

"A Beleza mesma é conhecida por aquela facu l<la<lc e.la alma que alegria ele recon h ecer aquilo que foi imitado p elo artista. Creio
à Beleza está ordenada, fac uldade que não reconhece rival cm q ue essa idéia aristotélica n ão seria n u nca exposta desse modo
d iscernir o q ue se refere à Beleza, mesmo quando outra facul- esquemá tico, grosseiro e inaceitáve l, se não fizesse parte de u m
d:ide da alma contribua com um juízo complementar". (Ob. cir., sim ples esb oço a ser dese nvolvid o em aula: ela tem de ser bem
p. 170.) desen volvida e ex p licada, sob pena de causar m u itas confusões.
Porq ue se o p raze r estético viesse da a legria de reco n hecer o
Te ria ele també m , como Kant, p ressenrido que o cam po es- imitad o, nós n ão p oderíamos ach ar belo um retrato p intado por
tético não p o d e ria se esgotar somente com o Belo clássico ? Será Holbei n ou Lucas C ranach, uma vez que n unca conhecemos os
que estava predi sposto a ace itar o Mal e o Fe io como legítimos, modelos q ue os do is retra taram .
no ca mpo estético ? Parece q u e n ão. O subst rato p latô nico de Plotino resolve o p roblema do p razer estético de modo in-
seu pensame nto levava-o a o utros caminh o s. l\las talvez Plo tino teiramente d iverso. Para ele, a alegria que a alma sente d iante
- q ue, em Estética, fo i m ais lo nge d o q ue seu m estre, Platão - de uma obra bela o rigina-se d o fato de que, diante dela, nós
visse o Mal e o Feio como ilegítimo s apen as n o mundo e na vida, sentimos q ue esta m os dian te da c hispa de outra alma h uma n a;
mas não n a Arre. Ess:i é u ma d ú vida que nos fi ca d ian te de tex- o a rtista colocou e m sua obra uma fag u lha, um brilho de sua
tos como es te: alma, e a n ossa, ao captá-la, se alegra, porq ue aquele e ncontro
é, d e fato, um n :en conrro:
" É preci ~o, pois, csru<hr a B1.:leza e o Bem, o Feio e o Mal, co-
lo..:anJo c m primeiro lug:i r a Beleza, o u, o que é o mesmo, o " Q ual é, pois" - pergunta Bosanquet - "a natureza do prazer
Bem". (Ob. cir., p. 175.) estético ou do amor à Beleza"? E ele próprio dá a resposta de
Plorino: - " 1a beleza material, e não meramente na destreza
A identificaç5o e ntre Be leza e Be m é platônica, se m d úvida . da imiraçiio do artista, como sugeriam Aristóteles e Plutarco, a
alma reconhece uma afinidade consigo m esma". (História da
M as por q u e Plo t ino diz q u e é preciso estud a r "a Beleza e o Bem ,
Estética, ob. cit., p. 138.)
o Fe io e o M al"? É claro que e le dá p rimazia hie rá rquica à Bele-
za e a o Bem , mas n ão deixou de a firma r, pelo menos, a n ecessi-
As palavras do próprio Plotino, po rém, são, talvez, m a is
dade de esruda r o Feio e o l\ la l.
l:Xpressivas. D iz ele:

Plotino , Hegel e Ma ritain "Voltando, pois, de novo ao princípio, <ligamos anres de tudo
o que é a Beleza nos corpos. É um cerro algo que se nos faz
srnsív<: I :io primeiro choque. A alma fala deb sem dificulcbclc,
O p ensamento d e Plotino volrn-se, assim, para as fontes pla-
como de coisa conhecida, e quando a rcconh<:cc cxpliciramcn -
tô n icas e traz a lg u mas va liosas con tribu ições pa ra o estudo da te, acolhe-a cm si mesma e, de certa maneira, com <.:la se har-
Beleza e d a Arte. Exempl o d isso é o q u e ele a firma sob re a n a tu- moniz:i. Ao contrário, qu:indo se vê Jianre do r eio, encolhc-sl:,
reza d o praze r estét ico. Para Aristó teles, o prazer q u e experi- rc pd <.:-o e se a fasta, notando-se a alma, não concorde com ele,
m e n tamos d ia nte d e u m q11 ~1 dro ou d e u ma tragéd ia, ve m da mas sim estra ngeira". (Ob. cit., p. 169.)
66 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉT ICA 67

Encontraremos ressonância desse pensamento em Hegel, Pois o pensamento de Plotino parece se antecipar não só a
como veremos depois, e, mais modernamente, em Jacques S:111 ta Teresa e São João da Cruz como ao próprio Bergson, quan-
Maritain, quando afirma: do ele afirma:

''A inteligência frui a Beleza porque nela se reencontra e se re- "De que maneira, por meio de que artifício contemplará alguém
conhece, pondo-se em contacto com sua própria luz". (Arte y a Beleza incomensurável, que permanece dentro de nós, como
Escolástica, tradução argentina, edição de La Espiga de Oro, em tabernáculo sagrado, e de nenhum modo sai ao exterior para
Buenos Aires, 1945.) que a veja qualquer adventício? 1\quele que possa, q ue avance e
continue avançando até dentro, deixando fora toda a visão dos
O pensamento estético de Plotino influenciou todo o pen- olhos, sem voltar-se para os esplendores dos corpos antes vistos ...
samento primitivo medieval e os escolásticos; Santo Agostinho Volta-te para ti mesmo, e olha. E se talvez não te vês ainda belo,
e Santo Tomás trazem, indiscutivelmente, sua marca. M uitas faz como o escultor com uma estátua que deve ficar bela: que
objeções, por outro lado, já se levantaram contra sua crítica à corra isto, dá um polimento naquilo, alisa uma parte, limpa ou-
tra, até que a beleza das linhas se ostente na csculrnra. Da mesma
teoria aristotélica, algumas baseadas no pensamento de Platão,
maneira, corta de ti o supérfluo, endireita o torto, faz com que o
para quem mesmo uma cor pura tem partes nas quais se mani-
que é tenebroso resulte esplendoroso por purificação, e não ces-
festa sua simplicidade (cf. Bosanquet, ob. cit., p. 141). De qual-
ses de lavrar tua própria estátua, até que resplandeça em ti o bri-
quer modo, ele levantou "uma porção de questões estéticas, coisa lho divino ela Virtude, até que vejas a temperança (a Beleza divina)
que, por si, já é um grande mérito". assentada em seu trono sagrado''. (Ob. cit. p. 177-178.)

Ploti no e Bergson /'\\ Duas Definições da Beleza

É curioso observar o parentesco estreito que existe entre um Assim, para Plotino, "a Beleza não é uma harmonia, é uma
pensador antigo, como Platino, e outro, contemporâneo nosso, 1111. que dança sobre a harmonia". É a velha Idéia platônica do
como Henri Bergson. É sabido que foi Bergson quem revalorizou, l'~plendor, do brilho da Beleza. Aqui, porém, é que Plotino acres-
modernamente, o "conhecimento místico", reconhecendo que <L ·nta algo de muito importante a todos os pensadores que, an -
os místicos cristãos, como Santa Teresa ou São João da Cruz, f ('s dele, tinham se detido sobre o problema da Beleza e da Arte.
colocavam-se diretamente em contacto com aquilo que a intui- <!11al seria a natureza dessa luz? Platão acentuara que ela era o
ção buscava. Os místicos cristãos, partindo da idéia de que o rdlcxo da Beleza Absoluta, fazendo brilhar os seres terrestres,
coração humano era o templo do Espírito Santo, viam a cami- i'1>ssem eles da Natureza ou da Arte. Aristóteles falara em har-
nhada para o Divino como uma entrada ascética e exaltante para 111011ia, mas deixara a luz, o brilho, de lado. Plotino define a
o interior e o centro da alma humana. Para Bergson, tudo isso lk leza como uma luz que dança sobre a harmonia, tentando
se confundia com a duração e o impulso vital subterrân eo, do como que uma primeira síntese entre a luz platônica e a harmo-
qual a existência recebia existência e sentido. 11 ia aristotélica.
68 ARIANO SUASSUNA

Mas ele não se detém aí, fazendo como que, uma adição de
duas teorias incompletas, para voltarmos a uma expressão usa-
da na introdução deste Manual. Plotino empreende uma apro-
ximação maior e mais profunda em direção à própria essência
da Beleza. A luz que dança sobre a harmonia seria antes de mais
CAPÍTULO 6
nada, resultante de uma certa intensificação do ser, se assim se TEORIA KANTIANA DA BELEZA
pode falar. É o que parece depreender-se de textos como este
em que ele afirma:

"A Beleza é os seres em máximo de ser''. (Ob. cit., p. 175.)


O Juízo de Conhecimento e o Juízo de Gosto
Entretanto, em nossa opinião, o texto mais importante de
Plotino no campo da Estética é aquele no qual ele liga a Beleza Até aqui, em nosso estudo sobre a Beleza, seguimos um crité-
à luz da forma . É claro que usamos aqui o termo em seu sentido rio cronológico e histórico, porque, no caso, ele é, mesmo, bas-
filosófico, isto é, como princípio ativo e determinante do ser, tante didático. Agora, porém, vamos abandoná-lo um pouco,
oposto à matéria, princípio determinado e passivo. Plotino afir- porque, tendo chegado às primeiras indicações de uma síntese
ma textualmente: filosófica, realista e objetivista sobre o problema, temos obriga-
ção de nos voltar para a violenta reação kantiana, que pretendeu
"Tudo o que é amorfo, nascido para receber uma forma e uma deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito.
idéia, é feio e estranho a todo logos divino: tal é o absoluta- Segundo acentua Moritz Geiger, Kant, em vez de tentar a
mente feio. É também feio o que não é dominado por uma for- solução dos problemas estéticos - entre os quais se destacam o
ma e um logos, por não haver-se a matéria deixado conformar da Beleza e o da Arte - tratou de demonstrar que eles eram inso-
integralmente segundo a idéia". (Ob. cit., p. 170.) lúveis. A impossibilidade de resolver os problemas estéticos adviria,
cm primeiro lugar, da diferença radical existente entre os juízos
E é partindo dessa idéia que ele, então form ula aquele que estéticos, (ou juízos de gosto), e os juízos de conhecimento.
De acordo com Kant, os juízos de conhecimento emitem
me parece o texto antigo mais preciso e forte, o mais apto a,
conceitos que possuem validez geral, por se basearem em pro-
pelo menos, nos fazer pressentir a essência da Beleza; é aquele
priedades do objeto. Quando eu digo: "Esta rosa é branca'', es-
no qual ele diz que a Beleza resulta do
tou emitindo um juízo de conhecimento: o resultado dele é um
conceito indiscutível, válido para todo mundo, de validez geral,
"domínio da fo rma sobre o obscuro da matéria". (Ob. cit. , p. 171.)
porque baseado em propriedades objetivas da rosa.
Já os juízos estéticos não emitem conceitos: decorrem de uma
simples reação pessoal do contemplador diante do objeto, e não
70 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ES TÉTI CA 71

de propriedades deste. Por isso, quando eu digo "Esta rosa é coisa. Ele parece com o juízo sobre o agradável porque, como
bela", este juízo exprime somente o fato de que tal rosa me agra- este, se baseia numa simples sensação de prazer que o sujeito
da: eu não posso exigir, para ele, como para o outro, o assen- experimenta diante do objeto. Mas difere do juízo sobre o agra-
timento, a concordância geral, validade geral para aquilo que é dável porque a pessoa que gosta de um q uadro não se conforma
resultado de uma simples reação pessoal minha. Daí dizer Geiger, cm que este seja belo apenas para ela: quer que todo mundo goste
a respeito do pensamento de Kant: também.
Ocorre coisa semelhante se compararmos o juízo estético
"O conteúdo do juízo estético é a reação do sujeito, e não a
propriedade do objeto. Esta rosa agrada, tal seria a forma ade-
w m o juízo de conhecimento. Por um lado, ele difere deste,
quada desse aspecto do juízo estético". (Ob. cit., p. 50.) porque não se baseia em conceitos, e sim numa sensação; por
o utro lado, é semelhante, porque nós exigimos para ele valida-
de geral. Temos então sobre o que até aqui foi exposto:
O Juízo Estético e o Juízo sobre o Agradável Juízo de conhecimento: "Esta rosa é branca". (Conceito,
validez geral.)
Feita esta primeira distinção entre o juízo de gosto (que tem
Juízo sobre o agradável: "Este alimento me agrada". (Sensação,
um princípio determinante puramente subjetivo) e o juízo de co-
reação puramente pessoal do sujeito, ausência, de validade geral.)
nhecimento (que fornece conceitos de validade geral), temos que
Juízo estético: "Esta rosa é bela". (Sensação agradável do sujei-
distinguir ainda, dentro do pensamento kantiano, o juízo estético
10, ausência de conceito, mas exigência de validez universal).
do juízo sobre o agradável. Quando eu digo "Este alimento é bom",
De modo que o juízo estético, "Esta rosa é bela'', se distin-
estou dizendo simplesmente que sinto uma sensação agradável
quando como tal alimento; trata-se de um juízo sobre o agradável, gue do juízo de conhecimento porque não exprime nenhum
baseado numa pura sensação subjetiva minha, porque, de fato, conceito fornecido pelas propriedades do objeto, mas simples-
quando digo "Este alimento é bom" estou dizendo na verdade é 111ente uma sensação que foi agradável ao sujeito. E distingue-
que "Este alimento me agrada a mim". Daí dizer Kant que sc do juízo sobre o agradável porque, quando um sujeito diz
" Esta rosa é bela", não se contenta em que isso tenha validade
"o agradável é aquilo que agrada aos sentidos, na sensação". somente para ele: exige, para esse juízo subjetivo, um assenti-
("Crítica do Juízo'', § 3, em Le Jugement Esthétique, textos 111ento geral, como se tivesse emitido um conceito objetivo. Por
escolhidos, Presses Universitaires de France, Paris, 1955, p. 4.)
isso, para Kant, a Beleza, ou melhor, "a satisfação determina-
dJ p elo juízo de gosto" - que é como ele preferia chamar. a
Primeiro Paradoxo Kantiano sobre a Beleza Llcleza - é, em primeiro lugar e antes de mais nada, "aquilo
que agrada universalmente sem conceito", ou seja, "um uni-
O juízo estético é, assim, ambíguo, comparado com os ou- versal sem conceito'', para usar a fórmula que ficou mais co-
tros dois, dos quais ele, ao mesmo tempo, difere e tem alguma nhecida.
72 ARIANO SUASS U NA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 73

Segundo Paradoxo Kantiano sobre a Beleza sensação de prazer ou desprazer, é natural que o sujeito, ao ex-
perimentar uma sensação d e prazer diante d e u m quadro ou d e
A primeira característica d a Beleza, d e acordo com Kant, isto
roma nce, exija, para seu juízo, o assentimento de todos os
11111
é, "universal sem conceito'', constitui portanto, como se viu, um ourros homens, a a provação geral.
paradoxo: quando o sujeito emite um juízo estético, não está
exprimindo um conceito decorrente das propriedades do obje-
to, mas apenas u ma sensação d e p razer (ou de desprazer) que Terceiro Paradoxo Kantiano sobre a Beleza
ele experimentou diante do objeto. No entanto, o sujeito exige
sempre para esse juízo estético, sem conceito, o assen timento Para bem se en tender o te rceiro paradoxo ka ntiano sobre a
mais geral possível, a validez universal. llclcza, temos d e voltar a refletir sobre as diferenças e ntre o juízo
Perg unta Kant: "Qual a razão disto? Por que o juízo estéti- estético e o juízo sobre o agradável. Q ua ndo eu digo " Esta rosa
co, eminen temen te subjetivo, exige paradoxalmente, o consen- {: bela" e " Este alimento m e agrad a'', a mbos os juízos se baseiam
so universal"? E responde ele mesmo: "O motivo disso é que a ~ i111plesmen te numa sensação de prazer minha. Mas, se pe nsar-
Beleza, a satisfação determinada pelo juízo de gosto, é resultan- 111os bem, ve remos que existe urna diferença bastante acen tuada
te de fac uldades necessariamente comuns a todo homem , a sen- r 1Jlre as duas formas d e p raze r. Quando uma pessoa se alimen -
sibilidade, ou i mag inação, a lia da talvez ao e nte ndimento". 1.1, tem um interesse físico a satisfazer, de modo que o prazer
A satisfação determinada pelo juízo estético apóia-se no livre jogo c;111s:ido por esta sensação é um prazer interessado. M as quando
d a imaginação, é urna espécie de harmonização das facu ldades rx pcrirne ntamos uma sensação d e alegria diante de uma rosa,
causada p ela sensação de prazer: 1H1 de um torso grego, o prazer é de natureza diferente, é uma
.ilcgria gratuita e desinteressada. Como já se disse m ais o u m e-
"O sentimcnro estético apóia-se, portanro, no livre aco rdo nos antes, Kant não estuda propriam ente as características do
dos elementos que possuem validez geral e são necessários objeto belo, mesmo porque sua crítica teve principalmente, em
para a ap reensão de todo objeto. Isto é o que autoriza o sen- 1-:stética, o objetivo de provar que isso não era possível; o que
timento estético a pretender, também, validade geral, se bem ele estuda é "o ato de consciência que julga a Beleza". E é nesse
que, como já se disse, não exista maneira nenhuma de de- w 1tido que ele continua sua exposiçfo, afirmando que o senti-
monstrar conceitualmente a justeza dessa pretensão". (Moritz 111cnto da Beleza não procura satisfazer nenhuma inclinação, pelo
Geiger, ob. cit., p. 53.) 111 <:110s diretame nte; é um sentimento purame nte contemplativo;
n:10 é turvado por nenhum desejo, "é um prazer d esprovido de
Daí, então, a segunda característica, aparentemente ambí- interesse'', " um prazer d esinteressado" :
gua e paradoxal, da Beleza, da satisfação determinada pelo juízo
de gosto: "é uma necessidade subjetiva que nos aparece como "O julgarncnro de gosto é pur:imcnte contemplativo, é um jul-
objetiva" . Tendo todos os homens, necessariamente, essas facul- gamento que, indiferente à existência de um objeto, une somente
dades, cujo jogo, não ligado a conceitos, mas livre, produz a sua natureza ao sentimento de praze r e de desprazer. Mas esta
74 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 75

contemplação mesma não é regida de acordo com conceitos" - do objeto, e a segunda liga-se mais à forma e ao sentimento de
diz Kant, acrescentando que o agradável, a beleza e o bem são sa- prazer ou desprazer que desencadeia no sujeito. O prazer cau-
tisfações, mas que "pode se dizer que, destas três espécies de satis- sado pela finalidade é decorrente da "simples apreensão da for-
fação, somente aquela dada pelo gosto da Beleza é uma satisfação
ma" do objeto pelo sujeito; é um "julgamento estético sobre a
desinteressada e livre". ("Crítica do Juízo", ob. cit., p. 6-7.)
finalidade do objeto'', ao contrário do julgamento sobre o fim,
que não é estético, mas interessado.
Quarto Paradoxo Kantiano sobre a Beleza De tudo isso, vem a afirmação de Kant de que "o juízo esté-
tico não tem outro fundamento senão a forma da finalidade de
Para entendermos o quarto paradoxo kantiano sobre a Be- um objeto", e também a quarta fórmula kantiana sobre a Bele-
leza, é fundamental distinguir, em seu pensamento, o fim da fina- za: "a satisfação determinada pelo juízo de gosto é uma finali-
lidade. Já chegamos à conclusão de que a satisfação determinada dade sem fim".
pelo juízo de gosto é desprovida de interesse. Ora, afirma Kant:
Beleza Livre e Beleza Aderente
"Todo fim, considerado como princípio de satisfação, compor-
ta sempre um interesse como motivo de julgamento, trazido
No pensamento de Kant foi ainda muito importante, para a
sobre o objeto do prazer". (Oh. cit., p. 18.)
Estética, a distinção que ele estabeleceu entre Beleza livre e Be-
leza aderente, distinção que iria repercutir profundamente nas
O contrário ocorre com a finalidade. Do ponto de vista es-
tético, finalidade é, para Kant, "alguma coisa que o sujeito des- teorias sobre Arte abstrata em nosso século. É claro que, em Arte,
cobre no objeto e que tem o dom de excitar harmoniosamente é muito mais importante o trabalho de criação do que qualquer
suas faculdades''. Temos então o fim ligado ao objeto e à sua teoria. Assim, o que teve papel mais saliente para a formuíação
destinação útil; e a finalidade, ligada ao sujeito e à sensação de da Arte abstrata foram obras como, por exemplo, a pintura de
prazer harmonioso que ele experimenta. Se eu digo que uma Kandinsky. Mas, depois disso, sem dúvida, quanto à parte das
máquina é boa, tenho em vista o fim, a destinação útil à qual ela teorias, exerceram influência fundamental para isso as idéias de
se destina e que satisfaz. Mesmo que eu diga que a máquina é Worringer sobre "abstração e natureza", idéias que, sem dúvi-
bela, o prazer que isto exprime é sempre ligado ao fim, e por- da, se fundamentam na distinção já referida e que integram o
tanto interessado, não pode ser um julgamento puramente esté- sistema de pensamento de Kant.
tico. O fim é ligado a propriedades do objeto, e o juízo estético Pode-se dizer que a distinção entre Beleza livre e Beleza ade-
é puramente subjetivo, baseado no livre jogo da imaginação e rente se deriva da anteriormente explanada entre finalidade e
do entendimento. Nenhum prazer ligado ao fim pode ser esté- fim. São três graus de utilidade decrescente e gratuidade cres-
tico, porque todo ele é interessado. cente: o dos objetos puramente ligados ao fim e à sua destinação
A diferença essencial que existe entre o fim e a finalidade é, útil, como um trem; e, mesmo já dentro do campo da Beleza,
então, que o primeiro se liga a propriedades e à destinação útil isto é, já dentro do campo da finalidade, o dos objetos que re-
76 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 77

presentam coisas (Arte figurativa) e dos que representam sim- "perigos" que representam as "impurezas" de d eterminadas for-
ples formas (Arte abstrata). Kant acha que, quando olhamos uma mas de Arte em nosso mundo contemporâneo. E é talvez con-
locomotiva, não podemos nunca olhá-la desinteressadamente, veniente corrigir e eq uilibrar um pouco essa influência com as
porque remos sempre em vista o fim útil ao qual ela se destina. imprecações desesperadas de Nietzsche, principalmen te através
Quando olhamos um q uadro, é outra coisa: temos em vista sim- de suas fo rm ulações sobre a Arte dionisíaca, e para quem falar
pl esmente o prazer do contemplador. Mas, mesmo aí, se o qua-
em "prazer desinter '!ssado" era o mesmo que d izer "interesse
dro represen ta um cavalo, por exemplo , a contemplação da
desinteressado''. De fato, as Artes abstratas são m ais puras, equi-
Beleza é turvada pelo conceito que fazemos de um cavalo, en-
libradas e desinteressadas. Mas não são as ún icas. Pelo contrá-
quanto que se o quadro apresenta somente formas geométricas,
rio. Existem outras de natureza bastante d iferente, que ganha m
a contemplação é mais desinteressada e livre e portanto mais
em violência e complexidade o que perdem em p ureza, o que
pura. É por isso que ele chama a Beleza ligada às artes figurati-
leva Nietzsche a dizer :
vas de "aderente" (porque el a adere ao conceito que fazemos
das coisas representadas); e chama "livre" a que se liga às artes
"A embriaguez apolínea excita sobretudo o órgão visual, de
abstratas, que representam formas puras.
maneira a produzir-l he a acuidade da visão. O pintor, o escul-
A Beleza livre não supõe, portanto, nenhum conceito do que
to r e o poeta épico são visionários por excelência. Ao contrá-
seja o objeto; a Beleza aderente, não só supõe tal conceito, mas
rio, no estado dionisíaco, é todo o sistema emotivo que é ativado
supõe ainda a perfeição do objeto em relação a esse conceito. e di latado: de modo que descar rega de uma só vez a totalidade
Daí dizer Kant que dos seus meios de expressão e põe em jogo a sua força de re-
presentação, imitação, transfiguração e metamorfose, roda es-
"os desenhos à moda grega, os ornamentos de quadrados ou de
pécie de mímica e ficção simultaneamente". ("Crepúsculo dos
papéis pintados etc., não significam nada por eles mesmos, não
Ídolos", em Nietzscheana, José O lympio Editora, Rio, 1949,
representam nada, nenhum objeto de um conceito determina-
tradução de Alberto Ramos, p. 195.)
do e são belezas livres. A beleza de um ser humano - e, nesta
espécie, a de um homem, de uma mulher, de um menino - a
beleza de um cavalo, de um monumento, implicam um concei- E ainda, na Origem da Tragédia, diz N ietzsche, investindo
to do fim que determina o que deve ser o objeto e por conse- contra a idéia kantiana de que a "pureza" era o valor estético
qüência um conceito de sua perfeição: são, assim, apenas belezas maior:
aderentes" .
"Em virtude de um milagre metafísico da vontade helênica, os
A concepção kantiana do prazer desinteressado, assim como dois instintos - apolíneo e dionisíaco - se encontram e se
a satisfação determinada pela Beleza livre - que, pelos kantianos, abraçam, para, num amplexo, gerarem a obra superior que será
é considerada a única Beleza esteticamente pura - não é estra- ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca, a Tragédia grega". (Ob.
nha aos inúmeros preconceitos sobre a Arte "pura" e sobre os cit., p. 35-36.)
78 ARIANO SUASSUNA

Por outro lado, Moritz Geiger aponta uma contradição fun-


damental no pensamento kantiano. Pergunta Geiger:

"Se o sentimento estético é realmente expressão de faculda-


des cognoscitivas de validez geral, não teremos que admitir CAPÍTULO 7
também que em todos os homens os mesmos objetos devem
A BELEZA SEGUNDO A ESTÉTICA
provocar o sentimento estético adequado, assim como as fa-
IDEALISTA ALEMÃ
culdades cognoscitivas universalmente válidas constituem o
fund amento do juízo lógico adequado? E se esta conseqüên-
cia é correta, não se poderia, do mesmo modo, assinalar, teó-
rica e conceitualmente, qual deve ser, no objeto, a condição
apta a suscitar o livre acordo das faculdades cognoscitivas"?
Schiller e a Reconstrução da Estética
(Ob. cit., p. 53-54.)

É uma objeção que nos parece irrespondível e que atinge o Como se viu, e de acordo com a observação de Moritz
próprio cerne do pensamento kantiano. Este, porém, permane- Geiger, o que Kant empreendeu, talvez sem querer, foi uma
ce como uma das maiores contribuições que já surgiram no verdadeira destruição da Estética. Note-se que não se trata, no
campo da Estética e lançou luz sobre algumas de suas mais enig- pensamento kantiano, apenas de acentuar a importância do gosto
máticas questões, podendo-se assinalar entre estas, por exem- particular de cada um; ou a colaboração que o contemplador
plo, a do papel da imaginação na Arte, da imaginação desprezada tem que prestar à obra de arte; ou, ainda, as variações legítimas
pelos intelectualistas radicais e cuja importância foi assinalada ou ilegítimas de gosto individual - assuntos que serão exami-
definitivamente por Kant, tanto para a criação quanto para a nados, aqui, depois, pelo menos de passagem. Ao dizer que a
frui ção da Arte. Beleza não está no objeto mas, sim, é uma construção do espírito
de quem olha para o objeto, Kant tornou impossível qualqu er
julgamento das obras de arte. De fato, se a Beleza é construída
pelo espírito do contemplador, os objetos não são mais nem belos
nem feios. Não ex istirá mais um quadro feio e outro belo: o
quadro será feio ou belo de acordo com a reação de quem se
ponha diante dele.
É claro que existem as variações legítimas e pessoais, do gos-
to; uma pessoa pode preferir Beethoven a Bach e outra achar o
contrário: trata-se, aí, de variações legítimas do gosto. Mas pre-
ferir uma música qualquer, sentimentalmente comercial a Mozart,
80 ARIANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉTICA 81

aí é uma variação ilegítima do gosro. Enrreranto, no pensamento reflexão, ligando a Beleza a uma certa objet ividade racional, é
kantiano não existem elementos para considerar essa variação ile- bastante diferente da noção que os realistas e objetivistas têm
gítima : o sujeito diz que, ao ouvir a música sentimen tal e comer- cio intelecto e que, - tenhamos isso sempre presente - não
cial, "constrói a Beleza dentro ele si'', e não constrói a mesma Beleza exclui o que a intel igência possui de enigma, de obscuro e intui-
ao o uvir Mozart. A Beleza não estando no objeto estético, nós tivo. Mas, apesar disso, ao di zer que a Beleza é, para nós, um
não temos objeção nenhuma a apresenta r ao portador dessa pre- objeto, o que Schi ller faz é esboçar uma das primeiras reações
ferência, comprovadamente ilegítima pelo julgamento unânime contra os paradoxos extremados de Kant.
dos espíri tos superiores e pela passagem do tempo.
A Estética ficaria, pois, red uzida a escombros, a se aceitar
integralmente o pensamento kantiano - que, por outro lado, A Teoria da Aparência Estética
teve um grande mérito: o de chamar a atenção para o faro de
que a fruição da Beleza não era meramente intelectual, pois ti- Sch iller é ainda importante nas investigações est éticas por-
nha papel fundamental, nela, a imaginação. que formulou uma teoria, retomada depois sob outros termos
Assim, depois do formidável impacto da crítica kantiana, pela Estética fenomenológica: a da aparência estética. Segundo
começou logo a se esboçar uma reação conrra ela, se bem que os essa teoria, o mundo da Arte e da Beleza é "um mundo d e apa-
pensadores idealistas alemães, imediatamente posteriores a Kant, rência'', mas a aparência estética é uma aparência honesta, "por-
não deixassem, nunca, de revelar as profundas marcas que ele que não pretende ser outra coisa senão aparência". O que não
deixo u em todo o pensamento ocidental. Schiller, por exemplo, significa que o m u ndo da Arte seja inferio r ao mundo real: pre -
- que, além de poeta e dramaturgo, foi um grande pensador parando, já, o caminho para a Estética hegeliana, Schi ller colo-
nos domínios da Estética - tenta, logo depois de Kant, uma ca a aparência estética em hierarquia superior à do mundo real.
espécie de conciliação entre o objetivismo tradicional e o sub- "A realidade é obra das coisas, a aparência (estética) é obra dos
jetivismo kantiano. Essa procura, aliás, continua a ser, de um homens", diz ele, acrescentando que "o homem é civi lizado na
modo ou de outro, a atitude da maioria dos estetas pós-kantianos. proporção em que aprende a valorizar a aparência por cima da
O pensamento de Schiller a respeito da Beleza pode se resumir realidade prática corrente" .
nos termos seguintes: Também foi Schiller quem formulou, com funda mento em
Kant, a teoria da "arte como jogo'', q ue examinaremos depois.
"A Beleza é rea lmente um objeto pa ra nós, porque a refle xão é
a condição de que te nh a mos um sentimento d ela . Mas, ao mes-
mo tempo, a Beleza é um estado de nosso sujeito, po rque o se n- Schelling - A Beleza como Infinito
timento é a condição em qu e pode mos te r ela uma perce pção".
(Cic. por Bosa nquct, ob. c it., p. 335.) As idéias de Schiller influenciaram Schell ing, num retorno
neopla tô nico à Estética metafísica, abalada, como já vimos, pela
Este pensamento do grande dramaturgo e poeta alemão, não crítica kantiana. Com Schelling, voltamos à concepção platôni-
sai exatamente da órbita kantiana, pois o que Schill er chama de ca do caráter ideal da Beleza, como aspecto do Uno ou da Idéia,
82 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 83

do Absoluto. Schelling define a Beleza como "a apresentação de todas as produções livres. Mas como estas duas atividades de-
infinito dentro do finito" (cf. Bosanquet, ob. cit., p. 337). Por vem ser representadas na produção artística como unidas, a obra
isso, afirma ele, na Filosofia da Arte: de arte representa um infinito em forma finita. Pois bem: o in-
finito, apresentado em forma finita, é a Beleza". (Cf. Bosanquet,
"Pode-se dizer que existe Beleza sempre que se tocam a luz e a ob. cit., p. 369.)
matéria, o ideal com o real. A Beleza não é nem o geral ou ideal
- isto, verdade - nem o meramente real - o real na ação; Partindo dessa noção do m undo espiritual e humano da li-
portanto é a plena compenetração ou fusão de ambos. Há Be- berdade e do m undo da necessidade que é a Natureza, Sch elling
leza ali onde o particular - real - está tão adaptado a seu
afirma:
conceito, que este, enquanto infinito, ingressa no finito e é con-
templado em concreto". (F. W. J. Schelling, Filosofia da Arte,
"Nossa explicação da Beleza como fusão do real e do ideal
tradução argentina de Elsa Tabernig, Editorial Nova, Buenos
representado na imitação, implica, portanto, esta outra: a Be-
Aires, 1949, § 16, p. 33.)
leza é a indiferença (união) da liberdade e da necessidade, con-
templada em algo real". (Filosofia da Arte,§ 16, n. 0 2, p. 34.)
Schelling faz ainda a seguinte distinção, importante em sua
teoria sobre a Beleza:
Diz ele ainda:

"A arte figurativa ... é presidida pela unidade, em que o infinito é


"Necessidade e liberdade comportam-se corno o inconsciente e
acolhido no finito... A retórica (oratória, artes literárias) é presi-
o consciente. Portanto, a Arte se fundamenta na identidade entre
dida por outra unidade em que o finito é incorporado ao infini-
to.. . A p rimeira unidade, chamá-la-ei real; à outra, ideal; e a atividade inconsciente e a consciente''. (Ob. cit., § 19, p. 35 .)
indiferença à unidade que compreende as duas". (Ob. cit., p. 20.)
Dentro da orientação idealista neoplatônica de Schelling,
encontramos ainda uma identificação entre Beleza, Verdade e
A Liberdade e a Necessidade lk m:

Outra concepção importantíssima para o entendimen to da "A Verdade que não é Beleza não é tampouco Verdade absolu-
estética de Schelling - que, com ela, trouxe uma contribuição ta, e vice-versa. A oposição tão comum entre verdade e beleza,
fundamental à Estética - foi a da fixação do homem, como li- na Arte, fundamenta-se em que se entende exclusivamente por
berdade e sujeito, colocado diante do mundo, como necessidade verdade a verdade falaz que só abarca o finito ... Pelo mesmo
e objeto. Diz ele: motivo, o Bem que não é Beleza não é bondade absoluta, e vice-
versa. Porque o Bem em seu caráter absoluto torna-se Beleza:
"Toda produção estética parte de uma separação essencialmen- por exemplo, em todo espírito cuja moralidade não se baseia
te infinita das duas atividades (a consciente, da liberdade, e a na luta da liberdade com a necessidade, mas que exprime a
inconsciente, da Natureza), atividades que estão separadas em harmonia e a conciliação absolutas''. (Ob. cit., § 20, p. 36.)
84 ARIANO SUASSUNA INICI A ÇÃ O À ESTÉ TICA 85

o Absoluto como Termo da Caminh ada Humana (;;ío de liberdade e n ecessidade, surgindo um ou outro conforme
o ho mem se ponha como sujeito ou como objeto, o q ue deu
Para b em entendermos tudo isto, é preciso ter em vista que,
o rigem, no pensamento de Bergson, à visão do Cômico como
para Schelling, é fundamental a intuição do mundo enquanto
~ t1 perpos i ção do mecâ nico (necessidade) ao vivo (liberdade).
caminha para um termo, para o qual o homem e a N a tureza são
Sch ell ing esbo ço u a inda a distin ção ent re Beleza tra ns-
inapelavelmente impelidos. Todas as coisas aspiram a ser mer-
ccndenral e Beleza estética, às qua is ele chamava respectivamente
gulhadas no Absoluto: entretanto, como não podia deixar de
de Beleza absolu ta e Beleza reflexa, aceitando, ao mesmo tem-
acontecer, essa aspiração é mais presente no ho mem d o que nos
po, a idéia dos modelos ideais platô nicos. Finalmente, comp reen-
outros ser es. O homem tem que ser entendido como um ser
deu o M al e o Feio, t anto na vida quanto na Arte, como privações,
espiritual e consciente, colocado diante da Natureza cega, bru-
di zendo a esse respeito:
tal indiferente e mecanizada. O homem não se conforma com tal
'
situação e procura, então, inserir o espiritual no sensível, para
"Co nside radas desde o po nto de vista da toralidade ou como
tornar este mais concorde com ele, e entrando assim também,
sflu em si, rodas as coisas fo rmadas em Beleza absoluta, os pro-
de certo modo, num contacto mais íntimo com o Absol uto. A Be-
tótipos de todas as coisas, são, ao mesmo tempo, absolutamen-
leza, a Verdade e o Bem são aspectos do Absol uto inserros na
te ve rdadeiros e absolutame nte belos. Em troca, o Mal e o Feio,
face do mundo. As Artes plásticas são as mais aptas a trazer o
assim como o erro e a falsidade, consistem em meras privações
infinito ao finito: por isso, sua unidade denomina-se real. As Artes
e só rêm a ver com a contemplação tempo ral das coisas". (Ob.
oratórias, ou literárias, apresentam o finito mergulhado no infi- cit., § 21, p. 36.)
nito, para a criação da Beleza: por isso, sua unidade chama-se
ideal. As unidades que representam uma sín tese, uma concilia-
ção, chamam-se indiferença. Vem daí a definição, antes refe rida,
d e Schell ing, quando ele afirma que a Beleza é a indi ferença da
liberdade e da necessidade contemplada em algo concreto.
Assim, a concepção da liberdade e da necessidade será im-
portantíssima, entre outras coisas, para um enten d im ento da
essência do Tr<'ígico e do C ô mico, e isto não somente no campo
da estética puramente schellinguiana. Sabendo-se, por exemp lo,
que Bergson d istinguia o que ele chamava real da realidade co-
tidiana das coisas, d ando, ao primeiro, o cará ter de um mundo
singular e livre em q ue t udo é novo - o fundo verdadeiro das
coisas - teremos uma idéia de como o pensamento de Sch elling
marcou os grandes pensadores modernos. Tanto o Trágico quan-
to o Cômico serão explicados por Schelling partin do dessa no-
CAPfTULO 8
TEORIA HEGELIANA DA BELEZA

A Beleza como Manifestação da Idéia

Hegel foi, sem dúvida, o maior dos pensadores idealistas


alemães do século XIX. Assim, não é para diminuir sua im-
portância que afirmamos que ele se limitou praticamente a
aprofundar e sistematizar com mais rigor o pensamento de
Schelling. De fato, como acentua Bernard Bosanquet, não existe
nada na filosofia hegeliana que não se encontre, nem que seja
por oposição ou sugestão, na filosofia de Schelling. É, por exem-
plo, seguindo os passos de Schelling, que Hegel afirma a res-
peito da Beleza:

"A Beleza... se define como a manifestação sensível da Idéia".


(Hegel, Esthétique, tradução francesa por J. G., Aubier, Edições
Montaigne, Paris, 1944, p. 144.)

De acordo com Hegel, "a unidade da Idéia e da aparência


individual é a essência da Beleza e de sua produção na Arte": se
estivermos atentos para o fato de que a Idéia, em Hegel, é o
mesmo que o Infinito ou o Absoluto, em Schelling, veremos que
tanto faz definir a Beleza como "o Infinito representado através
do finito" ou como "a Idéia representada através do sensível".
88 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 89

H egel aceita também, corno Sd1elling, o fundamento platô nico incapaz de apreender. Nós pensamos, pelo conrrário, que só
c!J exp li caçC10 da Beleza, dizendo : a Verdade é conceiruávcl, pois só ela se fundamenra no con-
ceito absoluto, ou, mais exatamente, na Idéia. Ora, sendo a
"J\ [klcza ... C: um cerro mo<lo <le exreriorização e rcprcscnraç:10 <la Beleza um certo modo de exteriorização e representação da
Verdade ... Aceitamos, pois, no seu pleno significado, as palavras Verdade, por todas as suas faces ela se oferece ao pensamento
tk Pla tc10: <le1·e-sc considerar, não os objetos particulares qualifi- co nceituai, quando este possua, verdadeiramente, o poder de
cados corno belos, mas a Beleza". ("Esrúica", "A Idéia e o !<leal'', formar conce=tos". (Estética, tradução portuguesa já citada,
e "O lklo J\rtísrico, ou O Ideal", tradução portuguesa de Orlan<lu p. 199-200.)
Vitorino, Gu imarães Editores, Lisboa, 1953, p. 29 e 200.)

A Idéia e o Ideal
Beleza e Verdade
Distingue-se, assim, a Idéia - que, considerada enquanto
Entret:11no, Hegel afasta-se de Platão e de Schelling, p3ra cm si mesma, é a Verdade - do Ideal, que é a Beleza, a Verdade
distinguir claramente a Bel eza da Verdade. Afirma ele : exteriorizada no sensível e no concreto. A Idéia é a própria rea-
lidade, a essência profunda da realidade:
" I.::.xiste uma diferença cnrrc: a Vcrd:idc e a Beleza. A Ver<la<le é
a Idéi:1 enquanto considcrad::i ern si mesma, em seu princípio
"A Idéia, como tal, é a própria Verdade, mas a Verdade em
geral e pensada como t:i.I. Porq ue niio é sob sua forma exte ri or
sua generalidade ai nd a não objetivada. A Idéia como Beleza
e sensível que ela existe para a razão, mas em se u caráte r de
artística, ao contrári o, tem como d estinação ser uma reali-
Id ~ia universal. Qu:lndo a Verdade apa rece imedi,uamente à
dade individual, assim como uma manifestação individual d a
cu nsci0ncia 113 rtalida<lc exterior, e ::i Id~ia pe rmanece i<lcn-
realidade tem por destinação faze r aparece r nela a Idéia. Isto
tificada e u nida com sua apar0ncia exteri or, enrão a I<l~ia não é
quer dizer que é indispensável que a Idéia e sua forma, como
somclllc vcr<la<lcira, mas bela. A Beleza se define portanto como
a mani festação sensível <la Idéia". (Esthétiq11e, textos csrnlhi- rea lidade concreta, estejam plenamente adaptadas um a à
<los, Presscs Universiraires de France, Paris, 1954, p. 206.) outra. Assim compreendida, a Idéia, e n quanto real idade
moldada a seu conceito, é o Ideal". (Esthétique, textos esco-

H c.:gel critica violentamente, também, a visão ka ntiana da lhidos, p. 215 .)

Beleza como algo de natureza não-conceirual. Racionalista extre-


mado dentro de seu idealismo, n5o aceita que a Beleza seja um A Idéia, ou Espírito Absoluto, "comunica à Natureza toda
" uni versal sem conceito'', como q ueria Kan t, e diz, rexrualmentc: a plenitude de seu ser" (Esthétique, trad. francesa, vol. I, p. 125.)
Enquanto considerada em si mesma, é a Verdade. Considera-
"Num erosos são aqueles q ue pe nsam que a Beleza c m geral, da enquanto r epresentada e exteriorizada no concreto, isto é,
pn:cisamente por ser b<.:b, tüo se d eixa encerrar em concc.:itos sob seu aspecto estético, é a Beleza, ou Ideal, como prefere
e constitui, por esse motivo, um objeto que o pensamento é Hegel.
90 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 91

Liberdade e Necessidade tisfação. Essa região é a da Verdade em si, e não a da Verdade


relativa. A Verdade suprema, a Verdade enquanto tal, constitui
Hegel segue ainda os passos de Schelling a respeito da liber- a solução da oposição e da contradição supremas. Aí, a oposi-
dade e da necessidade, mas, como acontece quase sempre, é bem ção da liberdade e da necessidade, do espírito e da Natureza,
mais preciso a esse respeito do que seu antecessor. Diz Hegel: do saber e do objeto, da lei e dos impulsos, em suma, a oposi-
ção e a contradição em geral, qualquer que seja a forma de que
"Pode-se chamar, em resumo, liberdade aquilo que a subjetivida- todas se revistam, perdem seu valor e seu poder de oposição e
de contém e pode captar em si mesma de mais elevado. A liber- contradição. Esta verdade revela, por um lado, que a liberda-
dade é a modalidade suprema do Espírito. Ora, enquanto a
de, tomada por ela mesma, subjetivamente e isolada da necessi-
liberdade permanece puramente subjetiva e não se exterioriza, o
dade, não é algo absolutamente verdadeiro; e por outro lado,
sujeito se choca com o que não é livre, com o que é puramente
que não se pode atribuir à necessidade isolada nela mesma um
objetivo, isto é, com a necessidade natural. Isto cria a exigência
caráter de verdade". (Esthétique, textos escolhidos, p. 205.)
de conciliar os termos desta oposição. Mas encontra-se, além
disso, no seio da interioridade e da subjetividade, uma oposição
análoga. De um lado, a liberdade é o domínio de tudo o que é
As Três Etapas para o Absoluto
universal e autônomo - , as leis universais, o Direito, o Bem, a
Verdade etc. Mas, por outro lado, é preciso admitir as inclina-
ções do homem e seus sentimentos, as suas paixões, a tudo o que De acordo com a visão hegeliana do mundo, a Arte, a Reli-
o coração do homem contém de individual. Esta oposição, ela gião e a Filosofia são as etapas fundamentais neste caminho do
também, leva ao combate, à contradição, e esta luta dá nascimento homem à procura do Absoluto. À Arte, cabe a espiritualização
ao desespero, ao mais profundo sofrimento, ao tormento e à in- do sensível (cf. Esthétique, textos escolhidos, p. 16). À Religião,
satisfação. Os animais vivem em paz com eles mesmos e com as compete a captação interior daquilo que a Arte faz contemplar
coisas que os cercam; mas a natureza espiritual do homem susci- como objeto exterior. É como se a primeira representasse a tese,
ta a ambigüidade e a dissensão, nas contradições em que ele se
da qual a segunda seria a antítese, cabendo à Filosofia o papel
debate". (Esthétique, textos escolhidos, p. 202.)
de síntese entre as duas: "A Arte e a Religião estão unidas na
Como se vê, o estado natural do homem é a contradição e o Filosofia". (Esthétique, textos escolhidos, p. 207-208.)
dilaceramento, não só perante a natureza, mas, dentro de si mes- Para Hegel, tudo o que é real é cognoscível. O mundo é di-
mo, entre a parte mais alta e mais nobre de seu espírito e suas lacerado entre dois extremos: de um lado, as coisas, do outro, a
paixões. A suprema aspiração humana é superar tal contradição, Idéia absoluta. Ao homem, cabe o trágico destino de ponte en-
o que só é possível pela comunhão com o Absoluto, com a Idéia: tre as coisas e o espiritual: ele é uma espécie de campo de bata-
lha entre a Natureza e Deus. É ele um ser dividido, dilacerado,
"O que o homem procura, endurecido por todos os lados no por ser um representante do espírito e da liberdade, colocado
finito, é a região d e uma verdade mais alta e mais substancial, diante da necessidade da natureza, cega, brutal, indiferente e até
na qual todas as oposições e todas as contradições do finito hostil a ele. No seu anseio de captação do mundo, o homem sente
encontram sua solução última, e a liberdade acha sua plena sa- a oposição entre sua natureza espiritual e a realidade bruta que
92 ARIANO SUASSUNA INICI AÇÃO À ESTÉTICA 93

o cerca. Tendo, porém, por um impulso irresistível, que receber sentindo-se elevado acima da própria contradição, em lugar de
esse mundo cego dentro de si, procura espiritualizá-lo, para di- ver nisso uma situação cruel e desgraçada". (Esthétiq11e, textos
minuir a diferença e a oposição. É aí que ele se vale da Arte, da escolhidos, p. 146-147.)
Religião e da Filosofia, como veículos de espiritualização do
mundo. A Arte é o escalão inicial, através do qual, nesse proces- Ressalte-se que, para Hegel - como para Ortega y Gasset e
so de espiritualização do mundo, o homem procura humanizar outros pensadores conremporâneos - a Tragédia, ao contrário
as coisas, inserindo a Idéia no sensível. Ao espírito religioso, cabe de certas idéias feiras que tomaram conta do pensamento estéti-
criar as condições necessárias de interioridade, para que o ho- co, não é dominada pela fatalidade exterior, e sim pela vontade.
mem possa acolher dentro de si a Idéia, captada no sensível, onde Não se pense que ta l coisa foi uma variação do Trágico - o que
a Arte a introduziu. Daí resulta, dentro do espírito humano, uma importaria em negar sua natureza de essência da Tragédia -
oposição final entre o que existe de mais nobre e puro no ho- porque, apesar de certos lugares-comuns que são afirmados su-
mem, e o sensível, mesmo espiritualizado, que lhe foi oferecido perficialmente sobr e a visão grega do mundo, Aristóteles suge-
pela Arte. Cabe à Filosofia destruir a oposição, o que ela faz sendo ria alguma coisa neste sentido. Pode ser que os gregos, de um
uma espécie de síntese conciliatória entre a Arte e a Religião. ponto de vista religioso, digamos assim, acreditassem na fatali-
É assim que o homem tenta superar a contradição funda- dade. Mas seus poetas e p ensadores procediam de outro modo:
mental de seu destino. O homem é duplamente dividido. Ser tanto nas tragédias como nas epopéias gregas, os personagens
livre, criado para o espírito e a liberdade, vê-se arremessado aparecem tomando decisões e, segundo veremos quando exa-
diante da necessidade da Natureza. E, mesmo dentro de si, está minarmos o problema do Trágico, Aristóteles afirmava que, na
sempre dividido entre a parte mais espiritual de sua alma e as Tragédia, o an iqui la mento, a má-fortuna, o infortúnio do per-
paixões. O conflito inerente à condição humana, só no Absolu- sonagem, decorre sempre da escolha que ele faz entre dois fins.
to se resolve; mas a Beleza é uma das armas mais poderosas de E ocor re, mesmo, encontrarmos passagens claríssimas em que
que o homem dispõe para superar a angústia e o seu destino Sófocles ou Homero demonstram distinguir perfeitamente en-
trágico . tre fatalidade e vontade, entre destino e liberdade, afirmando a
Entre outras coisas, podemos então, com isso, entender quais preeminência das duas segundas sobre os dois primeiros. Como,
eram, para Hegel, as essências do Trágico e do Cômico, através por exemplo, no verso da Odisséia em que Homero põe na boca
de um texto no qual, como Schelling, ele parece anunciar todo de um deus, Posêidom, a seguinte imprecação :
o pensamento de Bergson a esse respeito:
"Ah, de que maneira os morrais censuram os deuses! A dar-lhes
"Na Tragédia, os personagens consumam sua ruína como con- ouvidos, de nós provêm todos os males, quando, afinal, por s11a
seqüência do caráter exclusivo de sua firme vontade, de seu insensatez e co11tra a vontade do destino, são eles os autores de
caráter enérgico, ou então devem se resignar a admitir aquilo a suas desgraças"!
que eles se opõem essencialmente... O que caracteriza o Cômi-
co... é a satisfação infinita, a segurança que se experimenta,
CAPÍTULO 9
A BcLEZA - SíNTESE REALISTA E OBJETIVISTA

Teoria Agostiniana da Beleza

''A Beleza de qualquer objeto material está na harmonia das


partes, unida a certa suavidade de cor": este pensamento de Santo
Agostinh o aproxima, de certo modo, sua t eoria da Beleza, da
teoria aristotélica, apesar de que todo o seu pensamento é de
substrato antes platônico do que aristotélico. Mas, diferindo
de Aristóteles, Santo Agostinho não faz referência à grandeza e
à proporção; sustentava que, para a existência da Beleza, o ta-
manho do objeto estético era indiferente, o que demonstra que
ele estava bastante atento à distinção entre a Beleza em geral e o
Belo apenas clássico, este sim, proporcionado e submetido a
certas obrigações de medida.
Aliás, no que se refere à Beleza, a teoria de Santo Agostinho
esboça e aprofunda aquela síntese que a de Aristóteles e Plotino
anunciavam. Ele emprega às vezes, em vez da expressão suavi-
dade, a de claridade, o que viria a se refletir nas grandes intui-
ções de Santo Tomás. De acordo com Jacques Maritain (Arte e
Escolástica, cap. V, p. 39), afirma ainda o grande africano que
"a Beleza é o esplendor da harmonia, e a unidade é a forma de
toda Beleza". Tais palavras confirmam o que acabamos de dizer.
Quando ele fala em harmonia e unidade, lembramo-nos de
96 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 97

Aristóteles, quando dizia que a Beleza resultava da harmonia das Santo Agostinho, porém, aprofunda a fórmula da unidade
partes do objeto estético entre si e em relação ao todo, sendo na variedade, levando-a às conseqüências últimas; isto é, diz ele
que a fórmula que resumia a Beleza era a da unidade na varieda- que a variedade não deve abranger somente as partes belas de
de. Mas quando ele fala em brilho ou esplendor da harmonia, aí um todo; admite a oposição dos contrários, dos contrastes mais
já lembra Plotino, quando este afirmava que a Beleza é uma luz violentos, entre rartes belas e feias, partes pertencentes ao bem
que dança sobre a harmonia. Note-se, entretanto, que Santo e partes pertencentes ao campo do mal. Assim, a beleza de uma
Agostinho, ao falar nessa luz, ou esplendor, parece mais próxi- obra de arte que tem partes feias ou obscenas integrando seu
mo de Plotino do que de seu mestre Platão: a luz, aí, é resultado todo decorre da unidade a que, nela, o Mal e o Feio são remeti-
das próprias disposições presentes no objeto estético, isto é, dos, juntamente com seus contrários.
resultado do domínio da luz da forma sobre o obscuro da Para chegar a essa idéia estética da legitimidade do Mal e
matéria. do Feio na obra de arte, Santo Agostinho partiu de suas refle-
xões sobre o Mal e o Feio no próprio mundo e na vida, no
universo. Ele faz referência expressa à "Beleza do universo, a
O Mal e o Feio nas Obras da Arte
qual, por disposição de Deus, se faz mais patente ainda pela
oposição dos contrários". Assim, o Feio entra pela primeira vez
Outra contribuição valiosa que Santo Agostinho trouxe para como legítimo no campo estético, admitido como fator de
a Estética foram suas reflexões sobre a presença do Mal e do valorização do Belo, e ambos aptos a fornecer assunto para a
Feio no campo estético: parece que, de modo explícito, siste- criação da Beleza.
mático e consciente, foi essa a primeira vez em que isso aconte-
ceu nos estudos antigos de Estética. Para chegar a isso, Santo
Agostinho partiu da fórmula aristotélica de que Beleza é unida- Teoria Tomista da Beleza
de na variedade. Para os gregos, a variedade de partes de que se
fala aí é sempre uma variedade de partes belas. Se atentarmos O pensamento estético de Tomás de Aquino é realista e
bem para a Arte grega - principalmente as literárias - vere- objetivista: é uma busca da essência da Beleza no objeto, seja
mos que os poetas e dramaturgos nunca se perturbaram muito este pertencente ao universo da Arte ou da Natureza. Santo
com isso, usando, sem maiores preocupações, o mal e o feio, ao Tomás não aceita os padrões ideais platônicos, nem considera a
lado do bem e do belo, como assunto de suas obras. Mas os medida, a proporção aristotélica, como característica da Beleza
pensadores parece que, ao refletir sobre a Beleza, punham sua (é uma característica somente daquele tipo especial de Bele-
atenção mais aguda sobre as Artes plásticas. E como a Escultura za que é o Belo). Para ele, não existe um só cânon legítimo para
grega do período clássico era uma arte quase que só do belo puro, a Beleza - o grego, por exemplo, coisa que foi mais bem ex-
os pensadores gregos tinham aquela tendência, já antes aponta- plicitada pelos tomistas do que mesmo por ele. Mas sua visão
da, a identificar o Belo com a Beleza, considerando-o a única da Beleza e do campo estético é ao mesmo tempo clara e ampla.
forma legítima de Beleza. Por isso, e apesar de seu fundamento realista e objetivista, ele
98 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 99

não d c ixo 11 de lado os aspectos subjetivos, a participação do A definiçfo tomista é um ap rofundamento da aristotélica:
suj eito 11a recriação da Beleza, digamos assim. Por outro lado, vê-se que a ordem desta corresponde à /Jar111011ia daquela, assi m
como Ka n t, ele ressaira o p;:ipe l da intuição criadora e da irnagi- como a grandeza limitada à qual Aristóteles se referia co r-
naçiío para a c riaç:10 e a frui ção da Beleza. responde mais ou m e nos à integridade de q ue fala Santo Tomás.
Sob essa aspecto subjetivo, a Beleza, parn Santo Tomás é 1\ bs, já aí, Santo To más e ncara a qucst:'io da Beleza sob um as-
clcfi11id:1 co 1110 id quod vis11m placet, ou seja, Beleza é aquilo q ue pecto novo: não se exige limitação e m e d ida na gra ndeza do
agrada :'i visiío. Jacques Maritain, o maior dos intérpretes do objeto estético, po is, a fin al, existem formas d e Beleza q11e não
pe11sa111c11to tom ista, analisa d e modo nwgistra l essa expressão ~ :io realizadas em g randes proporções - como o Gracioso, por
de San to To nds, dizendo que ela deve ser traduzida assim: "Be- exemplo . O objeto estético tem de ser é íntegro, isto é, inteiro,
lcw é tudo aquilo q ue, pelo simples faro de ser captado numa :1cabado e perfeito, pois, como d iz M aritai 11, a alma h umana por
intui ~·:Jo, dckira". Diz Jacques lvlaritain : 11 :1tureza a ma o ser e não se pode fa lar e111 perfeição d o ser sem
imcgridaclc.
"htas quat ro pa bvras d izem tudo quanto é necessário : uma J'VL:is a parte mais im portante do pensamento de Santo To-
vis110, isto é, um conhecime nto intuitivo, e uma deleitação. Se 111:is sobre a Beleza fo i tomada das int uições platôn icas, às quais,
11111.1 cuis;i ex a lta e deleita a J lma pelo sim ples fato de se entre- porém , ele dá uma interpretação realista: é aqueb que se refe re
g;ir :'1 su:1 intu iç'10, é boa de ser ap ree ndida, é bela". (Arte y
.'1 claridade como nota essencial à Beleza. À sem elhança de Plotino
Lm 1/11slica, ci t. , cap. V, p. 37.)
Pll ele Platão, a est ética tomista vê c m certo esple ndor, ou bri-
lho, ou cla ridade, o cadter essencial ela B eleza. Mas Santo To-
Visão Objetivista da Beleza na Teoria Tomista 111:ís não atribui essa claridade a nenhuma comunicação com uma
lk lcza superior ou com um Logos saído do Di vino. Como na
011rra intuição de Plotino, para San to To 1n ~1s a cbridacle in eren-
Not:i-sc que esta p r imeira definição tomista da Beleza cor-
responde :\qucb, dad;:i por Ari stóteles, também do ponto de vista te i'l Beleza decor re do
do sujeito : "Beleza é aq uele bem que é aprazível some11te por
ser um be1n" . Entretanto, Tomás d e Aq uino d eixou a ind a um " bri lho da forma sob re as partes harmoniosas da matéria". (Tex-
texto m11ito valioso para o pressentimento da essência da Bele- to atribu ído, ora a Samo To más, ora a Alberto Mag no, cf. Arte
z:1, qu :111do :i fir ma : y Escolas/ica, p. 39.)

"Pa ra ::i lk lcza, t rês rnisas se req ue rem . Prime iro, integridade Marita in com e nta esse texto, afirman do :
ou pe rfe ição, porque o que não tem integridade é fe io. De pois,
a d evida proporção, o u harmo11ia. E por fi m a claridade, pelo " Dize r, com o s esco l:\sticos, q ue a Beleza é o esplendor da fo r-
que acham-se belas as coisas que têm cor nítida". ("S uma Teo- ma sobre as partes harmon iosamente dispostas d a matéria, equi-
ló gica", 1, q . 39, :1. 8, cit. por J acques Maritain, i;:m Arte y "ªlc a dizer que cb é um 3 fulgura~:io da imcligê ncia sobre uma
Escolastica, p. 165.) rnat~ria inteligentemente dis posta". (Ob. e p. cits.)
100 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTI CA 101

Diz ele ainda que a Beleza exige necessariamente aquelas três drões ideais platônicos, admitindo como esteticamente válidos
características de integridade, harmonia e claridade, e explica ranto o cânone grego de Arte como o egípcio ou o hindu; e tam-
assim o motivo disso: bém porque, ao se referir à claridade, ele explica a beleza de
certos poemas, romances, peças de teatro, ou quadros obscu-
"Integridade, porque a inteligência ama o ser; harmonia, por- ros. Diz ele:
que a inteligência ama a ordem e a unidade; finalmente, e so-
bretudo, brilho, ou claridade, porque a inteligência ama a luz e "Não existe uma maneira só, mas mil e dez mil maneiras, pelas
a inteligibilidade". (Ob. cit., p. 38.) quais a noção de integridade, ou perfeição, ou acabamento, pode
se realizar. A ausência de braços ou de cabeça é uma falta de
integridade muito apreciável numa mulher, e muito pouco numa
Entendimento Não-acadêmico da Beleza escultura. O mesmo sucede com a proporção, conveniência ou
harmonia. Diversificam-se elas de acordo com os objetos e os
É preciso, portanto, que se tome cuidado para que um fal- fins. As figuras feitas segundo o cânone grego ou o cânone egíp-
so entendimento da visão estética tomista não vá cair numa es- cio são perfeitamente harmoniosas, cada uma em seu gênero.
pécie de empobrecimento da Beleza e de academicismo na Arte. Integridade ou harmonia não têm, portanto, nenhuma signifi-
Quando se fala em harmonia, por exemplo, é preciso ter em cação absoluta e devem entender-se unicamente com relação ao
fim da obra, que consiste em fazer brilhar uma forma sobre a
vista que a harmonia barroca não é superior nem inferior à
matéria. Finalmente, e sobretudo, este brilho da forma, que é o
harmonia clássica grega, é uma harmonia diferente. Quando se
essencial da Beleza, possui uma infinidade de maneiras diver-
fala em claridade, isso não significa que certas obras de arte,
sas de resplandecer sobre a matéria. O esplendor da forma deve
de sentido enigmático e obscuro, não tenham a claridade da se entender por um brilho ontológico que se encontra, de uma
Beleza. Também quando se fala em integridade, é preciso lem- maneira ou de outra, revelado a nosso espírito, e não por
brar que uma coisa é a integridade dos seres da Natureza, e uma claridade conceituai. É preciso evitar qualquer equívoco
outra a dos objetos ou pessoas que aparecem na obra de arte. quanto a isso: as palavras claridade, inteligibilidade, luz, que nós
Por exemplo: um torso de escultura pode constituir uma obra empregamos para caracterizar a função da forma no seio das
de arte íntegra, se era apenas do tronco humano representado coisas, não designam, necessariamente, algo claro e inteligível

que o artista necessitava para realizar a forma que buscava para nós, mas sim algo claro e luminoso em si, inteligível em si,
e que constitui, freqüentemente, aquilo que permanece obscu-
naquele caso particular.
ro a nossos olhos, seja por causa da matéria em que a forma
Assim, deve-se esclarecer que a integridade, a harmonia e a
está contida, seja pela própria transcendência da forma nas coi-
claridade a que São Tomás se refere devem ser entendidas na sas do espírito. É um contra-senso cartesiano reduzir a clarida-
obra de arte, no seu universo particular. As palavras que Jacques de em si à claridade para nós. Em Arte, tal entendimento produz
Maritain escreve a esse respeito esclarecem tais pontos de modo o academicismo e nos condena a uma Beleza tão pobre que não
magistral. Principalmente porque, ao se referir à harmonia, ou pode irradiar na alma senão a mais mesquinha das fruições".
consonância, ele afasta tal conceocão das idéias ligadas aos oa- (Ob. cit., p. 42, e nota à p. 43.)
102 AR IANO SUASSUNA

A Fruição da Beleza

Quanto à fruição da Beleza, o ensinamento d e Plotino con-


tinua vivo: nela, a inteligência reconhece a si p r ópria, reencon-
tra-se, a alma reconhece uma afinidade consigo mesma. Diz
Jacques Maritain: LIVRO Ili

"A inteligência goza da Beleza porque nela se reencontra e se reco- As CATEGORIAS DA BELEZA
nhece, pondo-se em contacto com a sua própria luz... Toda beleza
sensível supõe, sem dúvida, certa deleitação da vista, do ouvido
ou da imaginação. Mas não há beleza se a inteligência não goza
também em alguma medida. O normal, em razão da natureza da
inteligência, é que a percepção da Beleza vá acompanhada da pre-
sença ou do esboço de um conceito, por confuso que seja; e que
sugira idéias. Entretanto, não é este o seu constitutivo formal.
O próprio esplendor ou luz da forma que brilha no objeto belo
não se apresenta ao espírito por um conceito ou por uma idéia,
mas sim pelo objeto sensível, captado intuitivamente e ao qual passa,
como por uma causa instrumental, esta luz de uma forma. Na per-
cepção da Beleza, a inteligência, por meio da intuição sensível, põe-
se em presença de uma inteligibilidade que resplandece, mas que,
enquanto proporciona a deleitação da Beleza, não é separável de
sua ganga sensível e, por conseqüência, não procura um conheci-
mento intelectual, atualmente exprimível num conceito". (Ob. cit.,
p. 39 e 168, nota 56.)

Note-se que Maritain, principalmente no parágrafo final, pro-


cura mostrar como a fruição da Beleza é ao mesmo tempo intelec-
tual - como diziam os escolásticos - e dependente da imaginação,
da apreensão intuitiva d o sensível, como Kant e Bergson tinham
acentuado. Quer dizer: na relação do contemplador com o objeto
estético, a forma é a radiação secreta e íntima das coisas enquanto
se entrega à intuição, à imaginação, à contemplação.
CAPÍTU LO 10
As CATEGORIAS DA BELEZA -
VISÃO OBJETIVA

Aristóteles e as Categorias da Beleza

A Estética moderna procura fazer do Belo apenas um dos


1ipos possíveis de algo mais amplo, que os pós-kantianos cha-
maram de Estético e que, aqui, chamamos de Beleza. Já examina-
1110s tal problema antes, dando razão àqueles que assim agem;
pois não se pode compreender que se confundam sob uma só
denominação o Belo, que só desperta sentimentos agradáveis e
screnos na sua fruição, e outros tipos de Beleza, como, entre
outros, o Trágico, cuja fruição é misturada de sensações de "ter-
ror e piedade", segundo acentuava Aristóteles.
De certa maneira, já foram feitas várias alusões, aqui, a essa
necessária fragmentação do campo estético, indispensável para
~c ter uma visão mais completa da Beleza. Agora, porém, trata-
sc de definir um ponto de vista para iniciar esse estudo e, de-
pois, de examinar os tipos principais de Beleza, principalmente
nqueles realizados pela Atte, que, no trabalho criador, não rea-
liza somente o Belo, mas também o Cômico, o Sublime, o Gra-
çioso e o utras categorias da Beleza.
Da mesma maneira que tivemos de apresentar aquelas três
opções iniciais para o estudo da Estética, aqui temos de verifi-
106 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 107

car se o problema das categorias da Beleza deve ser colocado literárias e teatrais, isto é, o Trágico e o Cômico. No capítulo
em termos objetivos, partindo de uma concepção objetiva da cm que tratamos da teoria a ristotélica da Beleza, já mostramos
Beleza, ou em termos subjetivos, com fundamento na psicolo- como, para entender a visão que Aristóteles tinha do mundo,
gia do contemplador, nas suas reações perante o objeto estético. tanto era fundame ntal o conceito de harmonia e de ordem, como
Seja qual for, porém, a atitude que se tome diante desse pro- o de desordem e clesarmonia.
blema das categorias da Beleza, seja objetivista ou subjetivista a Entendido isso, podemos avançar que Aristóteles definiu ou
posição de quem se disponha a enfrentá-lo, parece não haver pressentiu oito tipos especiais e mais importantes, oito catego-
dúvida de que as linhas gerais de sua solução foram sugeridas rias da Beleza. Destas oito, quatro são ligadas à harmonia; são
por Aristóteles. Mesmo os seguidores mais radicais da linha sec- elas: o Gracioso, o Belo, o Sublime e o Trágico. As outras qua-
tariamente psicológica revelam as marcas profundas que, a tal tro, são ligadas à desarmonia, são tipos d e Beleza criados a par-
respeito, deixou neles o pensamento aristotélico. A esse r espei-
tir daquilo que na Natureza é feio e pertence ao campo da
to, afirma Edgard De Bruyne:
desordem; são elas : o Risível, a Beleza do Feio, a Beleza do
Horrível e o Cômico.
"Examinemos pri meiro duas classificações (dos tipos principais Poderíamos, então, organizar um quadro que abrangesse a
de Beleza) ... A primei ra, parte do Belo (ou da Beleza), e é
visão aristotélica do campo estético - ou da Beleza em geral
objetivista. A segunda, subjetivista, reduz tudo ao Estético. To-
enquanto realizada em suas manifestações principais - da se-
das duas, no fundo, se inspiram na antiga teoria aristotélica:
guinte maneira:
uma, seguindo-a fielmente, a outra transpondo-a para a ordem
psicológica". (Ob. cit., p. 289.)
GRANDEZA - ± + AÇÃO
Vejamos então o pensamento de Aristóteles sobre as catego-
1-IARMON!A Gracioso Belo Sublime Trágico
rias da Beleza, num caminho mais ou menos equivalente, em
DESARMONIA Risível Beleza do Beleza do Cômico
relação ao campo estético, ao que ele seguiu para a fixação das
Feio Horrível
categorias lógicas com suas correspondentes na realidade. Já
lembramos que Aristóteles não deixou um tratado expressamente
dedicado a esses assuntos, com exceção daquele que se extra- Com exceção da Beleza criada a partir do Feio e do Horrí-
viou e que era dedicado à Beleza. Apenas incidentemente, na vel, pode-se dizer que todos os tipos ou categorias da Beleza a í
Poética, podemos encontrar um ou outro indício para rastrear contidos podem se encontrar tanto na Arte quanto na Nature-
uma teoria geral sua sobre categorias da Beleza. Para fixá-las, za; assim como existem tipos de Beleza mais comuns nas Artes
Aristóteles parte de sua d efinição da Beleza, combinando, pri- chamadas plásticas e outros mais próprios das Artes literárias : o
meiro, os elementos de harmonia e desarmonia, com a grande- Belo seria uma categoria da Beleza mais comum na Escultura,
za e a proporção, e introduzindo, ainda, o elemento da ação para na Pintura e na Arquitetura, por exemplo, enquanto que o Trá-
chegar às categorias da Beleza mais realizadas através das artes gico é mais característico da Epopéia, do Romance ou do Teatro;
108 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 109

em qualquer caso, porém, todos eles são maneiras diferentes, pe- Chamo, mais uma vez, atenção para o fato de que, co-
culiares, singulares de realizar a Beleza, são categorias da Beleza. mumente, em Português, temos que evitar as ambigüidades de
terminologia, causadas pela existência de um só adjetivo, belo,
a ser usado em relação a dois termos aqui usados diferentemen-
O Gracioso
te, Belo e Beleza: um quadro de Goya é belo, mas não pertence
ao Belo, e sim à Beleza, e esse é o motivo de, por motivos de
Pelo quadro que acabamos de mostrar, pode-se ver, logo, que
clareza, ter eu uniformizado isso nas citações.
o Gracioso é aquela forma de Beleza na qual se realiza a Beleza
através de pequenas proporções. Já lembramos, antes, que, para
Aristóteles, os seres de proporções pequenas e harmoniosas, não O Risível
podem pertencer ao Belo, que exige uma certa imponência ou
majestade. Uma mulher de formas bem proporcionadas, mas de Um livro como o Dom Quixote tem uma Beleza bem dife-
estatura pequena, pertenceria, segundo Aristóteles, a essa for- rente do Belo realizado numa escultura como a Vênus de Mi lo ,
ma especial de Beleza que é o Gracioso, e não ao Belo. 111as tem, indiscutivelmente, Beleza; uma Beleza que não é pura,
Estendendo o mesmo conceito às Artes, teríamos resultado serena, tranqüila e proporcionada, como a do Belo, mas que é
semelhante; e de fato, comparando-se um quadro realizado em criada a partir daquilo que, no comportamento humano, faz
miniatura, um camafeu do século XVIII, por exemplo, com um parte do vasto campo do Risível. É, então, uma Beleza criada a
mural de afresco como o Juízo Final de Miguelângelo, notamos partir daquilo que, no mundo e no homem, existe de desar-
que, tanto num como no outro, a Beleza está realizada: mas o monioso.
tipo de Beleza realizada num e noutro é bem diferente. O camafeu Por outro lado, a desarmonia, a feiúra, a torpeza, o grotes-
pertenceria, antes, ao campo do Gracioso, e o Juízo Final ao co, que fazem parte do Risível, não podem entrar, nele, em pro-
campo daquele outro tipo da Beleza que Aristóteles chamava o porção grande, nem desmesurada, senão sairíamos do campo
Elevado e que os estetas posteriores e mais modernos denomi- do riso para entrar noutros, o da Beleza criada a partir do Feio
naram Grandioso ou Sublime, segundo o caso. c o da Beleza criada a partir do Horrível. Aristóteles afirma,
O texto no qual existe referência de Aristóteles à diferença na Poética:
entre o Gracioso e o Belo é da Ética a Nicômaco e é o seguinte:
"O ridículo (risível) é apenas certo defeito (desordem, desar-
"A magnanimidade é inseparável da grandeza; outro tanto su- monia), certa torpeza (ou feiúra) anódina e inocente; que bem
cede com o Belo, só concebível num corpo elevado; as pessoas o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e
de estatura diminuta podem ser graciosas e bem proporciona- disforme, não tem expressão de dor". (Capítulo V, p. 74.)
das, nunca porém pertencem ao Belo, no rigor da expressão".
(ln Poética, trad. de Antônio Pinto de Carvalho, Edições de Não concordamos com alguns estetas, comentadores e tra-
Ouro, Rio, s/d, nota à p. 302.) dutores de Aristóteles que identificam os conceitos de "risível"
11 0 ARIANO SUASSUNA
INICIA ÇÃO À ESTÉTICA 111

e "ridículo". Creio que na terminologia estética da Líng ua por- :1 (mica forma legítima, ou, pelo menos, a mais legítima de Belc-
tuguesa, "risível" é o nome geral, que abrange todos os tipos de 1.:1. Por isso, para entender bem a natureza dessa forma especial
Artes ligadas ao riso e, portanto, criado ras daq uelas fo rmas es- de Beleza q ue é o Belo, voltemos ao texto do capítulo VI da
peciais de Beleza que são o Cômico, o Humorístico, o Rid ículo l'oética , utilizando, desta vez, a tradução de Antônio Pinto de
etc. Por o utro lado, às vezes, o melhor é repetir a mesma citação Carv~1lho :
em d uas traduções diferentes, pa ra que a idé ia original apareça
melhor. A citação que acab amos de fazer, por exemplo, aparece "O Belo, num ser vivente ou num objeto composta de partes,
assim, n a tradução de An tônio Pinto de Carvalho: deve não só apresentar ordem cm suas partes como tamb0m
comportar certas dimensões. Com cfeiro, o Belo tem por con-
"O rid ículo (ris ível) reside num defeito e numa rara (desarmo- dições uma certa grandeza e a ordc.:m . Pelo qu:il motivo, um
n ia) que não apresentam caráter do loroso ou corrupto r. Tal é, ser vivente não pode ser (<lo) belo, se for excessivamente pe-
por exemplo, o caso da máscara cômica, feia e disforme, que queno .. . ne m desmedidamente grande ... " (Ob. cit., c:ipítu lo
não é causa de sofrimento." VII, p. 302.)

De t u do o que a í fica di to, parece-me j usto afir m a r q u e


Aristóteles enten d ia o Risível com o u ma desarmonia de peque-
A Beleza do Feio e a do Horrível
n as proporções e que não ti vesse conseq üências do lorosas; ou,
como diz Edgard De Bruyn e, "urna desar monia que niío é dolo -
Essas formas ásperas e especia is d e Beleza, criadas a par-
rosa". (Ob. cit., p. 290.)
i ir do que, na realidade, é fe io e horrível, são apenas sugcricl:is
d e passagem, por Aristóteles. E le se refere expressamente na
l'uética, às obras de arte que parrcm daquilo que na Natureza
O Belo
l' fe io - Beleza do Fe io - e até repugnante, c m grandes pro-
porções - Beleza do HorrÍ\'e l. É, por exemplo, e p ara ficar
Nas proporções d iminutas d a grandeza, temos d o is ti pos d e
til> exemp lo citado por e le, o caso de quadros q ue rcprcscn-
Beleza, u m ligado à h armo nia - o G racioso - e o utro ligado à
1c 111 C<ld.ívcrcs cm decomposição. Afirma Aristóteles, no ca-
desordem - o Risível. Agora passaremos a examinar os dois tipos
11ítulo IV da Poética :
em que a grandeza é e le mento fundamental, o Belo e a Beleza
criada a partir do Feio . Nestas d u as categorias, a gra ndeza, a
",\ tcndên.:ia par:i a imitaç;io é instintiva no homem, JesJc a
imponência, a majest ade, fazem parte da Beleza, mas na justa
infiincia. Nc.:slc: ponto Jistingue-se Jc tudos os outros seres, por
medida, n uma propor ção que n ão é desmesu rada, senão caímos
sua apri<l:io mui to desenvolvida para a i111itaç:10. Pela imitação
no terceiro campo, o do Sub lime e o da Beleza do Horrível.
adquire seus primeiros conhecimentos, por eb todos ex perimen-
Como já salie ntamos ao estudar a teoria a ris totélica da Be-
tam prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pc.:los faros:
leza, os gregos t inham uma tendência a considerar o Belo como objetos reais que não conseguimos o lhar sem custo, contem-
112 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 113

piamo-los com satisfação em suas imagens mais exatas; é o caso Para ser exato, Aristóteles emprega, mais, as expressões de
dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres". (Poéti- "Elevado" ou "Nobre", sempre que alude a essa categoria da
ca, trad. de Antônio Pinto de Carvalho, cit., p. 294.) Beleza que hoje ch amamos de Sublime e que sempre aparece,
aqui e ali, nas obras de arte ligadas ao Épico, ao Grandioso e até
Note-se que Aristóteles já acentuava que a Beleza do Feio e
ao próprio Trágico. Mas ele distinguia o Trágico propriamente
a do Horrível eram características da Arte, e não da realidade;
dito do Elevado, ou Sublime; tanto assim que afirmava que este,
tanto assim que ele afirma textualmente que nós podemos sen-
por ser de natureza mais intelectual (e não de ação, digamos
tir prazer em olhar as imagens de ob;etos reais que na vida olha-
mos com repugnância: mais uma vez fica provado que Aristóteles assim), era assunto mais da Retórica do que dos estudos sobre a
pelo menos pressentia que a Beleza devia incluir, não só o Belo, Tragédia. Existe um texto da Poética que traz esclarecimentos
mas também aqueles outros tipos nos quais o artista ou o escri- preciosos a esse respeito, pois, nele, Aristóteles distingue o ter-
tor partem daquilo que na Natureza é feio e repugnante, trans- ror e a piedade suscitados pelo simples pensamento (Sublime) e
figurando-o nas criações da Arte. aqueles suscitados pela ação (Trágico). Diz ele, de acordo com a
versão de Eudoro de Sousa:

O Sublime e o Trágico
"Neste caso (o do Trágico) os sobreditos efeitos (de terror e
piedade) vêm resultar somente da ação e sem instrutiva ad-
De acordo com Aristóteles, o Sublime tem em comum com vertência, enquanto no primeiro caso (o do pensamento) re-
a Beleza do Horrível o fato de que ambos pertencem ao domí- sultam somente da palavra de quem fala". (Ob. cit., cap. XIX,
nio do grandioso, das proporções desmesuradas, distinguindo- p. 102.)
se, porém, os dois, porque o Sublime é uma forma de Beleza
ligada à harmonia e a Beleza do Horrível é ligada à desordem,
ao que é feio e repugnante em grandes proporções.
O Cômico
Numa outra ordem de idéias, o Sublime é aparentado com
o Trágico, porque ambos despertam "o terror e a piedade".
Como acontece com o Trágico, as formas de Beleza que são
A distinção entre os dois viria do fato de que, no Trágico, o ter-
ligadas ao Risível podem ser realizadas através de uma ação, caso
ror e a piedade são despertados por uma ação, enquanto, no
Sublime, o terror e a piedade são despertados "pelo simples cm que obteremos o Cômico. Assim, podemos dizer que, se
pensamento". Isto significa que o Sublime é uma forma de Bele- encarnarmos o Belo e o Sublime numa ação humana, teremos o
za mais característica das Artes mais puramente literárias, como Ti·ágico, despertando sensações de prazer misturado ao terror e
a Poesia lírica e a filosófica. Quanto ao Trágico, é mais adequa- 1) piedade; e se encarnarmos o Risível e o Feio numa ação tam-

do ao Teatro, ou, quando muito, aos gêneros literários menos bém humana, teremos o Cômico. Segundo Aristóteles, o Trági-
"puros", mais complexos e de ação, como a Epopéia, o Roman- co imita pessoas melhores do que o comum, e o Cômico imita
ce e a Novela, nisto aparentados com o Teatro. pessoas piores do que o comum:
114 ARIANO SUASSUNA

"Como a imitação se aplica aos atos (ações) dos personagens e


estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres
dispõem-se quase que só nestas duas categorias, diferindo ape-
nas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que os per-
sonagens são representados ou melhores ou piores ou iguais a
todos nós... A mesma diferença distingue a tragédia da comé-
CAPÍTULO 11
dia: uma propõe-se imitar os homens representando-os piores,
As CATEGORIAS DA BELEZA -
a outra melhores do que são na realidade... A comédia é, como
VISÃO PSICOLÓGICA
já dissemos, imitação de maus costumes, não contudo de toda
sorte de vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o
ridículo (o risível)". (Poética, trad. cit. de Antônio Pinto de
Carvalho, caps. II e V, p. 291 e 297.)

As Três Faculdades e a Harm onia


De modo que, a se deduzir por esses textos, podemos entre-
ver que tal era, em seu conjunto, o campo da Beleza, de acordo,
O esteta francês contemporâneo, Charles Lalo, segue, em
com a visão de Aristóteles. Até que ponto queria ele fazer uma
suas idéias estéticas, uma orientação fundamentalmente socio-
sistematização de tudo isso, é impossível dizer, porque a Poética
lógica. Entretanto, a respeito da parte especial que dedica às
é um livro constituído apenas por esboços que serviam ao gran-
de pensador grego de roteiro para as aulas, ministradas oralmen- categorias da Beleza - ou categorias estéticas, como ele prefere
te. Não importa. Suas notas de aula, elas apenas, são suficientes chamar - seu ponto de vista é, como não podia deixar de ser,
psicológico.
para colocar o problema da unificação de um ponto de vista geral
para encarar as categorias da Beleza e são daquelas contribui- Lalo parte da visão aristotélica das categorias da Beleza, es-
ções que nos levam a subscrever as palavras que já se disseram a boçando uma tentativa de recriá-la sob um ponto de vista siste-
respeito dele: "Se jamais houve uma inteligência maior, nunca mático e transformando, por influência da crítica kantiana, as
outra teve tão nobre oportunidade". categorias da Beleza cm categorias do Estético. Entretanto, tal-
vez por se fundamentar em Aristóteles - e também fiel ao fato
de que todos os estetas, queiram ou não queiram, terminam por
c~tabel ecer julgamentos e normas de valor - o fato é que Lalo,
na sua classificação das categorias da Beleza, termina por nos
fornecer algumas indicações preciosas para a definição objetiva
de cada uma delas.
Para o estudo desse assunto, o ponto de partida de Charles
L:ilo é o mesmo de Aristóteles: a harmonia, ou ordem. Relacio-
1ia ele a harmonia com as três principais faculdades que atribui
116 ARIANO SUASSUNA INI CIAÇÃO À ESTÉTICA 117

ao espírito humano, a inteligência, a atividade e a sensibilidade, za - o Belo, o Grandioso e o Gracioso. Note-se que as catego-
isto é, a inteligência, a vontade e o sentimento, como prefere rias mais ligadas à inteligência são objeto das Artes mais p ura-
Edgard De Bruyne. A harmonia é entendida por ele de três mente intelectuais. As ligadas à atividade são mais características
maneiras, isto é, como possuída, procurada ou perdida , o que das Artes d e ação, como o Romance ou o Teatro. E esclarecido
vai fo rnecer três campos para o estabelecimento de nove cate- isso, examinemos cada uma das categorias pertencentes ao campo
gorias da Beleza, três em cada uma. Diz Charles Lalo, em seu da har monia possuída, começando pelo Belo.
livro Noções de Estética:
Segundo Lalo, Belo é a form a especial de Beleza entendida
como uma harmonia sensível à inteligência, julgada pelo gosto,
"Pode-se aplicar esta lei em três graus diferentes, nas nossas três
e na q ual se obtém, sem esforço, o máximo de rendimento esté-
principais faculdades, na inteligência, na atividade e na sensibi-
lidade, o que determina nove categorias esté ticas, ou nove tico com um mínimo de m eios. A serenidade e a sobriedade do
modalidades principais da grande lei de organização das forças Belo clássico estão, aí, perfeitamente claras, numa formulação
mentais". (Notions d'Esthétique, Presses Univers itai res de ao mesmo tempo simples e densa. O exemplo típico de Belo dado
France, Paris, 195 2, p. 5 9.) por C harles Lalo é o de um templo grego, harmon ioso, sereno,
equilibrado construído em proporções que não deixam o con-
Como resultado dessas combinações das t rês faculdades com templador esmagado, porque são concebidas de acordo com a
a h armonia possuída, procurada ou perdida, temos então o q ua- medida humana.
dro do campo da Beleza - ou do Estético, corno prefere Lalo
Já o Grandioso su põe, segundo Lalo, uma harmonia resul-
- contendo as nove categorias principais:
tante da vitória fác il obtida sobre um material duro e resisten-
te . Creio que a definição ficaria mais clara e coerente, se Lalo
HARMONIA PossuiDA PROCURADA PERDIDA tivesse suprimido, nela, o conceito de fac ilidade : o Grandioso
Na inteligência Belo Sublime Espirituoso seria, então, a forma de Beleza que se caracteriza pela harmo-
(idéias) nia obtida através da luta contra um material duro e resisten-
Na atividade Grandioso Trágico Cômico te, colocado q uase q ue acim a das fo rças humanas comuns.
(ação) Tanto é assim, q ue o exemplo dado por Lalo de obra típica do
Na sensi bilidade Gracioso Dramático Humorístico Grandioso é um templo egípcio: acredito que uma das carac-
(sentimento) terísticas mais impressionantes da beleza grandiosa da Arqui-
tetura egípcia vem exatamente da impressão esmagadora que
se tem de que aq uelas obras estão colocadas acima das medi -
O Campo da Harmonia Possuída das h umanas comuns.
Finalmente o Gracioso, tipo de Beleza ligada à sensibilidade
Temos então, em primeiro lugar, o campo da harmon ia pos- e ao a feto, é urna harmonia que nos inspira sentimentos de pro-
suída, onde se encontram três das categorias principais da Bele- teção e afeto, diante de seres ou objetos pequenos e frágeis. É o
11 8 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 119

caso, por exemplo, de uma pequena casa campestre, harmonio- deduzi r, talvez, que o Dramático é uma ação que não possui as
sa, pequena e acolhedora: os sentimentos que experimentamos implicações filosóficas de "fatalidade" do Trágico. Diz Charles
diante dessas casas são, de certa forma, contrários àqueles que Lalo que um exemplo característico de Dramático é "a morte
experimentamos diante das construções faraônicas: estas nos acidental, mas tocante, da Júlia de Rousseau".
esmagam; diante daquelas nós somos tomados de simpatia e
desejos de proteção.
O Campo da Harmonia Perdida

O Campo da Harmonia Procurada No campo da harmonia perdida, as três categorias princi-


pais são o Espirituoso, o Côm ico e o Humorístico. É, como se
Passamos, agora, ao campo da harmonia procurada, com suas vê, o campo do Risível, e Lalo aproveita esse momento para
três categorias principais, a saber, o Sublime, o Trágico e o Dra- reafirmar que as categorias estéticas são praticamente inumerá-
mático. O Sublime é a categoria mais puramente intelectual das veis, bastando, para provar isso, que se recorde o número de
três. Consiste, para Lalo, num conflito de idéias, tendo sempre, tipos e gradações de Risível que existem: assim, as categorias aí
por isso, uma espécie de caráter religioso, por causa da soleni- estudadas são, apenas, as mais importantes.
dade e da majestade das idéias superiores que, nele, aparecem O Espirituoso é o domínio das obras de arte nas quais pre-
em conflito. Afirma Lalo que a visão do homem como presa da domina o riso despertado por uma sugestão de idéias. É, então,
vertigem intelectual dos dois abismos, da qual fala Pascal, seria o Risível mais puramente intelectual. Sabe-se que, na medicina
um exemplo típico de Sublime. Daí, podemos deduzir que o do século XVII, os médicos tinham praticamente apenas três
Sublime é aquele tipo de Beleza cujo núcleo é uma meditação remédios a aplicar : uma sangria, um purgante ou um clister.
que nos desperta um sentimento estético de solene terror pela O exemplo que Lalo dá de Espirituoso é ligado a isso. Um dcs-
fatalidade e solenidade das idéias em conflito. ~es médicos-boticários, na peça O Doente Imaginário, está com
Para Lalo, o Trágico é a harmonia enquanto procurada atra- uma bexiga de aplicar clister na mão e, ao travar uma discussão
vés de uma ação. Daí pertencer, ele, ao grupo das categorias mais mm seu cliente, ouve a frase de insulto altivo: "Vê-se bem que
ligadas à atividade. É a sugestão de uma luta contra a fatalidade, o 5cnhor não está acostumado a se dirigir aos rostos." O riso, aí,
o combate de um ser humano que se acredita livre contra uma é causado somente pelas idéias sugeridas pelas palavras, e Lalo
necessidade exterior e irresistível, que acaba por esmagá-lo. f.1z referência ao fato de que, no Francês - do mesmo modo
O caso de Édipo é, segundo Lalo, o exemplo mais típico de Trá- que acontece no Português, lembramos - a mesma palavra, es-
gico em estado puro. fifrito, é ao mesmo tempo, sinônima de inteligência e de capaci-
O Dramático é definido de maneira bem mais vaga, por Lalo, dade de despertar o riso.
que afirma, somente, ser ele o tipo de Beleza que, através de uma Agora, o Cômico é um Risível mais de ação: o caráter e as
ação, procura mais comover nossa sensibilidade; de onde se pode .1ções cômicas se caracterizam por uma desarmonia presente
120 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 1 21

numa vontade, enquanto considerada livre de não possuir essa - aquela que cria a Beleza a partir do Feio - e a Arte feia, a
desarmonia. O personagem avarento, de Moliere, Harpagão, é Arte que falhou em sua realização e na forma de alcançar seus
cômico somente enquanto nós o supomos livre de não ser ava- objetivos. De qualquer maneira, sua visão do campo estético é
rento. Para que o riso surja, é preciso que o autor primeiro, e o simples, didática e, aliada à de Aristóteles, fornece um bom co-
público depois dele, suponham que Harpagão é avarento por- meço para o estudo da Beleza que, repetimos, não se esgota no
que quer: se nós suspeitássemos na sua avareza uma fatalidade, Belo clássico, sendo muito mais rica, variada e complexa da que
o Cômico desapareceria, dando lugar ao Trágico. julgavam os pensadores antigos.
O Humorístico é uma "falsa unidade aparente, na qual nós
descobrimos urna incoerência escondida", sendo essa desco-
berta mais sensível do que intelectual, mais presente na vida
afetiva do que no pensamento. Segundo Lalo, o Humorístico
é " realista e fantástico, feroz e terno, moral, amoral e, por
vezes, imoral, metafísico e brincalhão, anárquico e social,
apóstolo do bom-senso e demônio da extravagância". Dom
Quixote é uma novela humorística, mas a obra de Rabelais
também o é.
A título de ilustração, acrescento, aqui, urna definição do
Humorístico dada por um brasileiro, Apparício Torelly, o famo -
so Barão de Itararé, numa fórmula brilhante que condensa uma
síntese admirável: "Humor" - disse ele - "é o privilégio de
ver o que há de negativo nas coisas positivas, e também o que
há de positivo nas coisas negativas". (Cit. por Cassiano Nunes,
em Breves Estudos de Literatura Brasileira, Ed. Saraiva, São Pau-
lo, 1969, p. 96.)
Nesse ângulo da harmonia sensível à afetividade, Lalo exa-
mina ainda o Ridículo, definido por ele como "o sentimento de
superioridade que se experimenta diante de uma desarmonia
antipática". Um homem calvo, é apenas um homem calvo; mas
se faz esforços· grotescos, inúteis e antipáticos para esconder a
calvície, aí torna-se ridículo.
Lalo coloca o Feio fora do campo estético, com o defeito, a
nosso ver, de não fazer a distinção explícita entre a Arte do Feio
CAPÍTULO 12
o T RÁG ICO

O Trágico como Essência

Algumas categorias da Beleza merecem estudo especial,


motivo pelo qual examinaremos aqui, mais pormenorizadamente
e depois da introd ução geral constituída pelas idéias de Aristó-
teles e Lalo, não só o Trágico, mas também o Dramático, o Risí-
vel e o Sublime.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que a m aior parte
<los estetas contemporâneos não aceita m ais a existên cia do Trá-
gico, isto é, de alguma coisa de essencial comum a todas as tragé-
dias, antigas ou não. Quanto à nossa posição pessoal, é ela
contrária à dessa maioria. Acredito que se possa distinguir o
Trágico como essência pr esente em todas as tragédias, antigas,
contem porâneas ou futuras . Agora, é claro que, ao en umerar as
características que fazem de uma peça de teatro uma Tragédia,
não estamos dando "receitas de Tragédia": uma pessoa pode
saber perfeitamente como é uma Tragédia e não saber escrevê-
la, pois, como já salientamos, uma coisa é a reflexão do Filósofo
e outra a imaginação criad ora do Artista, se bem que a mbas te-
nham uma fonte comum.
Por outro lado, não concordamos com a lguns estetas e críti-
cos quando consideram, por exemplo, as peças d e Tenessee
124 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 125

Williams como "tragédias modernas": essas peças não têm, ab- por narrativa, mas medianrc atores (personagens), e que, susci-
solutamente as características do Trágico, tê m as do Dramático, tando o terro r e a piedade, tem por efeiro a purificação desses
scnrirnenros". (Trad. de Eucloro de Souza, cit., cap. V, p. 76.)
que, ordinariamente é confundido com o primeiro, a meu ver
sem razão, como procurarei mostrar.
É preciso deixar claro, ainda, que uma peça pode ter todas Assim , de aco rdo com Aristóteles, a primeira característi-
as características do Trágico ou não : o Otelo, de Shakespeare, ca do Trágico é uma ação de caráter elevado. O que seri a uma
tem todas as características do Trágico, menos uma. Isso não ação de caráter elevad o? Creio qu e é uma ação n ão comum,
significa que tal peça seja "uma obra de arte imperfeita'', sign i- uma ação na qual esteja n ecessariamente implicado um prin-

fica apenas que é uma tragédia incompleta. cípio de ordem supe ri o r. Por aí podemos, talvez, entend e r
Finalmente, lembramos que uma coisa é a p ureza d as essên- melhor a distinção fundame n ta l entre o Trágico e o Dramáti-

cias estudadas pela Estética - o Trágico, o Dramático etc. - e co, e é por isso q u e a firm amos, há pouco, que, ao Otelo falta

outra coisa é a obra de arte, complexa e "impura" por natureza: uma das características do Trágico : o fun d a mento da ação de

n em sempre o Trágico está somente nas tragédias; pode estar Otelo é uma p aixão, o ciúme; seu conflito é p assional, dra-
mático, e não trágico. j á n o Hamlet, o fu ndamen to da ação é
numa Epopéia ou num Romance como Os Irmãos Karamazov,
por exemplo . Depois, deve ficar bem claro que, n uma tragédia, fi losófico: é uma quase indagação do sentido da vida e do

o Trágico n ão é a única categoria da Beleza que está p resente; o mundo, uma p ergun ta sobre o destino do home m no m u n do .

Trágico é, apenas, a categoria fundamental das tragédias, que Por isso, o Hamlet é não só um a obra-prima da literatura rea-
trai, como ta mbé m o Otelo, m as uma tragéd ia completa e
podem ter outras, como o Belo e, em cenas incidentais, até o
acabada.
Cômico, como acontece no H amlet e em outras.
Antes, porém, de passar adian te, re nho de voltar à questão
da terminologia usada aqui, porque, por moti vos d e clareza, tive
A Ação Trágica - Visão Aristotélica de colocar na citação acima duas palavras entre p a rênteses espe-
táculo e personagens. Isso aconteceu po rque, de Aristó teles e dos
Não tendo a mania da originalidade inútil, não me envergo- gregos para cá, alguma coisa mudou. A palavra drama, por exem -

nho de afirmar q ue muito poucas são as indicações que se têm a plo, era, a p rincípio sinôni mo de espetáculo. D epois, passou a

fazer sobre o Trágico depois da magistral análise da Poética. No ser usada e m relação a todo o Teatro e é nesse sentido que, na

capítulo VI dessa obra admirável, afirma Aristóteles: Europa, ainda se fala em C ursos d e Arte Dramática. Aco ntece,
porém, que, p ri ncipalmente do século XVIII para cá, o nome
drama passou a design ar n ão mais todo o Teatro representado,
"A tragédia é, pois, imitação de ações de caráter elevado, com-
mas sim um dos gêneros reatrais - tragédia, drama e comédia.
pleta em si mesma, de certa extensão, linguagem ornamentada
e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas di- Acredito, assi m , que, os a n tigos cursos d e Arte Dra mática de-
versas partes do drama (espetáculo), imitação que se efetua, não vem se chamar, mais corrcramenre, Cursos d e Teatro o u de Arte
126 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 127

Teatral, pois não são somente os dramas que são estudados ali. A Linguagem Trágica
Por outro lado, quanto às encenações, deve ser usada em rela-
ção a elas a palavra espetáculo, pelo mesmo motivo: os espetá- A linguagem trágica é sempre poética e creio que é a isso que
culos teatrais não são constituídos somente pelos dramas, mas Aristóteles se referia ao considerar a "linguagem ornamentada"
também pelas tragédias, comédias etc. como uma das c:'racterísticas essenciais do Trágico. No mesmo
Quanto à junção que fiz da palavra atores com personagens, capítulo VI, da Poética, diz ele que entende por linguagem or-
ela se deveu também, a motivos de clareza. Hoje, existe uma namentada aquela que reúne "ritmo, harmonia e canto". Pode-
distinção entre o personagem, criado pelo autor teatral, e o ator sc inferir, daí, que o Trágico tenha que ser expresso sempre em
que o encarna no espetáculo. O personagem existe independen- versos?
temente do ator, como a peça existe independentemente do es- Acredito que não. Ninguém mais do que Aristóteles sabia
petáculo. Se bem que a obra teatral só se complete com a que uma coisa é a Poesia e outra é o verso. Tanto é assim, que
encenação, a peça é a parte fundamental dela. E, ao dizer isso, ele chama a nossa atenção para o fato de que um tratado de
não estou fazendo violência ao pensamento aristotélico, que Medicina escrito em versos não seria, por isso, transformado em
afirma, na Poética: Poesia. E, como se não bastasse isso, afirma ele, textualmente,
110 capítulo VI da Poética, quando fala da elocução como parte

"Sem dúvida, a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas do espetáculo teatral em geral e do espetáculo trágico em parti-
não faz parte da arte nem tem nada a ver com a poesia. cular:
A tragédia existe por si, independentemente da representa-
ção e dos atores". (Trad. já cit. de Antônio Pinto de Carva- "Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a
lho, cap. VI, p. 301.) elocução consiste na escolha dos termos, os quais possuem o
mesmo poder de expressão, seja em prosa, seja em verso". (Trad.
de Antônio Pinto de Carvalho, p. 301.)
Quanto à importância que Aristóteles dava à ação como ele-
mento fundamental do Trágico, para prová-la basta ler o capítu-
É evidente, então, que, para Aristóteles, a linguagem trágica
lo VI da Poética:
tem que ser é poética, e não necessariamente em versos isto é,
uma linguagem com predominância da imagem e da metáfora
"A imitação de uma ação é o mito (fábula) ... A parte mais im-
sobre a precisão e a clareza.
portante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é a imita-
ção, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da
infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade) .. .
O Personagem Trágico - Caráter
Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia.. .
Sem ação, não há tragédia". (Trad. de Antônio Pinto de Carva-
O personagem trágico tem um caráter que é uma mistura de
lho, p. 299-300.)
boas e más qualidades. É sempre um personagem excepcional,
128 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 129

isto é, colocado acima da média comum. Para usar uma expres- tados d e uma maneira mais reflexiva e intelectual, no segundo
são moderna, que está, porém , implícita nas idéias de Aristóteles, pelas ações. Ou, como diz Aristóteles :
nã o é propriamente uma alma pura, mas e sempre uma alma
grande . É nesse sentido que Aristóteles afirm a que os persona- "Se um autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com
gens trágicos são melhores do q ue nós, e os cômicos, piores. Ao sumo cuidado na ordenação do estilo e do pensamento, nem
dizer isso, ele o faz em relação à grandeza, à elevação da alma por isso realizará obra própria da tragédia. Muiro melhor seria
do personagem trágico, e não à sua pureza. Tanto assim, que diz a tragédia que, embora pobre nestas matérias, contivesse, no
ele, a tal respeito: entanto, uma fábula e um conjunto de fatos bem ligados". (Trad.
cit., cap. VI, p. 300.)
"Sófocles, de um lado, imira à maneira de Ho mero, pois ambos
representam os homens melhores; de outro lado, imita à ma- Pelo mesmo motivo, o caráter trágico se revela m uito mais
neira de Aristófanes, visto ambos apresentarem a imitação por pelo s atos e d ecisões do que pelo simples pensam ento. Ou, para
personagens em ação d iante de nós ... A mesma diferença dis- usar as p alavras de Aristóteles:
ti ngue a Tragédia da comédia: uma propõe-se imitar os homens,
representando-os piores, a outra melho res do que são na rea- "Caráter é, pois, o que reve la certa decisão, ou, em caso de
lidade" . (Trad . de Antônio Pinto de Carvalho, caps. II e Ili, dúvida, o fim preferido ou evitado. Por isso não têm (revelam)
p . 29 1-292.) caráter os discursos do indivíduo em que, de qualquer modo,
não se revele o fim para que (ele) tende ou ao qual repele". (Trad.
E depois, no Capítulo X III: d e Eudoro de Souza, já citada, cap. VI, p. 79.)

" Para que uma fábula seja bela, é portanto necessário que ela se
proponha um fim único e não duplo, como alguns pretendem ; A Decisão e o Conflito
ela deve oferecer a mudança, não da infelicidade para a felici-
dade, mas, pelo contrário , da felicidade para o info rtúnio, e isto O personagem trág ico, homem de caráter excepcional e, por
não em conseqüência da perversidade do personagem, mas por isso mesmo, personalidad e na qual se misturam o bem e o mal,
causa de algum erro grave, como indicamos, visto o persona- é levado, pela pró pria grandeza de suas paixões, d e suas quali-
gem ser antes melhor do que pio r". (Trad. cit., p. 314.) dades e de seus defeitos, a um conflito. Para q ue uma ação seja
trágica, é preciso que, dian te de uma pessoa com esse caráter, se
Aristóteles acentua, ainda, que, no Teatro, os caracteres ver- coloque um d ilema - "um fim a esco lher e outro a repelir'',
dadeiramente trágicos são denotados antes p elas ações do que como esclarece Aristóteles. Aí, ao contrário do que se pensa, vê-
pelas palavras. Um personagem revela seu caráter trágico m ui te se que a t ragédia é causada pela vontade e não p ela fata lidade.
mais pelas decisões que toma e pelas ações que empreende, de As pessoas com uns escolhem sempre o caminho mais tranqüi lo
que pelas palavras. Voltamos a lembrar aquela d istinção entre e segu ro; as personalidades trágicas escolhem os ele maio r peri-
Sublime e Trágico; no p rimei ro, o te rror e a p iedade são d esper- go, os mais arriscados e cheios de grandeza. É, portanto, essa, a
130 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 131

decisão à qual se refere Aristóteles como reveladora do caráter de bem passar da felicidade ao infortúnio ... nem homens maus
trágico; e é essa decisão que leva o personagem a se dilacerar no passando do crime à prosperidade... nem um homem completa-
"conflito trágico": tais caracteres nunca estão em raz nem con- mente perverso deve tombar da felicidade no infortúnio (tal si-
tuação pode suscitar em nós um sentimento de humanidade, mas
sigo mesmo, nem com as circunstâncias exteriores, e os autores
sem provocar compaixão nem temor - terror nem piedade) ...
trágicos ora acentuam um aspecto, ora outro, do conflito. De
Resta entre estes casos extremos a situação intermediária: a do
qualquer modo, porém, o conflito está presente, em qualquer homem que, não se distinguindo por sua superioridade (virtude)
tragédia, em ambos os aspectos. Na tragédia grega, surge o e justiça, não obstante não é mau nem perverso, mas cai no in-
dilaceramento interior do personagem, mas a ênfase maior é fortúnio em conseqüência de qualquer falta; é o caso do homem
colocada no seu choque com as circunstâncias exteriores. Na no apogeu da fama e da prosperidade, como Édipo ou Tiestes ou
tragédia shakespeareana, existe também o conflito com o mun- outros membros insignes de famílias ilustres". (Trad. de Antônio
do exterior que cerca o personagem, mas a ênfase maior é colo- Pinto de Carvalho, p. 313-314.)
cada no seu dilaceramento interior, fonte do outro.
Aqui, já que se falou na presença de "personagens ilustres"
na tragédia, convém explicar que este é um dos motivos mais
O Infortúnio comuns de preconceitos dos estetas contemporâneos contra a
possibilidade de sobrevivência da tragédia no mundo moderno.
Todo esse encadeamento - ação elevada, caráter trágico, Por um lado, tais estetas identificam o "personagem excepcio-
decisão e conflito - termina, na tragédia, conduzindo o perso- nal" com o "membro de família ilustre". Ora, esse era o enten-
nagem ao esmagamento, ao infortúnio, ao aniquilamento. Essa dimento acidental, circunstancial, da comunidade grega antiga.
má-fortuna do personagem não se identifica necessariamente Não interessa à essência do Trágico que o personagem seja ilus-
com a morte, se bem que a morte seja o remate mais normal dos tre de nascimento ou não: o que interessa é que ele seja ilustre,
fatos, escolhas e ações em que se envolve o personagem. Mas o excepcional, dentro dos termos da comunidade em que vive.
desenlace trágico pode vir sob outras formas, como a da deson- Há, porém, outros p ensadores contemporâneos que acham
ra, por exemplo. De qualquer maneira, o infortúnio do perso- que a verdadeira tragédia moderna se passa com o homem co-
nagem é essencial ao Trágico. O Cid, de Corneille, tem todas as mum: aí, é uma questão de terminologia. A m eu ver, estão esses
características do Trágico, menos essa: por isso mesmo, seu au- pensadores identificando tudo o que é doloroso com o Trágico.
tor, pressentindo isso, não chamou sua peça de Tragédia. Di2 e s atos humanos que saem do domínio do indiferente, têm dois
Aristóteles, no capítulo XIII da Poética: grandes campos que interessam à Arte e à Estética - o do dolo-
l'Oso e o do risível. No campo do doloroso, as duas categorias
"A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser, não sim· 111ais importantes são o Trágico e o Dramático. Na nossa opi-
pies, mas complexa, aquela cujos fatos, por ela imitados, são ca· 11i ão, as "tragédias do homem comum" ficam compreendidas
pazes de excitar o temor e a compaixão (o terror e a piedade) ... dentro do Dramático: no Trágico, os personagens nunca são
Em primeiro lugar, é óbvio não ser conveniente mostrar pessom m muns. E que uma tragédia possa ser escrita nos tempos de hoje,
132 ARIANO SUA SSUNA
INICIAÇÃO À ESTÉTICA 133

isto é prova do, e bem provado, pelas três maiores peças de


aristotélica do Trágico, dá do terror e da piedade estéticos. No
Frederico Garcia Lorca, Bodas de Sangue, Yerma e A Casa de
Retrato do Artista Quando j ovem, aliás, existe um outro comen-
Bernarda Alba.
tário, muito curioso, sobre a teoria tomista da Beleza. Mas aquele
ao qual acabamos de nos referir é o seguinte:
O Terror e a Piedade
"A piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presen-
Temos, então, que o Trágico decorre de uma ação humana ça de algo que seja grave e consrante no sofrimento humano,
elevada, narrada em linguagem poética, e na qual um persona- e o une ao sofredor humano. O terror é o sentimento que
gem excepcional toma uma d ecisão, fazendo uma escolha entre detém o espírito na presença de seja lá o que for que exisra de
d ois fins, preferindo um e evitando outro. Dessa escolha, deter- grave e consranre no sofrimento humano e o liga à sua causa
minada por seu caráter - nem perfeito, nem p erverso, mas sem- secrera". (Tradução brasileira de José Geraldo Vieira, Editora
pre grande - surgem o conflito e seu esmagamento final. Este Globo, cap. V, p. 201.)
é o esquema objetivo do Trágico.
Subjetivamente, o Trágico se caracteriza pelo terror e pela pie-
dade que desencadeia no espírito dos contempladores, determinan-
do a purificação das paixões. Com essa teoria, Aristóteles surge
como precursor das teorias psicanalíticas modernas da sublimação.
Observa também, com muita agudeza, que, no Trágico, o terror e a
piedade que surgem do próprio encadeamento das ações são mui-
to superiores àqueles que nascem artificialmente dos aparatos ex-
teriores do espetáculo. Diz ele, no capítulo XIV da Poética:

"O terror e a compaixão podem nascer do espetáculo cênico,


mas podem igualmente derivar do arranjo dos faros, o que é
preferível e mostra maior habilidade no poera. Independente-
mente do espetáculo oferecido aos olhos, a f::íbula (ação) preci-
sa de ser composta de tal maneira que o público, ao ouvir os
fatos que vão passando, sinta arrepios ou paixão, como sente
quem ouve contar a fábula de Édipo''. (Trad. de Antônio Pinto
de Carvalho, p. 316.)

Para finalizar, e a título de curiosidade, vale a pena transcre-


ver aqui a defini ção que J ames J oyce, comentando a visão
CAPÍTULO 13
0 DRAMÁTICO

O Dramático como Categoria da Beleza

Conforme disse de passagem no capítulo anterior, tentarei,


aqui, esboçar uma definição do Dramático como categoria in-
dependente da Beleza, distinguindo-o do Trágico, com o qual
ele tem inúmeras afinidades, mas também, na minha opinião,
não se confunde.
Para isso, infelizmente, terei que me valer quase que só de
minhas próprias palavras, porque, na estética contemporânea em
geral e na Teoria do Teatro em particular, são muito raros os
que aceitam a existência dessa distinção. E minha dificuldade
cresce, no caso, porque, além dessa primeira diferença de posi-
ção ainda mantenho outra, em relação à maioria: é que, da
mesma forma que considero o Trágico como uma essência, pura,
imutável, válida para todos os tempos e presente como elemen-
to fundamental de todas as tragédias, também considero o Dra-
mático como uma essência, válida para todos os tempos e todos
os lugares, e presente em toda essa categoria de peças especiais
que são os dramas.
Aliás, como não podia deixar de ser, o drama é a forma mais
11aturalmente apta a realizar esse tipo especial de Beleza que é o
l ramático. Mas não é a única. E nós poderíamos afirmar de
136 ARIANO SUASSUNA INICI AÇÃO À EST ÉTICA 137

início, a fim de refletir partindo do concreto, que, enquanto um espécie de aspecro mais íntimo e subterrâneo da real idade. Por
romance como Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, tem no isso, o confl ito, presente no Dramá tico como no T1«'igico, é, n o
Trágico sua essência, outro como O Vermelho e o Negro, de caso daquele, mais ligado à vida cotidiana. Um conflito corno o
Stendhal, tem todas as características do Dramático. Tan to o cio J-la111/et é t rágico, porq ue suas implicações siio lig;iclas à
Trágico quanto o Dramático pertencem ao campo do Doloro- transcenclênci;i, a in dagações sobre o destino do homem . já u m a
so, oposto ao do Risível. Ambos se caracte rizam pelo infortú- peça como Ricardo lll, apesar de possui r todas as c;ir;ictcrísticas
nio, pelo esmagamento, pelo aniquilamento do personagem. Mas da tr;:igéclia, tem, do Dramc'itico, o conflito, que gira, todo, em
se o parentesco existe, as diferenças também existem e é a parrir torno dos problemas do Poder pol ítico: o político é u m ti po de
daí que vamos alinhar as reflexões sobre o Dramático, r eunidas confl ito gen ui namente d ramático.
no presente capítulo.
Voltamos assim , mais uma vez, à constataçi'io de que o Dra-
mático é mais "verídico" e cot idia no, e o Trágico mais trans-
figurador e poético. Pelo mesmo motivo, cm virtude, mesmo, do
A Ação e a Linguagem Dra má ticas
seu caráter, o conflito do Dramático, para ser expresso, exige uma
movimentação maior de situações materiais, incidentais, ele inrr i-
A exemp lo do que acontece com o Trágico, o Dram<ítico se
fun damenta em ações. Aliás, a ação é elem ento fundamental de ga, do q ue o do Trágico. É po r isso q ue o Drama é m ais movi-
mentad o e menos hierático do que a Tragédia : "aquilo que é nobre
qualquer d as categorias da Beleza ligadas ao comportamento
humano. Mas a ação trágica é diferente da dramática, exatamente tende, por natureza, à le ntidão e mesmo à imobilidade".
pela presença, naq uela, d e um princípio de o rdem su perior, fi-
losófico ou religioso. No Dramático, a ação não se mergulha na
O Personagem Dramático
transcendência, qualquer que seja o entendimento que se d ê a
esse conceito - relig ioso o u filosófico, segundo o caso.
O personagem dram:ítico é menos elevado d o que o trági-
Outra diferença fundamental é que, no Trágico, como se viu,
co. Em com pensação, porém , é mais vivo e m ais humano. O que
a linguagem é poética, enquanto a linguagem do D ramá tico é
se vem d izendo até aqui, no sentido d e comparar o Dram ático
construíd a de acordo com o espírito da prosa. Po r isso, pode-se
com o Trágico, não implica cm inferioridade de hierarqui::i elo
dizer que o a111bie11te trágico é poético, e o dramático é mais
primeiro em relação ao segun d o . O Dram:ítico, por sua própr ia
realista e verista; a linguagem t rágica é elevada e ornamentada,
na rureza, corre o r isco de passar por uma c;itcg o ri a menor, o u
enquanto a do Dramático é mais seca e mais sóbria.
mais vaga, aos olhos dos leigos, pelo foto d e se situar entre o u -
tras d uas categorias extremas e bem d efi nidas, isto é, o trágico e
O Conflito Dramático o Cômico. Entreranro, não existem essas di ferenças de grau en-
tre o Trágico e o Dramático. Ambos são legítimos e podem pro-
Comparado com o Trágico, o Dramático possui uma seme- piciar a criaçi'ío de obras-primas da Arre e d a Lit cr;:itura. Um
lhança maior e uma ligação menos profunda com o real - essa personagem trágico como Dim itri Karamazov não é super io r a
138 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 139

um dramático como Julien Sorel, é diferente: o fato de determi- seu lugar - como os isabelinos - houve um espaço de tempo
nados leitores preferirem um ou outro não é baseado em julga- em que a transcendência não teve lugar no Teatro a não ser atra-
mentos de valor, é, apenas, uma questão pessoal de gosto, vés do "maravilhoso". Isso provinha, talvez, da incapacidade,
manifestando uma variação perfeitamente legítima. O mesmo por parte dos autores teatrais, dos atores e do público, de, num
se pode dizer de um personagem feminino trágico, como Electra, ambiente realista, verista, acreditar que o homem pode tentar
em relação aos personagens dramáticos femininos de Ibsen, como se sobrepor, por suas próprias forças, às limitações normais da
a Nora de Casa de Bonecas, por exemplo. vida cotidiana. O homem medieval fugia, talvez, ao pecado de
Aos olhos do público comum, porém, parece que o Dramá- orgulho e soberba, tão característico de todo herói trágico, e esse
tico está fadado a aparecer como uma espécie de gradação do é talvez o motivo de ser o maravilhoso - essa outra forma do
Trágico. Entende-se o motivo disso: as comunidades mais arcai- divino - a fonte onde vai beber o Teatro medieval, nas "pai-
cas não têm olhos para o meio-tom e preferem as categorias mais xões" e nos "mistérios".
primordiais e elementares, como o Trágico e o Cômico puros.
Note-se que a Tragédia e a Comédia são bastante mais antigas
O Drama e a Tragédia
do que o Drama. A tragédia e a comédia, como gêneros, são
contemporâneas dos mitos. O Drama surge depois, como con-
seqüência da descrença dos homens nos mitos, numa trans- Lembramos, mais uma vez, que a tragédia e a comédia são
cendência, na possibilidade de elevação do homem, e até da obras de arte, seres existentes, enquanto o Trágico e o Dramáti-
descrença na degradação, ligada ao Cômico: para se escarnecer co são essências. Mas, em Estética, é sempre conveniente refle-
de alguma coisa é preciso acreditar um pouco nela e muito em tir sobre o concreto, de modo que uma análise do drama e da
coisas que lhe são opostas. É por isso que se pode falar num tragédia é indispensável para se pressentir a natureza do Dra-
"herói trágico" e também num "herói cômico", o primeiro exal- mático e do Trágico.
tado na dor, o segundo escarnecido na desordem, mas, em qual- O drama tem uma comunicação muito íntima com a tragé-
quer dos casos, assuntos eternos da Tragédia e da Comédia. dia, sendo mesmo, talvez, os que alcançam maiores dimensões
literárias aqueles que atingem, sem ultrapassá-los, os limites da
transcendência trágica, o que se alcança, ordinariamente quan-
O Dramático, o Real e o Maravilhoso do o conflito dramático é de natureza ética.
O personagem típico dos dramas é menos primordial e ele-
O herói trágico foi vivo, presente e atuante nos começos da mentar do que o trágico. Isto significa, como se disse antes, que
civilização mediterrânea, e ainda subsiste nas comunidades do o personagem dramático é mais vivo, psicologicamente, do
tipo chamado de "arcaico", pelos sociólogos, as comunidades que o trágico. Mas, em compensação, é menos direto, menos
rurais e de pastoreio, principalmente. Mas no que se refere à primitivamente poderoso do que este, que, assim como, de cer-
civilização greco-latina, à medida que ela foi se urbanizando, o ta forma, o cômico, é sempre meio mítico: mas enquanto o per-
herói trágico-pagão desapareceu, e antes que outros tomassem sonagem trágico é uma espécie de cume, elevado e cheio de
140 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À EST ÉTICA 141

grandeza até no que tem de defeitos, o personagem dramático é dramáticas no momento em que as circunstâncias criem, para
mais naturalmente um homem, uma pessoa do cotidiano, e o elas, a oportunidade de um destino incomum, pois, na verdade,
personagem cômico é um escárnio da espécie humana. toda a Artes, toda a Literatura, é um caminho de superação do
Aí, quando se fala em mítico, não é no sentido de imaginá- que a vida tem de rotineiro e indiferente.
rio, e sim com referência a alguém que se tornou centro de crença Assim, a linguagem dramática procura um caminho de maior
e de legenda, de possibilidades de transcendência, centro, não comunhão com a realidade, mas essa comunhão - como ac.onte-
necessariamente do possível e do real no sentido estrito, mas sim ce na relação do real com o Trágico - deve ser exatamente a
do crível e do transfigurado. No ambiente peculiar a essa cate- necessária para convencer o espectador de que esse mundo supe-
goria da Beleza que é o Dramático, essa espécie de oposição rior da Arte é, ao mesmo tempo, no caso do Dramático, este
praticamente desaparece: há uma unidade, maior no Dramáti- mundo, o mundo no qual vivemos. Por isso, apesar de mais verista
co do que no Trágico ou no Cômico, entre o crível e o possível. do que a do Trágico, a linguagem do Dramático também deve
Pode-se dizer, também, que o personagem dramático é an- transfigurar a realidade, pois o Teatro é uma das Artes; e Arte
tes do Grandioso do que do Sublime, e, portanto, antes de ação
nenhuma imita rigorosamente e estreitamente a vida.
do que de pensamento: a ação convém muito mais aJulien Sorel,
personagem dramático; e o pensamento muito mais a Ivan
Karamazov, personagem trágico.
O personagem dos dramas entra em conflito, não para re-
solver a contradição existente entre ele e o mundo exterior,
como tenta o trágico pelo mergulho na transcendência, mas
sim para tentar domar o mundo. As idéias que ele por acaso
ponha na base de sua ação são de caráter menos elevado e só
fazem parte do conflito no máximo até as fronteiras daquele
domínio de que viemos falando até aqui sob o nome de trans-
cendência, entendida esta não somente num sentido religioso.
É por isso que o personagem dramático é ordinariamente
passional, ético, sentimental, político ou dotado de preocupa-
ções sociais. Mas se ele é religioso - no sentido mais amplo que
se pode dar a tal palavra - sua religiosidade não é chamada
essencialmente a participar de sua escolha, de sua opção, da
decisão que gera o conflito.
Agora, fique bem claro que, se bem que o Dramático fuja à
transcendência, isso não significa que ele seja uma pessoa intei-
ramente comum. As pessoas inteiramente comuns só se tornam
CAPÍTULO 14
o RISÍVEL E o CÔMICO

As Formas Artísticas do Risível

Já salientamos, em capítulo a nterior, q ue os dois grandes


campos do comportamento humano pelos quais a Arte se inte-
ressa são o do doloroso, de um lado, e o do risível por outro.
Isto não significa que todos os tipos existentes de Risível inte-
resse m à Estética: esta se preocupa com o riso estético, isto é,
com aquele tipo de Risível recriado, ou possível de ser recriado,
pela Arte; riso do qua l as categorias mais importantes são o
Cômico e o Humorístico.
Feita esta ressalva, podemos afirmar, porém, que uma das
coisas mais misteriosas e fascinantes cuja natureza podemos ten-
tar pressentir pela reflexão estética é, sem dúvida, esse Risível
estético e de ação, e que abarca tanto o Cômico das peças de
Goldoni ou Plauto, como o próprio Humorístico de O Mi-
santropo, de Moliere; ressaltando-se também, logo de início, que
o Humorístico ora assume uma forma mais introspectiva, como
nos melhores romances de Machado de Assis, ora o ímpeto da
grande novela épica que é o Dom Quixote, de Cervantes.
Saliento, bem e assim de início, a importância estética d es-
sas geniais obras de arte ligadas ao Risível, porque, talvez impe-
lidos pelo velho conceito - e preconceito - europeu do Belo,
144 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 145

ainda hoje existem pensadores que relutam em aceitar a legiti- e mais leve, uma espécie de pedra de toque e de espírito anima-
midade do Cômico ou do Humorístico como categorias estéti- dor para as outras Artes. Tanto assim que ele afirmava desejar
cas. Edgard De Bruyne, por exemplo, é um desses. Afirma ele que seu estilo de escritor lembrasse a música de Cimarosa, a de
no seu Esquisse d'une Philosophie de l'Art: Mozart e a de Rossini. Assim, o que ele quis dizer foi que a be-
leza das obras de arte ligadas ao Risível tinham aquela espécie
"Na Arte, o Risível desempenha também um papel muiro im- de leveza e graça das obras musicais, que, duram somente en-
portante; mas isso não significa que o Risível constitua, por ele quanto executadas. E o conceito importante a retirar de suas
mesmo, uma categoria estética. É preciso, então, estudá-lo in- palavras é o de que a forma de Risível ligada à Arte é não só
diretamente na Filosofia Geral da Arte, como um dos objetos uma categoria estética (no sentido restrito da Estética pós-
que a técnica (Arte) tem tratado com objetivo de distrair o ho- kantiana) mas uma categoria tão fundamentalmente ligada à
mem e de lhe fazer sentir certos valores da vida, em particular Beleza quanto qualquer outra - o Belo da música de Mozart
da vida social''. (Ob. cit., p. 332.) inclusive.

Parece-nos, pelo contrário, que o Risível - com seus dois


tipos mais importantes para a Arte, isto é, o Cômico e o Humo- As Teorias do Contraste
rístico - e uma categoria estética tão legítima quanto qualquer
outra. Era essa também, ao que parece, a opinião de Stendhal, Conforme já estudamos anteriormente, Aristóteles definia
pelo menos segundo ele a dá a entender no excelente capítulo o Risível como uma desarmonia de pequenas proporções e sem
- claro, simples, objetivo e poderosamente incisivo - que de- conseqüências dolorosas. Quem fala em desarmonia fala num
dicou ao estudo do Risível no seu ensaio denominado Racine e contraste existente entre algo que existe e o que deveria exis-
Shakespeare (Editora Larousse, Paris 4.ª edição, 1953). Nesse tir. É por isso que, depois e Aristóteles, todas as reflexões esté-
ensaio, Stendhal afirma, desassombradamente como era de seu ticas sobre o Risível são marcadas por essa idéia do contraste,
feitio, que, no seu espírito, o Risível estético tinha um parentes- segundo acentua Bergson no extraordinário ensaio que dedi-
cou ao assunto. Bergson critica a teoria aristotélica e todas as
co com a Música:
demais teorias que explicam o Risível como um contraste por-
"O Risível é como a Música: uma coisa cuja beleza não dura". que, segundo de, tais teorias não fazem a distinção necessária
(Ob. cit., cap. II, p. 29.) entre os contrastes risíveis e os não-risíveis que, sem dúvida,
existem em número tão grande quanto os primeiros. Entretan-
É claro que Stendhal não estava dizendo, aí, que a beleza to, a nosso ver, todas as teorias do contraste, desempenharam
das obras musicais ou das obras literárias ligadas ao Risível en- e desempenham papel fundamental para o esclarecimento da
velhecem rapidamente e não possuem a perenidade das verda- natureza do Risível, cada uma delas lançando luz sobre um
deiras obras de arte: sabemos, perfeitamente, que, para o gosto aspecto particular do problema. A própria teoria bergsoniana
de Stendhal, a Música era até uma arte mais pura, mais cortante do Risível - talvez a mais engenhosa e lúcida que já tenha
146 AR IANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 147

ocorrido à reflexão estética nesse campo - é outra das teorias de tempo. Por outro lado, é evidente que na maioria dos casos
do contraste, o que examinaremos melhor depois, no capítulo existe uma componente de crueldade em nossa maneira de rir
que vamos lhe dedicar. dos outros.
Assim, talvez seja útil examinar, de passagem, pelo menos o Apesar disso, porém, a definição de Hobbes é insuficiente
fundam ental das teorias mais importantes surgidas sobre o Risí- para explicar a natureza total do Risível. De maneira curiosa,
vel assim como as críticas que foram dirigidas a cada uma: as- quem demonstrou isso, melhor e sem querer, foi Stendhal que
sim, por esse processo, meio-maiêutico, meio-dialético - no aceitava integralmente a teoria de Hobbes. Na verdade, a defi-
sentido grego do termo - talvez muita coisa se esclareça sobre nição que Stendhal dá do Risível é uma variante aperfeiçoada
a natureza dessa enigmática categoria estética que é o Risível. da de Hobbes: segundo ele, nós rimos quando uma inferiorida-
de aparente nossa em relação a uma pessoa aparece de repente,
como uma superioridade real. E apresenta seu famoso exemplo:
O Risível - Hobbes e Stendhal
um rapaz belo, rico, elegante, está se preparando numa noite
chuvosa, para entrar em sua carruagem, a fim de ir a um concer-
Qualquer estudante de Filosofia sabe que, para Hobbes, o
to onde se encontrará com sua bela amante. Nós somos feios,
móvel de todas as ações dos homens era o egoísmo. O ceticismo
pobres, deselegantes, não temos carruagem, não vamos ao con-
amargo de Hobbes sobre a natureza humana teria que seduzir
certo, não temos amante e estamos abrigados da chuva sob um
muito o espírito de Stendhal, assim como ambos iriam influen-
beiral, olhando com inveja e frustração para o outro. Mas, no
ciar profundamente as idéias de Nietzsche sobre a "vontade de
momento em que põe o pé no estribo para subir na carruagem,
poder'', e "a hipocrisia da moral do rebanho". Dentro dessa
o rapaz cai na lama e se suja todo. Dentro de nós, há uma ex-
concepção geral é que Hobbes entendia o Risível, definindo o
pansão egoísta e meio cruel de alegria, e nós rimos, porque a
riso como uma
nossa inferioridade de há pouco, de modo inesperado e surpre-
"convulsão física ... produzida pela visão imprevista de nossa endente, se transformou numa superioridade real. Trata-se, como
superioridade sobre outra pessoa qualquer". (Cit. por Stendhal, se vê, de uma típica teoria do contraste, que assume a forma de
em Racine e Shakespeare, ob. cit., p. 26.) desarmonia, defeito, degradação etc., e diante dela, à primeira
vista, parece que Hobbes tem razão. Mas o próprio Stendhal,
Se analisarmos bem essa definição, veremos que, para Hob- continuando a refletir sobre o assunto, acrescenta, a isso, pala-
bes, o Risível tem duas características principais: a da surpresa vras que contradizem, de modo frontal, a definição que ele aceita
(visão imprevista) e a do sentimento de superioridade que o e esposa: diz Stendhal que, se, porém, o rapaz se fere gravemen-
zombador experimenta diante da pessoa de quem ele ri. De fato, te na queda (ou finge, astutamente, que se feriu), o nosso riso
o elemento de surpresa é, de certa forma, fundamental para a desaparece, o que aliás é verdade. Mas se o Risível fosse apenas
criação do Risível artístico: tanto assim que não existe profissio- "a súbita revelação de nossa superioridade sobre outra pessoa'',
nal mais infortunado do que um ator cômico que, ao contar uma nossas gargalhadas aumentariam ainda mais no caso do fe-
história engraçada, deixa que o público adivinhe o final antes rimento, porque nossa superioridade aumentou: o rapaz, ago-
148 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 1 49

ra, está, não somente sujo e enlameado, mas de perna quebra- com o doente no quarto e nós esperamos, fora, que o tempo
da, enquanto a nossa está inteira. De modo que, apesar de lan- marcado decorra. Estamos numa tensa expectativa, esperan-
çar muita luz sobre dois aspectos fundamentais do Risível, a do uma notícia definitiva e salvadora. De repen te, a porta se
defin ição de Hobbes e Stendhal não basta. Como diz De Bruyne
abre, e o médico nos comunica que o doente nem melh orou,
ao criticá-la, nem p iorou: a droga é ineficaz. Houve a súbita redução de
11ma tensa expectativa a nada e no entanto o resultado não é
"uma decepção dolorosa e uma desil usão lamentável caem igual-
risível.
mente sob essa definição". (Ob. cit., p. 334.)
Coisa semelhante acontece com a definição dada por Scho-
penhauer, para quem o Risível seria "a desproporção lógica entre
O Risível - Kant e Schopenhauer o objeto real e a idéia que nós temos dele". (Edgard De Bruyne,
loc. cit.). Existem desproporções lógicas entre certos objetos e as
Outras teorias que são tipicamente do contraste são as de idéias que ternos deles as quais não são, absolutamente risíveis. Por
K:mt e Schopenhauer. Para Kant, o Risível, como tudo mais, teria isso, Charles Lalo critica a teoria de Schopenhauer usando o mes-
que ser estudado na reação do espírito do contemplador. De mo argumento bergsoniano. Diz ele:
acordo com o pensamento kantiano, o riso aparece q uando nós
somos colocados na tensa exp ectativa de algu ma coisa q ue, quan-
"Limitando-se às aplicações estéticas do riso, Schopenhauer não
do se revela, se d emonstra de repente muito abaixo da expecta-
descobre nele senão um desacordo lógico entre uma idéia e seu
tiva e d a tensão. Assim, para Kant, o Risível tem dois momentos
objeto. Mas deixa de especificar quais são as desconveniências
essenciais : a tensa expectativa com que aguardamos alguma coisa
lógicas que são risíveis". (Ob. e p. cits.)
ou acontecimento, e a surpresa de que somos assaltados ao se
revelar o contraste existente entre aquilo que esperamos e aqui-
lo que aparece. Cha rles Lalo, em seu livro Notions d'Esthétique,
O Risível - Teoria Freudiana
assim resume o pensamento kantiano sobre o Risível:

"Para Kant (o Risível) é a súbita redução de uma expectativa a Freud trouxe outra contribuição valiosa para o estudo da
nada". (Ob. cit., p. 67.) psicologia do Risível. Sua primeira reflexão sobre o assunto
é, ainda, da prim eira fase dos seus estudos, d e modo que é
A definição de Kant, porém , cai sob a mesma crítica que mais radicalmente exclusiva: durante essa época, pa ra ele, o
Bergson fez às teorias d o contraste em geral: uma decepção Risível é a revelação repentina do sexual sob o simbólico. Quer
dolorosa cabe nela também. Suponhamos que uma pessoa que- dizer: nós rimos quando, de repente, descob ri mos, escondi -
rid a nossa está g ravemente en ferma. D escobriu-se uma nova do debaixo de um símbolo de aparência inocente, um sen tido
droga que, se der bom resu ltad o - corno os médicos espe- sexual ou obscen o oculto. Assim res ume Edgard De Bruyne
ram - melhorará o doente e m ooucas horas. Os médicos estão as idéias de Freud:
150 ARIANO SUASSUNA

"Segundo o inevitável Freud, nós rimos quando um complexo


sexual reprimido se exprime simbolicamente num momento de
distração ou num termo equívoco, e quando nos apercebemos
bruscamente da significação sexual profunda sob a forma sim-
bólica". (Ob. cit., p. 334-335.)
CAPÍTULO 15
TEORIA BERGSONIANA DO RISÍVEL
É evidente que a definição de Freud alude a um dos proces-
sos mais comuns e eficazes de criação do Risível. Mas é eviden-
te, também, que nem todos os tipos de riso, estéticos ou não,
são criados a partir da revelação do sexual sob o simbólico.
O próprio Freud parece, aliás, ter se apercebido disso, por- Bergson e os Idealistas Alemães
que depois, na época de maturidade, viu que aquele processo de
desvendar um sentido obsceno oculto num símbolo de aparência A teoria mais completa e engenhosa até hoje surgida para
inocente era apenas uma das muitas maneiras através das quais tentar esclarecer o que seja o Risível é, a meu ver, a de Bergson.
podia se realizar a "degradação de um valor" - que passou a ser, Já se disse, antes, que o fundamento de sua teoria se encontra
para ele, a essência do Risível. É, como se vê, outra teoria do con- nas idéias de Schelling e Hegel, sobre a liberdade e a necessida-
traste: o Risível decorre do contraste entre um valor pressuposto de. O homem, como ser livre e espiritual, vê-se, ao nascer, dian-
e sua degradação real. E caímos, de novo, na crítica bergsoniana, te da necessidade, brutal, mecanizada e cega do mundo que o
porque existem degradações de valores que não são risíveis. cerca: eis a face primeira e primordial da necessidade. Mas, se-
Assim, cada um desses pensadores, sem terem, talvez, atin- gundo acentua Hegel, a necessidade possui ainda uma outra face
gido a essência do Risível, foram esclarecendo aspectos particu- - a parte mais baixa, subterrânea e inferior do próprio homem.
lares de sua realidade, e permitindo, com isso, que nós, aos Creio que podemos afirmar, sem fazer violência à visão geral de
poucos, possamos realizar o assédio da verdade sobre esse enig- Hegel, que essa necessidade interior que dilacera o homem, (di-
ma. E é assim, aliás, que devemos proceder na Filosofia em ge- vidido entre a parte mais nobre do seu espírito e as paixões mais
ral e na Estética em particular. Como diz Ortega y Gasset, grosseiras pelas quais se sente atraído) pode ser estendida à so-
ciedade à cuja convivência ele é obrigado, o que pode lhe trazer
"os grandes problemas filosóficos exigem uma tática semelhante
conflitos tão dilaceradores quanto aqueles com os quais ele se
àquela que os judeus empregaram para tomar Jericó e suas ro-
debate no seu mundo interior.
sas íntimas: sem ataque direto, circulando em torno, lentamen-
Dentro desse entendimento geral, já vimos que, para
te, apertando a curva cada vez mais e mantendo vivo no ar o
som de trombetas dramáticas". (Que é Filosofia, tradução bra- Schelling, o Trágico surge quando o homem, assumindo
sileira de Luis Washington Vita, Livro Ibero-Americano Ltda., conscientemente sua posição de ser livre, coloca-se, como su-
Rio, 1961, p. 27-28 .) jeito e liberdade, diante da necessidade entendida como obje-
152 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉT ICA 153

to, como atg'o cte mecamzaa'o duro e'nu~l~1.\JRisível surgi- os músculos do rosto. É necessário então procurar qual é o tipo
ria, ao contrário, quando o homem, fazendo da necessidade especial de desarmonia que produz o efeito cômico". (Le Rire,
indiferente uma espécie de sujeito, assumisse os modos me- Presses Universitaires de France, 1950, p. 157.)
canizados da natureza, tomada como objeto.
Para b em se enten der isso, recorde-se que, n o campo do Outra coisa que Bergson assinala com algu ma insistência
humano, predominam os atos vivos, livres e inventivos da vida. cm seu en saio, e que ele não procurou definir a essência do Ri-
Já o campo da natureza, é o domínio dos acontecimentos mecâ- sível, mas sim apenas apresentar um processo de fabricação do
nicos: o sol nasce de manhã e se põe de noite, a água vira nu- J~ isível. Apesar disso, porém - , e apesar de toda a admiração
vens e depois se tr ansforma novamente em águ a e assim por que tenho pela lucidez admirável desse pensa dor que influen-
diante. Q uer dizer que, p ara Sch elling, um ato h umano torna-se ciou dois dos maiores romancistas do século, o francês Marcel
risível quando o homem, renunciando explícita ou implicitamen- Proust e o grego N ikos Kazantzaki - temos que discordardes-
te à sua condição de ser livre, assume os modos mecanizados da sas duas posições iniciais suas. Quanto à crítica às teorias do
natureza. contraste, acontece que a própria teoria bergsoniana é, tam-
Assim, na minha opinião - e apesar de nunca ter encontra- bém, outra delas; e quanto à afirmação de que não procura ele
do a menor referência a isso nos exegetas de Bergson - creio propriamente uma definição do Risível, o próprio Bergson se
que foi em Sch elling e Hegel q u e se baseou o núcleo fundamen- desmente q uando a resum e n a sua célebre fórmula, "o mecâ-
tal da teoria bergsoniana sobre o Risível, conforme irá mostran- nico superposto ao vivo".
do a exposição que se segue. Em apoio da afirmação de que a teoria bergsoniana é outr a
das teorias do contraste, basta citar o resumo que dela fez Edgard
l)c Bruyne:
Bergson e as Teorias do Contraste

"Bergson explica o riso do ponto de vista de sua filosofia ge-


Já se afirmou antes q ue, para a formulação de sua teoria,
ral. Por um lado, a vida é movimento puro, liberdade pura,
Bergson parte de uma crítica às teorias do contraste, da desar-
intuição pura. Por outro lado, é paralisada e encadeada pelos
monia, todas elas fundamentadas em Aristóteles. Diz Bergson
costumes e instituições sociais. Se se descobre bruscamente o
em seu livro, hoje clássico sobre o Risível - pequena obra-pri-
contraste existente entre esses dois aspectos, surge o riso". (Ob.
ma que a reflexão sobre um problema estético produziu no sé-
cit., p. 335.)
culo XX:

Já a prova de que Bergson, talvez sem querer, foi mais longe


"Eu não vejo porque a desarmonia, enquanto desarmonia, ha-
do que desejava e terminou buscando a própria essência do Ri-
veria de provocar, por parte das testemunhas, uma manifestação
~fvel, será ela fornecida por texto de seu próprio ensaio, adian-
específica tal como o riso, enquanto tantas outras proprieda-
des, qualidades ou defeitos deixam impassíveis no espectador te citado.
154 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 155

Idéias Gerais de Bergson sobre o Risível parece, quando homens reunidos em grupo, dirigem todos sua
atenção sobre um de entre eles, fazendo calar sua sensibilida-
Antes de examinar cada um dos tipos principais em que, de e exercendo somente sua inteligência". (Ob. cit., p. 5-6.)
segundo Bergson, se subdivide o Risível, ele formula sobre este
algumas idéias fundamentais , de caráter geral, que é necessário Do ponto de vista psicológico-social, o Risível se caracteri-
anal isar. za por uma espécie de contágio, tanto de pessoa a pessoa, quan-
Primeirameme, observa Bergson que não existe Risível fora to de acontecimento a acontecimento. Isto é: o riso em grupo é
do campo do humano: muito mais forte e caracterizado, porque as pessoas se deixam
contagiar umas pelas outras, no riso; e por outro lado, um fato
"Não há cômico fora daquilo que é propria111ente humano. Uma que, em si, não seria risível, passa a sê-lo, caso recorde aos es-
paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou pectadores outro acontecimento, este risível.
feia: não será, nunca, risível. Nós poderemos rir de u111 animal, Finalmente, do ponto de vista social, o riso é uma espécie
111as porque se rerá surpreendido nele uma atitude de homem de castigo ou reprimenda que a sociedade inflige a alguma
ou uma expressão humana". (Ob. cit., p. 3.) coisa que a ameaça. A sociedade, no seu impulso para a vida
e o movimento, defende-se contra o esclerosamento, contra
Que o Risível, da mesma maneira que acontece com o Trá- o endurecimento mecânico de suas formas, e o riso é um dos
gico, só possa ser entendido no campo do humano, parece in- tipos de defesa de que ela se vale. Por exemplo: u ma pessoa
discutível. Mas, com todo respeito ao pensamento de Bergson que insiste em usar as roupas que estavam em moda durante
não me parece que ele tenha sido muito feliz na explicação do a época de sua juventude e que, agora, já ninguém usa mais,
motivo pelo qual podemos rir de um animal. Creio que teria sido torna-se objeto de riso, porque a sociedade pressente que tal
melhor ele dizer que nós só rimos de um animal se ele é apre- pessoa não é dotada daquele mínimo de fl exibilidade, de
sentado ou julgado sob padrões humanos, se nós lhe atribuímos possibilidade de adap tação, que as contínuas variações do flu-
se ntimentos que são peculiares ao homem. xo social exigem.
Em segundo lugar, do ponto de vista psicológico, o Risível
se caracteriza por uma anestesia da sensibi lidade e um exercício
puro da in tel igência. Surge o riso quando, di:rnte de uma pessoa A Superposição do Mecânico ao Vivo
ou de uma ação humana, um grupo de espectadores cala o cora-
As ações humanas são - ou p elo menos deveriam sê-lo
ção, a sensibilidade, a afetividade, e exercita unicamente a inte-
ligência. Afirma Bergson: sempre - livres, variáveis, flexív eis e inventivas. Na nature-
za predominam, pelo contrário, as séries mecan izadas de acon-
tecimentos mecânico de suas formas, e o riso é um dos tipos
"O cômico exige ... para produzir todo o seu efeito, alguma
coisa como uma anestesia momentânea do coração. Ele se de defesa de que ela se vale. Por exemplo: uma pessoa q ue
endereça puramente à inteligência ... O cômico nasce, ao que insiste em usar as roupas que estavam em moda durante a
156 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 157

época e examinando esse aspecto da teoria bergsoniana, afir- Bergson esclarece que, de acordo com seu pensamento, o
ma Alfred Stern: Risível opõe-se m ais ao Gracioso, por originar-se desse de -
sajeitamento, desse desgracioso daquilo que é mecânico e que,
"Segundo Bergson, a vida se apresenta a nós como uma certa por um motivo qualquer, se superpõe ao movimento, à flexibi-
evolução no tempo e uma certa complicação no espaço. Consi- lidade e à graça da vida. É curioso notar que essa concepção do
derada no tempo, ela é progresso contínuo de um ente que enve- mecânico como uma certa dureza desgraciosa e feia superposta
lhece incessantemente: o que significa que a vida não volta nem à fluência e à graça da vida tem um eco anterior em certas pala-
se repete jamais. Considerado no espaço, cada ser vivo é um sis- vras de Kant:
tema fechado de fenômenos, incapaz de interferir com outros
sistemas. E Bergson conclui: mudança contínua, irreversibilidade "Toda dureza na regularidade, aproximada da regularidade
dos fenômenos e individualidade perfeita, eis os caracteres exte- matemática, tem qualquer coisa, em si, de contrário ao bom
riores que distinguem o que é vivo daquilo que é simplesmente gosto". ("Crítica do Juízo de Gosto", já cit. 1 parte, seção !, nota
mecânico. Em contrapartida, a repetição, a inversão e a interfe- final do Livro I.)
rência das séries seriam as marcas distintivas do mecânico".
(Philosophie du Rire et des Pleurs, Presses Universitaires de France,
Se substituirmos alguns poucos conceitos mais puramente
Paris, 1949, p. 28.)
estéticos e críticos desse texto kantiano por outros, mais orto-
doxamente metafísicos, talvez bebidos por Bergson n as idéias
Quer dizer: de acordo com o pensamento de Bergson, nós de Schelling e Hegel, temos talvez esclarecidos historicamente
rimos quando aguardamos alguma coisa viva, móvel, flexível e os princípios fundamentais da teoria bergsoniana sobre o Risí-
graciosa como a vida, e, de repente, em vez disso, aparece algo vel - se bem que isso não importe, absolutamente, em dizer que,
de endurecido, desgracioso e mecanizado. É aí que, como ficou sem essas idéias anteriores, Bergson não teria dito o que disse: a
dito antes, Bergson, mesmo afirmando ser seu objetivo apenas verdade é universal, mas toda síntese pessoal dela é nova e lança
fixar um processo de fabricação do Risível, procura dar uma novas luzes sobre a parte de enigma que será sempre maior,
definição de sua essência: porque, como diz um grande escritor contemporâneo, "a cada
passo que nós damos do desconhecido para o conhecido, ma is
"O mecânico superposto ao vivo" - diz ele, num momento se adensa o mistério".
fundamental da exposição de sua idéia - "eis uma encruzilha-
da onde temos que nos deter, imagem central de onde a imagi-
nação estende seus raios em direções divergentes... Esta visão Os Tipos Principais de Risível

do mecânico e do vivo insertos um no outro faz-nos inclinar


para a imagem mais vaga de um endurecimento qualquer apli- Temos, portanto, as duas chaves principais para se entender
cado sobre a mobilidade da vida, ensaiando desajeitadamente a natureza do Risível: do ponto de vista objetivo, o Risível é, n o
seguir suas linhas e imitar sua fluência". (Oh. cit., p. 29. ) campo do humano, a superposição do mecânico ao vivo; do
158 AR IANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉ TICA 1 59

O Risível de Formas
ponto de vista subjetivo, psicológico e social, o Risível é uma
espécie de castigo pelo qual o g rupo se defe n de contra o endu-
Bergso n a firma, porém , que existe um limite pa ra que uma
recime nto mecan izado que o ameaça, o q ue e le faz calando sua
forma h umana seja risível:
sensibilidade e exercitando somente a inteligência.
Partindo d essa visão geral, Bergson refere-se a cinco tipos
" Pode vir a se r cô mica tod a deformidade que uma pessoa bem
de Risível: o d e formas, e de movimentos, o de ditos, e o de si-
conformada consegue imi ta r". (Ob . cit., p . 18 .)
tuações.
Para se e ntende r b em a idéia d e Bergson sobr e as formas
e os m ovimentos humanos risíveis, talvez se possa dizer que, Por que, isso? Porque tal deformidade nos aparece como uma

no hom em, t udo o que ele tem de côm ico vem de sua dupla espécie de obstinação material, um endurecimento, uma teimo-

n atureza, esp iritua l e ma te rial. Se o espírito hum a no impreg- sia em permanecer num hábito contraído. Assim, um corcunda

n asse sua ca rne e seus ossos d e ta l ma n eira que eles também seria r isível na medida em que sugere a idéia de que é uma pes-

se espirituali zassem, ninguém seria, nunca, motivo de riso. soa que se obstina em se m ante r curvado, recusando-se a voltar

Acontece, porém, que a lé m do espírito - vivo, m óvel, fl exí- a posição ereta. Para Bergson, as fisionomia s mais risíveis são
vel - existe também a parte grosseira e m aterial do cor po, aquelas que dão idéia d e uma careta defi nitivamente endureci-
sujeito ao endu r ecim ento à mecani zação, e, portanto, a o da num trejeito único:
desgrac ioso e d esaje ita do d as coisas m ecân icas. Surge, então,
por isso, a possibilidade d e superposição do m ecânico ao vivo "Mas ta l efe ito a inda g anha em intensidade qua ndo n ós po -

- e portanto d o R isível - nas fo rmas e nos movim en tos d e mos relacionar essas qualidades (de automatismo , du reza,
ruga co ntraíd a e guardad a) a um a causa p ro funda, a uma ce rta
humanos.
distração (1111dame11tal da pessoa, corno se a alma t ivesse se
Uma forma humana, por exemplo, será r isível na m edida
deixado fascinar, hi pno ti za, pela materialidade de uma ação
em que dá idéia d e um gesto que não se d esfez, de um movi-
simples .. . Em toda forma hu mana (nossa imaginação ) pe rce-
mento que se e ndureceu e se imobilizou : um homem de bo-
be o esforço de um a a lma que modela a matéria , alma in fi ni-
chechas mu ito grandes e inch adas, tem um rosto cômico porque
tamente ligeira, ete rn a mente móvel, su b traída à pesadez,
d á idé ia de que ele encheu a boca d e ar para tocar num a cor-
porque não é a te r ra que a at rai . De su a ligeireza a lada esta
n eta e d epois as bochechas " se esquecera m " d e voltar para o
alma comunica qualque r co isa ao corpo que e la a n ima .
lugar ; em vez do movi men to de volta que deveria ter aco nte- A imateri a lidade que p assa, ass im, para a maté ri a, é o que se
cido, houve um endurecime nto, uma superposição do mecâ- cha ma a g raça .. . Se se quisesse d efinir aq u i o Ri sível ap ro xi-
nico ao vivo, e o rosto torna-se risível. m a nd o -o d e seu contrári o, se ria preciso o p ô -lo ao Gracioso
e não ao Belo. Ele é antes e ndurecimento do q ue feiú ra" . (Ob .
cit., p. 1 9 e segs.)
160 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 161

O Risível de Movimentos O Risível de Caracteres

Um movimento humano é risível quando dá idéia de que uma De modo semelhante ao que ocorre com os movimentos,
mecânica se instalou nos gestos da pessoa. É por isso que os ti- um caráter humano será risível na medida em que dá idéia de
ques nervosos são cômicos: no lugar onde devia haver algo de que uma mecâni,~a se instalou na alma da pessoa. O que torna
inventivo e sempre novo, diferente de cada vez, aparece um cômico um caráter é aquela espécie de endurecimento que, ins-
movimento mecanizado e repetido. Diz Bergson: talando-se no espírito de uma pessoa, impede que ela se adapte
flexivelmente à vida social em comum. Aí, opondo-se nova-
"As atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risí- mente a Aristóteles, Bergson diz que não é o vício que torna
veis na exata medida em que tal corpo nos faz pensar em uma
um caráter risível, é o endurecimento mecânico causado pelo
simples mecânica... É necessário que esta sugestão seja nítida e
vício. Um avarento não é cômico por ser avarento, mas sim
que nós percebamos claramente, como que por transparência,
um mecanismo desmontável no interior da pessoa". (Ob. cit., porque a avareza, instalando-se em seu caráter, endurece-o
p. 22 e segs.) tornando-o insociável e, por isso, risível. Tanto isso é verdade,
diz Bergson, que o Risível também aparece quando uma virtu-
Por que nós rimos quando uma pessoa imita outra com per- de empolga demais um caráter a ponto de endurecê-lo, de
feição? Porque se o espírito animasse sempre os gestos de uma torná-lo também insociável. O Misantropo, de Moliere, não é
pessoa com sua graça, sua invenção contínua, essa pessoa jamais um caráter vicioso, como o Avarento. Pelo contrário, é virtuo-
repetiria um movimento, um gesto, uma atitude, e, portanto, so, em excesso: é o seu culto da franqueza rude, é seu horror à
nunca seria imitada. A imitação, de fato, revela o que a pessoa hipocrisia que torna cômico. É que Bergson dá a entender,
tem de mecânico nos seus movimentos. Ou, como diz o próprio quando afirma:
Bergson:
"Um caráter pode ser bom ou mau, pouco importa: se ele é
"Por pouco que se reflita, ver-se-á que nossos estados de alma insociável, pode se tomar cômico". (Ob. cit., p. 111 .)
mudam de instante a instante, e que se nossos gestos seguissem
fielmente nossos movimentos interiores... não se repetiriam e, Poderíamos objetar a Bergson, aí, que, no caso, não é a vir-
por isso, desafiariam qualquer imitação". (Ob. cit., p. 25.) tude que torna o personagem cômico: é a imprudência, o ex-
cesso, a grosseria no uso da franqueza, que não é mais uma
Depois daí, Bergson passa a analisar o que ele chama de "a virtude e sim outro vício. E essa objeção, depois, será ampliada
força de expansão do cômico'', deduzindo dois processos de numa crítica geral às idéias de Bergson, crítica que, a meu ver,
fabricação do Risível ligados à conexão entre o físico e o moral. atinge o fundamental de sua teoria e obriga a reflexão estética a
Entretanto, em nossa opinião, esses dois processos devem ser
voltar às sugestões de Aristóteles como caminho para pressentir
ajuntados aos tipos de ditos risíveis, de modo que serão analisa-
a natureza do Risível.
dos adiante.
ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 163
162

O Risível de Ditos Espirituosos Creio, porém, que, como afirmei antes, podemos acrescen -
tar mais duas leis a governar o Risível de ditos espirituosos,
O Risível que se obtém por meio de ditos é aquele de natu- ambas fundamentadas em observações anteriores de Bergson.
reza intelectual, causado por sugestão de idéias, como prefere A primeira seria: "É r isível todo dito ou qualquer incideme que
dizer Lalo. É então aquele tipo espec ial de Risível ao qual se chama nossa atc11ção para o físico de uma pessoa quando o
reserva o nome de Espirituoso. É muito problemática a exis- moral é que está em causa." E a segunda : "É risível todo dito
tência de obras de arte unicamente fundamentadas no Espiri- que faz com que uma pessoa nos dê a impressão de ser uma
tuoso. Dos tipos de Risível, os mais importantes para a Arte coisa." Numa peça de Labiche, um Burguês médio, viajando e
são o Côm ico e o Humorístico. Agora, numa comédia ou num tomando suas providências de bom pai de família cuidadoso,
romance humorístico, podemos encontrar, de vez em quando, no momento de subir pa ra o trem, conta seus pacotes para
esse Risível de ditos, causado pela aproximação intelectual de assegurar-se de que não se esq ueceu de nenhum. E conta as-
conceitos. sim: "Um, dois, três, quatro, cinco, seis, minha mulher, sete,
De acordo com Bergson, nesse campo, o Risível é governa- minha filha, oito, e cu, nove''.
do por algumas leis que inspiram a sua criação. A primeira é a
segui nte: "Obter-se-á um dito cômico sempre que se consiga
inserir um a idé ia absurda num molde de frase consagrada." Isto O Risível de Situações
sign ifica que, se nós conseguirmos, deslocando um ou dois con-
ceitos, transformar num disparate uma frase conhecida - da As situações da vida, as ações humanas, partindo do domí-
qual, habilmente, conservamos o som e o ritmo - o resultado é nio da liberdade são, cm princípio, livres, vivas e sempre reno-
sempre risível. vadas. 1\ las se, nas situações, começam a aparecer acontecimentos
A segunda lei resume-se assim : "Obtém-se um efeito risível que se repetem, que se invertem ou que se cruzam num ritmo
sempre que se finge entender uma expressão no sentido literal, mais ou menos freqüente, isso termin::i mostrando que tais situa-
quando ela é empregada no sentido figurado." Nesses casos o ções estão sendo govcrn::idas por um mecanismo, e e las se tor-
que ocorre é que, assim, o que existe de material na metáfora nam cómicas. Ou para usar as palavras de Bergson :
ressalta sobre o significado intelectual, criando, novamente, uma
superposição do mednico ao vivo. "É cômico rodo arranjo de aros e de aconre.:imcnros que nos
Quanto à terceira lei, a firma ela: "Obtém-se um efeito cô- doí, inscrtas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida
mico quando se tran spõe a expressão natural de uma idéia para de um comportamento mecânico". (Ob. cit., p. 53 .)
outro tom." Bergson faz referência à frase do personagem de
uma comédia de Gógol, que, no tom professoral e hipócrita dos As situações cômicas mais comuns e imporrames são a repe-
falsos moralistas, assim reclama contra um funcionário apenas tição, a inversão e a interferência. Na repetição, um acontcci-
médio: "Você rouba demais para um simples funcion ário de sua mcn to - ou uma série de acontecimentos - aparece, desa parece
ca regaria"! e reaparece, num ritmo mais ou menos regular, dando a idéia
164 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 165

de uma espécie de "te imosia mecanizada'', de algo que, repeli- xar-se tem mais, porque ele mesmo já convenceu o Juiz de
do, teima mecanicamente em voltar. Diz Bergson: que o camponês está com o juízo perturbado.
Na interferência, uma pessoa - ou um grupo de pessoas -
"Numa repetição cômica de palavras, existem geralmenre dois está numa série d e acontecimentos, e outra pessoa noutra. As
termos em presença um do outro, um sentimento comprimido duas séries se cruza m, e, por a lgum equívoco, cada pessoa julga
que reage como uma mola e urna idéia que se diverte em com- q ue a série da o utra é a mesma sua:
primir de novo o sentimento". (Ob. cit., p. 56.)
"Urna situação é sempre cômica quando pertence, ao mesmo
Se, numa dada situação, um acontecimento, empurrado tempo, a duas séries de acontecimentos absolutamente indepen-
com o uma mola, se volta contra o agente que o empurrou - o dentes e pode ser interpretada ao mesmo tempo em dois senti-
feitiço virando-se por cima do fe iticeiro - temos a inversão. Ou, dos dife rentes". (Henri Bergson, ob. cit., p. 73-74. )
d e acordo com Bergson:
Na famosa peça de Plauto, a A11lularia, ex ist e um qüi-
"Pode-se obter uma cena côm ica fazendo com que a situação proquó que é um caso típi co de interferência. Roubaram ao
se volte e que os papéis sejam mutuamente trocados". (Ob. avare nto Euclião uma panela cheia de o u ro . Por outro lado,
cit. p. 72.) l.icônidas, um rapaz solteiro que mora perto de Eucl ião, numa
noite de embriaguez e orgia, desonrou Fedra, a jovem fi lha
Na famosa peça medieval francesa, a Farsa do Advogado d o avarento. O momento e m q ue Euclião descobr e que rou-
Pathélin, existe um caso típico de repetição, logo seguido por b:iram sua botija de ouro é o mesmo que Licônidas escolh e
o utro de inversão. Um camponês furtou um carneiro. Amea- para confessar a ele que seduziu sua fi lha. Note-se que são
çado pela justiça, procura o Mestre Pathé lin , que o aconse- duas séries de acontecim entos. Euclião está na série cujo pcn-
lha a se fin gir de doido como única maneira de escapar. Manda ~:llnento é: "Furtaram m inha panela de ouro e te nho de
que, n o tribu nal, a tudo o que o Juiz lh e pergunte ele respon- recupe rá-la "; a de Licônidas é : "S eduzi a filha de Euclião,
da apenas "bé'', imitando o balido do carneiro. Será como se est ou a r rependido , prec iso confessar meu crime e pedir a
o camponês ti vesse tal delicadeza moral q ue o simples fato 111oça em casamento." Quando Licônidas entra para procu-
de ser acusado de furto já te causasse a perda do juízo. E, de r:ir Euclião, encontra-o deitado no chão, soluçando desespe-
fat o, tudo dá certo. O efeito de repetição dos balidos é cômi- r:idamenre. E o diálogo se inicia com uma fala de Licônidas
co para a p la t éia e o J uiz, perdendo a paciência, convence-se p:ira si mesmo:
de que o camponês r ealmente está doido e absolve-o . Vem
então a inversão, porque, t erminado o julgamento, o Mestre ucô:--;mAS - Quem é esse que cst:í aqui, gemendo e choran-
Pathélin vai ao campo nês exigindo o pagamento de seus ho- do? É Euclião! Com certeza já descobriu que a filha foi cor-
norários e ouve em troca somente outro "bé": o advoga do rompida e é por isso que chora com tanto desengano ! Que
criou Ur)1a situação e ela se voltou contra ele ; nem como quci- faço? Falo-lhe, ou fujo?
166 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 167

EUCLIÃO, erguendo um pouco a cabeça - Quem me fala? EUCLIÁO- Ficar com ela? Era o que faltava! Não senhor, você
vai ter que devolver!
LICÔNIDAS - Um desgraçado!
LICÔNIDAS - Devolver? Devolver o quê?
EUCLIÃO - Pois está falando com outro! Eu me tornei desgra-
çado por causa de um acidente infeliz! EUCLIÃO -Aquilo que me pertencia e que você tirou!

LICÔNIDAS - Console-se! LICÔNIDAS - Que eu tirei? De onde? Afinal, o que é que você
quer?
EUCLIÃO - Consolar-me? Como?
EUCLIÃO - Você não sabe?
LICÔNIDAS - Fui eu que causei sua desgraça e vim confessar
tudo! LICÔNIDAS - Você não diz!

EUCLIÃO - O que é que você está me dizendo? EUCLIÃO - O que eu quero é minha panela de ouro que você
confessou ter roubado!
LICÔNIDAS - A verdade!
LICÔNIDAS- Você está louco! Eu nunca roubei panela de ouro
EUCLIÃO- Como é que você teve coragem e fazer isso comigo nenhuma etc.
se nunca lhe fiz mal?
É, como se vê, um caso típico de interferência - um perso-
LICÔNIDAS - A culpa foi do vinho e do amor!
nagem conversa com outro e cada um deles toma as palavras do
interlocutor num sentido diferente. Aí, no caso da Aulularia, o
EUCLIÃO - Essa é boa! Se fosse assim, qualquer rapaz poderia
equívoco é causado pela expressão "acidente infeliz" que Euclião
furtar o que as mulheres têm de mais precioso e depois di-
zer que a culpa não foi dele não, foi do vinho e do amor! usa em referência à perda da panela de ouro e Licônidas enten-
de como alusão à sua falta em relação à filha do outro, que ele
LICÔNIDAS - Mas eu não vim pedir perdão? desonrara.

EUCLIÃO - Não gosto das pessoas que prejudicam os outros e


depois vêm pedir perdão! Você sabia que ela não era sua e Crítica à Teoria Bergsoniana do Risível
não devia ter tocado nela!
A crítica principal que se tem feito a Bergson (vide Victoroff,
LICÔNIDAS - Mas já que tive a audácia de tocar, não vejo por- Le Rire et le Risible, e também Dupréel, O Problema Sociológi-
que você não me permite ficar com ela! co do Riso) é a de que ele se contradiz, ao mostrar, por um lado,
168 AR I ANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 169

a sociedode criando os costumes mecânicos, e, por outro, pro- pondido, e o jovem casal, belo, feliz, descuidoso, apaixona-
curando, ela própria, castiga r, pelo riso, os costumes que e n- d o, vive em completa felicidade. A d iversão preferida do jo-
gendrara. Dizem esses críticos: "Para Bergson, é a sociedade vem esposo de Prócris é a caça. Prócris possu ía uma la n ça
q ue cria esses instrumentos rígidos que são a linguagem, os cos- sagra da , herança de sua famíli a : um dos seus antepassados
t umes, as instituições, e isto precisa mente para tornar possível recebera essa lança como p resente dado pela divin dade da
a vida em comum. Co mo, portanto, procura castigar tudo isso caça, Diana. Era uma arma que nunca errava o alvo. Sab endo
pelo riso? Não temos nós o direito de n os espanta r, vendo, na da paixão que o marido tinha pela caça, Prócris dá -lhe a lan-
teoria d e Bergson, a sociedade se erigir em juiz q ue distingue ça, que ele passa a empregar diariame nte em suas correrias
aquilo que é real e vivo, daquilo que é superficial e m ecânico, de caçador. O rapaz passava as manhãs caçando. Ao meio -dia,
e que classifica com inferiores estes dois últimos, q uando ela acolhia-se sob um a grande árvo re, cansado e suado, pelo es-
própria, a sociedade, é um expediente artificial superposto à forço e pelo sol. Costumava então, em tais momen tos, expo r
nat ureza" ? o rosto, na sombra, à car ícia da brisa, momento em que uma
A críticas desse tipo, Bergson talvez pudesse responder que embriagadora sensação d e alívio se apossava de seu ser, e ele
nada impede esse duplo pap el desempenhado pela sociedade, murmurava : - " Vem, ó aura, e cumula-me de fe licidade".
organizando, sabia me nte, o s hom ens e m gru po, mas relem- Alguém, um d ia, ou vindo a frase, julgou que essa "Aura" a
bra ndo a eles, d e vez em quando, que sua vida autêntica não quem ele se dirigia, era uma mulher e fo i contar, o caso a Prócris.
deve se deixar aprisionar em fó rmulas esclerosadas e sistemas Enciumada, se ntindo um terrível sofri men to pela traição d a-
mecânicos. quele a quem amava, ela, no outro di a, vai se esconder numa
Mas, a m eu ver, a crítica mais dura que se pode fazer a moita existellte p erto d a árvore. Ao meio-di a, chega ali o
Bergso n, no caso, é mostrar, prim eiro que sua teoria é outra marido . Quando ele diz a frase costumeira, ouve, na moita ,
"teoria d o contraste '', e depois que ela incorre naquele mes- um débil gemido, semelhante ao balir de uma corça . Im ed ia -
mo e rro que ele aponta e m tantas outras - o d e não distin- tamente, atira a lança que sua esposa lhe dera de presente, e
guir quais as superpos ições do m ecânico a o vivo que são é exatamente a la nça d ad a por ela ao marido que d ilacera o
r isíveis e qua is as que não o são. Sim , porque estas exis tem - peito d elicado de Prócris, matan do-a.
e isso a tinge o cern e da teoria bergson ia na . Acabo d e mostrar N ote-se que todos os elementos da interferência estã o pre-
um caso típico de interferência que parece comprovar as idéias sentes - duas séries de acontecimen tos q ue se cruzam , e o

d e Be rgson sobre o Risível. Vou mostrar agora outro caso, que equívoco cau sado pela p alavra "aura", fazendo com que a
possui características absolu tamente idênticas de interferên - situação seja entendida em dois sentidos difer entes pelos per-
cia , mas desta vez com um r esultado que n ada tem de risível: sonagens. No entanto, o resultado foge inteiramente ao ca mpo

é, pe lo contrário , dramático e doloroso. Trata-se da tris te do Risível. Bergson parece ter p ensado que era a m ecaniza-
ção que causava aquela "anestesia da sensibilidad e'', e que
h istória d e Prócris. Esta moço, bela e jovem, cosa-se com u m
rodos os outros pensadores tin ham se esquecido disso ao fun -
rapaz, por que m t inha g ra nde paixão . Seu amor é cor res-
170 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTI CA 171

<lamentar suas definições no contraste. É aí que temos de fa- De qualquer modo, porém, a teoria bergsoniana sobre o
zer uma defesa de Aristóteles: talvez ele não tenha formula- Risível foi, talvez, a que maior número de esclarecimentos trou-
do uma teoria tão completa e engenhosa quanto a de Bergson, xe, até hoje, sobre o assunto. E sejam quais forem as críticas que
mas parece que temos que encaminhar as investigações sobre a ela se dirijam, ninguém pode ficar alheio a seu encanto, à sua
cortante clareza, que tornam o ensaio de Bergson um clássico
o Risível na direção que ele indicou. Sim, porque Aristóteles
da Filosofia do nosso tempo.
definiu o Risível como uma desarmonia, mas não se esque-
ceu de distinguir as desarmonias risíveis das outras: são as "de
pequenas proporções e que não tenham conseqüências dolo-
rosas''. Até esses limites vai o campo do Risível. Daí em dian-
te, a piedade aparece, porque já começamos a entrar no campo
oposto, o do Doloroso. No caso de Euclião, as proporções
da desarmonia são pequenas. Plauto apresenta-nos, na peça,
o germe, apenas, de uma tragicomédia, mas o que existe de
doloroso na personalidade e na vida de Euclião é proposita-
damente "esquecido" pelo autor e, conseqüentemente, pelo
público. Mas, no caso de Prócris, as proporções da desarmo-
nia são terríveis, e dolorosas são as suas conseqüências, e este
é o motivo pelo qual sua história sai do campo do Risível,
apesar de possuir todas as características de uma interferên-
cia de séries de acontecimentos, uma superposição do mecâ-
nico ao vivo apresentado numa ação humana.
Tal vez fosse o caso, então, de, seguindo as sugestões
aristotélicas e as outras que foram sendo apresentadas no cor-
rer dos tempos, podermos dizer, em síntese, que o Risível é
uma desarmonia de forma, de significado, de caráter, de va-
lor ou de procedimento, na qual o inesperado, pelo dispara-
te, pela abstração, pela desumanização ou pela idealização em
sentido inverso, as pessoas, as ações e as idéias são apresen-
tadas como se tivessem sido retiradas de uma ordem lógica,
real ou pressuposta, ou encaradas çomo meros personagens,
figuras não humanas, inferiores ao padrão comum e imunes
ao sofrimento.
CAPÍTULO 16
TEORIA K ANTIANA DO SU BLIME

O Belo e o Sublime

Kant exerceu p rofunda infl uência na Estética moderna, e


contribuição importantíssima sua para o estudo desses probl e-
mas foi a percepção q ue ele teve de q ue o ca mpo estético n ão se
esgotava com o Be lo. Ele não ded icou atenção a todas as cate-
gorias estéticas mais importantes, limitando-se a notar q ue aq u ilo
que vimos chamand o desde o p rincípio d e Beleza ap resentava
dois tipos bastante d iferentes - o Belo e o Sublime. Já vimos
que, para ele, o Belo era uma sensação desinteressada, serena e
pura. O Sublime, diferentemente, seria um sentimento estético
misturado de sensações agradáveis e de te rror, e experimenta-
do, portanto, contra o interesse dos sentidos. Diz ele na "Cr íti -
ca do Juízo d e Gosto":

"O Belo é o q ue agrada só no julgamento de gosto e não, con-


seqüentemen te, por meio da sensação ou segundo um conceito
de entendi mento, de onde se deduz que ele deve agradar sem
ne nhum interesse. O Sublime é aquilo que agrada imed iatamente
por sua oposição ao inte resse dos sentidos". ("Crítica do J uízo
de Gosto", já cir., nora do§ 29, p. 77.)
174 AR IAN O SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 175

Isso levou Bosanquet a afirmar que foi Kant "o verdadeiro captado em si como não tendo finalidade? Tudo o que nós po-
precursor de todas as teorias estéticas que situam a fealdade demos dizer é que determinado objeto é apto a servir de moti-
aparente dentro das fronteiras da Beleza" (ob. cit., p. 319). Te- vação a uma sublimidade que pode ser encontrada no espírito;
mos porém de recordar, de vez em quando, que a terminologia o Sublime autêntico não pode se encontrar contido em nenhu-
aqui adotada não nos deve levar a fazer violência ao pensamen- ma forma 5ensível". (Ob. cit. § 23, p. 34-35.)
to de cada um dos estetas cujas teorias vamos examinando: Kant
não se ocupava da Beleza - como já salientamos antes - sub-
dividindo-a em Belo e Sublime: considerava o Belo e o Sublime Uma Desarmonia sob Forma Sensível
como duas espécies do juízo estético, isto sim; os dois sentimen-
tos, se bem que tivessem muita coisa em comum, possuíam tam- Assim, para Kant, o Sublime é experimentado no espírito
bém algumas diferenças essenciais, uma delas a que acabamos do contemplador e é de natureza puramente intelectual, li-
de examinar. gado "às idéias da razão", e não às propriedades do objeto.
Outra diferença fundamental, resultaria de que, sendo o Belo Mas, fiel à sua maneira paradoxal, já seguida antes para o
e o Sublime sentimentos de natureza subjetiva, o ponto de partida estudo do Belo, Kant fornece alguns elementos objetivos para
do Belo pode se encontrar na Natureza, enquanto o Sublime é o estudo do Sublime; sublinhando sempre, porém, dentro do
duplamente subjetivo, se assim se pode dizer. Isto significa que sentido geral de sua analítica, o caráter subjetivo de que o
o espírito humano pode construir o Belo a partir de coisas da Sublime, como o Belo, se reveste. Afirma ele, na "Crítica do
Natureza, enquanto o Sublime é uma pura construção intelectual Juízo de Gosto":
do espírito. Com todo respeito que nos merece a obra de um
dos maiores pensadores de todos os tempos - "um monstro de
"(O Sublime) só se liga às idéias da razão que, se bem que não
importância histórica'', como o chamava Nietzsche - temos de
tenham nenhuma apresentação adequada possível, são excita-
assinalar, porém, que as palavras de Kant sobre o Belo e a Arte
das e evocadas no espírito por essa desarmonia que pode se
são, às vezes, imprecisas e contraditórias. O texto em que ele
apresentar sob forma sensível". (Ob. e p. cits.)
faz essa distinção entre o Belo e o Sublime padece dessa impreci-
são, pois Kant, depois de ter afirmado, como já vimos, que a
De modo que, apesar da fundamentação subjetiva de seu
satisfação determinada pelo juízo de gosto é uma pura construção
pensamento, Kant formula, talvez a despeito de si mesmo, uma
do espírito, diz, agora, que o Belo pode ser encontrado em alguns
objetos da Natureza. O texto a que nos referimos é o seguinte: definição objetiva do Sublime, que seria, portanto, essa "de-
sarmonia apresentada sob fo rma sensível". Como se tivesse
"Nós nos exprimimos impropriamente quando chamamos su- se apercebido disso, porém, e como se quisesse, mais uma vez,
blime um objeto da natureza, se bem que possamos, com muita deixar claro que, para ele, o Sublime era experimentado e cria-
justiça, chamar belos inúmeros desses objetos... Pois como se do puramente dentro do espírito do contemplador, diz Kant,
pode designar com uma expressão aprovadora aquilo que é ainda:
176 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 177

"O vasto oceano agitado pela tempestade não pode ser conside- experimentado em oposição ao interesse dos sentidos, diante do
rado sublime. Seu aspecto é terrível, e é preciso que o espírito terrível, do q ue é informe, daquilo que manifesta uma inade-
já esteja cheio de idéias bem diversas para que uma tal visão
quação entre a natureza e as idéias, daquilo que é desarmonioso,
dete rmine nele um sentimento, que é, ele próprio sim, sublime,
informe, desproporcionado e ilimitado. Diz ele, continuando a
uma vez que o im pele a desdenhar a sensibilidade e a se ocupar
expor seu pensamento:
de idéias que têm uma destinação mais elevada". (Ob. e p. cits.)

"O Belo, na natureza, relaciona-se com a forma do objeto e esta


Deduzimos, então, q ue, p ara Kant, o Sublime tem, em co-
forma consiste na limitação. O Sublime, ao contrário, pode se
mum com o Belo, o fat o de serem, ambos, a ntes um ato de cons-
encontrar num objeto informe, enquanto se representa nesse
ciência do contemplador do que uma propriedade do objeto; objeto, ou graças a ele, a ilimitação... O objeto que excita em
mas distinguem-se entre si porque o sentimento do Belo tem seu nós, sem o recurso de nenhum raciocínio, pela simples apree n-
fu ndamento no livre jogo da imaginação (aliada, talvez, ao en- são, o sentimento do Sublime, pode, quanto à fo rma, aparecer
tendimento), enquanto que o Sublime é de ordem puramente a nosso julgamento como privado de fi nalidade, à nossa repre-
inte lectual, consistindo na "apresentação de um conceito in- sentação como desproporcionado, e, por assim dizer, fazer vio-
determinado da razão". (Kant, ob. e p. cits.) lência à nossa imaginação, sendo, por isso mesmo, julgado tanto
mais sublime". ("Crítica do J uízo de Gosto", § 23 p. 34.)

O Sublim e como Resultante do Informe


A Grandeza Absoluta
A idéia de desarmonia ou desconveniência é, portanto, fun-
damental para se entender a n atureza do Sublime: nele, é como Temos então, do que foi visto até aqui, que o Sublime resul-
se o espírito experimentasse um estranho agrado ao captar o ta da inadequação das idéias do contemplador a um objeto in-
terrível, o indeterminado, aquilo que se baseia num confli to entre forme e desproporcionado da Natureza, objeto que se apresenta
a natureza e a razão. Daí, afirmar Kant: ao espírito contra o interesse dos sentidos e causando uma sen-
sação misturada de prazer e terror. Partindo dessas idéias ini-
"A disposição de experimentar o sentimento do sublime consiste ciais, Kant mostra, então, que o Sublime só pode se encontrar,
numa receptiv idade do espírito a respeito das idéias, porque é mesmo, no espírito, uma vez que se confunde com o que é abso-
precisamente nessa inadequação da natureza e das idéias que luta mente grande, infinito, desmesurado, e aquilo que tem gran-
consiste, para a sensibilidade, esse terror mesclado, no entanto, deza absoluta não pode se encontrar na Natureza, só pode ser
de atração''. (Ob. cit., § 29, p. 45.)
concebido pelo espír ito humano:

Quer dizer: enquanto que, p ara Plotino, o Belo resultava da "O que nós chamamos Sublime é aquilo que é absolutamente
apree nsão da luz da form a de um objeto harmonioso, o Subli- grande. Este termo designa aquilo que é grande para além de to-
me, para Kant, se caracteriza por essa espécie de terror estético, da comparação ... A definição precedente pode, ainda, ser expressa
178 ARIANO SUASSUNA

assim: é Sublime aquilo em comparação com que toda outra coi-


sa é pequena. Vê-se facilmente aqui que, na Natureza, não pode
ocorrer nada - por maior que o consideremos - que, conside-
rado noutras circunstâncias, não possa ser rebaixado até o infini-
tamente pequeno; e que, ao contrário, não existe nada tão
pequeno que não possa, relativamente a unidades de medida ainda CAPÍTULO 17
menores, aparecer à nossa imaginação com as dimensões de um TEORIA HEGELIANA DO SUBLIME
universo... Assim, nada daquilo que pode ser objeto dos sentidos
deve ser, desse ponto de vista, chamado de Sublime. Mas, preci-
samente porque existe em nossa imaginação uma tendência para
o caminho até o infinito, e, em nossa razão, uma pretensão à
totalidade absoluta como a uma idéia real, o próprio desacordo
O Sensível e o Espiritual
entre tal idéia e nossa capacidade de avaliar a grandeza dos obje-
tos sensíveis desperta o sentimento de uma faculdade supra-sen-
sível presente em nós. E é o uso que o julgamento faz naturalmente Já vimos que Kant considerava o Sublime como uma cons-
de certos objetos com vista neste sentimento (mas não o próprio trução pura do espírito, a apresentação de um conceito in-
objeto dos sentidos) que é absolutamente grande. Em compara- dete rminado da razão. Hegel, ao contrário de Kant, procura
ção com ele, todo outro uso é pequeno. Então, o que é necessá- definir o Sublime de um ponto de vista objetivo, coerente com
rio chamar Sublime, é a disposição de espírito produzida por uma sua visão geral do m undo, como já examinamos de passagem ao
certa representação, à qual se aplica o julgamento que pensa, mas estudar suas idéias sobre a Beleza.
não o objeto mesmo". (Kant, ob. cit., § 25.) Para entender a teoria hegeliana sobre o Sublime, deve-se
lembrar, primeiro, que, par a ele, a Beleza é a manifestação
Pode-se resumir então o pensamento kantiano sobre o Su- sensível da Idéia; e avançar, ainda, q ue, na sua concepção, a
blime, dizendo que, para ele, os acontecimentos mais terríveis Arte é um acordo entre o sensível e o espiritual. Recorde-se
da Natureza, têm um parent esco com o Sublime, mas não se que, para Hegel, o h omem caminha para o Absoluto através
identificam com ele: uma tempestade é grandiosa, mas apenas de três etapas - a Art e, a Religião e a Filosofia - sendo que
relativamente. Ora, o Sublime é grandiosidade absoluta, e isso o papel da Arte e o de tentar introduzir o espírito n aquilo
só pode ocorrer no espírito humano, capaz de conceber o infi- que é sensível, fazendo uma síntese entre esses dois termos
nito. Ou, como afirma o próprio Kant, numa fórmula que antitéticos.
condensa suas idéias a respeito do assunto:

O Ser Uno e o Sublime


"O Sublime é qualquer coisa que, pelo simples fato de ser pen-
sada, revela uma faculdade da alma que ultrapassa qualquer
Pois bem: partindo dessas d uas idéias gerais, Hegel afirma
medida dos sentidos". (Loc. cit., p. 37.)
que o Ser, uno em si mesmo, só existe para o pensamento puro.
180 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 181

O Belo e o Sub lime


Se, porém, esse Ser assume forma sensível, isto é, se tem q ue ser
encarado sob um ponto de vista estético , isso im plica necessaria-
Partindo daí, Hegel empreende, como já fizera Kant antes
mente num compromisso, na necessidade de conciliar o Ser com
dele, uma distinção entre o Belo e o Sublime. Os dois têm algo
o sensível através do qual ele vai ser mani festado. É, como se
cm comum porqu e ambos se relacionam com a Id éia, com este
vê, a mesma coisa que, segun do lembramos acima, ocorre com
mesmo Ser uno que é o princípio e a causa do mundo sensível e
a Arte, forçada a manifestar a Idéia, não enquanto concebida
de toda aparência material, com a "substância ún ica que é o
em si própria, mas através do sensível.
princípio e o fim do universo", para usar as expressões do p ró-
Acontece, porém, que, tendo o Ser, uno, de se manifestar
prio Hegel.
sob forma sensível, verifica-se q ue tal forma sensível é inadequada
Entretanto, se tem muita coisa em comum o Belo e o Subli-
a ele : o sensível, ao ter que m anifestar o Ser, é como que esma-
me têm, entre si, u ma diferença essencial. O Belo consiste, numa
gado, a niquilado por ele, e esse esmagamento do sensível pelo
espécie de unidade entre a Idéia e a aparência sensível. O Subli-
Ser é que gera aquela forma especial de Beleza que é o Subl ime.
me, porém, consiste a ntes, num rebaixa mento da aparência sen-
Afirma H egel a esse respeito:
~ ível para glorificação da Idéia. O u, como diz Hegel:

"Se este Ser em si deve ser representado aos sentidos, esta ma- "Devemos disti nguir bem o Belo <lu Sublime. Nu Belo, a Idéia
nifestação não é possível senão enquanro o Ser é concebido passa através da realidade exterior, ela qual ela é, d e alguma
como substância e, ao mesmo tempo, como princípio criador maneira, a a lma, de mane ira que os dois elementos parecem
de rodas as coisas. Po r isso, o Ser se revela e se ma nifesta em perfeitamente conformes um com o o utro e se penetram reci-
rodos os seres e conserva, com eles, uma relação posi tiva. Mas, procamente. No Sublime, ao contrário, a realidade exter ior
por outro lado, sua superio ri dade quer ser, neles, tanto mais através da qu al se manifesta a substância infinita é reba ixada
claramente marcada. O Ser in fin ita deve se elevar acima das por sua presença, porque esse abaixamento e essa submissão são
existências particulares, consideradas nelas mesmas ou em sua o único meio pelo q ual um Deus, invisível e m si mesmo e que
rotalidade. Elas não são mais do que nada, diante do Ser, e a não pode ser expresso na sua realidade positiva por nada de
relação positiva roma-se negativa. O Ser substancial é, ass im, sensível e de finiro, pode ser represe ntado pela Arte. O Subli-
purificado de todo contacto e de toda participação com a apa- me supõe a Idéia absoluta de tal modo ind ependente da reali-
rênc ia visível. Esta, como existência particular, é inadequ ada ao d ade exterior que esta passa a ter como primeira característica
Ser e desapa rece nele. Ora, a manifestação sensível que se en- o fato de ser -lhe inteiramente submetida e que o princípio de
contra aniquilada pelo Se r que ela representa, de tal modo q ue todas as coisas não aparece como presente na realidade, mas
a expn.:ssãu <la Idé ia se m:rniksta como uma supressão da ex- eleva-se de tal modo acima dela q ue esta superioridade e esta
p ressão, é o Sublime". (Esthétiq11e, texros escolhidos, ob. cit. , d o minação (da Idé ia abso luta sobre a realidade exterior) for-
p. 169.) ma m o assunto ún ico de toda a representação". (Ob. cit., p. 169
e segs.)
182 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 183

O Sublime e as Artes Sim bólicas O Homem ante o Mundo

Hegel dividia as Artes em dois grandes grupos: o primeiro O pensamento de Hegel é, como se vê, uma filosofia per-
integrado pelas Artes clássicas, segundo ele, não marcadas pelo feitamente tipificada do idealismo germânico do século XIX.
espírito do Cristianismo; este daria origem às Artes românticas, Deixando de lado certos sectarismos e distorções, característi-
ou simbólicas, nas quais a preocupação fundamental não seria cos desse pensamento idealista sistemático, podemos, porém
ligada ao corpo humano e ao mundo material, mas sim ao espí- extrair dele várias sugestões esclarecedoras sobre o Belo e o
rito e à sua aspiração pelo Absoluto. Tendo isso em vista, pode- Sublime. Por exemplo : certas idéias de Hegel só têm validade
se dizer que as Artes simbólicas são mais do Sublime do que do para os espíritos religiosos. Mas o problema que ele coloca
Belo, acontecendo o contrário com as Artes clássicas: a sereni- sobre o homem, corno liberdade, posto diante da necessidade
dade clássica e a exaltação pagã do corpo e da vida, são mais cega e indiferente do mundo, explica muito melhor a natureza
convenientes ao Belo, porque nelas se busca antes de mais nada do Sublime, e duma maneira que pode ser aceita tahto pelos
uma harmonia, uma conciliação entre a Idéia e o sensível: espíritos r eligiosos como pelos não-religiosos. A idéia de ter-
ror e piedade que Aristóteles pressentia existir tanto no Trági-
"A beleza clássica" - afirma Hegel - "não deve ... afetar o ca- co quanto no Sublime (ou Elevado) parece provir dessa posição
ráter do Sublime. Porque somente o Ser universal e abstrato - do homem diante do mundo: no Trágico, isso é colocado atra-
que não comporta, nele mesmo, nenhuma determinação parti- vés de uma ação; no Sublime, através do pensamento - e vol-
cular, que rejeita e nega o particular e, por conseqüência, toda
tamos a lembrar que, também para estetas mais modernos, essa
encarnação - somente ele realiza o espetáculo do Sublime".
noção do terror, causado por urna simples meditação poética
(Ob. cit., p. 180.)
sobre o homem diante do mundo e de seu destino !Tl"'rr:adn
pela morte, é característica essencial rln 'lublimr 'É, também,
O Sublime seria, assim, uma forma de Beleza muito mais
o que, de certa forma, vamos encontràr no pensamento de
apropriada à Arte religiosa, mais apta a sublinhar o rebaixamento
Hegel, quando ele diz:
do sensível ante a substância única, e inclinada, por natureza, à
contemplação da grandeza e da indignidade do homem. Ou seja,
"No Sublime reside igualmente a distinção clara e perfeita en-
de acor do com o texto de Hegel:
tre o humano e o divino, o finito e o Absoluto, e, por aí, entra
na consciência do sujeito, a noção distinta do bem e do mal, e a
"Por isso mesmo que o homem se sente na sua indignidade
da escolha livre pela qual o homem se decide por um ou pelo
diante de Deus, é no temor de Deus, no medo que o faz tremer
outro". (Oh. e p. cits.)
diante da sua cólera, que ele se exprime e se exalta. Assim, nós
encontramos expressos, da maneira mais viva e atraente, os
Pode-se, pois, resumir o pensamento de Hegel sobre o as-
sofrimentos e as tristezas profundas que o nada da vida faz nas-
sunto dizendo que, para ele, o Sublime é a Idéia absoluta re-
cer". (Ob. cit., p. 173.)
presentada de um modo tão independente na aparência
184 ARIANO SUASSUNA I NIC IAÇÃO À ESTÉTICA 185

se nsível que a subm issão do se nsível à Idéia fica sendo o as- ciclo com uma inteligência ter ri velmente fecunda, sofre a
sunto único d e roda a representação . E para concluir, vamos atração do Bem e do Mal, e, por sobre a Justiça eterna,
t ra nscrever, aq ui, u m texto clássico que m e parece um exem- transpassa as Leis da terra. O mais elevado, porém, na Cida-
p lo t íp ico dessa forma especial de Beleza q ue é o Su bli me. de, desce ao mais baixo da sua condição , se a audácia o con-
É um trecho de poesia, recitada pelo coro, na Antígona, de duz ao crime. Que um hóspede como este jamais encontre
Sófocles. Note-se q ue, apesar de ser retirado do corpo de uma lugar em meu lar e em me u coração".
t ragédia, o poema vale por si mesmo, como obra isolada : as-
sim, o terror despertado pelo so lene sentimento de tr isteza
experi men tado pelo homem d iante da fatalidade da morte,
é, a í, causado não pela ação da peça, mas pela simples refl e-
xão. Isso reafirma a idéia de que a poesia reflexiva, ou fil osó-
fi ca, é, d e todos os tipos de Arte, o mais ap to a causar, no
homem, esse p razer intelectual misturado de terro r q ue é o
Sublime. O poema de Sófocles apresenta o homem em luta
com a natur eza, inventando a linguagem, lutando contra os
a nimais selvagens e dominan d o a terra, para, depois d e t udo
issp, se defrontar com a face cega e fatal da Morte. É o se-
gu inte:

"Existem muitas coisas maravilhosas: a mais extraordinária,


porém, é o Homem . Ele percorre o Mar que se agira, qua n-
do a tempestade sopra do Sul, e trabalha a Mãe dos deuses,
a Terra soberana, imortal e inesgotável, ano após ano, ali-
nhando sulcos ao passo dos cavalos. O povo dos pássaros,
raça ligeira, e os seres dos bosques e a fauna marinha, ele os
captura em redes envolventes. É o mestre do estratagema.
Atrai a suas armad ilhas os animais errantes da floresta, e curva
sob seu jugo o pescoço peludo dos cavalos e o touro selva-
gem no esplendor de sua força . Ele inventou para si mesmo
a linguagem e o pensamento rápidos, assim como aprendeu
a evitar a aspereza do fr io e da chuva. Gênio universal que
tudo acerta, somente não achou reméd io contra a Morre, se
bem que saiba resolver tantos casos desesperados! Enrique-
LIVRO IV

A ARTE
CAPÍTULO 18
CONCEPÇÃO T RADICIONAL DA A RTE

Conceitos mais Comuns da Arte

Seguindo o conselho de Ortega y Gasset, procuramos, até


aqui, através de voltas e mais voltas, apertar sinuosamente o cerco
das muralhas que defendem as fronteiras da Beleza, procuran-
do, pelo menos, pressentir sua natureza e os aspectos principais
de que se revestem suas diversas categorias. Tendo feito isso,
cabe-nos agora enfrentar o enigma que se segue a esses no cam-
po estético, o enigma da Arte.
Antes de mais nada, deve-se esclarecer que, aqui, a palavra
Arte é empregada no sentido lato: é o dom criador, o espírito
animador e, ao mesmo tempo, o conjunto de todas as Artes,
incluindo-se entre estas, tanto as Artes plásticas quanto as lite-
rárias, tanto o Cinema quanto a Poesia, o Teatro como a Dança.
Creio que, se passarmos uma vista no pensamento de todos
aqueles que, até agora, tentaram explicar a natureza da Arte,
vamos encontrar uns seis ou sete conceitos apresentados como
fundamentais, sendo a ênfase posta ora num aspecto ora nou-
tro, da essência da Arte. Assim, por exemplo, entre os estudiosos
de Etnologia, preocupados com aquilo que chamam a "origem
da Arte", encontramos, quase sempre, a Arte estudada como
elemento mágico e religioso; para esses pensadores, a Arte não
190 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 191

se explica por si mesma: tem um objetivo prático de meio de nando as idéias de cada pensador, iremos, também, procurando
dominação do mundo e de penetração do seu enigma, de luta responder a cada uma dessas questões fundamentais.
contra os obstáculos da vida, de esconjuro e defesa contra seus
perigos e suas emboscadas. Originam-se daí todas essas idéias
feitas a respeito do sentido religioso e prático dos murais das Teoria Platônica sobre a Arte
cavernas de Altam ira ou das pedras entalhadas e pintadas do
Nordeste brasileiro: o homem " primitivo" pin ta na pedra um Para Platão, a Arte tem uma função ao mesmo tempo práti-
cervo em vermelho como o da Serra da Capivara, no Piauí, por- ca e mística. A Arte, para ele, é um caminho, através do qual o
que acredita que, assim fazendo, "captura" magicamente o ani- homem pode empreender aquela forma de explicação do mun-
mal, facilitando sua caça no dia seguinte. do e de penetração do real que é a ascensão para o mundo das
Essa idéia aventada pelos estudiosos, levanta, de imed iato, essências, das idéias puras, e, conseqüentemente, de comunhão
com a Beleza absol uta. A Arte é, portanto, uma via de integração
uma porção de problemas e de sugestões outras a respeito da
do homem com o Divino. Isto, do ponto de vista de sua nature-
Arte. Por exemplo: será a Arre preocupada unicamente com a
za. Do ponto de vista social, a Arte é uma atividade didática e
criação pura e gratuita da Beleza, ou terá, pelo contrário, sem-
exemplar, pois contribui para chamar a atenção da coletividade
pre uma preocupação de util idade prática? Será a Arte uma for-
para a Beleza corpórea. É dessa última idéia que decorrem as
ma de conhecimento, uma das possíveis maneiras de penetração
posições, aparentemente contraditórias, de Platão, sobre a dig-
do real? Será toda e qualquer atividade que fabrique objetos, ou
nidade da Arte: ela é, por um lado, benéfica, porque não fica
somente aquela que se preocupa com a criação de objetos be-
somente no sensível; mas, por outro lado, colocando sua ênfase
los? Será a Arte um modo prático, concreto e belo de tornar
na Beleza corpórea, insulta, com isso, a Beleza absoluta, e cria,
acessíveis às massas concepções religiosas, políticas e filosóficas
tanto nos artistas como no espírito dos contempladores, dispo-
de natureza abstrata, concepções pelas quais, de outra maneira,
sições para a sensualidade, para a indisciplina, para a embria-
o homem comum não se interessaria? Seria a Arte decorrente,
guez dionisíaca dos sentidos, para as paixões. Daí a inferioridade
como quer a Estética psicanalítica, de uma espécie de neurose, da Arte em relação à Filosofia. Ambas partem da "reminiscên-
das frustrações, complexos e traumas do artista que, através dela, cia". Mas, enquanto o material da Filosofia é o pensamento puro,
procuraria se com pensar da sua vida falha e dilacerada com a de natureza espiritual, os materiais da Arte pertencem ao cam-
criação de um outro universo, mais belo e mais perfeito do que po dos objetos sensíveis, grosseiros, mecânicos.
o mundo?
Acredito que estas são as noções mais importantes surgidas
entre os estetas a respeito da na tureza da Arte. Da mesma ma- A Reminiscência como Processo Criador da Arte
neira adotada para o estudo d as fronteiras da Beleza, agiremos
aqui para fixar a natureza da Arte: procuraremos seguir as inda- O fundamento da teoria platônica sobre a Arte é a "remi-
gações mais importantes que foram feitas sobre isso no campo niscência", à qual já se aludiu ao estudar, de acordo com suas idéias,
histórico da Esté tirn ocident:oil e. ?! medirl;:i n 11 <-' fnrnrns f'x::i mi- as fronteiras da Beleza:
192 ARIANO SUASSUNA I NICIAÇÃO À ESTÉTICA 193

''A inteligência humana" - afirma ele no "Pedro" - "deve se preciso lembrar que não existe nada de menos platônico do que
exercer segundo aquilo que se chama Idéia, isto é, elevar-se da confundir a Imagem, mesmo complexa, com a Idéia. E o ideal
multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta fa- em que se inspiram os artistas,' oscila, sem cessar, entre as duas".
culdade não é mais do que a recordação das Verdades eternas (Platon et /'Art de son Temps, ed. cit., p. XIII.)
que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma di-
vina nas suas evoluções". ("Fedro", ed. cit., § 249, p. 222.) Como se vê, era mesmo de esperar que Platão sentisse pela
Arte um misto de repulsa e de profunda atração: porque a beleza
A reminiscência assim entendida deve ser o guia do homem, dos corpos sensíveis, ao mesmo tempo que atrai, afasta os homens
não só na contemplação da Beleza como na busca da Verdade. do caminho para a Beleza absoluta. A Arte, ao criar um objeto
Mas, teria, além desses, um objetivo criador e prático, no cam- belo, ao pintar o retrato de uma bela mulher, por um lado, lem-
po da Arte, pois é ao se recordar dos modelos ideais de todas as bra aos homens a mulher-modelo, o tipo ideal e imutável debele-
coisas que o artista cria suas obras. É assim que afirma ele, no za feminina, ligado à Beleza absoluta; e, por outro, prende as asas
"Mênon": da alma, ligando o homem, pela sensualidade, ao corpo feminino
e impedindo, assim, que o espírito se encaminhe para o objetivo
"A alma é, pois, imortal. Renasceu repetidas vezes na existência final da reminiscência - a comunhão com a Beleza absoluta. Os
e contemplou todas as coisas existentes... Não é de espantar que textos platônicos insistem de vez em quando na importância fun-
ela seja capaz de evocar à memória a lembrança de objetos que viu
damental da reminiscência, tanto para a contemplação pura da
anteriormente ... A nós compete unicamente nos esforçarmos e
Beleza, quanto para a criação da Arte. Segundo ele, o artista,
procurar sempre, sem descanso". ("Mênon", § 81, p. 79.)

"com o olhar fixo no Ser imutável e servindo-se de um modelo


Evocando a lembrança desses objetos, entrevistos em sua semelhante, tenta reproduzir a Idéia e a virtude, e, desse modo,
essência pela contemplação, o artista tenta reproduzi-los, atin- pode criar uma obra de beleza perfeita". ("Timeu'', cit. por
gindo, desse modo, a maior aproximação possível com seu mo- Félicien Challaye, Estética, tradução espanhola, Editorial Lábor,
delo ideal, cuja beleza evoca, por sua vez, a Beleza absoluta da Barcelona, 1953, p. 75.)
qual todas as belezas particulares decorrem por participação. De
modo que, segundo Platão, o trabalho do artista é, por nature-
za, dividido entre a manipulação dos materiais, das imagens sen- A Beleza da Arte e a da Natureza
síveis de que ele necessita para a criação da obra, e a Idéia, ou
modelo perfeito e puro, que ele, ao mesmo tempo, tem que re- Como se vê, as idéias de Platão sobre a Arte são bastante vagas
produzir. A esse respeito, escreve Pierre Maxime Schull: e imprecisas. O que viriam a ser, por exemplo, esses modelos
ideais de cada coisa? A beleza de um quadro não depende da
"O artista verdadeiro atingiria, por trás das aparências, a essên- beleza do modelo representado: pode-se fazer um belo quadro
cia ideal, a realidade profunda das coisas. O crítico estudaria como tendo como modelo uma mulher muito feia, como Goya fez
ele a exprime, ajudando o público a percebê-la na obra... Mas é tantas vezes: e, nesse caso, como é que a beleza do quadro pode
194 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 195

resultar da aproxim ação do mode lo com a mulher ideal, essên - a arte a que ele se dedique : pa ra Platão - de modo absurdo para
cia pura e imutável do mundo das Idéias? nós, mas coerente com o total de seu pensamento - , o pintor
Outra d ecorrência curiosa das idéias platônicas sobre a Arte era u m simples imitador do real, enc1uanto o músico e o artesão
é que, de acordo com seu pensamento, a beleza artística é infe- eram criadores de formas, mais aproximados, portanto, da 13ele-
rior à da Natureza. Um cavalo vivo é a imitação, em p ri meiro za absolu ta do que o escultor q u e copiava um torso humano da
grau, do cavalo modelo, do cavalo ideal; sua beleza deriva en- Natureza .

tão d iretam ente do reflexo da Beleza absoluta sobre ele; já um


cavalo pintado num quadro, é a imitação do ca valo vivo: su a
feoria Aristotélica sobre a Arte
beleza, portanto, é o reflexo de um reflexo da Beleza absoluta,
e, portanto, inferior à beleza natural do segundo.
As idéias de Aristóteles a respeito da Arte são b asta nte d ife-
Quan to aos objetos feitos pela mão do homem, aconteceria
rentes, com o, aliás, era de esperar, já que sua teoria sobre a Be-
coisa semelhante, dando como resu ltado a superior idade do
leza opõe-se, de m aneira funda mental, à de Platão. Para Platão,
a rtesan ato sobre a Arte. Uma cadeira feita por um marceneiro é
a Arte é, com o já vimos, uma forma de penetração do real-ideal,
imitação, em p rimeiro g rau, da cadeira padrão, do modelo ideal
de conhecim en to do Absoluto; para Aristóteles, será, antes, uma
de cadeira: se um pintor p inta um quadro no qual apa rece u ma
atividade simplesmente criarlora de fo rmas. A esse respeito, es-
cadeira, a beleza d esta é reflexo da be leza da cadeira feita pelo
clarece Denis Huisman :
artesão, a qual, portanto, é superior. Ou seja, de acordo com as
palavras de Pie rr e Maxime Schul: "Em Platão, a Arte é a descoberta, pela reminiscência, de co-
nhecimentos anteriormente adquiridos através da participação
"O pintor, por mais perfeita que seja a cópia, não pode repro- nas Idéias. Em Aristóteles, ao invés, a Arte é produção criadora
duzir senão a cor, a forma e os aspectos sempre diferentes sob
de novas formas e nenhuma destas poderia ser ante riormente
os quais se apresenta um dado objeto. Um leito, visto de frente,
do conhecimento de seu criador". (A Estética, trad. bras. de
parece diferente de um leito visto de três quartos ou de vit:s:
L'Esthétiq11e, Difusão Européia do Livro, São Paulo, s/d., p. 25.)
isto não significa nada, porque o leito é o mesmo. Mas o pintor
não se importa. Ele não imita o ser verdadeiro, tal como é, mas
Assim, p ara Aristóteles, a Arte é uma criação da Beleza, sem
sim a apar2ncia que o ser apresenta. Em outros termos, ele não
qualquer forma direta d e conhecimento. O papel do intelecto
exprime a Idéia, mas sim o ído lo das coisas. El e não é, propria-
na Arte será melh or precisado depois, distinguindo-se, nele, a
mente falando, um poeta, um criador, como o artesão que fa-
brica o leito, inspirando-se na essência do leito, no leito-tipo, inteligên cia abstrata e raciocinadora, própria da parte analítica
criado por Deus ". (Ob. cit., p., 57-58 .) do conhecime nto, e a imaginação criadora, própria da Arte.
A Arte n ão é, portanto, uma forma de conhecimento, e muito
Note-se que Pierre Maxime Sch ul u sa, aí, a palavra poeta no menos de conhecimento do Absoluto; a presença da inteligê n-
sentido grego, isto é, no sentido de artista criador, seja qual foi cia pura m ente racio n al é, nela, apenas indireta, pois o papel
196 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 197

fundamentalmente criador é, aí, exercido pela imaginação. Mas leza: a "imitação", ou "mímesis", de que fala Aristóteles, não
seria fazer violência a Aristóteles dizer que ele já estabelece de deve se confundir com a imitação estreita e servil do real -
modo preciso todas essas distinções. Ele se limita a dizer, na Ética coisa, aliás, além de não desejável, impossível, em Arte. Esta
para Nicômaco, que "a Arte é determinada faculdade de produ- não imita o real, parte de elementos reais que, na imaginação
zir, dirigida pela verdadeira razão" (cit. por Denis Huisman, loc. do artista, são remanejados e recriados, para a criação de um
cit.). Será que, falando assim na "verdadeira razão", queria novo universo, no qual a criação da Beleza não é a preocupa-
Aristóteles se referir ao intelecto total, que inclui a inteligência ção exclusiva, mas é, sem dúvida, o objetivo principal a ser
abstrata e ainda aquilo que Maritain chama de "a noite criadora atingido pela Arte.
da vida pré-consciente do intelecto"? Seria temeridade afirmá-
lo. Limitemo-nos, portanto, a expor aquilo que ele disse e as
interpretações mais correntes dadas a seu pensamento sobre a
Arte. Assim, Edgard De Bruyne afirma:

"Segundo o Estagirita, a Arte é a faculdade própria ao homem


de criar um objeto exterior. Na Natureza, uma coisa nasce sem-
pre de uma mesma coisa; na Arte, o objeto se forma graças a
outra coisa: a casa se constrói graças ao arquiteto, ou, mais
exatamente, graças à idéia concebida pelo arquiteto. Subjetiva-
mente; a Arte é uma virtude pela qual a inteligência realiza na
matéria certas regras ideais. O objetivo da Ciência é atingir a
verdade; o da ação moral é o ato moral enquanto ato; o da Arte
é criar a obra, isto é, um efeito que difere da atividade. Na cria-
ção, mesma, existe uma fruição: porque toda atividade perfeita
é acompanhada de um certo prazer; mas o artista sente prazer,
também, na obra criadora, porque ela é seu bem. No desenvol-
vimento da humanidade, as Artes úteis nasceram em primeiro
lugar... Quanto às Belas Artes, são caracterizadas, primeiro, pelo
fato de que provocam a fruição ou prazer, depois pela imita-
ção". (Ob. cit., p. 29-30.)

O problema das relações entre as Artes chamadas úteis, ou


mecânicas, e as Belas Artes, se rá examinado depois detidamen-
te; quanto ao da "imitação", repetimos a advertência já feita
anteriormente auando do estudo da teoria aristotélic;i rl;i Rt~-
CAPÍTULO 19
TEORIAS K ANTIANA, HEGELIANA E
TO MISTA DA ARTE

As Normas ou Regras da Arte

O proble ma d a na tureza da Arte é estreitamente ligado,


na Estética, à concepção geral que se te m do mun do e da
Beleza, confor m e já se afirmou aqui, antes. Vimos, assim,
Platão encarar a Arte como um processo da reminiscênc ia,
que, através dos a rq ué ti pos, procura reproduzir, do modo
mais perfeito que seja possível, os reflexos da Beleza Absolu-
ta. Já no pensam ento aristotélico, a Arte aparece como uma
faculdad e, um dom d e criar, dirigido pela verdadeira razão,
idéia que, ainda hoje, serve de dire triz para os estetas realis-
tas e o bjetivistas.
De fa to , com o d ecorrência necessári a da idéia d e que a
Beleza é uma p ropriedade d o obj eto, os estetas realistas e
objetiv istas admitem que a Arte, na sua a ti vidade criadora,
segue certas no rmas. Q ual seja a natureza de tais regras e qual
sua força di ante da liberdade criadora da imaginação, isto será
assunto poste riormente estudado. Por enquanto, fique a afir-
mat iva d e que, pa ra os estetas que se ligam ao pensamento
realista e obj etivista, a existência de tais normas é essencial à
Arte.
200 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 201

l<ant e as Regras da Arte "o paradoxo a respeito da Beleza se reencontra a propósito


da criação artística: é preciso criar uma obra que agrade uni-
Kant porém, coerente com sua crítica ao objetivismo, ·não versalmente pelo modo de excitar o jogo das faculdades e
admite participação nenhuma da inteligência na criação da Be- com um prazer que se imponha necessariamente a todos, mas
leza: como já dissemos, para ele, a Beleza "agrada universalmente não existe definição conceituai de uma tal obra nem regra
para produzi-la". (Comentário, em Le jugement Esthétique,
sem conceito". Ora, no que concerne à Arte, é decorrência fatal
p . 28.)
dessa afirmação que nenhuma norma pode ser estabelecida para
a criação e o julgamento aos objetos artísticos. A norma tem que
se derivar do objeto, através de um conceito, da inteligência, e O Gênio como Regra
isso entraria em conflito com o princípio, fundamental no pen-
samento kantiano, de que a Beleza é uma construção do espíri- De modo que, de fato, Kant constata que a criação da obra
to do sujeito, e não uma propriedade do objeto. de arte é determinada, no mínimo, por algumas constantes que
Assim, Kant termina se vendo ante um dilema: por um lado, ele próprio não hesita em chamar de "regras"; mas coerente
examinando o trabalho de criação dos artistas, constata a persis- com sua visão geral do mundo, do conhecimento e da Beleza,
tência de algumas normas, sempre presentes na atividade criado- não aceita que tais normas possam ser estabelecidas objetiva-
ra da Arte; por outro lado, negando que a Beleza seja propriedade mente. Então, só lhe resta um caminho para explicar a exis-
do objeto, não pode admitir que essas regras derivem do objeto. tência das regras da Arte, um caminho subjetivo: as regras da
Diz ele a esse respeito: Arte são constituídas pelos achados do gênio pessoal dos gran-
des artistas, achados que, depois de formulados intuitivamen-
"Toda, arte supõe regras, fundamentos graças aos quais uma te, tornam-se exemplares, isto é, transformam-se em normas.
produção, se ela merece o nome de obra de arte, deve ser re- Daí, dizer Kant:
presentada como possível. Mas a noção de Belas-Artes não per-
mite que o julgamento sobre a beleza de suas criações seja "O gênio é o talento - dom natural - que dá à Arte a sua re-
derivado de qualquer regra determinada por um conceito ... gra. E já que o talento, faculdade criadora inata ao artista, per-
Assim, nenhuma das Belas-Artes pode conceber, por ela mes- tence à Natureza, poder-se-ia também exprimir isso assim: o
ma, a regra segundo a qual deve realizar sua obra". ("Crítica gênio é a disposição inata ao espírito - ingenium - pela qual
do Juízo de Gosto, § 46 e 47, em Le ]ugement Esthétique ob. a Natureza dá à Arte a sua regra". (Loc. cit.)
cit., p. 28.)
Seria o caso de perguntar: e como é que o gênio descobre
O dilema ante o qual Kant se vê a respeito das normas da nquela disposição particular de sua obra, aquele caminho pes-
Arte, é resumido por Florence Khodoss, que o considera um ~o al que, depois, será transformado em norma? Responde
paradoxo, decorrente dos paradoxos sobre a Beleza. Diz que, Kant: por uma sensação de harmonia interior em suas facul-
no pensamento kantiano, dades. Diz ele:
202 ARIAN O SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 203

"Ne nhuma das Belas-Artes pode conceber, por si mesma, a re- Características da Obra de Gênio Exemplar
gra segundo a qual deve realizar sua obra. Mas como, faltando
uma regra preliminar, uma produção não pode receber o nome Assim, as obras do gênio, feitas ao acaso de sua inspiração e
de obra de arre, é preciso que a Natureza dê sua regra à Arte no sem q ue ele mesmo saiba como, tornam-se guias e modelos para
próprio sujeito, e isto pe la harmonia de suas faculdades; o que os outros artistas e têm quatro marcas:
quer di zer que as Belas-Artes só são possíveis como produção
do gênio". (Loc. cit.) "Primeiro, que o gênio é o talento de produzir aquilo para o
que não se saberia dar regra determinada... Segundo: as obras
do gênio devem ser, ao mesmo tempo, modelos, devem ser
A teoria kantiana da Arte teve a vantagem de chamar a aten-
exemplares, e, por conseqüência, apesar de não serem, elas
ção para o papel fundamental da intuição e da imaginação, ta n-
próprias, obras de imitação, devem ser propostas à imitação
to na Beleza, como na criação da Arte. Com seus radicalismos, dos outros, para servir de medida ou de reg ra de ap reciação.
poré m, termina afirmando essa idéia do artista-modelo e d a obra- Terceiro: o gênio ... não sabe , ele próprio, como lhe vieram
exemplar, que leva ria a Arte para os caminhos do puro aca- as idéias ... , nem como comunicar aos outros os preceitos que
demicismo, do maneirismo. Os achados pessoais do gênio, lhes permitam produzir obras semelhantes ... Quarto: a Na-
convertidos em normas, em r egras que os outros artistas devem tureza, pelo gênio, não dá regras à Ciência, mas à Arte, e mais,
exclusivamente às Belas-Artes". ("Crítica do Juízo de Gos-
imitar, term inariam tolhendo o trabalho criador em sua inven-
to",§ 46 e 47, loc. cit.)
ção e li berdade. Kant, porém, não recua diante d essa conse-
qüência de suas premissas, e vai até o fim, nela:
O resultado disso é que, segundo Kant, a criação da obra de
arte é feita segundo regras, mas d eve aparentar que não; é o re-
"Seguir um guia, e não imitar" - diz ele - "e is a palav ra sultado de uma disciplina, mas deve a parentar que não, deve sur-
própria para exprim ir a influência que podem ter sobre o u- gir como se fosse uma criação absolutamente natural e espontânea:
tros as produções de um autor transformado em modelo ...
Pelo motivo, mesmo de que o julgamento de gosto não pode "A Natureza é bela quando tem o aspecto de uma obra de arte.
ser determinado por conceitos e preceitos, o gosto é, entre A Arte, por sua vez, não pode ser chamada bela senão quando,
todas as faculdades e talentos, precisamente aquele que tem deixando-nos conscientes de que é Arte, oferece-nos, entretan-
mais necessidade de encontrar exe mplos daquilo que, no de- to, o aspecto da Natureza ... Em outras palavras, a Arte deve ter
senvolvimento da civilização, recebeu o mais constante as- a aparência da Natureza, se bem que se tenha consciência de
sentimento, se é que não se pretende tornarmo-nos de novo que é Arte ... Uma produção da Arte parece natural sob a condi-
incultos e recair na grosseria dos primeiros achados". ("Crí- ção de que as regras, que são a única coisa que permite à Arte
t ica do Juízo de Gosto",§ 32, em Le }11ge111e11t Esthétique, já ser o que ela deve ser, tenham sido observadas exatamente. Mas
cit., p. 16.) que este acordo não seja adquirido penosamente, que ele não
deixe suspeitar que o artista tinha a regra sob seus olhos e as
faculdades da alma entravadas por ela''. {Ob. cit., p. 27-28. )
204 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 205

Belas-Artes e Artes Úteis artistas que lidam com a madeira como seu material de traba-
lho. Teríamos então, no sentido crescente da Beleza e decres-
Para concluir esta breve análise das idéias de Kant sobre a cente da utilidade:
natureza da Arte, lembremos o que foi dito anteriormente ares-
peito da Beleza livre e da Beleza aderente. Escrevemos no pará- CARPINTARIA- Arte mecânica da madeira. Trabalho mais gros-
grafo 7 do capítulo VI: seiro de todos. Preocupação quase total com a utilidade
prática e quase nenhuma com a Beleza.
"Pode-se dizer que a distinção entre Beleza livre e Beleza ade-
rente se deriva da anteriormente explanada entre finalidade e
MARCENARIA- Trabalho com móveis etc. Predominância ainda
fim. São três graus de utilidade decrescente e gratuidade cres-
bem maior da utilidade, mas com presença já bem mais ní-
cente: o dos objetos puramente ligados ao fim e à sua destinação
tida da Beleza, presença mais marcante ou menos marcante
útil, como um trem; e, mesmo já dentro do campo da Beleza,
conforme o caso.
isto é, já dentro do campo da finalidade, o dos objetos que re-
presentam coisas (Arte figurativa) e os que representam simples
TALHA -Trabalho em madeira dos altares das igrejas e seme-
formas (Arte abstrata)."
lhantes. Aqui, a Beleza, já como preocupação importantíssi-
ma, muito mais importante do que nos móveis, é ainda posta
Assim, no pensamento kantiano, as Belas-Artes pertencem a
a serviço de uma destinação útil, no caso dos altares a neces-
um campo determinado, o da finalidade, no qual não se tem em
sidade de criar, nos fiéis, disposições religiosas de espírito.
vista nenhum objetivo prático, mas sim, pura e exclusivamente,
o prazer do sujeito e a harmonia de suas faculdades. Já as Artes
ESCULTURA- Finalmente, com a Escultura em madeira, temos
úteis, ou mecânicas, pertencem ao campo do fim, isto é, da o caso de uma Arte "pura", com a Beleza como preocupa-
destinação prática do objeto. ção não exclusiva mas fundamental.
A nosso ver, portanto, e ao contrário do que afirma a maior
parte dos comentaristas de Kant a esse respeito, para ele havia No caso da Estética kantiana, pode-se dizer que o corte, a
uma distinção de natureza, uma distinção fundamental, entre as separação é decisiva: enquanto a Carpintaria e a Marce:iaria
Artes chamadas "belas" e as Artes chamadas "úteis", uma linha pertencem ao campo do fim, da utilidade pura e do objeto, a
de separação radical e definitiva; tanto assim que as primeiras Escultura pertence ao campo da finalidade, da Beleza exclusiva
eram puramente ligadas ao sujeito, e as Artes "úteis" ao objeto; e do puro prazer do sujeito.
enquanto que, no pensamento realista e objetivista de origem
mediterrânea, a Arte é tudo aquilo que cria alguma coisa; adis-
tinção entre belas Artes e Artes úteis não é mais uma diferença Teoria Hegeliana da Arte
de natureza, é apenas uma questão de maior ou menor preocu-
pação com a Beleza ou com a utilidade. Tomemos como exem- Hegel, como já vimos de passagem ao tratar de suas idéias
plo particular - que serve para todas as Artes - o caso dos sobre a Beleza, procura, a respeito da Arte, conciliar os concei-
206 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 207

tos da Filosofia mediterrânea com o pensamen to kanriano, se muito o conceito do que sejam elas, chegando a afirmar, como
bem q ue, rigorosamente falando, esteja mai s aproximado daquela afirmamos há pouco, que "a obra de arte não pode subordinar-
do que deste. Por um lado, Hegel admire a crítica kantiana so- se a uma regra". Ainda seguindo Kanr, atribui ele grande impor-
bre as no rmas da Arte, quando d iz, na Estética: tâ ncia aos ach ados ind ividuais e à inspiração do gênio como
fundamento da Arte, formulando uma teoria romântica que, para
"Do conheci mento da regra só resulta uma atividade puramen-
ser bem entendida, deve ser encarada à luz daquela oposição,
te formal, porque, estand o já contida na regra roda determina-
da qual já falamos antes, entre a liberdade humana e a necessida-
ção co ncreta, tudo quanto se possa realizar será produto de uma
atividade formal e abstrata ... Não sendo um produro mecâni- de. D iz ele:
co, a obra de arre não pode subord inar-se a uma regra". (Ed.
cit., Introdução, p. 80.) "De um lado, existe a liberdade, do outro a necessidade. A li-
berdade é, essencialmente, um atributo do espírito. A necessi-
Apes:ir disso, porém , Hegel traz ao :issunro uma sugestão q ue dade é a lei da vontade natural. O intelecto mantém a oposição
será valiosa para estudarmos o problema da forma, da técn ica e entre ambas e a liberdade só existe enquanto adversária daqui-
do ofício na Arte, p roblema que será estudado depois. Afirma lo que lhe é contrário". (Ob. cit., p. 78.)

ele que várias regras se t êm for mulado no campo da Arre sobre


sua p arte mecâni ca e material - a rima no campo da Poesia, as Tal oposição, porém, deve desaparecer pelo esforço do ho-
tintas no caso da Pintura, a madeira ou a pedra no caso da Es- mem, cedendo lugar a uma conciliação, a "um princípio mais
cultura. E vai ainda mais longe, admitindo certas regras att na elevado, mais profundo, suscetível de alcançar uma harmonia
parte espiritual da criação artística: entre os dois termos, aparentemente inconciliáveis". (Ob. cit.,
p. 77.) Ora, a Arte, como dissemos antes, é, nos termos da filo-
"Além d isto - esclar<.: ce ele, continuando o tex to eirado - sofia hegeliana, u m acordo entre o sensível e o espiritual. Den-
existem preceiros que merecem ser tidos em consideração, por tro dessa idéia, afirma Hegel:
não se dirigirem apenas aos aspectos exte riores e quase mecâ-
nicos da atividade artística, mas também àquilo que se pode "A Arte, até pelo seu conteúdo, encerra-se em cercos limites, atua
considerar como atividade espiri tual exercida sobre o conteú- sobre uma matéria sensível e portanto tem apenas por conteúdo
do. Tal é, por exemplo, o precciro s<.:gundo o qual a caracteri- um dete rminado grau de verdade". (Estética, ed. cit., p. 47.)
zação dos personag<.:ns deve convir à sua idade, sexo, situação
social, posição". (Loc. cit.)
O Sensível e o Espiritual
Por aí se vê que H egel, com o pensa mento m editerrâneo,
ad mite a existência de regras para a criação e apreciação da Arte; Por aí, vemos em primeiro lugar que Hegel exigia da Arte
mas, por outro lado, com Kant, e desejando ape nas, talvez, res- uma conciliação entre o universo humano da liberdade e o da
saltar a natureza espec ia líssima das no rmas da Arre, restringe necessidade cega, brutal e indiferente da Natureza. A Arte, por
208 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À EST~TICA 209

um lado, tem uma parte espiritual, que a aproxima da Religião O Espírito como Objeto
e da Filosofia, e que faz dela, assim, uma forma de conhecimen-
to, de aproximação com a Idéia, com o Absoluto. Diferentemente A Arte procura pois, de acordo com Hegel, inserir o espíri-
das outras duas, porém, a Arte aproxima o homem do Absoluto to naquilo que é material. Tem, por isso, um parentesco com a
através do sensível, pois ela possui, também, uma parte mate- inteligência, porque o pensamento é a natureza essencial mais
rial, sendo, como é, uma tentativa de harmonização entre o sen- íntima do espírito e porque o homem, inconformado com o que
sível e o espiritual. Daí sua inferioridade perante a Religião e a a Natureza tem de puramente sensível, procura, através da Arte,
Cultura (ou a Filosofia}: introduzir o espiritual no material:

"Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o Absolu- "O espírito" - afirma Hegel na Estética - "tem a faculda-
to, a Religião e a Cultura, originadas da razão, ocupam o grau de de se considerar a ele mesmo, de se tomar, consciente-
mais elevado, muito superior ao da Arte". (Estética, p. 47.) mente, a si mesmo e a tudo o que procede dele, como objeto
de pensamento, porque o pensamento constitui justamente
Como se vê, para Hegel - como, depois, para Bergson - a a natureza essencial mais íntima do espírito ... Ora, a Arte e
Arte é "uma forma mais direta de atingir a Idéia" (de penetrar o suas obras ... são de natureza espiritual... Sua representação
real, diria Bergson). Mais direta, porém mais grosseira e sim- implica na aparência do sensível e insere o sensível no espí-
ples, inferior, portanto, à Religião e à Filosofia, porque, ao con- rito ... O poder do espírito pensante não consiste somente,
trário delas, tem "que pedir formas à Natureza'', sendo, como sem dúvida, em captar o pensamento sob a forma que lhe é
é, um acordo entre o sensível, isto é, entre o material, e o espi- própria, mas também em se reconhecer sob esse revestimen-
ritual. Hegel afirma ainda, a esse respeito: to da sensibilidade e do sentimento, em se apreender naquilo
que é outra coisa e, no entanto, é dele, fazendo um pen-
"Só é verdadeiramente real o que existe em si e para si, aquilo samento desta forma alienada e reconduzindo-a, assim, a ele
que constitui a substância da natureza e do espírito, aquilo que, mesmo ... (O espírito pensante) não pode ser satisfeito em
existindo no espaço e no tempo, não deixa de, com uma exis- d efinitivo senão quando introduziu o pensamento em todos
tência verdadeira e real, existir em si e para si. É a Arte que nos os produtos de sua atividade, e chegou enfim a esta maneira
abre os horizontes das manifestações dessas potências univer- de se aprop riar verdadeiramente deles". (Estética, textos
sais, tornando-as aparentes e sensíveis... A obra de arte provém escolhidos, ed., cit., p. 16-17.)
do espírito e existe para o espírito ... É um meio através do qual
o homem exterioriza aquilo que ele é ... Através dos objetos
Assim, parece podermos resumir o pensamento de Hegel a
exteriores, o homem (na Arte) procura encontrar-se a si pró-
respeito desse assunto através de duas afirmativas: a Arte é um
prio ... O autor da obra d e arte procura exprimir a consciência
que possui de si. Esta é uma poderosa exigência que advém do acordo entre o sensível e o espiritual; e é o espírito que se toma
caráter racio nal do homem, origem e razão da Arte". (Estética , ::i si mesmo por objeto.
p. 42-86-99.)
210 ARIANO SUASSUNA INI CIAÇÃO À ESTÉTI CA 211

Teoria Neotomista da Arte


dores dessa linhagem preferem chamar "as vias" ou os "cami-
nhos certos e determinados da Arte", nome, a meu ver, m elhor
Os escolásticos e tomistas baseiam-se nas idéias aristotélicas
do q ue aq uele, por demais rígido, d e "regras da Arte". Diz
para formular sua teo ria da Arte. Definem a Arte como "reera rario
Jacq ues Maritai n :
facribilium", ou seja, "a reta d eterminação das coisas a fazer", de
acordo com a interpretação d e Jacques Maritain (Arte e Esco- "A Arte, que tem por matéria uma coisa que é preciso fazer,
lástica, trad. cit., cap. III, p. 20). Isto significa, antes de mais nada, procede por caminhos certos e determinados ... Os escolásticos
que o ma is importante, na Arte, não é propriamente a feitura do afirmam isso constantemente, seguindo Aristóteles, e fazem da
objeto, é a criação anterior, a invenção realizada pelo intelecto. posse de regras certas uma propriedade essencial da Arte como
Note-se um pormenor, à prim eira vista sem importância : Aris- tal". (Ob. cit., p. 31 .)
tóteles colocava em primeiro lugar a atividade "fabricadora" da
Arte, digamos assim, reservando o segundo lugar para a determi- Q uer d izer: os pensadores mais ligados à tradição do pensa-
nação intelectual presente na criação artística. Os tomistas inver- mento mediterrâneo, julgam poder definir o q ue é, por exem-
tem os termos, dando mais relevo a este último. Isto porque, como plo, o Trágico e, con seqüentemente, também uma tragédia:
diz M aritain, "a obra por fazer é apenas a matéria da Arte, sua existem no rmas de ordem geral que permitem definir um acon-
forma é a reta razão". (Ob . e loc. cits.) tecimento doloroso como trágico, ou não.
Mari rain afirma ainda que a Arte é "um hábito do entendi- Maritain esclar eceu melhor, aliás, seu pensamento sobre esse
mento prático", isto é, uma força e elevação intrínsecas, uma assunto, no úl timo livro que dedicou aos assuntos estéticos:
capacidade inata que se desen volve no sujeito, um dom em ex er- Creative lntuition in Art and Poetry (Pantheon Books, Nova Yo rk,
cício, sediado, não na inteligência abstrata, mas no entendimento 1953). Diz ele:
prático, na imaginação criadora. O artista, o homem que possui
esse dom, intrínseco e que ele terá que desenvolver, o homem "As regras, nas Belas Artes, relacionam-se com uma lei de reno -
dotado dessa "disposição estável que aperfeiçoa, n a linha de sua vação perpétua infinitamente mais estrita do que nas Artes úteis.
n atureza, o sujeito em que se encontra'', é apto, então, a criar Elas devem ser regras perpetuamente renascidas, renovadas, não
só com respeito a um determinado objeto - barco, jarro o u
obras Belas; e, levado por essa vocação, procurará naturalmen-
máquina de calcular - a ser feito, mas sim com respeito à Be-
te "imprim ir uma idéia numa m atéria", ou seja, "trabalhar uma
leza da qual deve m participar; e a Beleza é infinita... Em segun-
m atéria sensível para proporcionar o prazer do espírito" .
do lugar, a obra a ser feita, no caso das belas Artes, é um fim em
si mesmo, e um fim totalmente singular, absolutamente único.
Então, cada vez e para cada obra particular, existe para o artis-
As Regras da Arte
ta um novo e único caminho a seguir em busca do fim, para
impor à matéria a forma concebida pelo intelecto ... Em tercei-
A visão tomista da Arte implica, a inda, num reexame do
ro lugar, e também porque a obra a fazer é um fim em si mes-
problema das r egras ou n o rmas da Arte, daquilo que os p ensa-
mo, e uma participação singular e original, totalmente única,
212 ARIANO SUASSUNA

na Beleza, a razão, sozinha, não é suficiente para que o artista


forme e conceba a obra dentro de si mesmo, num infalível jul-
gamento criador. Porque, como disse Aristóteles, o fim aparece
a cada um de acordo com o que cada um é... Para criar a Beleza,
o artista deve estar apaixonado pela Beleza". (Oh. cit., p. 56-
57-58.) CAPÍTULO 20
A BELEZA ARTÍSTICA E A DA NATUREZA
Assim, deve-se levar em conta aquilo que Hegel dizia, isto é,
que existem, sem dúvida, normas para a Arte. Essas normas,
porém, em sua maioria, referem-se àquilo que, em Arte, nós
chamamos o ofício e a técnica. E, sobretudo, é necessário desta-
Idéias Platônicas e Aristotélicas
car que existe uma regra suprema, cuja sede é a intuição criado-
ra do artista, e da qual todas as outras são postas a serviço. Ou
Tanto a Beleza artística quanto a da Natureza interessam à
seja, como diz Jacques Maritain:
Estética, e as opiniões dos filósofos a respeito de uma e de ou-
tra, ou das relações entre as duas, constituem o reflexo de suas
"O que eu gostaria de mostrar é o fato de que na intuição criado-
ra nós temos a regra primeira à qual, no caso das Belas-Artes, a visões gerais no campo particular da Estética de cada um deles.
inteira fidelidade, a obediência e a atenção do artista devem ser Assim, por exemplo, já vimos que Platão se preocupava muito
adstritas". (Ob. cit, p. 60.) com o problema de saber à qual das duas cabia preeminência,
decidindo-se pela superioridade da Beleza natural. Para ele, a
lk leza dos objetos do mundo sensível era um reflexo da Beleza
:1bsoluta, reflexo que seria tanto mais claro quanto maior fosse
:1aproximação que o objeto revelasse em relação a seu arquéti-
po, a seu modelo ideal:

"A obra do artista" - diz ele, na "República" - "é, não mais


próxima, porém mais afastada da Idéia do que os objetos sensí-
veis: o leito pintado é uma imitação do leito construído ... que
não faz senão reproduzir o leito ideal". (Cit. por Pierre Maxíme
Schul. Platon et l'Art de son Temps, Presses Universitaires de
France, Paris, 1952, p. XIII.)

Já Aristóteles atribuía igual importância à Beleza artística e


à da Natureza. Ou melhor: procurava refletir sobre a Beleza, de
214 ARIANO SUA SSU NA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 215

um modo e através de conceitos que alcançassem as duas ao "Não se deve procurar o Sublime nas produções da Arte, nas
mesmo tempo. Recorde-se que, quando ele fala sobre o assun- quais um fim humano determina a forma tanto quanto a gran-
to, refere-se, tanto à Beleza dos seres vivos - Beleza natural - deza; nem nas coisas da Natureza cujo conceito implica um fim
quanto à de "qualquer coisa que se componha de partes" - o determinado, como, por exemplo, os animais, que têm destino
natural conhecido; mas sim na Natureza bruta enquanto con-
que, sem dúvida, inclui a Beleza artística, isto é, a Beleza realiza-
tém simplesme nte grandeza". (Le Jugement Esthétique, já cit.,
da através de um quadro, uma cerâmica, uma novela, uma es-
p. 38.)
cultura, um poema, uma tragédia ou uma comédia. Aliás, logo
após essa referência - que se encontra no Capítulo VII da Poé-
Depois, no§ 56 da mesma obra, Kant se refere àquele uso
tica e que já citamos a respeito da Beleza - Aristóteles, expli-
artificial das coisas n aturais, incluindo-o na Beleza artística, como
cando sua definição e mostrando a importância da grandeza e
se vê das seguintes palavras:
da proporção para o entendime nto da Beleza, alude à exten-
são da obra teatral - Beleza artística - e à dos organismos vi- "O interesse que se dá à Beleza artística, onde eu incluo tam-
vos - Beleza natural - o que comprova, ainda, a afirmação bém o uso artificial que se pode fazer das belezas naturais quando
que acabamos de fazer a respeito da igualdade que, a seu ver, elas servem de ornamento" ... (Ob. cit., p. 79.)
existia entre a Beleza da arte e a da natureza.
Daí se conclui que Kant ligava o Sublime ao sentido da Na-
tureza bruta e cega, não dominada pelo fim e pela forma; e que
Kant: o Belo e o Su blime
incluía na Beleza artística o uso artificial da Beleza n atural, em-
pregada como ornamento. É de notar, a inda, que Kant, a liás
J á se disse, antes, que Kant encarava a Beleza como frac io-
dentro d e certas correntes do pensamento germânico, mistura-
nada em duas categorias principais, o Be!o e o Subli me. Suas
va implicações de ordem moral a suas idéias sobre a Beleza ar-
idéias a respeito da Beleza artística e da Beleza natural de-
tística e a da Natureza. Dizia ele que o inter esse p ela Beleza
pendem fundamentalmente dessa d istinção. Lembre -se q u e, artística por parte de uma pessoa
para Kant, o Sublime era uma construção do espírito, um sen-
timen to de terror experimentado diante das catástrofes gran- "não demonstra um espírito ligado ao Bem moral ou mesmo
diosas da Natureza. Assim, pode-se dizer q u e, para Kant, das que para ele tenda. Mas eu sustento, ao contrário" - continua
duas formas principais de Beleza, o Subl ime era a mais ligada Kant - "que um interesse imediato pela beleza da Natureza
à Natureza, o u, mais propriamente, aos espetáculos terríveis (não se contentando, a pessoa, em julgá-la com gosto) é sempre
da Natureza bruta. Quanto à Beleza artística, Kan t inclu ía sinal de uma alma boa; se tal interesse é habitual, anuncia, no
n ela, além das criações da Arte, e uso artificial das coisas da mínimo, uma disposição de espírito favorável ao sentimento
N atureza, como se faz na ja rdinagem, por exemplo. Na "Crí- moral, se ele se alia voluntariamente à contemplação da Natu-
reza". (Ob. e p. cits.)
tica do Juízo d e Gosto'', § 26, diz Ka n t:
216 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 217

A idéia de Kant a tal respeito, se bem que soe um tanto es- cos, um prazer menos puro, mas, provavelmente, mais forte
tranha a nossos ouvidos habituados a uma tradição filosófica do que aquele despertado pela contemplação serena e desin-
mediterrânea, é uma espécie de glosa germânica "analítica" à teressada do Belo.
catarse grega. Apenas Aristóteles ligava a catarse, a purificação
das paixões, ao terror e a piedade despertados pela Arte; en-
Hegel: Superioridade da Beleza Artística
quanto Kant, já anunciando o Idealismo e o Romantismo - duas
atitudes essencialmente germânicas - liga o terror e à piedade
O fundamento da visão geral que Hegel tinha do mundo é
ao solene sentimento, tão valorizado depois pelos românticos,
platônico, como ele mesmo afirma em sua Estética. Apesar dis-
que o espírito experimenta diante do Sublime, despertado pela
so, a respeito das relações entre a Beleza artística e a Beleza na-
contemplação da Natureza bruta. Afirma ele:
tural, Hegel assume posição diametralmente oposta à de Platão,
"Para julgar a Natureza dinamicamente sublime, é preciso pois atribui primazia à primeira, considerada, superior pelo fato
representá-la como excitando o terror, se bem que a recíproca de nascer duas vezes do espírito; a Beleza natural é apenas cria-
não seja verdadeira, pois nem todo objeto que excita o terror é da; a artística, além de criada, pelo absoluto é recriada pelo es-
necessariamente sublime. Para o julgamento estético, a Nature- pírito humano.
za não pode ser considerada como potência senão enquanto é Por causa disso, Hegel acha que a Estética deve limitar suas
considerada como objeto de terror". (Ob. cit., p. 41.) reflexões ao campo da Arte: no universo geral de seu pensamen-
to, a Estética é uma Filosofia da Arte, idéia que teve uma influên-
O texto final desse parágrafo de Kant contém, aliás, uma cia enorme no esteticismo e na escola chamada da Arte pura, ou
sugestão importante, porque distingue perfeitamente o terror da "Arte pela Arte". Quando Oscar Wilde se rebela contra a afir-
natural do terror estético: mação de que "a Arte imita a Natureza", a ponto de inverter a
fórmula - ''A vida imita a Arte" - está, mesmo que não tivesse
"Pode-se considerar temível um objeto sem ter medo diante dele. consciência disso, sofrendo influência das idéias estéticas de
A pessoa que tem medo não pode julgar o sublime da Nature- Hegel. Também, mais modernamente, vamos encontrar reflexos
za, do mesmo modo que aquela que é dominada pela inclina- dessas idéias hegelianas no pensamento estético de Bergson e
ção e pelo desejo não pocle julgar o Belo". (Ob. e p. cits.) Charles Lalo. Diz Hegel:

Quer dizer: o sentimento de terror experimentado dian- "A Estética tem por objeto o vasto Império da Beleza, e, para
te de uma tempestade é o terror natural; ele só se transforma empregar a expressão que melhor convém a esta ciência, é a
em terror estético, despertando, então, o sentimento do Su- Filosofia da Arte, ou, mais precisamente, a Filosofia das Be-
blime, se a pessoa domina o terror natural, colocando-se aci- las Artes. Mas esta definição, que exclui da Ciência da Bele-
ma dele e experimentando, aí, essa forma especial de Beleza za a Beleza natural não parecerá arbitrária? ... É permitido
que se caracteriza por uma mistura de terror e prazer estéti- sustentar desde agora que a Beleza artística é mais elevada
218 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 219

do que a da Natureza. A Beleza Artística é a Be leza nascida, "A Natureza não tem valor estético senão quando é vista através
e como que nascida duas vezes, do espírito. Ora, na mesma da Arre, traduzida na linguagem das obras familiares a um espíri-
medida em que o espírito e suas criações são mais elevados to, trabalhada por uma técnica ... Na verdade, existe uma Beleza
do que a Natureza e suas criações, a Beleza artística é, ela não-estética da Natureza bruta; uma Beleza pseudo-estética da
também, mais elevada do que a Beleza natural. Da mesma Natureza tipificada, ornamentada ou escolhida; e, enfim, a única
forma, abstração feira do conteúdo, uma idéia, mesmo má, Beleza verdadeiramente estética por si mesma é a da Arre... A escola
da Arte pela Arte dos Lecomre de Lisle, dos Flauberr, dos Goncourr,
da maneira pela qual nos passa pela cabeça, é mais elevada
foi a primeira a tomar nitidamente consciência da Beleza propria-
d o que qualquer produto natural, porque numa tal idéia es-
mente estética, pressentida por Kant, afirmada por Hegel e por
tão sempre presentes o espírito e a liberdade". (Esthétique,
vários outros teóricos". (Notions d'Esthétique, ed. cit., p. 5.)
rrad. francesa, Presses Universitaires de France, Paris, 1954,
vo l. 1, p. 7 .) De tudo o que fo i exposto, deve-se concluir que as reflexões
sobre a Beleza devem alcançar tanto a Beleza artística q uanto a da
Todo esse texto de H egel r evela as ligações de uma corrente Natureza; mas que, sem dúvida, a Filosofia da Arte é o núcleo
filosófica q ue vem de Platão até Bergson - sem prejuízo da da Estética; é como se a Arte não se conformasse com aquilo q ue,
originalidade de cada um, é claro. Hegel afirmava, como já vi- na Natureza, é feio e informe; um assassinato que, na vida, é feio
mos, que a Arte er a uma d as etapas mais importantes do cami- e repugnante, torna-se motivo de Beleza numa obra de arte como
nho do homem em direção ao Ideal, que, para ele, era a essência Macbeth; e é assim que a Arte parece cicatrizar o que existe de
do Real. Para Bergson, a Arte é " uma visã o mais direta da reali- chaga no mundo, chamando a vida e o mundo inteiro, como um
dade". Deve-se lembrar, porém, que, para Bergson, o real era todo, a uma espécie de "salvação estética". Daí dizer Edgard De
Bruyne que pode-se fruir a Natureza de três modos: no primeiro,
como que a essência da realidade, identificada com "o fundo
o mais vulgar, a fruição tem um fundamento puramente físico;
das coisas", u m m undo estético, "um mundo também de sing u-
no segundo, a Natureza é fruída "como pura representação";
laridade, onde tudo é único, uma esfera enfim de contingência,
enfim, no terceiro, "pode-se compreender e admirar a Natureza
onde tudo é radicalmente novo e, no tempo, imprevisível". (Cf. metafisicamen te, sob um ponto de vista religioso e místico, como
Raymond Bayer, Essai sur la Méthode en Esthétique, Flamarion a obra-prima de um Artista sobre-humano, como reflexo da rea-
Editeur, Paris, p. 9 .) lidade ideal (Platão), como a expressão inconsciente da energia
Bergson , como Hegel, acha, então, que, para se conhecer a criadora (Schelling), como o traço simbólico de Deus (Ruskin)''.
essência da Beleza, deve-se procurá-la na Arte, mais do que na Dessas três maneiras de contemplar a Natureza, parece-nos que
Natureza, pois a Arte procura expressamente criar a Beleza, somente a segunda é puramente estética. Quanto à importância
enquanto que na Natureza ela se encontra apenas por acaso. (Cf. da Beleza artística em relação à da Natureza, De Bruyne observa
Félicien Challaye, Estética, ed. cit., p . 156.) mais ou menos a mesma coisa que acabamos de afirmar, dizendo:
Charles Lalo também sustenta pensam e nto semelhante "A Arte nos faz admirar a representação de coisas que, na realida-
de, nos repugnariam, e, por esse motivo, a fruição da Arte tem
afirmando:
um campo mais largo do que a da Natureza."
CAPÍTULO 21
A ARTE E A NATUREZA

A Arte como Imitação da Natureza

A idéia de que a Arte imita a Natureza é a mais comum e é


natural que assim aconteça: na verdade, ao examinarmo~ esse
problema, a primeira solução que nos ocorre para ele é dizer
que o artista, cercado pelos variados elementos da Natureza,
sente-se impelido a dar uma espécie de resposrn a seu desafio, o
que ele faz imitando-os no universo de sua obra.
Temos alguma dificuldade em conhecer o verdadeiro pen-
samento de Sócrates, chegado até nós apenas pelas palavras de
seus discípulos; nunca saberemos se as opiniões do Sócrates dos
Diálogos platônicos eram realmente as do Sócrates histórico. De
qualquer modo, parece que o próprio Sócrates já explicava a Arte
como imitação da Natureza. Assim é que o pensador contem-
porâneo Maurice Nédoncelle afirma que a teoria da imitação

"não data de ontem e Sócrates propôs para ele uma solução


muito simples: pintar ou esculpir é imitar os seres da Nature-
za". (Maurice Nédoncelle, Introduction à l'Esthétique, Presses
Universitaires de France, Paris, 1953, p. 9.)

É, no entanto, muito significativo o fato de que, mesmo os


pensadores mais antigos, ao fazer afirmações assim diretas
222 ARI A NO SUASSUNA IN ICIA ÇÃ O À ESTÉTI CA 223

simplistas sobr e a Arte como imitação da N atu reza, com ecem lo, e, por o utro, de fazê- lo aproximar-se, o mais possível, do ro st o
também, imediatam e n te, a tecer outros co m entários em to rn o da mul he r ideal, d a m ulhe r-arqué ti po, bela, p ura e imortal, que
d elas, comentá rios q ue, quase sempre, e n tra m em ve rd adeira perma nece como essência imu tável, no u niverso d ivino d as Idéi-
contradição com a p rimeira fó rmula proposta . É como se eles as. Como co nseguir isso com o retra to de uma mul her fe ia? É o
tivessem a intuição d e que, apesa r da fa cilidad e com que a fór- q ue Platão não p o d e explicar, a pelando, então, com o Sócrat es,
mula evita t raba lhos m aio res, o p ro blema não fi cava r esoh·ido, para a solução d o "simulacro id ea l'', q ue pa rte do m od elo - ou
a solução n3o e ra bem essa. Assim é q ue Nédo ncellc continua de vá rios m o d elos - mas q ue é su perior a ele, e, portanto, m ais
sua explanação sobre a id éia d e Sócrates d izendo: ap rox imado do arquétipo. Pierre Maxima Sch ul, comentarista
de Platão, afi rma, po r exem plo :
" Entretanto, Sócrates não tem o costume de se valer de um sim-
ples d ito para resolver uma dificuldade. A imitação d a Nature- "Acontece a Piarão aludir, de passagem, à importância do pin-
za não é, para ele, uma fórmula sem come ntários. Ele a comenta. tor que soubesse desenhar um tipo de homem o mais belo possí-
Recomenda a seus interlo cuto res que não copiem scrvilme nte vel, m~smo que não possa mostrar um moddo que corresponda
seus modelos, mas sim que tomem de cada u m aquilo que ele a ele e que exista na realidade". (Ob. cit., p. XIII. )
tem de mais belo, compo ndo desse modo um simulacro supe-
rior à realidade, ou, pelo menos, a cada real idade tomada sepa-
Essas afi rmações de Platão influenciaram bastante a é poca
radamente". (Ob. e p. cits.)
de decad ência d a Arte grega e latina, não send o raro encon trar-
mos, às vezes, as coisas m ais ingênuas daí originadas, com o é o
A Imitação da Natureza no Pensamento Platônico caso de artistas que procu ravam as m ulheres m ais belas para,
fazen do um traba lho de escolha, copiar, de u ma, as mãos, de
A id éia socrática sobre a imi tação da N atureza renasce cm outra, o nariz: tentavam, assim, chegar a um resultado o mais
Platão, sob fo rma m ais precisa, de u m id ealismo ma is d e fini d o. aproximad o possível da n~ :.i lher- tipo, cuja beleza, por sua vez,
Segund o Pla tão, o artista, ser ia reflexo da Beleza absoluta. Challaye faz, a esse respeito,
uma crítica bastan te p rocedente, d izendo :
"com o olhar fixo no Ser imutável e servindo-se de um modelo
semelhante, trata de reprod uzir a Idc:ia e a virtude e, desse modo, "O idealismo parece singularmente vago. O que seria, finalmen-
pode criar uma obra de Beleza perfeita". ("Ti meu", cit. por te, esse ideal de Beleza sobre o qual o artista deveria aplicar seu
Challaye, ob. cit., p. 7 5.) espírito antes de empreender a obra de arte?" (Ob. cit. , p. 76 .)

J á citam os essa passagem do "Timeu'', m as voltamos a ela, E sobretudo, indagaríamos nós, como explicar a Beleza de
agora, para mostrar o dilem a cm que Pla tão se en co n tra pa ra uma obra-prima que, como a velha prostituta modelada cm bron-
for m ular sua t eoria d a Arte. O artista q ue va i p imar o retrato d e ze por Rodin, represente uma mulher vel ha, fe ia e doente, isto
uma m ulher, tem , po r um lado, de reproduzir o rosto do mode- é, a m ulher me nos apta a evocar a mulher ideal? As idéias de
224 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 225

Platão a esse respeito são bastante vagas. A única coisa que pa- do prazer estético. Aristóteles, que era tão preciso, mostra-se,
rece lícito afirmar sobre isso é que, para ele, a Beleza natural aqui, confuso e contraditório, o que leva Moritz Geiger a afirmar:
reflete a Beleza absoluta, a qual brilha para ela através do ar-
:iuétipo de cada coisa; na Arte, certas pessoas dotadas, partindo "Tal teoria falha em absoluto, quando pretende explicar o prazer
::las coisas da Natureza, procuram através da imitação e de um - não do artista, mas do espectador - ante a obra de arte.
processo de seleção, reaproximar-se do modelo divino, criando O espectador não participa da atividade imitadora. E, assim, Aris-
;imulacros ou imagens idealizadas, superiores às coisas reais. tóteles socorre-se do pouco eficaz expediente de afirmar que a
satisfação de reconhecer o imitado, representado na obra de arte,
é um momento essencial do prazer estético". (Ob. cit., p. 34.)
A. Imitação da Natureza no Pensamento Aristotélico
A nosso ver, a teoria da imitação da Natureza pela Arte não
Aristóteles foi quem primeiro colocou, em termos explíci- explica nem o prazer da contemplação nem o da criação artísti-
tos, o problema da Arte como imitação da Natureza. Diz ele, na ca. Basta que lembremos, sobre a criação, o fato de existirem
"Poética": artes abstratas, como a Música pura, ou como a Pintura não-
figurativa, nas quais o prazer da criação não pode se explicar
"Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a Poesia pela alegria de representar o imitado. E, quanto à contempla-
(a título de espírito criador de todas as Artes). O imitar é congê-
ção da Arte, se a alegria de reconhecer o imitado fosse o funda-
nito no homem, e nisso difere ele dos outros viventes, pois, de
mento do prazer estético, nós não poderíamos gostar do retrato
todos, é ele o mais imitador; por imitação aprende as primeiras
de Inocêncio X, de Velasquez, uma vez que não conhecemos o
noções, e todos os homens se comprazem no imitado. A prova é
o que acontece no artefato (isto é, no objeto feito pela mão do Papa que serviu de modelo para essa obra-prima da Pintura de
homem): nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas todos os tempos. O mais curioso é que o próprio Aristóteles se
daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância (na rea- apercebeu dessa falha de sua teoria, pois conclui as palavras que
lidade), como, por exemplo, as representações ... de cadáveres. acabamos de citar com o seguinte texto que desmente, de modo
A causa (disso) é que o aprender não só muito apraz aos filóso- cabal, o início:
fos, mas também igualmente aos outros homens, se bem que
menos participem dele. E, efetivamente, tal é o motivo por que "Se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum
se deleitam ante as imagens; pois, olhando-as, podem aprender prazer lhe adviria da imagem, como imitada, mas tão-somente
e discorrer sobre o que seja cada uma delas" ... (Poética, trad. da habilidade da execução, da cor, ou de qualquer outra cau-
Eudoro de Sousa, já cit., p. 71, nº IY.) sa". (Loc. cit.)

A teoria da imitação, nos termos em que foi colocada por Quer dizer: como a Poética é um conjunto d e anotações es-
Aristóteles, suscita uma série de dúvidas e problemas, entre os critas para aulas, pode ser que, oralmente, Aristóteles explicas-
quais talvez o mais importante seja o da explicação satisfatória se melhor aquilo que verdadeiramente significava para ele a
226 ARIANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉTICA 227

mímese, ou imitação. Da maneira pela qual ele as deixou escri- nas artes figurativas ou naturalistas por destinação, existem
tas, suas palavras são indecisas. Veja-se este último período seu, gêneros que se consagram a se afastar da Beleza natural: é o
citado: a dúvida que ele levanta é aguda, mas a solução imedia- caso da Arte decorativa, estilizada ou abstrata, do arabesco, do
tamente apresentada não podia ser mais vaga e imprecisa, pois retrato. A Beleza natural dos modelos não entra em nada na
Beleza artística deste: o retrato de uma bela mulher não é ne-
dizer que a Arte e o prazer estético se explicam pela " habilidade
cessariamente um belo retrato, e o retrato de uma mulher feia
da execu ção'', pela "cor" ou por " qualquer outra causa'', é a
ou insignificante da Natureza pode ser uma obra-prima". (Ob.
mesma coisa que nada. E o fato é que modernamente a teoria
cit., p. 7-8-9.)
da imitação parece abandonada. Geiger acentua que, a cada
geração, ela ressurge, de tal forma e com tanto vigor, que deve
Deve-se fazer, aí, um reparo a Lalo : ele não deveria ter se
haver "fortes motivos psicológicos e lógicos que a ap óiam" (ob.
referido aos retratos juntamente com a Pintura abstrata, pois os
cit. , p. 32). Mas, sem qualquer desejo de inovar por inovar, acre-
problemas suscitados por um quadro abstrato e por um retrato
ditamos que não existem motivos suficientemen te fortes para
são bastante diferentes, como bastante diferentes são as relações
manter uma palavra, que causa tantos equívocos no campo da
de ambos com a Beleza natural. De qualq uer forma, suas pala -
Arte e no da Estética, como a palavra "imitação". É evidente que
vras são b astante esclarecedoras sobre a controvérsia da imita-
a Arte não imita a Natureza, motivo pelo qual a teoria da im ita-
ção e parecem concordar com as de Geiger, que diz:
ção deve ser precisada como teoria da recriação, ou da transfi-
guração : a Arte não imita a Natureza, ela a recria e transfigura.
"Todas as teorias da imitação, por mais diversamente que se-
Fala ndo da Beleza artística e da Beleza natural, Kant fez um
jam elaboradas em particular, padecem de uma série de vícios
comentário que traz uma luz inteiramente nova ao assunto. Diz radicais. O conceito de im itação só pode se apl icar comoda-
ele que " a Beleza natural é uma coisa bela; a Beleza artística é a mente à Pintura, à Escultura e à Poesia, mas não à Música, nem
bela representação de uma coisa'', frase que Charles Lalo con- à Arquitetura, nem à Arte o rnamental, nem à Dança, a menos
clui, d izendo: "de uma coisa que não é, já, forçosamente, bela que se reco rra a retorcidas e arbitrárias inte rpretações ...
na Natureza" (Notions d'Esthétique, já cit., p. 8). E Lalo afirma, A teoria da imitação não se justifica nem mesmo nas Artes em
explicand o porque não é aceitável a teoria da imitação: que mais evidente parece, Pintura, Escultura e Poesia (Litera-
tura). A representação de um objeto é a condição prévia, mas
"Seguir a Natureza é o conselho de todos os mestres, e o retor- não o conteúdo de seu valor artístico. O que importa não é o
no à Natureza é o soberano recurso de todos os reformadores, fato da apresentação exata, é o modo de realização" . (Ob. cit.,
a pretensão de mu itos jovens ... De fato, existem tantas nature- p. 36-37.)
zas diferentes quantas são as escolas de arte. Essa divergência...
verifica-se por três fatos principais: primeiro, artes inteiras são Jacques Maritain, com sua formação aristotélico-tomista, faz
criações quase inteiramente artificiais, para as quais a Natureza
uma aguda crítica à teoria da imitação, mas, ao mesmo tempo,
forn ece apenas os elementos, mas não as combinações: é o caso
pretende salvar o nome:
da Música, da Arquitetura e mesmo da Poesia. Depois, mesmo
228 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 229

"Em certa medida" - afirma ele, cm Arte e Escolástica - "o contrário: talvez não tenha existido, na Literatura do século
artista faz sempre violência à Natureza ... Se se entendesse por XIX, uma corrente literária mais criadora de "monstros defor-
imitação a reprodução ou cópia exata do real, seria necessá- mados" do que o naturalismo. É q ue, de fato, Zola, desejando
rio dizer que, além da arte do cartógrafo ou do desenh ista de copiar pessoas e acontecimentos da vida real, somente via, na
chapas anatômicas, não existe arte de imi tação ... As artes de realidade, aquilo que correspondia a seu estranho universo
imitação não têm como fim nem copiar as aparências <la Na-
interior. A verdade total da vida e do mundo são inapreensíveis
tureza nem figurar o ideal, mas sim fazer o objeta belo, mani -
para o artista, como para qualquer homem. Apenas acontece
festando uma forma com a ajuda de signos sensíveis". (Ob. cit.,
que o artista é mais sensível e tem mais imaginação criadora
p. 79 e segs.)
do que a maioria. Os aspectos do mundo que o impressionam
mais, desde a infância, vão, aos poucos, moldando seu univer-
É preferível, porém, como já dissemos, abandonar esse nome
so interior. Dizia Stendhal: "Se não sou claro, todo o meu
tão equívoco d e imitação: m esm o na arte dos ca rtóg rafos,
mundo se aniquila." Quer dizer: Stendhal tinha consciência de
existem mapas tão pessoais, tão " reinventados'', com suas ro-
possuir, dentro de si, um mundo particular que, no caso dele,
sas-dos -ventos, golfi nhos, barcos e outras coisas 1 E as próprias
era muito mais ligado ao real do que o de Zola - apesar de
convenções dos mapas mais simples, não serão, já, recriações
que este procurasse tanto ser "realista e naturalista". É esse
meio abstratas do real? Goethe dizia que o pintor que se ocu-
mundo interior que o artista procura expressar - e não a
passe em reproduzir exatamente um cachorro real, no fim de
Natureza. As formas da Natureza, os acontecimentos da vida,
seu trabalho não teria realizado um quadro, teria conseguido
só podem, primeiro, fornecer os elementos para a formação e,
apenas um cachorro a mais. E Edgard De Bruyne parece subs-
depois, para a recriação deste mundo, que, aos poucos, sem
crever essa afirmação, quando escreve:
querer, o ar tista vai decantando inconscientemente dentro de
si e que termina por formar seu tesouro particular, aq uilo que
"Se a Arte só fizesse im itar a Natureza a ponto <le criar a ilusão
o distinguirá de todos os outros. Se Ingres copiasse o real, nós
do real, tornar-se-ia supérflua... Se a teo ria de Aristóteles fosse
não reconheceríamos tão faci lmen te seu estilo de retrato para
verdadeira, se a Arte fosse uma imitação que visa o prazer, aquele
que imitasse melhor as vozes dos animais seria um grande artis- retrato. Certa vez me sucedeu um caso curioso: vi um retrato
ta, conforme observa Li pps ... Em suma, se o prazer estético de Henrique VIII pintado por Holbein e outro, do mesmo Rei,
resultasse de uma comparação vantajosa entre a representação pintado por outro artista. Depois, passados muitos anos, vi o
e o modelo, não se pod~ria fruir de nenhuma obra de arte sem retrato de um nobre inglês pintado por Holbein: havia maior
conhecer o modelo". (Ob. cit., p. 11 6. ) semelhança entre os dois quadros de Holbein (cujos modelos
eram diferentes) do que entre os dois retratos de Henrique VIII
Nós vamos mais longe, ai nda: mesmo os artistas que pre- pintados por dois artistas diferentes. É que, mesmo fazendo
tendem ou pretenderam copiar exatamente a Natureza, recriam- retratos, Holbein expressava aquele seu mundo, aristocrático
na, sem querer. Parece que Ingres dese java isso na Pintura, e e harmonioso, que se tinha formado d entro dele a partir do
Zola na Literatura, mas nenhum dos dois o consegui u. Pelo mundo real, e que, depois, novamente partindo de elementos
230 ARIANO SUASSUNA

do mundo real, ele tentava expressar, recriando a vida e o ros-


to dos outros à sua maneira.
Em suma, quando lança mão dos elementos da Natureza (e
ele pode não lançar, como no caso do músico e do pintor abs-
trato), o artista, mesmo sem querer, conformará tais elementos CAPITULO 22
aos aspectos radiosos ou obscuros de seu universo interior e é 0 FEIO NA ARTE
isso que caracterizará sua maneira particular, singular, única, in-
confundível. Por esse motivo, não acredito, também, que o nome
deformação exprima bem o processo criador da Arte: o artista
não deforma a Natureza; lança mão de seus elementos, recria-
os e transfigura-os, para conformá-los ao universo particular que Arte Feia e Arte do Feio
a vida, com seus desvios, rotas, obstáculos e ferimentos, criou
dentro dele e que é seu motivo de glória e humilhação. Quando abordamos o estudo das fronteiras da Beleza, já
esboçamos, de passagem, o problema do Feio, mostrando que
nem sempre os artistas eram atraídos pelo Belo, isto é, por aquela
forma especial de Beleza que se baseia naquilo que, na Nature-
za, já é belo e que se caracteriza pela harmonia, serenidade e
equilíbrio nas proporções. Dissemos que existem artistas que,
pelo contrário, acham as formas mais ásperas do Feio mais ex-
pressivas, menos comuns, menos tendentes ao sentimentalismo,
à pieguice, à uniformidade e à monotonia.
Mais proximamente ainda, ao tratar dos problemas referen-
tes à imitação da Natureza pela Arte, fizemos referência a um
texto da Poética, de Aristóteles, o qual coloca, também, o pro-
blema do Feio, dizendo:

"Nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daque-


las mesmas coisas que olhamos com repugnância, como, por
exemplo, as representações ... de cadáveres". (Poética, ed. cit.,
cap. VI, p. 71.)

Quer dizer: Aristóteles já se apercebia de que se alguns ar-


tistas manifestavam preferência pelo Belo - e para criar a Bele-
232 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 233

za, partiam daquilo que, na vida e no mundo, já é belo - havia presença do Feio e do Mal, no mundo e nas obras de Arte. Se-
outros que procuravam fundament::ir suas obras no que é feio e gun do ele, a presença do Feio e do Mal, num e noutras, é
até repugnante, como, por exemplo, um pintor que pintasse um legítima, para acentuar e valorizar o Belo e o Bem, através do
quadro c ujo assunto fossem cadáveres apodrecidos. contraste. Apesar do fundamento platô nico de seu pensamen-
Outra coisa para a qual devemos, de início, chamar atenção, to, Agos tinho partiu de uma fórmula a ristotélica para legitimar
é a necessidade de distinguir a Arte "feia" - isto é, a Arte falha- a p resença do Mal e do Feio nas obras de arre. De fato, o s
da, mal realizada, incar::icrerísrica - da Arre "do feio", isto é, da aristotélicos diziam que a Beleza consistia em "unidade na varie-
boa Arte que cria a Beleza a partir do Feio, e não do Belo. Esta é dade"; uma coisa era bela quando um artista conseguia impri-
a que interessa à Estética, porque a primeira, a Arte fe ia, falhada, mir unidade a uma va ri edade de partes. Os pensadores mais
está, automaticamente, excluída do campo estético. A outra, en- tímidos entendiam, porém, que 1:ssa "varinlaJe de partes" sig-
tretanto, pelo contrário, exerce uma espécie de estranha a tração 11i ficava uma "variedade de partes belas". Agostinho, porém,

sobre os artistas e o público; e como, de certa forma, ess:i atração :1firmava que tal fórmula de ve ria ser aprofundada: uma obra de
:1rre era bela quando um artista dava unidade a uma variedade
é um e nigm:i, tem sido, ela, objeto de :inálise pelos pensadores,
de partes que, na Natureza, podiam ser belas e feias; as partes
desde os mais antigos até os contemporâneos.
k ias entrariam como elemento valo ri zador das belas, e a fór-
11111 la aristotélica, "unidade na variedade" de ve ria ser apro-
Teoria Agostiniana da Beleza fundada e ampli ada a tal ponto que pudesse ser reformulada
como "unidade de con trastes'', como "oposição de contdrios".
Os gregos de orientação platônica exclufam de su:is refle- Diz Bernard Bosanquet:
xões tanto a Arre feia como a Arte que parte do Feio para cons-
tru ir a Beleza; dentro de se u p ensamento é lógico, ali<1s: se, para "A variedade correlativa à unidade na Estética formal antiga é

eles, a Arte é u ma tentativa de aproximação dos arq uétipos, dos apro fundad a por Agostinho na oposição dos contrários, que ele
consi<lcra essencialmente incluí<la dentro da harmo nia do Uni-
modelos ideais de todas as coisas, os seres feios devem ser colo-
ve rso, como num belo canto, ou nas antíteses da Retó rica, ou
c1dos de lado, porque somente os belos refletem com mais in-
nas partes sombrias de um qu:idro, que não o aíeiam, se estive-
tensidade a BelCLa ideal, absoluta.
rc.:m coloc:i<las no lugar devido ... A css0ncia <lcssa teoria estri-
/\las, de modo mais o u menos inesperado, é um pensador
ba-se cm reconhecer o Feio como elemento subordinado ao
de subs trato pbtônico, Santo Agostinho, aquele que primeiro J3clu, ao qual serve de fundo para que ele ressalte; contribuin-
tentou resolver explicitamente o problema da Arte do Feio. do, porém, para produzir, no conjunto, um efeito que é ha rmo-
Aristó teles só tratou do problema de modo implícito, corno aca- nioso ou simétrico, to tc1l111emc uu quase, no sentido tradicional".
bamos de ver; San to Agostinho, porém, talvez pelas caracterís- (História da Estética, ji cit., p. 161.)
ticas peculiares de sua religiosidade, falou dele d e modo claro,
apresentando uma explicação que, se não resolve imeiramente A solução agostiniana, apesar de insuficiente, como ji vere-
o problema, tem a vantagem d e "legitimar", digamos assi m , a 111os, tem ressonância ainda hoje, na Estética contemporânea.
ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 235
234

O Feio no Pensamento Hegeliano


M. Nédoncelle, por exemplo, revela a marca que dela recebeu,
quando afirma:
Como se vê, o problema não é fácil. Pelo contrário: oferece
tais dificuldades, que alguns pensadores, como H egel, por exem-
"Como é que uma Divina Comédia pode comportar um Purga-
plo, chegam a negar a possibilidade de virem o Mal e o Feio a se
tório ou um Inferno S(:m decair da própria Beleza? A esse pro-
transformar em pontos de partida para a criação da Beleza. Diz
blema perturbador, é preciso responder que todas as coisas,
ele, falando, na Estética, a respeito do Trágico:
inclusive o sofrimento e o crime, são chamadas a uma salvação
estética. É, mesmo, a única salvação que lhes resta. Pois (in-
"A feiúra do conteúdo permite menos ainda uma Beleza pura
cluindo-se o Mal e o Feio na Beleza artística) o império do va-
da forma. A sofística das paixões pode, por uma pintura verda-
lor se estende finalmente àquilo que o contraria e faz a feiúra
deira do talento, da força e da energia do caráter, ensaiar a re-
colaborar em seu ato. O gênio conduz os seres mais feios e os
presentação do falso (ou do Feio) sob as cores do verdadeiro
sentimentos mais ignóbeis em seu impulso. Ele os introduz num
(ou da Beleza), mas então ela nos coloca sob os olhos apenas
conjunto mais vasto, como acordes dissonantes em sua sinfo-
um sepulcro caiado". (Ob. cit., p. 145.)
nia. Sustentar que o Mal, sendo particular, realça a excelência
ao conjunto, é insuficiente do ponto de vista metafísico, e re-
Isto significa que, para Hegel, um artista que lança mão do
voltante do ponto de vista moral, mas consolador e verdadeiro
Feio e do Mal como assunto para seu trabalho criador, está ape-
do ponto de vista estético". (Introduction à l'Esthétique, já cit.,
p. 44-45.) nas revestindo a podridão com uma forma bela, da mesma ma-
neira que um pedreiro recobre com um túmulo bem construído
Ora, apesar do que diz Nédoncelle, sustentar que o Feio e o os cadáveres decompostos que estão no seu interior.
Mal só são legítimos para realçar a excelência do conjunto, pa- Edgard De Bruyne apresenta sugestões valiosas para a solu-
rece insuficiente até do ponto de vista estético. Como se expli- ção do problema, se bem que, de vez em quando, estrague essas
caria, então, a Beleza das obras de arte que se baseiam unicamente sugestões com outras afirmativas que a contradizem, mostran-
no Feio? Como se explica a beleza, não da Divina Comédia, como do-se indeciso e mesmo confuso, às vezes, sobre alguns dos pon-
conjunto, mas a daquela parte mais áspera, baseada unicamente tos-chaves do assunto. Assim, por exemplo, diz ele que o artista,
naquilo que é sombrio, feio e repugnante, que é o "Inferno"? "pela reprodução de cenas repelentes, pretende nos afirmar sua
No entanto, das três partes do poema imortal de Dante, o "In- habilidade técnica vitoriosa, mostrando-nos que ele pode tratar
ferno" talvez seja a mais bela e forte. Se Dante tivesse escrito tanto o Belo clássico quanto o Feio". Ora, por um lado, isso reduz
somente o "Inferno'', seu lugar já estaria assegurado entre os a Arte à habilidade técnica, o que é absolutamente falso, e, por
maiores gênios que a Humanidade já produziu; e, no entanto, a outro, não resolve o problema do Feio na Arte; tanto assim que
beleza do "Inferno" não poderia, mais, ser legitimada como ele- o próprio De Bruyne conclui sua reflexão dizendo: "Mas isto
mento de contraste, como o acorde dissonante destinado a "real- não explica o motivo pelo qual certos artistas se sentem como
çar a excelência do conjunto". que forçados a se ocupar (não do Belo) mas antes do fantástico,
236 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 237

do estranho e do repugnante''. (Ob. cit., p. 319.) Ao que se de- "Por que o Feio nos causa esta singular mistura de sentimer.-
veria acrescentar, talvez, que essa teoria não explica porque a tos de horror, de temor, de repulsa, de piedade, de curiosida-
habilidade técnica vitoriosa de mostrar o Feio é bela. de? É porque ele nos revela o profundo mistério da nossa
De Bruyne apresenta, ainda, algumas idéias pouco satis- realidade complexa, porque ele nos faz sentir, num mistério
estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos espreita e
fatórias, reflexos de sugestões anteriores, bebidas em Aristóteles,
que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas esperan-
Santo Agostinho e Kant. Quanto a Aristóteles, ele repete aquela
ças e nossos pensamentos ... Quando o Feio surge na Arte, é
idéia de que o prazer proporcionado pela Arte vem da alegria um meio de ... nos fazer captar de modo intuitivo, o sentido
de reconhecer o imitado, de contemplar coisas que a vida co- da vida". (Loc. cit.)
mum não nos permite admirar. Quanto a Kant, ele parece ter
ficado impressionado com uma idéia pouco eficaz do filósofo Parece, portanto, que a solução do problema do Feio n<>. Arte
alemão sobre o assunto: Kant afirma que o papel principal do tem que partir daquela idéia de representação à qual Aristóteles
Feio como assunto da Arte é mostrar o domínio do gênio sobre já se referia e que levou Kant a fazer aquela assertiva que já cita-
o dado sensível feio - o que não explica porque é que o dado mos antes, devidamente completada por Charles Lalo: a Beleza
sensível, antes feio, passa a ser elemento de Beleza nas criações natural é uma coisa bela; a Beleza artística é a bela representação
da Arte. Finalmente, quanto a Santo Agostinho, De Bruyne re- de uma coisa que pode, inclusive, ser feia e repugnante, na Na-
pete mais ou menos a idéia de que o papel do Feio nas obras de tureza. A Arte do Feio é Arte da Beleza tanto quanto a Arte do
arte é o de fazer brilhar o Belo, pelo contraste. Suas palavras são 13elo, é tão legítima quanto esta última. Diante dessas ásreras
as seguintes: formas de Arte que lidam com o Feio, o contemplador experi-
menta um choque, uma espécie de fascinação misturada de re-
"Quando o Feio surge na Arte, é um meio de nos fazer admirar pulsa, e a impressão causada por obras desse tipo é inesquecível.
a vitória do gênio sobre o dado, de fazer o Belo brilhar mais, e,
f\. Arte do Feio como que nos reconcilia com as contradiçõeJ, os
sobretudo, de nos fazer captar, de modo intuitivo, o sentido da
crimes e a feiúra da vida, por apresentar tudo isso representado
vida, de contemplar coisas que a vida ordinária não nos permi-
te admirar". (Ob. cit., p. 319-320.) num outro universo em que aquilo que é chaga aparece cicatri-
zado e domado. Certos artistas e escritores, de espírito mais
O que nos parece excelente, aí, é essa sugestão de que apre- dionisíaco do que apolíneo, sentem-se atraídos pelo obsceno,
sença do Feio nas obras de arte nos permite captar, de modo pelo grotesco, enfim, por todos esses elementos mais ligados à
intuitivo, o sentido da vida. De fato, a vida e o mundo não são feiúra e à desordem da vida. Ao fazê-lo é porque sentem uma
compostos somente do partes belas, de modo que a Arte que se espécie de revolta contra a desordem e um desejo secreto de
preocupa unicamente com o Belo é, t alvez, mais pura, mas é recriar a vida, restaurando-a em sua integridade inicial. Diante
muito menos forte, complexa e asperamente eficaz do que a Arte de suas obras, experimentamos um choque, causado pela capta-
do Feio. O que leva De Bruyne a fazer sua melhor reflexão so- \:Ío intuitiva de algo direto, violento, primordial e elementar,
bre o assunto. Indaga ele, para dar, logo depois, a resposta: algo diretamente ligado ao enigma do mundo. Com isso, conse-
238 ARIANO SUASSUNA

gue-se, também, uma correspondência maior entre o universo


da Arte e o da realidade, na sua diversidade e no seu imprevisto.
E finalmente, com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o
subterrâneo da natureza humana e o fundamento de desordem
do real, assim colocados diante de nós como uma visão inte-
CAPÍTULO 23
gral do nosso destino, no que tem de belo e bom; mas também
A ARTE E A MORAL
no que possui de falhado, de cruel e infortunado.

A Presença do Mal na Arte

Quando, no capítulo anterior, tratamos do problema do Feio


nas obras de arte, já aludimos, de passagem, a outro que tem
estreita correlação com este assunto: é o das obras de arte que
lançam mão do Mal. Não vamos aqui, de início, examinar exaus-
tivamente, de um ponto de vista metafísico, o problema do Mal,
que, por si só, é um enigma bastante poderoso e amplo. O que
nos interessa mais diretamente é o Mal como assunto da Arte,
de modo que, sobre a natureza do Mal, vamos apenas dar como
propostas três afirmações. A primeira é a de que o Mal é, como
o Feio, uma das faces da desordem do mundo e da vida. A se-
gunda é a de que o Mal e o Feio são privações, são chagas do ser.
A terceira é a de que isso não importa em minimizar a impor-
tância, a poderosa importância do Mal e do Feio, no universo
da realidade e, conseqüentemente, no universo da Arte. As pes-
soas que julgam antiquada qualquer referência à Moral, normal-
mente se envergonham de usar, ainda, os critérios de Bem e de
Mal para qualquer julgamento, em geral, e para o julgamento
estético em particular. Para elas, ou não existem as categorias
do Bem e do Mal, ou, se existem, a Arte está colocada para além
delas.
240 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 241

No século XX, por influência de Nietzsche, toda uma <Írea das no mesmo momento, depois de to rturadas. Os es tudantes,
do pensamento ocidental passou a colocar o comportamento sempre, ho rrorizados, recuam do amo ralismo que afirmaram ;
humano "para além do Bem e do Mal"; e, n o que se refere aos decla ram que absoluta mente não acham isso legítimo - e a í,
problemas estéticos, parece que foi p rincipalmente por influên- então, eu já tenho am biente para dar minha aula com todos eles
cia de Oscar W ilde e André Gide que se passou a considerar a num estad o de espírito do qual foram banidas a superficialida-
Arte como su per ior e imune a qualque r determinação de ordem de e a paixão.
moral. As pessoas menos avisadas sobre os problemas filosófi-
cos não costumam examinar as coisas até o fim e tirar todas as
conseqüê ncias de princípios que afirma m levianamente, sem Duas Posições Extremas: Gide e Hegel

maior exame. Perm ita-se que cu dê, aqui, um depoimento pes-


soal de Professor. Quase sempre, quando, nas minhas aulas de Para colocar bem o problema elas relações da Arte com a
Moral é conven iente partir de duas posições extremadas, por-
Estética, vou tratar do probl ema das relações da Arte com a
:iue elas têm a vantagem de, pelo m enos, fazer afirmativas radi-
Moral, faço inicialmente, de propósito, uma espécie Je inquéri-
:a1s e claras, a partir das quais pode-se refletir com serenidade
to entre os estudantes. Q uase sempre, o resultado do inquérito
>Obre um problema tão complicado, tão perturbado, por a res-
indica que, na opinião dos estudantes, a Arte nada tem a ver com
tas de todo tipo. A primeira dessas posições é assumida por
a Moral - o que, al iás, em princípio, (mas so mente em princí-
Hegel, naquele texto riue já cit::imos e no qual ele afirma que a
pio), está certo, como veremos daqui a pouco. Mas tam bém quase
Arte q ue lança mão do M al é ilegíti ma, pois o artista que assim
sempre, depois que eu coloco de novo o problema tirando, ra-
1ge reveste uma podridão d e uma forma bela, realizando ape-
dicalmente, todas as conseqüências lógicas da afirmação, todos
nas uma espécie de "sepulcro caiado". A segunda, de André Gide,
os estudantes recua m da po sição tomada. Para isso, eu costumo
faz uma afirmação diametralmente oposta : a única Arte legíti -
retirar o problema das áreas mais polêm icas. Por exemplo: quan-
ma é a q ue se coloca ao lado do Mal, tendo a coragem de ass u-
do se faz a pergun ta a respeito das relações entre a Arte e a Moral,
mi-lo como valor supremo, pois nem se faz Arte com bons
as pessoas menos avisadas costumam ide ntificar esse problema sentimentos, nem existe obra de a rte feita "sem a colaboração
com o da presença, nas obras de arre, de cenas eróticas e "obs- do Demônio".
cenas". Então, para retirar a reflexão dos estudantes de um cam- A colocação d a Arte como atividade meio "suspeita" de
po o n de a passionalidade perturba tudo, costumo indagar se eles amoralismo o u de corru pção é bastante an tiga: Platão já fazia
consideram legítima, do ponto de vista moral, uma obra de arte tal acusação, considerando-a como amolecedora d e costumes e
que pregue o assassinato de crianças. Pergunto se eles acham pregando a proscrição dos artistas e poetas d e sua "sociedade
legítimo que se entregue a personalidades a inda não formadas, perfeita" : "A lei deve banir da Rep ública os ar tis tas e sobretudo
uma obra de arte literária, escrita por um g ra nde escrito r de os poetas", di zia ele, e essa opin ião tem tido muitos seguidores
personalidade doentia e crirninos:i, e que d ifund isse, entre os durante todos os tempos, uns mais radicais, o utros menos, mas
adolescentes, a idéia de que o prazer sexual é muito mais inten- todos ma is ou menos unâni mes em encarar a atividade artística
so se é obtido através da viola cão de cri:rncas aue são assassina- como prejudicial aos costumes.
242 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ES TÉTICA 243

Contra esses existem, porém, outros que consideram a Arte centa Maritain - , "se existem coisas que o artista não é bas-
como o cume mais elevado do espírito humano, colocando a tante puro para tratar sem entrar em conivência com o Mal, é
melhor, para ele e para os outros, não tratá-las. Que espere um
b usca e a criação da Beleza acima da procura da Verdade, como
pouco. Quando for um santo, fará o que quiser". (Ob. e p. cits.)
acentua De Bruyne ao tratar da significação cultural da Arte. (Ob.
cit., p. 374.)
De nossa parte, acredito que o problema não pode ser colo- Maritain: uma Tentativa de Explicação
cado em termos claros se não só levar em conta o fato de que
ele tem duas faces: uma, refere-se ao primeiro momento fun da- Pelo que se vê, o segundo texto tira quase toda a significa-
mental da Arte, que é o da criação da obra; a segunda, ao momen- ção do p rimeiro. O problema não deve ser posto nos termos de
to da entrega da obra de arte ao contemplador, aos espectadores, santidade ou não santidade. Primeiro, por que, como o próprio
ao público. A meu ver, é por não ter levado isso na de vida conta Marita in explica, na sua qualidade de contemplativos p uros, a
que Jacques Maritain se mostra tão indeciso, fazendo afirma- Arte seria, para os santos, uma preocupação inferior, segundo
ções por vezes contraditórias a tal respeito, ele que é tão claro e se depreende das palavras de M iguelângelo citadas pelo pensa-
lúcido, de uma inteligência tão pura e posta a serviço de uma dor francês:
co nsciência tão reta. De fato, quando Maritain fala a respeito
"Seguindo a linha da Arte" - diz Maritain - (o artista) "ten-
d a criação da o bra, é taxativo, dizendo:
de, sem sabê-lo, a passar além de sua Arte. Assim como a plan-
ta, sem sabê-lo, dirige seu talo para o sol, ele também está
"Não existe coisa que, por sua própria espécie, seja um alimen-
orientado, por mais baixo que more, para direção da Beleza
toproibido para a Arte, como os animais imp uros eram proibi-
subsistente; da qual os santos gozam a doçura, numa luz ina-
dos para os judeus". ("Fronteiras da Poesia, trad. argentina, La
cessível à Arte e à razão. Nem a Pintura nem a Escultura, dizia
Espiga de Oro, Buenos Aires, 1945, p. 52.)
Miguelângelo, já velho, poderão encantar mais a alma orienta-
da para este amor divino que abriu seus braços na cruz para re-
D e acordo com essas palavras de Maritain, q ualq uer assun-
ceber-nos". (Arte e Escolástica, ed. cit., p. 107-108.)
to - m oral, indiferente ou imoral - pode ser objeto de recria-
ção p o r parte do artista, pois a Arte tem como fim "o bem da
Por aí, vê-se que Maritain emprega a palavra "santos" para
obr a p or fazer" e não o aperfeiçoamento moral do artista ou do
designar tanto aqueles que são chamados de "bem-aventurados"
público. Entretanto Maritain começa logo a estabelecer restri-
11 0 pensamento cristão, como os que, ainda aq ui na Terra sen-
çõ es ao princípio geral aí enunciado. Uma dessas restrições é a
11.:111 "a sede de Deus", caso de Miguelângelo. E aí vem a segun-
condição de q ue
da dúvida q ue lançamos sobre o segundo texto de Maritain há
pouco citad o: é que nem todos os artistas têm o temperamento
"segundo o caso particular, e com respeito àqueles a quem se
rcligioso de Fra Angélico ou de Miguelângelo, de modo que o
dirige e a quem alcança, a obra de arte não manche nem a inte-
l'roblema das relações da Arte com a Moral não pode ser trata-
ligência nem o coração. Desde esse ponto de vista" - acres-
244 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 245

::lo nesses termos. Temos que lcv:ir cm cont:i, em noss:is rcílc- "Não exisw senão um meio atra\'és do qual algu~m pode se li-
>CÕes sobre isso, o fato de que existem escritores e :irtist:is que bertar da lei (moral), e <Ó chegar a ser um de>tes perfeitos a tjucm
o espírito de Deus move e conduz e que já não estão mais sub-
;entcm ncccssid:ide irresistível de fazer do l\lal e do Feio :issun-
metidos à lei, porq ue fazem, por gosto próprio, o que a lei lhes
to de suas cri:ições, numa espécie de tcnt:itiv:i de cicatri zação
ordena. Enquamo um homem não chegc1 a esse te rmo - e quan-
::lo Mal e do Feio e, t:imbém, numa cerra form:i de purific:ição.
do O: que se c hega? - enquanto, pela G raça, não se torna um a
De acordo com l\farit:iin , esses artistas têm uma certa obrigação
só coisa com a lei, precisa, para se manrcr correto, das regulações
::le calar-se, o que, a meu ver, termina c:iindo naquela fo rm::i compulsórias da Mora l. R<:clama esta féru la. E porque o artis-
bast::irda e hipócrita de "Arte respeit;ível" q ue o próprio \larit:iin, ta, como tal, se expressa, e deve se expressar, em sua obra ta l
noutro texto, repele, dizendo que o :irtista não tem o di reito de qual ele é, se ele 0 moralmence deformado, sua Arte, a vi rtude
cri:ir o escând:ilo pelo escânda lo, mas também não tem o direi- intclecru:il que 0, tal\'ez, o que existe de m:iis puro nele, corre o
to de ocultar seus lados negros pelo tcmor de caus::ir esdndalo ri sco de paga r os gastos desta deformidade moral. O conflito é
àqueles com quem convive. O que me parece em contradição inevitável. O homem sai dele co mo pode, antes mal do que
bem". ("Fronrciras d a Poesia", p. 54-55.)
com esta outra afirm::içã o su::i, ::i meu ver dcscabid;1:

"Para escreve r a obra de um Proust t:il como ela o 1:xigi:i, te ri a Assim, l\1arirain ora alinha afirmações a respeito da liber-
s ido necess'1ri:i a luz intnior de um Santo 1\gostinho. Se niio dade cri;idora do arrisr::i, ora traça as linhas de u m moralismo
se tem essa luz, é preciso saber limitar-se". (Arte e Esculâstica, rígido an te o qual o artista tem que se limitar e m esmo que se
p. 228 . "Frollleiras da Po1:>ia", p. 94. ) c t!ar, para n ão transgredir as regras da Moral. No p rimeiro
c.tso, remos as seguintes afirmações, liberadoras da ati vidade
Quer dizer que, na opini~to da l\1aritain, Proust só teria di- Lriado ra: 1) Q ualquer assunto é legítimo para o artista. 2 ) O
reito de ter escrito sua obra ge nial se tivesse "a luz imerior de .1nisra deve expressar-se cm sua obra tal qual ele é, isto é, re-
um Santo Agostinho"; e, como não tinha, reria sido melhor que vi.:lando inteiramente seu mundo in terior. 3) O a rtista não tem
não a tivesse escrito, estabelecendo limites para sua expressão e o direito de modificar sua obra para edific::ir ou para não ofen-
aprendendo a se calar, a não nomear certas cois:is que seriam der o público.
prejudiciais a si m esmo e aos outros. A solução que ele apresen- Na outra linha d e pensamento, ele faz ::ifirmações q ue, a meu
ta p:ira o problcm;-i não me parece, portanto, ::iccirável. Alijs, o vn, conrr::idizem inrcirameme essas primeiras. São elas: 1) Para
p róprio Maritain parece r.:r se apercebido disso, pois existe outro l.11.cr certas obras, o artista tem que possuir a luz interior de um
texto seu no qu:il ele revela ::i espécie de beco sem saída cm q ue 1.. 111to, sem o que ela o comaminad e contami nará o público,

se viu por suas posições nesse campo; beco sem saída no qual 111:mcha11do a in teligência e o coração. 2 ) O artista deve levar
ele, de certa forma, vi:; a própria Arte, a própri:i ativ idade artís- !'Ili conta as pessoas a q uem sua obr::i vai alcançar, cuid:indo d e

t ica, considcr:ida como a lgo que, inevitavelmente, termina en- 11:10 difu ndir o Mal nem de torná-lo atraente. 3 ) É inevitável o
trando em conflito com a Moral, num:i dil:h.:cr:H;~to da qual o • 011flito enrre ::i atividade artística e a Moral, e o artista s:ii-se
artista quase sempre se sai mal. Afirma ele: dl'ssc conflito antes mal do que bem. 4) Somente se sairia bem
246 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 247

do conflito aquele que, torn:indo-se perfeito, faria uma só coisa Quanto às contaminações que o artista poderia sofrer de sua
com a lei moral; mas provavelmente nenhum homem chega a obra, comprazendo-se na recriação do Mal, ou oferecendo aos
esse t er m o, a esse estado de perfeição, movido e con duzido pelo outros ocasião disso, a meu ver não serão elas nem mais graves
esp íri to d e Deus . nem menos graves do que as q ue a própria vida oferece, sem
que, por isso, M:iritain possa acusar Deus de oferecer aos ho-
mens ocasião de pecar: aq ui, nu m caso como n outro, seja na Arte,
Visão Tom ista do Problema Moral na Arte
seja n a vida, exercita-se o livre-arbítrio; se o Ma l se encontra na
vida ou p intado n::i obra de Proust, o fato é que os homens se
D e modo que, se b e m entendemos, Marita in, p or um lado,
vêem a cada passo diante dele, entrando, ou não, cm conivência
p ressente a independência d a Arte cm relação à Moral, mas, ao
com o Mal quem quer. Isto sem se falar cm que a obra d e Proust
mesmo tempo, rec ua de su a posição inicial através de afirm a-
não apresenta o M::il como uma coisa bela . Pelo contrário: com
ções discutí1·cis e comra<litórias. Se é verdade q u e o artista "deve
gran de isenção, Proust evidencia até o que de g rotesco e triste
se exp ressar em sua obra tal como ele é'', não pode ele, na ativi-
existe em tudo aquilo. O na rrador e o meio cm que ele viveu
dade criadora, estar lcrnndo cm conta aqueles a quem sua obra
aparecem, na sua obra, com algo de falhado e mesquinho, de
vai a t ingi r, po rque isso iria aportar direta mente na h ipocrisia da
doe ntio e demoníaco, de cruel e pequeno - o que era, aliás,
"Arte r espeitável'', cm que se trai, ao mesmo tempo, a Verdade
íundamcntal à expressão do universo interior de Proust e ao
e a Bel eza.
mundo exterior fanado, meio de estufa, envenenado e decadente
Acredito, então, que o problema tem que ser separado em
cm que ele viveu.
d o is momentos, como já disse antes: o d::t criaçS.o e o da entrega
Assim, apesar de mais distante no tempo, parece-me que
da obra ao público. No momento da cri;1ção, o artista é inteira-
mente lil're: o b..: 111 íu ndamc nt;1l, o objctil'o essencial de sua ati- as palavras de Sa nto Tomás de Aquino sobre o problema d a

vidade criadorél é a b eleza da obr:i a fazer e a expressão do mundo i\ rte e da Moral trazem mais sugestões p ara encontrarmos a

interior do artista e m suas relações com o mundo real. Nesse ~olução do que as d e seu discípulo e contem poránco nosso,

m omento, m esmo que o artista, como Proust, tenha seus lados Jacques Maritain. Diz Santo Tomás: " Quanto às artes daquc-
negros e nS.o possua a luz interior de um Santo Agostinho, tc111 l:1s obras que os homens podem usar bem ou mal, são lícitas;
e le o direito e o dever d e se expressar em sua obra tal como é, na rntre ta nto, se existem obras que se empregam, na maioria dos
sua integridade total: a mentira não pod e servir a nada, e uma casos, para um mau uso, ainda que lícitas c m si m esmas, de-
arte que, po r respei tabilidade, de ixasse de exprimir certos as· ve m ser extirpadas da cidade por ofício do Príncipe''. (Suma
pcctos d o u nive rso interior <lo a rtista, termin a ria por nS.o servir '/i:ológica, To m o X I, art. XI I.) Quer di zer: São ToméÍS conside-
à Moral, porque é hipócri ta e mentirosa - n em à Beleza, por· ra lícitas as obras de a rte que toma m o Mal como assu n to, e
q ue é feia. O artista pode e d eve ser fiel à verdade de seu u ni ver· 1cconhccc que os homens usam de las b em ou mal , conforme
so e de sua obra, seja qual for o assunto de que tenha de trata r "'ªvontade; depois, reconhece que, m esmo aquelas obras que,
por ser essencial à exp ressão dessa ve rdade. 11.1 maioria dos casos, são mal usadas pelos homens, são lícitas
248 ARIANO SUASSUNA

em si mesmas; apenas acha que, em tais casos, elas devem ser


"extirpadas da cidade, por ofício do Príncipe'', o que, em ter-
mos modernos, significa que é tarefa dos educadores e legisla-
dores determinar a quais pessoas a obra pode chegar sem dano
para sua formação. Não é tarefa do artista. E, passadas a in-
CAPÍTULO 24
fância e a adolescência, chegado o homem à idade adulta e à
ARTE GRATUITA E ARTE PARTICIPANTE
maturidade, não será uma obra de arte que irá induzi-lo, ou
não, à prática do Bem ou do Mal.

A Arte de Tese

O problema da gratuidade consiste em verificar se a Arte tem


como único fim a criação da Beleza pura, ou se, pelo contrário,
a Arte só é legítima quando se engaja, quando se alista, quando
se põe a serviço de uma idéia, de uma causa, quando desempe-
nha uma função social educativa, tornando idéias abstratas
accessíveis à massa. O problema é, como se vê, estreitamente
relacionado com os dois últimos que analisamos, de modo que
11iío admira que os defensores da primeira posição - a da Arte
gratuita - usem como bandeira os nomes de Oscar Wilde e
André Gide, com todos aqueles que pregam a Arte pela Arte, a
"torre de marfim" etc. Quanto à segunda posição, é defendida
por todos aqueles que acreditam que a Arte deve ter uma tese,
isto é, ter como objetivo principal a defesa de uma idéia filosó-
fi ca, política, religiosa etc.
Jacques Maritain parece defender a primeira posição, sus-
tentando que, na criação da Arte, qualquer preocupação estra-
11ha à Beleza é uma excrescência, uma impureza que prejudica a
obra. O texto no qual ele se refere a isso é aquele mesmo ao
qual aludimos de passagem, no capítulo anterior, quando fala-
mos das relações da Arte com a Moral. É o seguinte:
250 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 251

"A 1\rtc é gratuita, ou des interessada, como tal ; isto é, na cria- educativa, politizante ou não, mas sempre colocada a serviço d e
çã o <la obra a virru<le <la Arte somente procura uma coisa, o uma idéia. Edgard De Bruyne afirma, a esse respeito:
bem da obra por fazer, a Beleza que é preciso fazer brilhar na
matéria, a coisa que é preciso criar segundo as suas leis pró- "A Arte faz-nos sentir tudo o que tem uma significação para
prias, in<lt:pcndentcmcnte de tudo o mais. 1\lém disto, a Arre nós. É um meio de exprimir, sob fo rm a sensível, as co ncep-
qu er qu e na obra não exista nada que escape à sua regulação, ções filosóficas da Humanidade ... Os fatos nos ensinam que a
e quer estar sozi n ha par a regular imediatamente a ob ra, tocá- Arte não age sempre de maneira exclusiva e diretamente esté-
la e formá-la. De muitas maneiras se pode faltar a essa gra- tica: épocas inte iras a concebem de outro modo. A Arte está
tuidade. Por exemplo, pode-se acreditar que as boas intenções longe de desempenhar um papel estritamente estético na vida
morais suprem a qualidade do ofício ou da inspiração e bas- individ ual e sobretudo na vida social.. . Foi somente depois da
tam para criar uma obra. Ou então pode-se ser levado a alte rar Renascença que uma certa Arte passou a procurar exclusiva-
a obra, tal como a exigiam as regras e os ca mi n hos determina- mente a Beleza; noutros tempos e entre outros povos ela e antes
dos da Arre, apl icando-lhe à força, para reg ulá-la, elementos de tudo prática ... A Arte, conseqüentemente, instrui a massa,
estranhos, como des ejo de edifica r, ou d e desed ificar, de não fazendo-a captar intuitivame nte, sem nada demonstra r pelos
ofender o p úblico ou de fater escândalo, de ser um perwna- raciocínios abstratos, aquilo qu e ela é incapaz de entender das
gem prestig iado no ambiente mundano ou um artista livre e especulações da Ciência, da Filosofia e da Teologia". (Ob. cit.,
estra11ho nos bares e cafés ... Vemos então em que sentido se p. 380-381.)
deve adm itir a doutrina da gratuida<lc da Arte: no sentido de
que a virtude da Arte, da qual o art ista se serve, para qua lquer Creio que D e Bruyne, ao concluir esse parágrafo, tinha e m
fim que se empregue .. . em si mesma não tem por objeto mais vista, mais, a Arte medieva l, senão teria feito uma referência, aí,
do que a pe rfe ição d a obra, não so frendo, na obra, nen huma ao problema político, que é, t alvez, hoje, a maior fonte de con-
regulação que não passe por ela". (Arte e Escolástica, ed. cit., trovérsias nesse campo da Arte gratuita ou da Arte participante.
p. 118. )

Existe porém tod o um outro grupo d e pensadores que julga O Risco da Desumanização e o da Propaganda
exatamente o contrário: a Arte está sempre a serviço de uma
Idéia, d e uma causa, ela é s empre participante, com uma função Acredito que esses - o de desumanização e o da propagan-
social definida, engajada, alistada a serviço de a lgu m a coisa. No da - são os dois riscos que podem decorrer dessas duas posi-
mundo contemporâneo, o s este tas marxistas ou p arnmar xistas ções extremadas: a Arte g r atuita pode cair na desuman ização,
tê m sempre uma te ndênc ia para adotar esse ponto de vista, sus- na frieza esteticista da "torre de marfim" e do formal ismo esté-
tentan do que a obra de arte defende sempre uma tese, uma idéia, ril; a Arte participante termina levando o artista para os cami-
um a posição cm geral, e uma posição política em particular. Mas nhos da propaganda.
m esmo pcns~1dores não-marxistas sustentam que a Arte tem, ou Jacques Maritain e Edgard De Bruyne são menos radicais,
deve ter, se m pre, um objetivo para a lém da Beleza, um a função mas, em compensação, são menos claros do que os adeptos da
252 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 253

gratuidade pura ou da participação. Em Maritain, essa pouca sempre, uma vantagem, num campo, corresponde sempre a uma
clareza vem de certos preconceitos religiosos e de uma certa desvantagem noutro: se a pintura medieval é mais pura e poeti-
admiração exclusivista - talvez herdada por ele de Léon Bloy camente arbitrária, a barroca é mais rica, complexa e dramática.
- pela Arte medieval. Pessoalmente, estou a cavaleiro para fa- Edgard De Bruyne, por sua vez, depois de afirmar q ue a Arte
zer essa observação porque também prefiro a Arte medieval, a tem sempre um objetivo prático, participante, educativo, en-
primitiva grega, ou a islâmica, à Arte renascentista. Mas, no meu gajado, começa a voltar atrás, logo depois, ao que parece ainda
caso, estou consciente de que isso é uma preferência pessoal, e por influência da teoria da ''Arte desinteressada" de Kant; ao
não um julgamento de valor: a Arte renascentista não é inferior, falar da Arte erótica, por exemplo, diz que ela não é estética,
nem superior, à Arte medieval, é apenas diferente dela. Mas isto é, não é pura, porque envolve demasiadamente a paixão d o
Jacques Maritain, o pintor George Rouault e outros discípulos contemplador, prejudicando o desinteresse, segundo ele essen-
de Léon Bloy ficaram com esse costume de, no caso da Idade cial à Arte. Diz ele:
Média, atribuir aos artistas medievais a posse de uma discutível
"pureza infantil" ou de uma "pureza dos meios" na execução "Que exista uma Arte sexual, isto é, uma Arte que faz sentir
das obras, o que leva o primeiro a dizer: de maneira tecnicamente perfeita os valores eróticos, mesmo
liberados de todo entrave moral, ninguém o negará. Uma tal
"Quando, ao visitar um museu, se passa das salas dos primitivos Arte merece o nome de Arte? A nosso ver, sim ... Mas não pode
para aquelas em que triunfa a pintura a óleo e um conhecimen- ser qualificada de estética, porque move os homens de modo
to material muito mais considerável, os pés dão um passo prático e impede a satisfação desinteressada ... Concluiremos
adiante sobre o piso, mas a alma experimenta uma queda ver-
então que a Arte estritamente imoral é verdadeiramente Arte,
tiginosa ... Chega-se a se perguntar se, na Arte, como na vida
mas não é estética nem bela (do Belo)". (Ob. cit., p. 385.)
social, o progresso dos meios materiais e da técnica, boa em
si, não é ruim, de fato, para o estado médio da Arte e da civi-
Ora, substitua-se aí ''Arte sexual" por "Arte religiosa'', "Arte
lização. Neste campo, e mais além de certa medida, aquilo que
1ilosófica" ou "Arte política" - e o raciocínio seria o mes-
destrói um obstáculo acaba uma força, aquilo que afasta uma
dificuldade acaba uma grandeza... Comprova-se entretanto em 1110, com as mesmas conclusões - e ver-se-á que De Bruyne,
alguns artistas ... o esforço mais digno de atenção para a coe- 11 0 presente texto, recuou quase inteiramente da afirmação
rência lógica, a simplicidade e a pureza de meios que consti- 11icia l.
tuem propriamente a veracidade da Arte". (Arte e Escolástica,
p. 72-74.)
Urna Tentativa de Solução
Repito que, pessoalmente, também prefiro a Arte mais poé-
tica e arbitrária dos retábulos catalães em madeira à pintura de Ao que parece, poder-se-ia chegar a um acordo desde que
Miguelângelo; mas admito, perfeitamente, que outros tenham 11dmitíssemos que a Beleza não é a preocupação exclusiva da Arte,
opinião diferente, numa variação legítima do gosto. Aqui, comn 111:1s é sua preocupação fundamental. Uma peça como O Ma-
254 ARIANO SUASSUNA
IN ICIAÇÃ O À ESTÉTICA 255

/entendido, d e Albe rto Camus, é, sem dúvida, uma peça filosófi- de propaganda. Q ue ela exista numa Arre como a Música, ex-
ca. N ela, a expressão das p reocupações do autor com o sentido plica-se, por causa da própria natureza da Música. Mas no cam-
d a vida e u d estino absurdo do homem - condenado à morre po da Poesia, com o queria o Abade Brémond, é muito difícil
pelo simples fato de ter nasci do - é um dado essencial. N em descarregar as palavras de todas as cargas de paixão e pensamento
por isso, a peça é ilegítima, como Teatro: o escritor não "acres- q ue elas possuem a ponto de torná-las simplesmente musicais.
ce ntou" artificialmente seu pensamento filosófico a u rna histó- N o caso do Teatro então, nem se fa la. Mas, na medida em
ria, mas, realizando uma obra de grand e qualidade literária, q ue uma peça de teatro pode ser "gratuita'', isto é, na medida
expresso u, de modo artístico e estético, um p roblema filosófico em qu e su a p reocupação seja exclusivamente de Beleza for-
que, p ara seu un iverso particular, para sua particular visão do malista, podemos dizer que temos q uatro graus de gratuidade
mundo, era fun dam ental. Quer dizer: além da preocupação de decrescente e d e participação crescente, que poderiam ser
criar uma obra bela, Ca mus teve outra; mas esta é subordi nada exemp lificados assim, no caso da participação filosó fi ca:
à primeira, ou melhor, forma com ela uma coi sa só. Não se trata
de uma "tese" filosófica justaposta à obra ; trata-se de uma obra 1. Peça gratuita, preocupada unicamente com a Beleza -
na qual existe uma forte preocupação filosófica mas onde, tam- Salomé, de Oscar Wilde.
bém , a beleza continua co mo a pedra de rogue da Arre. Aliás,
2. Peça com problemas filosóficos implícitos - Hamlet, de
Jacques Maritai n, num texto d e admirável lucidez, faz essa dis-
Shakespeare.
tinção a respeito do que é, mesmo, uma "tese'', dizendo:

3 . Peça filosófica - O Ma/entendido , de Camus.


" Chamamos tese a qualquer intenção ex trínseca à própria o bra,
quando o pensamento que anima tal intenç:io não ama sobre a
obra por meio do hábito artístico movido instrumentalmente, mas 4. Ensaio filosófico sob forma teatral - Os Diálogos, de
sim se justapõe ao hábito para atuar diretamente sobre a o bra. Platão.
Nesses casos, a obra nem é com pletamente produzida pelo hábi-
to (no sentido de do m criado r), nem com pletamente pelo pensa- Quer dizer: n o último caso, a preocupação fundamental não
mento assim animado, mas sim em pa rte por um e em parte pelo é m ais a da Arte, a da criação da Beleza sob forma teatral. É ape-
o utro, como um barco qu e é pu xad o por do is homens. Neste nas uma obra filosófi ca, na qual o autor lançou mão de um
sentido, qualquer tese, seja que pretenda d emo nstrar, seja que elemento teatral, o d iálogo, para escrever uma obra que tea-
p rete nda comover, é, para a Arte, uma excresc<:ncia est ra nha e tralmente nada significa, q ue já está situada fora do campo tea-
co nseqüenteme nte uma imp ureza''. (Arte e Escoláslica, p. 85 .) tral; um a obra inclusive literariamente bem escrita, mas q ue, se
for m ontada num palco, como espetáculo, falhará completamen-
A preocupação da "pureza" ou da "gratuidade" da Arte, do te, po rq ue a partici pação prejudicou fu ndamentalmente o que
século XIX para cá, radicalizou-se na mesma medida em q ue o seria sua qualidade teatral (aliás, no caso, não pretendida por
grupo da Arte "partici pante" se radicalizava no sentido da Arte Platão, é claro).
256 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 257

Na mesma ordem de idéias, pode-se fazer raciocínio seme- 4. Qualquer peça, escrita por aí, de pura propaganda, ou
lhante aplicado ao campo político, ao religioso etc. Em todos seja, um comício dialogado, correspondendo, no cam-
os casos, o Cdmpo em que melhor a Arte se exerce está marcado po político, ao "sermão dialogado" que imaginamos no
pelos números 2 e 3, talvez com preferência pelo número 2 - campo religioso.
aquele em que o artista ou o escritor se ocupam dos problemas
filosóficos, religiosos ou políticos sem fazer obra filosófica, reli- Para concluir, Maritain tem razão quando se insurge contra
giosa ou política. Repitamos, porém, o quadro apresentado an- a justaposição artificial de uma tese à obra, com objetivos polí-
tes, para o caso das peças de teatro gratuitas ou participantes do ticos, religiosos, filosóficos, morais, "de vanguarda" etc. Isso é
ponto de vista religioso ou político e mantendo sempre o exem- ilegítimo porque, sendo a criação da Beleza o objetivo funda-
plo da Salomé de Oscar Wilde como proposição de uma impos- mental da Arte, a tese passa a ser um peso morto que a obra tem
de carregar. Por outro lado, não parece justa a discriminação feita
sível peça puramente gratuita.
por De Bruyne considerando " impura" e "não estética" qual-
quer forma de Arte que tenha preocupações alheias à Beleza pura:
1. Peça gratuita - Salomé, de Oscar Wilde.
o que é ruim é justapor artificialmente a tese à obra; mas se a
obra nasce naturalmente implicada com um pensamento ou uma
2. Peça com problemas religiosos implícitos -A Vida é So-
paixão, fundamentais no universo de seu autor - como mos-
nho, de Calderón.
tramos a respeito de O Ma/entendido, de Camus - aí as pai-
xões e o pensamento são levados, pela obra, em seu impulso para
3. Peça religiosa - Os Mistérios da Missa, do mesmo Calderón.
a Beleza. A Arte parte do homem, é expressão do homem, isto
é, de um ser total que, ao empreender a criação da obra, lhe
4. Ensaio religioso sob forma de diálogo - Um sermão de imprimirá necessariamente a marca de sua pessoa inteira -
Antônio Vieira, teatralizado por quem tivesse paciência marca erótica ou obscena se isso é coisa importante no mundo
para isso. do autor; religiosa se se trata de um homem cujas idéias são fun-
damentalmente assinaladas por preocupações religiosas; políti-
Do ponto de vista político seria a mesma coisa: ca ou social se suas preocupações fundamentais são essas. O que
interessa é que a Beleza seja criada a partir do mundo real e do
1. Peça gratuita - Salomé, de Oscar Wilde. mundo particular de cada um. Para isso, é preciso que essas ten-
dências particulares surjam na obra e com a obra, e não justapos-
2. Peça com problemas políticos implícitos - Ricardo III, tas artificialmente a ela: de outra forma, terminam prejudicando
de Shakespeare. a Beleza, que é seu objetivo essencial.
Agora, não devemos é nos intimidar com os excessos dessa
3. Peça política -A Mãe Coragem , de Bertolt Brecht. pretensa "pureza de meios'', ou "pureza infantil" que querem
considerar como os únicos certificados de legitimidade para a
258 ARI A NO SUASSUNA IN ICIAÇÃ O À ESTÉTICA 259

Arte. Ex istem artistas que tendem mais para a p ureza do que para a inda meio ligados ao real, faz ia m valer mais o volume ; os
a complexidade; existem, m esmo, alguns, que talvez conside- (auvistas achatam os objetos e, destroem o volume, para maior
rem o m uPdo real como ca ótico e desagradável, sentindo, por valo rização das grandes áreas de cor pura. Fina lmente, com
isso, uma tendência inven cível a cria r seu universo próprio, Kandinsky, vem o abstracionismo , procurando as formas pura s,
povoado apenas de for mas abstratas e puras, o que é o caso da de cores e linhas combinadas (depois, as fotografi as do mundo
Música pura e da Pintura abstrata. Mas não são estas as únicas microscópico e d os espaços siderais mostrar iam que aquelas
formas legítimas de Arte. Se se leva muito adia nte essa " pureza formas não eram tão desligadas do real quanto se penso u a pri n-
da Arte'', corre-se o risco de considerar "impuras" ou "ilegíti- cípio). Mas aí, ch egou a vez de Mondrian d izer que aque le
mas" formas d e Arte co m o a sátira, por exemplo, gênero tão abstracionismo livre, meio lírico e cheio de curvas de Kandi nsky
legítimo quanto q ualquer outro, a pesar de ser moralizadora, ainda era uma impureza: as únicas formas puramente pictóricas
ed uca tiva e " prática" por natureza. Além diss o, corre-se, com o eram os retângulos representados em cores puras, de modo que
en tend imento radical da "pur eza" e da "gratuidade'', um o utro essa era a única forma de Pintura ainda possível e legítima a partir
r isco, o de transform ar a Arte num jogo desumanizado e estéril. daí. É o neoplasticismo, q ue condena roda a "Arte do passado"
Veja-se que não estou considerando a Pintura abstrata "ilegíti- e cuja idéia funda mental foi assim formul ada por seu criador,
ma'', com o que vou dizer. Mas, a partir do século XIX e pr in- Mondrian :
cip alme nte no sécu lo XX, certos pintores e teóricos da Pintura
co meçaram a reagir contra os excessos dos maneiristas posterio- "A nova Arte continuou e culminou a Arte do passado, num tal
res a Renascença. Começaram sua r eação de modo até cerro caminho que a nova Pintura, em pregando form as neutras o u
ponto correto, po rq ue, d e fato, corriam -se certos riscos com universais, expressa-se a si pró pria somente at ravés das relações
aquele tipo de Pintura. Mas, d epois, caíram, esses artistas e teó- de linha e cor. Enquanto na Arte do passado essas relações eram
ricos, no risco oposto, p assando a considerar, co mo única for- veladas pela fo rma particular (dos objetos representados), na
ma legítima d e Pintura, a abstracionista. Primeiro, conside ra ram Arte nova elas são feitas claramente, através do uso de formas
ilegítima a presença do assunto , na Pintura: uma natureza-mo r- neutras ou uni versais. E porque essas formas se to rnam mais e
ra de Cézanne era m ais legítima do que uma Crucificação medie- mais neutras na medida em que mais se aproximam de um esta-
val porque esta possuía uma história, uma anedota literária e do de universal idade, o neoplasticismo só emprega uma fo rma
trágica que procurava comover o contemplador com um elemen - neutra simples: a área retangular em várias dimensões". (Cit. por

to " impuro", não-pictórico. D epois, até as formas abstratizantes Jacques Maritain, Creative Intuition in Art 1111d Poetry , já cit.,
p. 216.)
da natureza-morra foram consideradas imp uras : como Kan t já
d issera , a representação dos objetos era, por si só, uma impure-
Mondrian talvez não con tasse com o aparecimento imedia-
za, que só permitia a criação da Beleza "ader ente'', mas não a da
to de puristas ainda mais radicais do q ue ele: mas foi o q ue acon-
Beleza "livre". Então, passar am a co nsiderar legítimos apenas
teceu, com os concretistas que afirmaram ser a cor uma imp ureza
os quadros que apresentassem formas puras. Não havia muito
- motivo pelo q ual só os valores, preto, branco e cinza, deve-
acor do sobre a maneira de r epresentar as for mas: os cubistas
260 ARIANO SUASSUNA

riam ser usados em Pintura - e com os s11pre111atistas que che-


garam a considerar como "puros" uni camen te os quad ros que
representassem retângulos brancos sobre fundo branco, caso de
Malevitch, por exemp lo.
É por isso que esses radicalismos podem levar à cstcrilid;ide, à CAPÍTULO 25
desumanização e até à morte da Arte, esta última j(i muitas vezes
ÜFÍCIO, TÉCNICA E FORMA, NA ARTE
anunciada, mas jamais consumad:i, porque a Arte é um impulso
fundamental do homem e, enquanto existir o ho mem, a Arte exis-
tirá. Mas é preciso deixar de lado esse esteticismo e esses radicalis-
mos, que, e m nome da p ureza, ou em nome da participação,
terminam por esterilizar a Arte ou então por colocá-la a serviço da O Campo do Ofício, na Arte
propaganda, com prejuízo para o homem, a Arte e a 13elcza.
Quando estudamos o problema das normas da Arte, aludi-
mos, de passagem, à questão que agora vamos examinar. É que,
de fato, para entendermos bem a verdad eira natureza das regras
da Arre, ternos de verificar que a criação artística, una em si
mesma, reparte-se, porém, por três campos, três momentos de
importância crescente: o campo do ofício, o da técnica e o da
forma, este último tomado no sentido filosófico e que é estrei-
tamente ligado à imaginação criadora.
O ofício é a parte ma is modesta, mais ligada aos materiais
de cada Arte. Nesse campo, as regras são dogmáticas, universais,
válidas e indisc utíve is para todos os artistas. Por exemplo: no
campo da Pintura, o artista tem que saber que o verde chama-
do "verde veronês" só pode ser usado p uro, porque, se for
misturado a outra cor, corre-se o risco de o pigmento de uma
entrar em combinação química com o da outra, a lterando a
pureza do verde q ue, com o tempo, torna-se um castanho fos-
co e feio. É um caso típico de regra do campo do ofício: o artista
não tem nenhuma liberdade diante dela, e tem de conhecê-la,
sob pena d e prejudicar de modo fundamental a parte material
de sua obra.
262 ARIANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉTICA 263

O campo do ofício é, portanto, o campo mais modesto, É claro que, tanto na Poesia quanto na Pintura, ou em outra
material e grosseiro da Arte, o que não significa que seja desti- qualquer Arte, o processo de criação é unificado. Mas a distin-
tuído de importância. Quase tudo o que, numa Arte, pode ser ção entre ofício e técnica existe e pode ser pressentida. Agora, o
ensinado e transmitido de m estre a discípulo, pertence ao cam- que acontece é que a zona de delimitação entre um e outro não
po do ofício. A esse respeito, ensina Charles Lalo: pode ser muito rígida. Mesmo aí, porém, uma regra como o
conhecimento do desenho por parte do pintor, se bem que per-
"O ofício é a parte material da Arte, a prática tradicional e ba- tencendo a uma norma já mais espiritual e livre do que as regras
nal que se ensina aos estreantes e nas oficinas de arte: mecanismo puramente materiais do ofício, possuí ainda a indiscutibilidade
indispensável, mas insuficiente, que é preciso sempre ultrapassar, característica delas. É como se as regras do ofício constituíssem
porque ele é rígido e se revela mal adaptado em cada caso par- a necessidade da Arte e a parte da imaginação criadora sua liber-
ticular". (Notions d'Esthétique, p. 87.) dade, para usar uma linguagem hegeliana. E para dar autorida-
de a nossas palavras, cito o texto de um pintor de gênio, Degas,
Não creio que as expressões finais de Lalo sejam precisas: o gênio que, no entanto, não se prevalecia de seus dons para olhar
ofício não é mal adaptado a cada caso particular; o que é necessá- as regras de ofício de sua Arte por cima do ombro, com despre-
rio é que ele seja de tal modo aprendido e assimilado que o artista w desdenhoso. Dizia ele: "Hoje em dia é uma coisa assentada
possa como que esquecer-se dele no momento maior da criação; que todos nós temos gênio. Mas o que é certo é que não sabe-
que possa colocar, a serviço dos momentos maiores de criação, um mos mais desenhar uma mão e ignoramos tudo a respeito de
ofício e uma técnica tão seguros que superem os obstáculos da re- nosso ofício." A necessidade de conhecer as regras mais modes-
alização, a ponto de dar aquela impressão de facilidade na execu- tas da Arte é aí, então, afirmada por um pintor de gênio. Que
ção que - todos os artistas o sabem - é uma das coisas mais isso sirva de lição aos talentosos cheios de orgulho, que julgam
que seu simples talento os dispensa de qualquer aprendizado,
duramente conseguidas, em Arte.
considerado por eles como perda de tempo ou como coisa in-
Existem outras Artes em que se distingue menos facilmente
digna das alturas em que voa seu espírito.
o ofício da técnica. As Artes literárias são dessas. Mas, para apre-
sentar didaticamente o problema, pode-se explicar, por exem-
plo, que, no caso da Poesia, o ofício será o conhecimento do O Campo da Técnica
idioma e de suas possibilidades, dos gêneros poéticos, o proces-
so rítmico que consiste no emprego da métrica e das acentua· Num grau superior ao do ofício, está a técnica. É uma espé-
ções etc. Quer dizer: o poeta não é obrigado a fazer um soneto. cie de ofício mais vivo, menos rígido, mais espiritualizado. Aí,
Mas, se ele vai fazer um soneto, precisa saber que o soneto tem :15opções do artista já são mais livres; as regras da Arte ainda
catorze versos divididos em dois quartetos e dois tercetos, e que, ~xistem mas já são bastante mais abertas. Por exemplo: pode-se
na tradição do Português, seus versos são de dez sílabas. E assim dizer que, no campo da Pintura, o artista pode optar pela técni-
por diante. ca que Wõlfflin chamava linear ou pela mais pictórica. Os tem-
264 AH IANO SUASSUNA INICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 265

peramentos inclinados à harmon ia, à serenidade, à imobil ida- soais e difere ntes das de Renoi r ou Monet, a técnica impres-
de, p r eferem a técnica linear, como Ingres; os mais dra máticos, si on ista ex iste e pode ser reconh ecida à pri meira vista; é isso q ue
escolherão a técnica pictórica, como foi o caso de Goya. Na téc- fn dos im pression istas urna linhagem de espíritos afins. É nesse
nica li near, os objetos são claramente contornados; as fig uras mesmo sentido que podemos dizer que a técnica ve neziana d e
são representadas c m repou so ou com movimentos apenas es- pintura está presente tanto nos quadros de G io rgio ne q uan t o
boçados; existe um a certa predominância, o u tendência à pre- nos de Ticiano; ou que a técnica linear de Botticelli jamais me-
dominância, da linha reta; os contrastes de luz e sombra não r·cceria as simpatias de Goya, c u jo espír ito trágico exigia o
existem ou são atenuados, porque, quase semp re, os o bjetos são dramatismo dos movimentos contorcidos e dos violen tos con-
claros e ap resentados em fundo claro. Na técnica pictórica, pelo
tras tes de luz e sombra.
cont rá rio, os objetos não são delineados claramente : chegam,
q uase, a se fundir com os outros ou com o fundo; existe uma
p referê ncia pela represen tação cio mov imento; os contrastes de O Campo da Forma
luz e sombra são violentos, po is são uma exigência do tempera-
mento dramático d o pintor; e assi m por d iante, clizcnclo Charles Lalo, a m eu ve r, am plia por d emais o campo ela técnica, q u e
Laia a esse respeito : ,, importantíssi m o, como se viu, mas no q ual não se encon tra,
,·om o ele afirma, a essência da A rte. Diz ele, concluindo aq uelas
",\técnica é o ofício vivo, adaptado ... É o ofício transformado, p:tlaYras que acabam os de citar:
mais ve rdadeiramente sábio num sentido, mais profundamente
intuitivo noutro". (O b. cit., p. 87-89.)
"A técnica é o ofício to rrudo mais verdadeiramente scíbio num
sentido e mais profundamente intuitivo noutro. Assim com-
Po<le rnos dizer q ue, depois de escolher sua Arte, o artista, prernd id::i - mas somente assi m - pode-se dizer que a técnica
aos poucos, rarea ndo até encontrar o verdadeiro cam inho ne- é a essência da Arte. Ela é, não a rotina artística, mas o pensa-
cess::í rio ao desenvolvimento de sua personalidade, esco lherá, mento estético; não o reflexo, mas a liberdade. No ser o rgani-
talvez até de modo a princípio inconsciente, uma famíl ia de es- zado que é u ma obra, o ofício aprendido é o corpo, o ideal
píritos a fins, urna linhagem de parentes mais velhos à q u al ele se imagin:irio é a alma, e a técnica viva é a Arte, corpo e alma".
fil ia, seguindo a quele im pu lso tão natural ao espírito huma no (Ob. cit., p. S 9.)
de, mesmo quando vai re novar, a poiar-se numa tradição ou num
exemplo . A o riginalidade não eleve ser colocada, pelos jovens, Usando a termin ologia e m pregada por Lalo, não me parece
como preocupação ante rior : ela só é legítima e verdadeira quan- lp1c a técnica seja o corpo e alm a da Arte. Pa rece que o corpo da
do é involun r::íria e espontân ea. t\ne se coloca fundam entalm ente no campo cio ofício e apenas
Esse é o cam po ela técnica, superior ao cio oficio; m as oco- de certa forma no da técnica; a alma da Arte está essencialme nte
nhecim ento de am bos é indispens::ível ao artista. É nesse sentido r1cssc cam po d a forma, governado pela imaginação criad o ra, e,
que podemos dizer q ue, m esmo sendo as obras de Manet pes- 1:1rnbé m a penas d e certa forma, na técnica. Esta seria assim uma
266 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 267

espécie de campo intermediário, de elemento de ligação entre a buscado outro, porque uma influência só marca um verdadeiro
part<: material da Arte, o oficio, e sua parte espiritual, a forma . artista quando corresponde a alguma coisa que ele já tem den-
Repita-se que, aqui, /arma não significa a aparência exterior tro de si. Mas, ao mesmo tempo, El Greco era bastante diferen-
de que se reveste o conteúdo, mas sim o princípio ativo, pro- te de seu mestre, era uma espécie de exagero de Tintoretto, de
fundo, determinante e enigmático do ser. Quando o escultor exacerbação mais genial de Tintoretto. Então, todas aquelas
toma um pedaço de madeira ou de pedra - matéria de sua obra qualidades que aparecem em Tintoretto como que suavizadas
- sua imaginação criadora concebe, às vezes com um sentido pela luz e pelo temperamento italianos, surgem no espírito
que escapa a seu raciocínio abstrato, uma forma que vai impri- cretense-espanhol de El Greco como que numa tempestade ou
mir sua marca indelével na matéria a fim de formar o novo ser, num incêndio violento: as figuras movem-se e contorcem-se
a escul tura. Pois bem: se no campo do ofício as regras são como chamas, a luz e a sombra são chamas de fogueiras escuriais
dogmáticas e rígidas, valendo para todos os artistas; se, no campo ou evocações do Céu e do Inferno, e assim por diante.
da técnica, as regras, apesar de mais elásticas, ainda condicionam É então por isso que, na minha opinião, Charles Lalo con-
bastante o trabalho do artista, filiando -o a uma linhagem espiri- funde, num campo só, duas coisas completamente distintas, a
tual a que costumam dar o nome pouco próprio e antipático de técnica e a forma : no ofício e na técnica está tudo o que, numa
"escola"; se acontece isso no campo do ofício e no da técnica, Arte, pode ser ensinado, tudo aquilo que é governado pelas vias
no campo da forma a única regra soberana é ditada pela intui- certas e determinadas da Arte, coisa indispensável ao iniciante,
ção, pela imaginação criadora do próprio artista. É ela que faz mas que, no máximo, forma um bom artesão. Mas o terceiro
com que distingamos, no meio de muitas obras de vários artis- campo, o da forma, governado pela regra única e soberana da
tas aparentados, aquela marca pessoal que o diferencia de to- imaginação criadora, é o que fará o artista, imprimindo indele-
dos. É o que acontece, por exemplo, se comparamos a pintura velmente sua marca peculiar e original à sua obra. Que isso não
de Tintoretto com a de El Greco, que foi seu discípulo. El Greco seja motivo de orgulho, nem pretexto para se abandonar a par-
aprendeu muita coisa de Tintoretto, no que se refere ao ofício e te do aprendizado material do ofício e da técnica, sem os quais
à técnica: tomou, de seu mestre, a técnica pictórica, as perspec- a imaginação criadora se verá tolhida pela falta de artesanato.
tivas profundas e misteriosas, povoadas de violentos contrastes Que esta esteja apta, pronta e à disposição para que, quando a
de luz e sombra, as figuras altas e contorcidas, os céus de chum- imaginação criadora descer do sol como uma ave de rapina de
bo fendidos por raios, a religiosidade dramática em que a pali· vôo certeiro, não tenha suas asas cortadas pelo gume cego de um
dez dos santos é acentuada pelos nimbos e halos místicos de uma olhar sem agudeza, de um caminhar sem elasticidade ou de uma
luz que parece vir mais do interior do que do exterior. Mas tudo mão tateante e sem firmeza, incapaz de manejar os materiais da
isso pertencia ao campo menos importante da Arte - aquele Arte e conseqüentemente de transfundir neles o brilho miste-
que pode ser ensinado e aprendido. Sua personalidade, apesar rioso e enigmático da forma.
de aparentada com a de Tintoretto, era singular e original; é claro
que ele tinha semelhanças evidentes com Tintoretto - e, se as•
sim não fosse, não teria ido procurá-lo para seu mestre; terin
CAPÍTULO 26
As ÜRIGENS DA ARTE

A Teoria do Jogo - Schiller

Quando iniciamos, no Capírulo XVII I, as nossas incl.1gações


wbre a naturez:i da Arte, formubm os algum:is pergu ntas, entre
as quais as 111:iis importantes eram as seguintes: "Será que a Arte
tem uma origem m:ígic:i e religiosal Será que teve entre os po-
vos chamados primitivos uni se ntido prático, religioso e ndgi-
rn, de captura do real? Será que é um a for111a de conhcci111ento
e penetração da realidade? Será única e cxclusiva111 ente preocu-
pada co111 a criação da Beleza pum, ou terá, pelo con trá ri o, sem-
pre a preocupação da util idade pdtio, d:1 fun ção social, da
p:1rticipaçiio nos problcnns sociais e na sua soluÇ10? Será Arte
toda e q ualquer :irividade que fabrique objetos, o u somente aque-
1.1 que se preocupa com a criação de objetos belos? Sed a Arte
11111 modo prático, co ncreto e belo de tornar accessÍl·el às mas-
\.IS concepções rei igiosas, políticas e fi losóficas de 11aturcz:1 abs-

1r:11a? Seria a Arte, como prerencle :i Estéti c1 psicanalítica,


decorrente de uma espécie de neuro!ie, das frustrações e tra u-
111as do artist:1 que, através dela, procurari:1, numa sublimação,
~e compensar d:i sua vicia fa lha e clil:iceracla, com a criaçiio de
111 11 o utro uni verso, mais belo e mais perfeito do que o mundo
1Cal?"
270 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 271

Algumas dessas perguntas já foram mais ou menos respon- com o jogo insistiram depois, com critério puramente empírico,
didas à medida em que íamos examinando os aspectos da Arte Spencer, Groos, Heinrich von Stein e muitos outros". (Estéti-
tratados até aqui. Mas deixamos de falar a respeito de duas, a ca, ed. cit. p. 94.)
primeira e a última - e é isso o que tentaremos sanar agora,
refletindo, principalmente a partir das idéias de Schiller, sobre
O Jogo como Contemplação
a origem da Arte.
De fato, entre as teorias que procuram explicar a origem da
Aristóteles já salientava que o homem assume duas atitudes
Arte, ou, o que é mais importante, a natureza da Arte a partir de
diante da Natureza: uma relação de tipo servil, que se manifesta
sua origem, destaca-se inegavelmente a teoria do jogo, formula-
pelo trabalho, e outra de tipo contemplativo. A isso poderíamos
da por Schiller, sob influência de Kant. N ote-se, porém, logo de
acrescentar que as Artes úteis colocam mais ênfase na primeira
início, que, conforme já se disse anteriormente, quando se fala
atitude; e que a contemplação, por outro lado, pode ser "mais
do jogo no sentido filosófico ou estético tem-se em vista algo
pura", como no caso da Religião e da Filosofia; mais preocupa-
bastante diferente da noção comum ligada a tal palavra. É a
da com o conhecimento, como no caso da Ciência; ou com a
mesma coisa que a contece com a palavra diversão. A Arte - e
criação da Beleza, como na Arte.
principalmente as Artes de espetáculo - têm muito de diver-
É sem dúvida uma espécie de contemplação que Schiller tem
são, mas não são apenas diversão; a diversão encantatória do
em vista quando se refere ao jogo como essência da Arte. Edgar d
Teatro, por exemplo, só será bem entendida se admitirmos que
De Bruyne resume assim o pensamento do grande Poeta e pen-
a noção implícita aí a la rga-se até incluir em seu conceito a di-
sador alemão a tal respeito:
versão sangrenta e terrificante do Trágico, por exemplo.
Assim, para Schiller, o jogo seria uma espécie de conciliação "Por um lado, o homem é submetido à Natureza material, que
o apaziguamento da alma humana com o mundo, do espírito ele sofre; por outro, reina livremente sobre o mundo, graças à
humano dilacerado entre seu campo natural, a liberdade, e a moralidade. Estes dois aspectos opostos do mesmo ser devem ser
necessidade cega do mundo, para usar uma terminologia dife- conciliados. Eles o são quando o homem age sem determinação
r ente da de Schiller mas que expressa perfeitamente sua idéia. física nem obrigação moral, exprimindo sua natureza integral.
Ao contrário de outros estetas que apenas salientam certas afi- Isto acontece, por um lado, quando ele considera a forma das
coisas materiais, sem ser fatalmente atraído por sua posse real; e,
nidades existentes entre a Arte e o jogo, Schiller identifica a es-
por outro lado, quando ele age, não sob o comando da lei mo-
sência da Arte com o impulso para o jogo. Ou, como afirma
ral, mas sim tendendo, de um modo absolutamente livre, para
Geiger: fins que ele mesmo se propôs. Criação absolutamente livre e
contemplação desinteressada da forma pura das coisas: eis a ati-
"Foi Schiller o primeiro a descobrir o núcleo da atividade artís- vidade estética e eis o jogo. É, então, no jogo que nós realizamos
tica no impulso para o jogo, que Schiller, sem dúvida de acordo nossa unidade fundamental e nossa felicidade perfeita. É do jogo
com as idéias de Fichte, transformou em algo que hoje nós di- que resulta a Arte, a qual, segundo Schiller, deve elevar o ho-
ficilmente chamaríamos de jogo. Na estreita afinidade da Arte mem material a uma moralidade mais alta". (Ob. cit., p. 97.)
272 ARIANO SUASSUNA IN I CIAÇÃO À ESTÉTI CA 273

Schiller afirma que "o homem só é verdadeiramente homem expressão, uma expansão causada por um impulso interio r e sem
quando joga'', isto é, quando, pela contemplação gratuita e de- objetivo útil definido". (Edgard De Bruyne, ob. cit., p. 98 .)
sinteressada, consegue colocar-se acima das duras regras do de-
ver comum e estrito, das obrigações cotidianas e d a luta contra
o mundo, para atingir, assim, o mundo da liberdade, onde rei - Distinção entre Arte e Jogo
nam uma moralidade ma is a lta, a alegria e a Beleza. Somente
então, realiza da a unidade e atingido o equilíbrio, supera ele seus Como se vê, a teori a do jogo é um tanto imp recisa, cm pri-
di laceramentos e contradições, experi mentando a felicidade e meiro lugar po rque, o ra se considera o jogo com o o rigem da
gozando de uma sensação de harmon ia na liberdade que o tor- Arte - ponto de vista genético - o ra se encara o jogo como
na digno de seu nome. atividade por essência idê ntica à Arte - ponto ele vista analíti-
co. Ou, como diz M o ritz Geiger:

O Jogo como Atividade Superabundante "É ind ubitável que nem sem pre se d istingu iu o ponto de vista
genético do anal ítico. A tese, antes citada, de que a Arte se o ri-
Como se vê, Schi ll er encara o jogo como uma esp écie de gina do jogo, tra nsforma-se nesta: Arte e jogo são idênticos po r
contemplação metafísica e considera-o como a origem da Arte, essência". (Ob. cit. p. 94.)

afi rmação que será devidamente analisada daqui a pouco. En-


tretanto, sua teoria sobre o jogo é, por assim d izer, ambivalente E aí vem o segundo ponto de imprecisão da teoria do jogo
e criou, na Estética ocidental, duas correntes de pensamento a para explicar a origem ou a essência da Arte: se bem que o jogo,
esse respeito, segundo mostra Edgard De Bru yne, quando a fir- como co ntemplação, co mo exercício livre da intel igência e da
ma que, para Schil ler, o jo go tem "um a significação antes imaginação criador a, desem penh e um papel fundamen tal na
metafísica; entretanto, dois fatos psíquicos se relacion am dire- criação da Arte, nem é único, nesse faro, nem pode ser ident ifi -
tamente com ela: o jogo é a expressão d e uma atividade su- cado com a atividade artística, na q ual está presente mas q ue
perabundante e é a harmo n ia da inteligência e da vontade" . (Ob. não se esgota nele. O jogo acha sua consumação e satisfação em

cit., p. 98 .) si mesmo, na sensação de harm onia das contradições, na con-


templação pura . A Arte, pelo contrári o, faz d o livr e jogo da
Essa idéia do jogo como uma harmonização da inteligência imaginação criadora apenas o ponto de partida para a criação
e da vontade predominou na Estética alemã ; a outra, a do jogo cio objeto estético - q uadro, escul tura, ro mance, sonata, poe-
como exercício de uma contemplação do homem vitorioso, ma, peça de teatro, fi lme etc. Quer dizer: na sua fe ição prin cipal
colocado acima da luta co ntra a Natureza bruta, iria influenciar de atividade criadora a Arte até contraria o estado de con-
Spencer, para quem "o jogo é energia excedente, é uma ati vida- tem plação pura do jogo, q ue pode ser propício ao exercício da
de de luxo. Resulta da concentração de energias não gastas pelo imaginação, mas q u e, no caso do artista, será apenas a centel ha
organismo. É um relaxamento, uma expressão vi tal pela própria Que o leva à criação, ao t rabalho duro e concreto da Arte.
274 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 275

Assim, poder-se-ia responder ainda aos etnólogos e psicana- criar animais do que de plantar, outros que gostam mais de ca-
listas que a Arte nem é somente uma tentativa mágica de captu- çar e assim por diante. Naturalmente também existem aqueles
rar o real, nem uma forma de conhecimento, nem é apenas que gostam de pintar figuras, trabalhar com madeira, enfeitar o
resultado dos traumas, neuroses e frustrações do artista. Ela é ambiente ou distrair e fazer pensar seus companheiros de cami-
tudo isso e mais alguma coisa. A inteligência está presente na nhada contando histórias, dançando, cantando, representando
Arte, mas o papel fundamental, na criação artística, é desempe- ações que eles ou outros inventaram etc. É um impulso humano
nhado pela imaginação criadora. Existe muita coisa de intelec- como outro qualquer: não se explica necessariamente com ob-
tual na criação e na fruição da Arte; existe, mesmo, uma forma jetivos exteriores a si mesmo, se bem que a Arte seja bastante
de conhecimento, na Arte, mas é uma forma de conhecimento complexa e carregue consigo todos os tipos de preocupação e
bastante diferente das que são exercidas pela Ciência e pela Fi- de reflexão no seu impulso fundamental para a Beleza. E se ela
losofia: é um conhecimento poético, concreto e resultante da nasce da humilhação, tal humilhação é ligada não somente aos
simples apreensão, quando a inteligência, movida pela Beleza traumas particulares e comuns, mas ao trauma fundamental que
do que apreendeu, se põe naturalmente e sem esforço a refletir marca todos os homens, obrigados a desempenhar a dura e bela
sobre o que viu. e áspera tarefa de viver para, no fim, enfrentar o seu estranho
A Arte não se explica também apenas pelos traumas do ar- destino de condenados à Morte
tista: se assim fosse, todas as pessoas mais traumatizadas pelos
acontecimentos de sua vida seriam escritores, pintores, poetas
ou músicos. É claro que, de modo geral, os artistas, tendo a sen-
sibilidade e a imaginação mais desenvolvidas, são atingidos mais
profundamente pelas arestas do mundo real; mas, pelo mesmo
motivo, possuem também mais possibilidades de defesa, e a
criação da Arte é uma delas. Pela Arte, eles respondem aos fe-
rimentos e à insegurança que o mundo real lhes infligem, o que
fazem através de um outro mundo, no qual tanto a beleza quan-
to a feiúra, tanto a felicidade quanto o infortúnio, tanto o riso
quanto o sangue, aparecem domados, cicatrizados e eternizados
pela Beleza. O grande poeta romântico alemão N ovalis dizia que
a Arte nasce da humilhação. É verdade. Mas essa humilhação
deve ser entendida num sentido muito mais amplo do que aquele
que se apresenta nas análises psicanalíticas superficiais. Por um
lado, o jogo da Arte é um impulso comum e perene a certos
grupos da comunidade, sejam elas "primitivas" ou não. Em qual-
quer grupo social, encontram-se homens que gostam mais de
LIVRO V

0 UNIVERSO DAS ARTES


CAPÍTUL027
HIERARQUIA E CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES

O Problema da Hierarquia das Artes

Analisados, pelo menos de passagem, os problemas funda-


mentais ligados à Arte em geral, passamos agora a examinar o
universo das Artes particulares. Tudo o que se disse da Arte deve,
em teoria, se aplicar às Artes, formas atuais, particulares, vivas e
independentes da Arte. Assim, por exemplo, tendo tratado do
problema da origem da Arte, cabe apenas uma ligeira referência
ao da origem de cada Arte em particular.
É um campo no qual os preconceitos da Etnologia e da Bio-
logia "cientifistas" do século XIX têm criado muitas confusões.
Baste um exemplo, como referência: o Evolucionismo, apresen-
tado por Darwin como uma hipótese, adquiriu tais foros de
dogma que hoje é praticamente impossível examinar qualquer
assunto de Etnologia ou de Antropologia Cultural sem tropeçar
nos fantasmas e destroços evolucionistas. A coisa chega a tal
ponto, que é preciso fazer um esforço para rir e não ficar indig-
nado com as interpretações forçadas e torcidas que esses in-
quisidores de um sistema biológico ultrapassado querem dar dos
fatos que negam a cada passo a verdade dos seus fantasmas. Até
110 campo da Estética o Darwinismo atrapalha a reflexão, per-

1urbando a serenidade dos pensadores e causando distorções na


280 A RIAN O SUASSUNA INICIA ÇÃO À EST ÉT ICA 281

interpretação dos fa tos. O p roblema da origem d e cada Arte é, devemos consider ar, pri meiro, a necessidade em q ue se viu o
talvez, um dos m ais pertu rba dos po r essa hipótese biológica, homem, p rimeiro de co nstruir abrigos ou casas, e d epois de
transforma da em dogma e, depois, estendi da abusivamente a construir casas e templos belos, co mo im pulso artístico huma no
sistema filosófico de interpretação do mundo. igual aos outros. E dizer-se q ue tud o isso vem, talvez, do faro de
O s pensadores mais razoáveis limitam-se a assi nalar o paren- 11;-10 que rerem esses pensadores admitir q ue gente é gem e e Arte
tesco de determinadas Artes, as quais, ao que a firm am, nasce- (; Arte, o que os leva a crer, com entranhada fé, cm coisas muito
ram juntas. É o caso da M úsica e da Poesia, talvez de início sempre 111ais complicadas, e di fíceis de acontecer, como, por exem p lo,
unidas através d o canto; e não é m uito difícil imaginar o ho- "a humanização do macaco pelo trabalho", o treino da mão do
m em se apercebendo d e q u e as palavras tinham, po r si sós, o
antropóide até chegar ao uso do pincel por Botticelli, e o aper-
p ode r de criar a Beleza : a Poesia, e ntão , fi ca in dependente e
feiçoamento dos gritos do ho mem primitivo até a música de
começa a se desen volver e crescer cm seu cam po, enquanto coi-
Mozart. Note-se, a inda, que o assobi o h umano e as músicas
sa semelhan te ocorre com a Música q ue, e ntendida a princípio
puramente instrumentais parecem indicar que a Música p ura,
como se rva o u compan h eira das pa lavras, no canto, vai, aos
~c parada da Poesia, sem pre existiu.
poucos ass umindo a pureza q ue te rmin ou nas formas mais des-
Quanto à o rdenação hierá rq u ica das Artes, te m sido e la
pojadas como as "pa rt iras" de Bac h para violino solo . G eiger é
objeto, ta mbém, de várias con tro vé rsias, co m o s p ensad o r es
um d esses pensad o res m ais cautelosos e razoáveis, e afirma, a
propondo uma o u outra Arte como super io r às demais. Para
respeito desse parentesco :
l legcl, por exem p lo, a ma ior das Artes é a Poesia, o q ue é
"J\ Poesia ... , na opinião de to dos, tem r aízes comuns com a pcrfei tamente explicável n um filóso fo como ele, para q ue m
Música". (Ob. cit., p. 63.) 11 Arte é reveladora, n o sensível, da Idéia absoluta. Assim sen-
do, a Poesia, que un e o esp ír ito das Artes p lásticas, ao ritmo
Essas ra ízes comuns da M úsica e da Poesia seriam, de acor- 11111sical e ainda ao pensam ento, teria q ue ser a Arte su perio r
do com Spencer, "a linguagem domi nada pela paixão"; e come- r suprema. Di zia Hegel que
çam as interpretações forçadas de etnólogos e evolucio nistas:
de acordo com Wallaschek, o q ue de u origem à Música e à Poe- "a Plástica é o signo do Espírito. Ela exprime a vida criadora,
sia foi "o compasso'', q ue Bucher vê como nascido do traba lho mas paralisada e li mitada pelo tc:mpo e pelo espaço. A Música,
corporal; e, de aco rdo com Stu m pf, o que está na origem da ao contrário, revela- nos d iretamente o movime nto ín timo da
M úsica e da Poesia são os gr itos à d istância, empregados na si- alma, com seus desejos e sentimentos eternos e sua aspi ração ao
infinito. A Poesia, finalmrnte, é a Música plástica. Ela pinta e
nalização dos ho mens "prim it ivos" ... Esquecem -se eles de q ue o
esculpe por meio de frases dotad as de mobilidadc e por sons q ue
ritmo é inere nte ao próprio ser humano, com as pulsações do
se suced em, harmoniosamente ritmados. Ela é a Arte suprema e
sangue, e é, também, iner ente ao próprio m undo. Não vêem que
exprime o pensamento por imagens". (Cf. De Bruyne, ob. cit.,
certas Artes, como a Arquitetura, são quase que um meio cami-
p. 365-366.)
n ho ent re as Artes úteis e as chamadas Belas Artes, pelo q ue
282 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 283

Já para Schopenhauer, a Música é a mais elevada das J\rt<""· zeros artistas se sentarem em mesa-redonda? Cada sentido pode
ser um caminho para o Absoluto. Por que impor às Artes uma
De acordo com ele,
ordem de precedência e fixar um limite a seu impulso"? (Ob. e
ed. já cits., p. 121.)
"a Vontade, essência profunda do Universo, não é repres""t "
da senão indiretamente pelas Artes plásticas e poéticas, c1u
Ao dizer que «cada sentido pode ser um caminho para o
obras-primas que encaram a Idéia eterna, o tipo imutável .i.,,,
Absoluto'', Nédoncelle refere-se aos sentidos humanos através
coisas materiais e da alma humana. A Música, ao contr;í1i• 1,
cios quais é realizada a entrega da obra de arte à intuição, assim
expressa a Vontade diretamente, na sua essência, nas suas ª' I"
como à classificação das Artes principais em visuais e auditivas,
rações, na sua vida, nos seus transportes eternos: ela não dn
conforme veremos daqui a pouco. E como cada um dos senti-
creve um fenômeno particular e não exprime, sentiment"··
Jos pode, segun do ele, ser um caminho para o Absoluto, segue-
individuais; como as outras Artes, mas revela, sim, o fundo ni;11·.
sc que todas as Artes têm valor igual e o problema da hierarquia
escondido da vida tendencial: a alegria, a dor, a melancol i:i"
(De Bruyne, ob. e p. cits.) delas é, assim, um problema estéril.
Nédoncelle tem razão quando afirma que as ordenações hie-
rárq uicas das Artes têm sido feitas seguindo pontos de vista
Um Problema Estéril? unilaterais, preferências particulares de cada um, sistema filo-
sófico etc. Isso, porém, não chega a fazer da hierarquia das Ar-
As opiniões são, portanto, tão diferentes, que existem aqui: tes um problema estéril, desde que, ao tratar dele, estejamos
les que preferem deixar de lado o problema da hierarquia da~ advertidos de que o assunto pode ser colocado sob vários ângu-
Artes, dizendo que ele é, por um lado, insolúvel, e, por outro, los. Por exemplo: se ordenarmos as Artes tendo como ponto de
estéril - um assunto que não deve sequer ser posto em discus- partida a pureza formal, não há dúvida de que a Música será
são. Maurice Nédoncelle, por exemplo, inclina-se para essa ati- colocada em primeiro lugar, pois é a que se entrega mais direta-
mente à intuição: no caso das músicas puras, isto é, das músicas
tude, dizendo:
sem palavras e afastadas de qualquer idéia de "significado'', a
"Guardemo-nos dos espíritos sistemáticos. Leonardo da Vinci Música é a mais pura das Artes, seguida logo após pela Pintura
pretendia que a Pintura era superior à Escultura porque pode abstrata. Mas, se o ponto de vista adotado for o da complexida-
representar tudo e traz em si sua própria iluminação. B. Cellini de de expressão do humano, teremos que colocar em primeiro
dava a palma aos escultores porque eles têm maiores obstácu·· lugar as Artes literárias, e ainda, dentro destas, deveremos dar
los a vencer. Kant colocava a Música no fim da lista porque ela preferência, talvez, àquelas que corporificam sínteses de Artes,
não é conceitua!. Hegel tinha-lhe mais consideração porque ela como o Teatro ou o Cinema. E assim por diante. Posto nestes
possui interioridade e Schopenhauer colocava-a no primeiro termos e sabendo-se que existem diversos pontos de vista legíti-
posto porque, segundo ele, ela nega inteiramente a vontade de mos sob os quais ele pode ser estudado, o problema da hierar-
viver do mundo, que é má. Cada um discute de acordo com quia das Artes não é estéril e pode trazer muitos esclarecimentos
seus amores ou sua ideologia. Não seria mais sábio, porém, fa-
284 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 285

ao campo da Estética em geral e à natureza de cada Arte em coisa muito diferente: porque, do ponto de vista do sentido atra-
particular. vés do qual a Dança se entrega à contemplação, é ela uma Arte
visual como a Pintura ou a Escultura.
Outra falha na classificação de Nédoncelle é a estranha in-
Classificação das Artes - Nédoncelle clusão dos Esportes entre as Artes. É verdade que existem Artes
por assim dizer "fronteiriças'', que ficam mais próximas, do que
Tomás de Aquino, baseado na tradição da Filosofia mediter- outras, de campos semelhantes. É o caso, a que já nos referimos,
rânea, dizia que os sentidos estéticos por excelência eram a vi- da Arquitetura, que pertence, sem dúvida, ao campo das Belas
são e a audição. Baseado nessa idéia é que Maurice Nédoncelle Artes mas que de todas elas, é a mais aproximada das Artes úteis.
esboça sua classificação das Artes. Entretanto, não se contenta De maneira semelhante, a Dança é uma Arte e tem parentescos
ele em dividir as Artes em visuais e auditivas. Referindo-se a visíveis com a Ginástica Rítmica, assim como uma partida de
outro sentido humano, acrescenta ainda as Artes tácteis-muscu- h1tebol pode às vezes parecer um espetáculo de Balé. Mas, num
lares, assim como reúne as Artes mais complexas sob o nome de caso e noutro, existem diferenças essenciais das quais Nédoncelle
Artes de síntese. Assim, segundo Nédoncelle, as Artes principais 11ão se apercebeu. Uma é que a Dança, como acontece com qual-
quer outra Arte, se caracteriza, nos casos comuns, pela criação
são as seguintes:
dt: uma obra que permanece idêntica a si mesma no tempo e no
rspaço. E mesmo no caso de um Dançarino que realizasse um
Artes visuais - Pintura, Escultura e Arquitetura.
Improviso - o que não é o caso normal - recorde-se o que, em
outras passagens deste Manual tantas vezes foi afirmado: que a
Artes auditivas - Música e Artes da Linguagem (Literatura).
criação da Beleza não é a preocupação exclusiva, mas é, sem
dúvida o objetivo fundamental da Arte.
Artes tácteis-musculares - Dança, Mímica e Esportes.
No caso da Dança, a parte mais importante da criação é a
l :oreografia. Se uma Bailarina dança "A Morte do Cisne" de
Artes de síntese - Teatro, Cinema, Ópera e Balé.
11cordo com a coreografia que Pavlova dançava, quando soam
determinados acordes da Música ela deve estar em determina-
A classificação de Nédoncelle traz algumas contribuições
dos lugares do palco, executando determinados gestos e movi-
interessantes, mas, sob vários aspectos é imprecisa e vaga. Por
1111.:ntos. Não acontece o mesmo no Futebol. O meio-de-execução
exemplo: existe, nela, uma variação do ponto de vista sob o qual
1bte Esporte é o mesmo da parte-de-espetáculo da Dança - o
as Artes são encaradas. Quando ele fala em Artes visuais e audi- rnrpo humano. Mas cada partida de Futebol é diferente da ou-
tivas, tem em vista o sentido através do qual a obra se entrega à 1r:1; e, apesar de determinados momentos de uma partida pode-
intuição do contemplador: a Pintura é visual porque é através 1·cm alcançar grande beleza plástica semelhante à da Dança, aão
do olhar que a obra chega ao intelecto. Mas quando Nédoncelle t·xiste, ali, a identidade da mesma obra, durando no tempo e
classifica a Dança como Arte táctil-muscular, tem em vista o fato Jll:rmanecendo no espaço, porque não existe, nela, a parte-de-
de que é o corpo humano que executa a obra de arte, o aue é
286 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 287

criação, a Coreografia, um dos aspectos fundamcnt::iis que ca- apreciar uma sonata. Mas não acon tece o mesmo com a Poesia
racterizam o Dança como Arre. e com as outras Artes da linguagem. Todas elas são muito mais
Outra coisa: a belcz::i existente num;-i partida de Futebol é puramente "i ntelectuais". Não interessa, no caso da Poesia, o
uma belez::i n::itur::il, corno a de urna M ulher bonita, a de um sentido através do q ual o poema chega ao intelecto: se a pes-
Leopardo ou a de um;-i P;-iisagem . Não é beleza artístic;-i. Esta só soa for surda, pode ler o poema, se for cega, alguém pode recitá-
apareceria se um Coreógrafo, p;-irtindo do Fu tebol, criasse um lo para ela ; até o ta to pode levar o poema, pelos caracteres
Balé fundamentado nele, com música, gestos, passos e movimen- Braille, ao intelecto do contemplador; o que in teressa é que as
tos determinados. Aí sim, teríamos uma obra de arte situada no palav ras e seu sentido cheguem ao intelecto, não importando
campo da Dança e base;-ida na beleza natural de um Esporte, fato qual o sentido através do qual isso se faça. Assim, a Literatura
da Vida; da mesma maneira que um quadro que representasse a não pode ser considerada, como a Música, uma Arte auditiva.
De modo que, a p esar das críticas que a lgun s estetas mais
bela paisagem natur al de q ue fa lamos seria uma obra de arte
dogmáticos têm feito a ela, parece que a classificação de Dessoir,
baseada numa b ela coisa da N;itureza.
mais baseada no senso comum, é mais concisa e didática do
D eve-se ;-inotar a incl :i outro faro import:inte ; pode-se criar a
que a de Nédoncell e.
Beleza por me io de determinados tipos d e Ginástica, e é verda-
de, também, que o exercício ela Dança supõe o domínio do cor-
po e de seus movimentos . t-.1as na Gin;ística a cri;-iç;io ela Beleza Classificação das Artes - Dessoir
será sempre secund;1ria, pois nela o objeti vo fundamental a ser
alcançado é o aperfeiço:imcnto do corpo, sucedendo o contrá- Edgard De Bruyne par ece considerar como um defeito isto
rio com a Dança. Diferença parecida ocorre entre a Dança ar- que acabamos de apontar como uma qualidade - na classifica-
tística e aquela que é pura diversão : é claro que existe urna ção de Dessoir - , o fato de ela se basear, de certa maneira, na
diferença de valor e de natureza en tre o Dom Quixote, de Má- idéia que o Povo tem elas Artes. Afirma ele, no seu Esquisse d'une
rio Petipas, e uma dança de festa levada a efeito num fim de se- J'hi/osophie de l'Art, que a classificação tentada por Dessoir
mana num clube burguês qualquer.
Fina lmente outro defei to da classificação de Nécloncelle é "procura ser completa, pois leva em conta os meios técnicos e
o foto de incluir as Arres li terár ias entre as Artes auditivas, jun· os caracteres psicológicos. De fato, é muito mais estreita (do
tam ente com a Música. Creio que Nédoncell e foi leva do a isso que pretende ser) e parece decorrer da concepção vulgar". (Ob.
pela semelhança, meram en te exterior, entre o ritmo da t-.!úsi- cit. , p. 367. )
ca e a métrica da Poesia. Porque, sob qualquer po nto ele vista,
a junção das duas numa categor ia só não tem sentido. Que a Dessoir classifica as Artes em espaciais - ou do repouso -
Pintura é uma Arre visual e a Música auditiva, está certo, por· e temporais - ou do movimento. As Artes espaciais caracteri-
que cm qualquer elas duas o sen tido através elo qual a obra de ·w m-se por elementos justapostos; são as Artes plásticas, Escul-
arte se cmrega à intuição exerce pape l fundamemal: um cego lllra, Pintura e Arq ui tetura. As Artes temporais caracterizam-se
n ão pode apreciar um quadro , e u m surdo total n ão pode por elementos suc:essivos; têm como meios de realização, exe-
288 AR IANO SUASSUNA

cução e interpretação os sons e os gestos; são a Mímica, a Lite-


ratura e a Música. Ao lado d estas, Dessoir refere-se, ainda, às
Artes de síntese, que ele chama de Associações, dividindo-as em
definidas e indefinidas. As Associações definidas são as que se
formam através de sínteses de Artes imitativas, ou figurativas.
CAPÍTUL028
As indefinidas são as que partem de sínteses de Artes livres, isto
A ESCULTURA
é, daquelas que se baseiam em formas não reais, abstratas. A Dan-
ça, por exemplo, seria uma associação da Música com a Mímica.
Ao contrário do que diz De Bruyne, creio que o ponto de parti-
da de Dessoir é melhor do que o de outros. Não vejo porém,
necessidade de usar o nome de Associações para as Artes de sín- Os Limites da Arte
tese: o Teatro, o Cinema, a Dança, a Ópera e o Balé não são
associações de Artes, são Artes independentes, peculiares, com Esboçada uma classificação das Artes, podemos, agora, pe-
vida própria. Também é dispensável esta subdivisão das Artes netrar no universo particular de cada uma delas, apontando
de síntese em definidas e indefinidas. Mas, com esses reparos, idéias e sugestões capazes de nos aproximar de sua natureza. Para
acredito que a classificação das Artes feita por Dessoir dá uma
isso, seria conveniente, talvez, de início, delimitar o campo de
visão geral bastante boa do universo das Artes e do lugar que
cada uma das Artes que vamos estudar. Um pensador contem-
cada Arte ocupa nesse campo.
porâneo que se dedica ao estudo da Filosofia da Arte, e da Teo-
ria do Teatro em particular, faz, a esse respeito, uma reflexão
que firma um princípio geral muito útil para a tarefa que vamos
empreender. É Jan Doat, que afirma tal princípio geral nos se-
guintes termos:

"Toda Arte tem seus limites naturais: a inteligência especulativa,


a descrição e a reprodução (por um lado) e, por outro lado, o
impossível, o indizível, o irrespirável e o que é do domínio da
Arte sua vizinha. A Escultura é limitada, ao norte, pelo pensa-
mento especulativo ou - pela intenção comovedora; ao sul,
pela Modelagem; " leste, pela Pintura e pelo Desenho; a oes-
te, pela Arquitetura. Ela não procura nem a simples verdade
anatômica, nem a expressão da vida afetiva, nem o que é ane-
dota, careta, narração, virtuosidade e movimento. Harmonia
290 A RIA NO SUA SSUNA INICIAÇÃO À EST ÉTICA 291

dos volumes, jogo da luz, satisfação de um certo toque visual, origem comum, de modo que a inter penetração acidental dos
tensão interior, eis aí o que a Escultura nos deve dar. Eis aí seu domínios e d os m eios existe e aquelas fr onteiras às quais nos
domínio verdadeiro, sua simplicidade e sua di ficuldade". (Entrée referim os são m uito mais largas do q ue as definições teóricas
du l'ublic, Éditions de Flore, Paris, 1947, p. 25 .)
dão a entender. Por exemplo : a pintura de Tin to retto assu-
mia, às vezes, uma semelhança que chega a ser desagradável,
Essas palavr as d e Doat servem-nos d e gu ia para d etermi- com a cenografia teatral, uma Arte q ue é muito próxima da
n ar, em prime iro lugar, o campo d a Arte e m geral. Primeiro, Pintura mas q ue n ão é prop riamente a Pintu ra e que portan-
ela faz fronteira com o pensamento especu lativo: por mais to precisa ser bem defin ida e limi tad a pera nte ela, para evitar
profundas que sejam a s implicações filo sóficas, políticas ou males maiores a uma e a outra.
religiosas de uma obra de arre, a Arte n ão é uma forma de co-
nhecimento, nem preced e por abstraçõ es. Depois, a simples
descrição ou r eprodução: já vim os, tam bém, que a Arte não A Escult ura Épica e a Intimista
imita, mas sim recria e transfigura. Em terceiro lugar, o senti-
mento, a emoção enternecedo ra: sentimos sempre algo de sus- Fei ta essa ressalva e um a vez que Doar começa fa lando d a
peito numa obra d e ar te lacrim ejante, facilmente sentimental. Escul t u ra, vejamos a lguma coisa a r espeito da teori a d essa
Finalm ente, o indizível: o sonho d o artista exced e sempre uma /\.rte. Em primeiro lugar, notemos que a Escu ltura tem segui-
fronteira a lém da qual não podemos passar, um campo limita- do dois cam inhos prin cip ais: por um lado, un ida à Arquite-
do d entro do qual temos de nos mover, se é que desejamos, tura, ela segue os caminhos épicos semelhantes aos dos grandes
murais e a frescos, numa espécie de ornamentação gigan tesca
mesmo, criar algum a coi sa.
cm que as figu ras e fo lhagen s são conceb idas e executadas
como partes vari adas de um todo orgânico ; é o que aco nte-
A s Fronteiras de uma Arte com Outra ce, por exemplo, na escultura româ nica, na escult ura barroca
ou na hindu. Por outro lado, par ece que por infl uência do
Estabelecidos os limites do cam po estético, devemos lem- indiv idualismo re nascentista e da tr adição d o per íodo clássi-
brar, d e acor do com o texto citado, que, dentro desse cam- co que a Re nascença valorizou, a Escultu ra segue ou tro ca-
po, cad a Arte se limita co m sua vizinha. Por um lado, esses minho, d ife rente, um cam in h o que Nédoncelle chama, com
li m ites devem ser bem estabelecidos, porq ue a Arte que não muita p ropri edade, de intimista . Aí, a Escult ura abando na a
se define bem perante su as semelhan tes ter mina fi cando con- Arqu itetura, o u e ntão é aposta a ela, em vez de se integrar no
fusa e se extrav iando em seu caminh o ver dadeiro. Mas, por prédio . A figura é concebida isolada ou em peq uenos grupos,
outr o lad o, não devemos esquecer que essa limitação atinge e a integração do ho mem com as p lantas e bichos da Nature-
ap enas o essencial da Arte: o im p ulso a rtístico é um só, os za ou com as fo r mas abstratas e abstratiza ntes já não é tão
m eios materia is empregados por d uas Artes às vezes são se- co nstante e presente como no espírito ornamental da Escul-
m elhantes, as técn icas têm, às vezes, proxim idad es e também tura épica.
292 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 293

Dentro desses dois caminhos, podemos dizer que, a gros- /\ Escultura e a Modelagem
so modo e numa distinção que deve ser, como sempre, enca-
rada com "espírito de finura" e não "de geometria", podemos A Escultura é uma Arte na qual, por sua própria natureza, o
apontar quatro tipos de Escultura, dois para cada caminho, e problema dos materiais empregados é de importância capital,
representando quatro graus de participação decrescente em :1fctando a própria essência da obra a ser executada. Creio que
é por isso que Doat fez questão de colocar a Modelagem como
relação ao caráter ornamental. Primeiro, no caminho épico,
i\rte independente e diferente da Escultura, como uma das fron-
temos as esculturas puramente ornamentais, abstratas ou
teiras que marcam o campo próprio da Escultura. De fato, Doat
abstratizantes, como as que decoram os capitéis românicos
parece ter empregado a palavra "modelagem" num sentido mais
ou os altares barrocos brasileiros ou certos monumentos sa-
restrito mais aproximado do de "moldagem". Isso não nos im-
grados da Índia. Em segundo lugar, ainda no caminho épico,
pede, porém, de observar que houve, no mínimo, uma diferen-
os grandes murais escultóricos do gótico, por exemplo, inte-
(;:1fundamental no campo da Escultura quando, em vez da pedra
grados, em grandes conjuntos, às paredes e portais. Como
ou da madeira, passaram a ser usados o bronze e o gesso como
parentas próximas das figuras desses "murais escultóricos",
111ateriais de criação e realização da obra escultórica. A escolha
mas situadas já no primeiro grau da Escultura menos épica e
desses meios materiais, aparentemente sem importância, con-
mais intimista, temos, por exemplo, as figuras dos profetas
diciona também, de maneira essencial, o caminho que o escul-
do Aleijadinho: ali, cada escultura é concebida como um to- 1ore sua obra vão seguir, e não é por acaso que a escultura hindu,
do isolado, válido por si só; o conjunto não é integrado no :1gótica, a românica, a azteca, a asiática, a incaica ou a melhor
prédio, é aposto à igreja; mas isso não significa que o conjun- d:1 América Latina já ibérico-mestiça seja sempre feita em pedra
to dos profetas tenha sido justaposto artificialmente à igreja: 1H1 em madeira.
o que ocorre é que a igreja é tão importante para o conjunto Também devemos atentar para os problemas formais que a
da obra quanto o total das estátuas dos profetas. Finalmente, destinação particular da obra acarreta para a Escultura. Uma
temos o quarto e último grau da Escultura intimista: é o caso rscultura intimista dificilmente se harmonizará com a or-
de esculturas como algumas de Rodin, ou de Maillol, em que 11:1111entação arquitetônica de caráter épico. Até o fato de a
a estátua é uma obra isolada, feita para ser olhada isolada- rslátua ser feita para ser vista de perto ou de longe, de cima ou
mente, desligada de qualquer edifício. É o caso do David, de de baixo, suscita problemas e soluções formais diferentes. E quan-
Miguelângelo, feito também para ficar no centro de uma pra- do um artista, antes de temperamento intimista do que épico,
ça, como se esta fosse uma sala imensa de museu e aquela obra rnmo Rodin, pretende enveredar pelos caminhos da Escultura
estivesse ali, exposta, como a Eva de Rodin, para ser vista integrada na Arquitetura, terá ele que ceder a independência
pelos visitantes, concebida como obra autônoma e não para d:ts suas figuras em favor do conjunto. É o que sucede, aliás,
conjunto arquitetônico nenhum. i:om uma obra sua, A Porta do Inferno, na qual somente as es-
t:ítuas que a encimam, isto é, O Pensador e As Três Sombras,
~rio concebidas como obras isoladas: e isso só foi possível ain-
294 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 295

da, porque ebs constituem uma espécie de arremate da obra, derasa de Miguelângelo, inclinando-se, então, para uma escul-
na qual todas as outras figuras são elementos de orna111e11tação tura ligada à representação do sofrimento, do impulso humano
quase abstratizantes. para o alto e da angústia disso resultante, sendo essa tensão in-
terior e espiritual a verdadeira modeladora do volume em suas
esculturas.
A Escultura Apolínea e a Dionisíaca
Já os gregos do período clássico, procuravam representar os
seres como que retirados ao universo psicológico, imunes ao
Pode-se dizer, ainda, que a Escultura de certos períodos clás-
sofrimento e à idéia ou presença da morte. Os modelos preferi-
sicos tende para o espírito apolínco - com predominância cio
dos dos escultores gregos eram os seres jovens, no esplendor da
racional, do Belo, da serenidade, da imobi lidade; a dos perío-
idade, de corpos perfeitos, imóveis, serenos, harmoniosos, tran-
dos pré-cl:íssicos ou pós-clússicos, tende para o dionisí:ico. Nas
qüilos, idealizados.
Artes pi<Ísticas, em gnal, a expressão das paixões humanas ja-
Na maioria de suas esculturas, Rodin é, como dissemos,
mais será tão aprop ri ada quanto na Literatura ou no Teatro:
dionisíaco e atraído por Miguelângelo, no qual ele vê o últi-
qu:isc sempre aquilo que, cm Pintura ou em Escultura, chamam
mo dos góticos, numa interpretação somente até certo ponto
de "sentimento" o u "expres~iío do rosto" é algo de pbsticamcntc
válida: o que Miguelângelo tinha em comum com os góticos
espúrio . Note-se, porém, que eu disse quase sempre: nos gran-
era aq u ela compaixão pelo sofrimento humano e a atração
des artistas, uma espécie de temão espiritual in te rior do rosto
pelo Divino que causavam tanta repulsa a Nietzsche. Mas,
humano aparece às vezes traduzida numa nobre expressão de
melancolia austera ou de desespero conri<lo que acrescenta um noutras esculturas, Rodin deixou-se fascinar pelo ideal apo-

valor dolorosamente humano ?l qualidade p l:istica da esculrnra. líneo do período clássico grego. Como essas esculturas são
Não se trata, aqui, de estabelecer hierarquias de valor, mas de menos numerosas, Nédoncelle as esqueceu, quando, falando
apomar caminhos que permitem vari:ições legítimas do gosto. dessa impressão que dão as esculturas gregas de ter o artista

I\:~soalmente, niio escondo que p refiro a brutali<lade sóbria e


superado a agitação e o sofrimento terrestre para atingir o
rncio <lcspoj;.1Ja <la i:sc ul tura egípcia, ou a si11 uosidadc luxurian- ideal eterno, diz:
te <l~i ..:~cultura hi11Ju J. frieza <la c~cu l tura grega do pcrío<lo clás-
"Os gregos fizeram ordinariamente coincidir este recolhimen-
sico; e prefiro, por outro lado, a ocultura meio bJrbara do
to com a época de pleno florescimento vital do indivíduo .. .
Akija<lin ho J. de Rodin . bso nfo implica cm superioridade ou
Uma tal concepção é muito estreita. Ela exclui da eternidade
infcrioriJade objeti v•lS de nen huma dc~sas cm rclaç:10 ,\s outras.
os estigmas da paixão e da luta, enquanto que todas as coi-
De acor<lo com uma observaç:io que jJ fize mos antes a respeito
sas, inclusive o impasse e a feiúra, dev eriam preparar o tipo
de Tintoretto e <lc El Grcco, ca<la arti~ra que resolve r se dedicar supremo do homem e, neste sentido, integrar sua idéia ... A es-
à Escultura descobrirJ, dentro de seu campo, quem são seus cu ltura de Miguelângelo e, mais ainda, a de Rodin, não
antecessores, qual a famíl ia espirit ual, a link1gem à qual ele se subtraem, mais, seus modelos ao tempo psicológico". (Ob.
filiar<Í. Rodiu. por exemplo, confessa q ue sentiu a atração po- cit., p. 94-95 .)
!96 ARIANO SUASSUNA 297
INICIAÇÃO À ESTÉTICA

Diante de tais palavras seria, talvez, conveniente lembrar Quanto a um fato, porém, Hegel tinha razão: é que, sendo
1ue não se trata, no caso dos gregos, de estreiteza de concep- a Escultura uma Arte plástica é, por natureza, abstratizante,
;ão: estou a cavaleiro para dizer isso, porque, como afirmei mesmo quando se vale das figuras de homens e mulheres, de
mtes, pessoalmente prefiro a escultura épica e ornamental dos plantas e de bichos; e, conseqüentemente, parece que seu espí-
1indus ou dos românicos à grega. Mas, objetivamente, deve- rito se harmoniza melhor com a ornamentação épica - enten-
nos reconhecer que não se trata de superioridade da escul- dida, aqui, num sentido muito mais amplo do que o comum -
;ura azteca ou da assíria sobre a grega ou desta sobre aquelas. do que com a representação da interioridade humana, assunto
)ão maneiras diferentes de cada cultura ou cada indivíduo en- mais literário do que propriamente plástico.
;ararem a Escultura.
É conveniente notar, ainda, que a Escultura não aspira a
Jreparar "o tipo supremo do homem" ou a revelar a idéia inte-
~ral de homem, como insinua Nédoncelle, ao que parece ainda
marcado pela vaga, imprecisa e nunca bem explicada idéia pla-
:ônica sobre os arquétipos, sobre o modelo ideal de homem. Ao
tomar seus materiais, o que o escultor procura, como qualquer
:mtro artista, é criar a beleza da obra particular que aflorou à
ma imaginação vinda daquela "noite criadora da vida pré-cons-
:iente do intelecto'', à qual já nos referimos tantas vezes. Ao fazer
isso, é guiado, ao mesmo tempo, pela tradição da cultura de sua
~omunidade e por suas inclinações particulares, pelo impulso
natural de contribuir para sua linhagem artística com sua inven-
~ão e suas contribuições pessoais.
Os problemas formais e plásticos são, assim, tão fundamen-
tais, na Escultura, que Hegel chegou a negar a ela a possibilida-
de de revelar qualquer interioridade. Ao fazer isso, parece que
Hegel tinha somente em vista o tipo apolíneo-grego de escultu-
ras do período clássico. Se tivesse atentado mais para aquilo que
ele próprio chamava de "o simbólico" da Arte medieval, teria
encontrado nela, ou nos "escravos acorrentados" de Migue-
lângelo, aquela interioridade, aquela tensão íntima e espiritual
na qual o caráter psicológico do modelo e a expressão da tragé-
dia humana desempenham papel tão importante.
CAPÍTULO 29
A ARQUITETURA

A Arquitetura e as Artes Mecânicas

A primeira característica a salientar na Arquitetura talvez seja


a de que, de todas as Belas Artes, ela é a mais aproximada das
Artes úteis, ou mecânicas. Na verdade, a Arquitetura, além de
procurar, como as outras Artes, a criação da Beleza, possui sem-
pre um objetivo de destinação prática e depende, mais do que
qualq uer outra, de condições alheias à vontade livre do artista,
pois a obra a fazer, o prédio a construir, deverá servir de mora-
dia, de templo, de casa comercial, de fábrica etc., de modo que,
nela, até as condições sociais da comunidade interferem, de
maneira m ais direta e forte, no trabalho de criação.
É cla ro que, como já mostramos antes, outras obras de arte
podem possuir objetivos vários, além do puramente estético de
busca da Beleza. Mas, na Arquitetura, o teor de participação da
utilidade da obra é muito mais elevado do que em qualquer outra
<las Artes, a ponto d e o verdadeiro arquiteto ficar quase que
esmagado entre o escultor e o engenheiro. Para usar uma termi-
nologia cara à estética pós-kantiana, digamos que, nas outras
Artes, o objetivo estranho ao estético concerne mais à atividade
<lo sujeito, motivo pelo qual o escritor ou o músico podem ser
mais solitários e independentes do que o arquiteto. Na Argui te-
300 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 301

tura, o objetivo não-estético está presente na atividade criadora com objetivos puramente ornamentais, e demonstra uma evi-
do artista, no edifício, e até mesmo no espírito do contemplador dente preferência pela linha curva.
que, ao olhar a edificação, há de levar em conta, para o julga- Nédoncelle, se bem que não tenha procurado definir e pre-
mento da Beleza, se o prédio cumpre bem, ou não, o fim ao qual cisar claramente os dois caminhos citados, parece tê-los em vis-
foi destinado. Assim, talvez, o exercício da Arquitetura seja o ta, quando escreve:
que exige, por parte do artista, mais tenacidade, coragem asce-
tismo e vontade. "Como nosso corpo, as pedras têm um equilíbrio, e este equilí-
Por isso, talvez, fosse até conveniente afirmar, de início, e brio tem dois fatores: por um lado, a relação vertical e da ele-
contra alguns exageros formalistas dos arquitetos contemporâ- vação; por outro, a relação horizontal ou oblíqua das pedras
neos - que querem transformar a Arquitetura numa espécie de entre si. Existem arquitetos que reduzem esta relação ao míni-
Escultura abstrata de grandes proporções - que o objetivo fun- mo: assim, o templo grego é um teto pousado sobre colunas, e
damental dessa Arte inclui, por natureza, tanto a destinação útil aí a Beleza decorre -se se pode falar assim -da habitabilidade
da moradia, sem nada se exigir a mais. Outras arquiteturas lu-
da obra quanto a criação da Beleza. E talvez, também, possamos
tam, ao contrário, de maneira heróica, contra a matéria, e essa
dizer, por isso, que é raro, em qualquer campo, o aparecimento
luta é travada gratuitamente, por amor à dificuldade vencida".
de um grande artista: mas, de todos os criadores, o mais raro e
(Ob. cit., p. 81.)
o que encontra maiores dificuldades para se realizar, é talvez, o
grande arquiteto.
Lembremos então, de novo, que a Arquitetura racional é
característica dos períodos clássicos, com seus anseios de equi-
Arquitetura Racional e Orgânica líbrio, ordem e sobriedade; a orgânica é característica das Cul-
turas ou dos períodos pré-clássicos ou pós-clássicos. O princípio
Assim como estudamos a Escultura encaminhada de acor- fundamental da Arquitetura grega é o da economia de meios,
do com duas linhagens principais, podemos dizer que a Ar- 1: não o ornamental. É verdade que a ornamentação é com um
quitetura, durante os séculos e de acordo com cada Cultura, a ambas as linhagens, assim como o princípio fundamental do
tem seguido dois princípios fundamentais: o econômico, ou trabalho do arquiteto, seja qual for o caminho preferido por
racional, e o orgânico, também chamado ornamental. Para dar, ~ni temperamento, terá de ser governado pela sustentação do
logo, um exemplo concreto de cada linhagem, podemos di- 1:difício. Mas no românico, no gótico e no barroco, linhagens
zer que a Arquitetura grega clássica - principalmente a dórica :irquitetônicas mais ornamentais do que racionais, a vitória so-
- segue o caminho racional. Já, a Arquitetura asiática e or- bre a matéria é empreendida através da maior variedade possí-
namental, isto é: a Arquitetura racional segue o caminho da vel de formas ornamentais; e tem sido citado como exemplo
sobriedade, da austeridade, da economia de meios, do des- disso o caso da catedral de Estrasburgo, em que existe uma série
pojamento, da predominância da linha reta; a orgânica é lu- dt: colunas absolutamente inúteis à sustentação do edifício, co-
xuriante, complicada, adotando formas que são procuradas lunas ali colocadas unicamente com o objetivo de conseguir
302 ARIANO SUASSUNA I N ICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 303

um efeito de profundidade, de caráter puramente estético. Já seguido o caminho de seus mestres, os gregos. Mas, de qualquer
nos templos dóricos, uma coluna só era colocada se fosse in- modo, o princípio da relação entre as proporções do p rédio e
dispe nsável à sustentação do edifício. E a atração pelo des- as do corpo humano assume, na Arquitetura racional, uma im-
pojamento era tal, que, mesmo quando o arquiteto se dispunha portância definitiva. As proporções do estilo dórico mantêm, não
a se valer de um escultor para ornamentar o prédio, a escultu- apenas uma relação racional e lógica entre si, como parece até
ra não era aposta ou sobreposta à parede, como ornamenta- que o todo do edifício é concebido tendo-se em vista as propor-
ção: as pedras que formavam a coluna eram esculpidas e assim ções do corpo humano. Daí ter afirmado Charles Lalo, como já
a coluna, indispensável à sustentação, transformava-se, ela vimos, que a Arquitetura grega era antes do Belo do que do
própria, em escultura, sem deixar de ser o objeto arquitetoni- Grandioso. Nela, como nota Nédoncelle, parece que "as colu-
camentc indispensável que era. nas conduzem a arq uitrave como os hom ens conduzem um
fardo".
Deve-se notar, ainda, que a chamada "seção de ouro" ou
Arquitetura e Proporção Humana "áurea proporção" é largamente usada na Arquitetura racional,
de modo geral, e na greco-clássica de modo particular. Ora, a
Pode-se dizer, assim, que, na Arquitetura orgânica, os obje- "seção de ouro", conforme veremos mais detidamente d epois,
tivos puramente estéticos de ornamentação são bastante mais é uma fó rm ula que procura antes de tudo o princípio da "uni-
evidentes, enquanto que na racional a destinação útil do prédio dade na variedade"; implica em si mesma, portanto, uma ten-
é mais claramente definida pela sobriedade e pelo despojamento. dência para o despojamento e a economia dos meios, uma vez
Por outro lado, a Arquitetura orgãnica tem uma tendência para que, quanto menor a variedade de elementos ornamentais, mais
sugerir a presença ou a busca do trans-humano, enquanto a ra- facilmente se atingirá a unidade buscada.
cional, até pelas proporções, procura se ligar às medidas do corpo
humano.
Essa tendência que possui a Arquitetura racional de se ligar À Procura da Transcendência
ao humano, teve seu princíp io fundamental formulado teorica-
mente por Vitrúvio e Miguelângelo e pode ser resumido assim, Ago ra, quando dizemos que a Arquitetura na qual predo-
de acordo com as palavras deste último: mina o princípio da economia dos meios é racional, isto não
significa que a outra seja ilógica, ou alógica: significa apenas
" É um a cois:i cerra que os membros da Arquitetu ra depen- que ela tende para u ma espécie d e lógica poética, ou de
dem dos membros do Homrn1". (Cit. por Nédoncelle, ob. supralógica, como não se contentasse com o humano e p ro-
cit., p. 83 .) curasse t ranscendê-lo .
Assim, a Arquitetura barroca, a gótica ou a hindu, deixam
Pode ser que a Arquitetura renascentista, da qual Migue- de lado a sobriedade, o despojamento e a med ida humana,
lângelo foi um dos maiores representantes, nem sempre tenha em busca por u m lado, do efeito puramente estético, e, por
304 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 305

outro, do Grandioso que sugira o esforço humano em dire- sua obra ele tem de vencer todas as dificuldades práticas de
ção ao transcendente - tomada esta palavra, aqui também modo a que sua construção, sendo útil, crie a Beleza e atinja
mas não exclusivamente, no sentido religioso. Arquiteturas a expressão ao mundo estranho, pessoal e diferente que cada
como a gótica ou a românica não se preocupam tanto com a verdadeiro artista carrega dentro de si. Somente para quem
sobriedade, e lançam mão, para atingir aquilo que procuram, não conheça, por dentro, os caminhos da Arte, é que pode
dos mais variados ornamentos, mesmo inúteis do ponto de parecer um paradoxo a afirmação de que, por mais estranho
vista da sustentação do edifício. Parece que para os arquite- que pareça a princípio, cada um desses mundos particulares
tos dessa linhagem nada é demais quando se trata da glorifi- revelados pelos grandes artistas termina por ser identificado
cação do Divino, ou, pelo menos, do esforço do homem para pela comunidade como algo seu, algo que estava escondido
atingir algo maior do que a medida comum do homem; de nas suas camadas subterrâneas, irrevelado ou esquecido, e que
modo que, para os góticos, a Catedral era concebida, não do modo agora, de repente, um espírito poderoso revelou e trouxe à
mais econômico, mas de um ponto de vista em que a unidade superfície, para ensinar de novo à comunidade aquilo que ela
era conseguida como uma vitória sobre uma variedade enor- é, sem saber.
me de ornamentações.
Como já salientamos várias vezes no decorrer destas re-
flexões, não se trata de superioridade n em de inferioridade Tendência Racional do Século XX
de uma linhagem em relação à outra. A escolha do caminho a
seguir é uma questão de temperamento, de preferências pes- A Arquitetura, no século XX, parece mais inclinada - pelo
soais. Não existe, portanto, nem no gótico, nem no românico, menos até agora e entre a maioria dos grandes arquitetos - para
nem no barroco, aquela decadência, aquele gosto "efemi- a linhagem da racionalidade e do despojamento, o que, como
nado", "complicado", "afetado", que Nietzsche e Spengler acabamos de dizer, é uma atitude perfeitamente legítima. O que
quiseram ver neles. São, apenas, arquiteturas de tendências não é bom é que alguns desses arquitetos saiam do campo da
diferentes das gregas e clássicas; e, se a sobriedade dórica é criação para teorizar com "espírito de partido", afirmando que
legítima, o mesmo se pode dizer dos templos hindus ou des- somente essa Arquitetura racional e despojada é legítima. No
sas igrejas românicas ou barrocas, em que as folhagens, ani- 13rasil em particular, com a nova Arquitetura descendente de Le
mais e figuras humanas, esculpidas em madeira ou em pedra, Corbusier, arquiteto racional, o princípio do despojamento está
cabrio lantes sobre frontadas, capitéis, colunas ou altares, se tornando uma espécie de dogma. Em 1961, numa conferên-
envolvendo portadas ou recobrindo paredes como lianas gi- cia que pronunciei na Faculdade de Filosofia do Recife, resolvi
gantescas, nos colocam diante de uma espécie de fundo de mostrar a legitimidade da outra linhagem de Arquitetura. A con-
mar primitivo ou de uma floresta povoada de feras estranhas. ferência foi repetida depois na própria Faculdade de Arquitetu-
Todo artista é, afinal, meio egocêntrico, ou melhor, tem a ra, não sem antes ter causado o protesto de um jovem arquiteto
tendência de tudo sacrificar à expressão de sua obra. Daí ter- meu amigo, que, no jornal, deu uma entrevista ao escritor Gastão
mos dito que o grande arquiteto é coisa rara: para realizar
306 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 307

de Holanda . Nessa entrevista, voltando -se contra o q ue eu dis- disso, vê-se que Jorge Martins Júnior, aí interpretando todo um
sera na aludida conferência, dizia Jorge Martin s Júnio r: setor de pensamento da Arquitetura contemporânea, não aceita
a idéia do edifício concebido como um todo, for mado pelos
"A integração das Artes na Arqui tetura atual é coisa discutível, próprios volumes e espaços arqu ite tôn icos e mais pelos orna-
pois o que aco ntece é que a Arquitetura, hoje, não se faz com o
mentos da Escultu ra e dos murais, tudo reunido num conjunto
auxílio de escultores nem pintores. Nas arquiteturas grega, gó-
integrado e uni ficado.
tica e romana, a escultura, a pintura e a arquitetu ra eram con-
cebidas de uma só vez. H oje, a forma arq uitetô nica é defi nida
por si só, sem o auxílio de outras Artes, embora se possa consi-
Le Corbusier e Fenelon
derar sua forma e seu volume um sentimento escultu ral. Os
palácios de Brasília são um exemplo. A simples escolha de uma
Sabe-se que, sem se falar em certa Arquitetura nascida do
parede para que nela seja composto um mural, ou de um recan-
to para uma escultura, não compromete o rodo arquitetônico movimento surgido em torno de Gropius e do Ba uhaus, essas
de uma obra. Poderia existir 011 deixar de existir sem que se al- idéias foram defendidas, no século XX, principalmente por
terasse o conjunto. Não sou contra a implantação dessas obras Le Corb usier. Entretanto, Fenelon, n o célebre "Discurso" em
de arte: é necessário que as Artes estejam mais em contacto com que trato u, d e passagem, d esse assunto, já fo rm ulara, nu ma
o público, hoje tão ausente dos salões de exposição. O que de- síntese adm irável, o pri ncípio básico da Arquitetura racional,
fendo é a independência da Arquitetura, que pode ser ricamen- dizen do:
te valorizada pelos seus próprios materiais".
"Não se deve admitir, num edifício, nenhuma parte destinada
Subscrevendo as palavras de Jorge Martins Júnior, G astão somente ao adorno; mas, pelo contrário, buscando sempre as
d e Holanda, seu entrevistador, acrescentava que " um edifício boas proporções, devem-se converter em adorno todas as par-
n ão é um pretexto para alegorias", o que equivalia a condenar tes necessári as para sustentar o edifício". (Cit. por Jacques
todas aquelas linhagens de Arquitetura que se valem da Escultura Marirain, Arte e Escolástica, ed . cit., p. 190.)
e da Pintura para concepção e realização do conjunto arquite-
tônico. Note-se que Jorge Martins Júnior se opôe a essa in- Formulado assim, dogmaticamente, esse princípio tornou-
tegração, dizendo que, "hoje, a forma arquitetônica é definida se rígido e exclusivo, querendo considerar bastardos e ilegíti-
por si só, sem o auxílio das outras Artes". E mesmo quando, por mos todos os o utros caminhos, em Arquitetura. Ora, se, no século
aquilo que ele considera, já , uma concessão muito generosa, XX, existiram grandes arquitetos dessa linhagem racional e des-
concorda em que o arquiteto possa reservar, no prédio, um re- pojada, surgiram tam bém outros que preferem o caminho da
canto para uma escultura, ou uma parede para um mural, isso é Arquitetura orgânica e ornamental. Entre eles, destaca-se, sem
feito, apenas, porque a Pintura e a Escultura não têm mais, hoje dúvida, aquele caralão de gênio que foi Antônio Gaudi, cuja
em dia, segundo suas palavras, um público que as procure por arquiretura católica, épica, espanhola e poérica, difere bastante
elas mesmas e é necessário dar-lhes uma oportunidade. Além da cartesiana, suíça e meio calvinista de Le Corbusier. E Jacques
308 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 309

Maritain, talvez se apercebendo do perigo que as palavras de plano com a utilização (do prédio), o arquiteto não pode orna-
Fenelon encerram, quando entendidas de modo rígido, comenta: mentar esse plano senão de uma maneira determinada. Ele não
é livre para adotar ou tirar os ornamentos, que lhe são indis-
"De Le Corbusier é preciso conservar muitas idéias, assim como pensáveis, tão apropriados ao plano (ao conjunto geral) quan-
to este foi apropriado para a utilização."
muitos dos contactos estabelecidos por ele entre a Arte do ar-
quiteto e a do engenheiro ... Enganar-se-ia, porém, quem pen-
sasse que é necessário, sob pena de pecado, reduzir tudo ao que Assim, parece que a Arquitetura contemporânea está se
exerce uma função útil, o que seria cair numa espécie de 10rnando muito sectária; por um lado, recusando, como fei-
jansenismo estético ... A lei da utilidade recobre e encarna aqui :1s, grandes obras da Arquitetura de todos os tempos, o que
uma lei mais profunda, a da harmonia matemática, e, mais em íaz por mero espírito de partido; e, por outro lado, sacrifi-
geral, a da lógica. É a lógica que faz o valor estético do útil e a c:mdo, ao mesmo tempo, o valor estético e a utilidade do
lógica é mais ampla do que o útil. Na Natureza existem muitos c<lifício, em nome dessa "Estética da nudez", o que tem ten-
elementos de ordem puramente ornamental e sem utilidade dido a transformar a Arquitetura de nossos dias numa espé-
prática. Os desenhos de uma asa de borboleta não servem para cie de Escultura abstrata de grandes proporções, com prejuízo
nada, mas tudo ali é logicamente necessário (em relação a uma IJara a Arquitetura e para a Escultura.
certa idéia gratuitamente escolhida").

Essas palavras de Maritain corroboram aquilo que afirma-


mos, antes, a respeito da necessidade de se entender a lógica num
sentido mais amplo do que o comum, como uma lógica capaz
de abranger, também, os elementos de enigma e mistério do
mundo e do espírito humano. E para que bem se harmonize isso
com o princípio fundamental da Arquitetura, com o que essa
Arte tem de prático, de útil e de indispensável à sustentação do
edifício, lembremos o que diz Delacroix:

"No grande arquiteto, existe um acordo absolutamente neces-


sário entre um grande bom senso e uma grande inspiração. Os
pormenores de utilidade que formam o ponto de partida da
Arquitetura, pormenores que são o essencial, são mais impor-
tantes do que todos os ornamentos. Entretanto, o arquiteto não
é artista senão subministrando os ornamentos convenientes para
esse útil que é seu tema. Digo convenientes porque, depois de
haver estabelecido em todos os pontos a relação exata de seu
CAPÍTULO 30
A PINTURA

Artes Maiores e Artes Menores

De propósito, deixamos para tratar, aqui, de um problema


que interessa à Arte em geral, o das Artes maiores e menores.
Isto porque talvez seja o campo da Pintura aquele no qual tal
problema tem sido tratado com o maior número de equívocos.
Estes têm sido tantos, que não são poucos os que, revoltados
contra eles, terminam afirmando que não existe essa distinção.
Durante muito tempo, por exemplo, a Cerâmica, o Vitral, a
Tapeçaria e a Gravura foram consideradas Artes menores em
relação à Pintura, Arte maior. Contra isso têm se levantado, com
justa razão, as vozes de alguns artistas. Mas não creio que esses
erros de interpretação sejam suficientes para acabar a distinção
que vamos tentar fixar aqui.
Digamos então, logo de início, que a Cerâmica ou o Vitral
são Artes maiores, do mesmo modo que a Pintura. Não importa
a natureza material da superfície sobre a qual se distribuem as
linhas e as cores. O que importa é o tipo de trabalho, de cria-
ção, que se exercita sobre ela.
Entendido isso, podemos dizer que as Artes menores são
aquelas nas quais o elemento de criação é menos presente do
que o de interpretação, divulgação, e reprodução; ou em que o
312 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 313

objetivo de execução conclusiva da obra esteja colocado num claramente subordinado ao papel subsidiário, e esse é de fato o
estágio posterior, tratando-se, no caso, de Artes auxiliares e sub- princípio sobre o qual se fundamenta a distinç::io entre Artes
sidiárias de outras: é o caso dos desenhos preliminares des tina- maiores e Artes menores.
dos a servir de esboço para um quadro. Também pode-se dizer
que a arte do vio linista, interpretativa, é um a Arte menor, no
campo da M úsica, em relação à arte do compositor (e repi ta-se Pintura Abstrata e Pintura Figurativa
que o elemento criador está presente, também, na arte do violi-
nista, mas em proporção bem m enor, em relação ao elemen to Feita essa distinção, passemos a analisar alguns problemas
interpretativo). A arte tipogrMica, di vulgadora, tem um elemen- referentes ao c::impo cb Pintura. Duran te algum tempo, a Pintu-
to de criação, é claro, mas é Arte menor em relação à Literatura ra abstr::ita foi considerada ilegítima pelos espíritos mais conser-
e à Pintura. Note-se, também, que, naquela, existe uma varia- vadores. Tal vez por c;iusa disso, os teóricos do abstracionismo
ção, que vai do livro pura e simpl esmente tipográfico até os cha- re;igiram em scmido contrário, e pass::iram, também, a conside-
mados "livros de arte" e "álbuns de reproduções": mas é claro rar ilegítima a Pintura figurativa. Diziam os abstracionistas, de
que a arte de reproduzir quadros através de fotografias e livros acordo com uma frase célebre, que um quadro era e devia ser
é, sempre, u ma Arte menor, divulgadora, em relação à Pintura, somente uma tela com formas puras, cores e linhas distribuídas
à Escultura ou à Arquitetura. sobre ela. Um quadro figurativo que representasse a /Çessu rrei-
No caso da Gravura, explica-se que haja o equívoco. Durante ção do Cristo, por exemplo, teria vários elementos impuros, es-
muito tempo, as gravuras foram usadas apenas como meios de tranhos à Pintura, elementos ligados à história do Cristo, à
di vulgação de obras célebres da Pintura: fazia, então, o papel de anedota, ao acontecimento, e, portanto, literários e teatrais, e
Arte menor das reproduções impressas de hoje. Mas, desde que não puramente pictóricos. Partindo daí, a posição dos abs-
uma gravura seja feita como obra autônoma, de criação, a Gravu- tracionistas sectários foi se radicalizando: mesmo que o quadro
ra passa a ser, também, Arte maior. não representasse um acontecimento, a si mples presença de fi-
Mais ou menos a mesma coisa ocorre com a Cerâmica. As guras da Natureza - pessoas, pedras, an imais, fol hagens -
pessoas que a colocam entre as Artes menores, têm em vista, perturba a apreciaç::io puramente plástica do quadro: recorde-
talvez, a parte de puro artesanato da Cerâmica. Um artista cria- se, aqui, o que Kant tinha afirmado sobre a Beleza " livre" das
dor pode ser, ao mesmo tempo, ceramista e pintor, caso no qual Artes abstratas e a Beleza "aderente" das Artes figurati vas.
executa as duas partes do traba lho, a da criação - Arte maior Entret:mto, todos esses argumentos contdrios à Pintura fi-
- e a do artesanato cerâmico - Arte menor. Aquele que so- gurativa são simples preconceitos: ela é tiío legítim a quanto a
mente executa esta última parte, limitando-se a reproduzir a fogo, Pintura abstrata. Ali~1s, di ga-se de passagem que niío precisou
no barro, o trabalho criador dos outros, faz uma Arte menor. surgir o abstracion ismo para que se fizesse Pintura abstrata. Além
O Desenho, enquanto puro e simples elemento inicial, au- do fato indiscutível de que certos pormenores de tecidos, tape-
xiliar e subsidiário, é Arte menor, em relação à Pintura, à Escul- tes ou pisos, representados cm quadros figurativos, são verdadei-
tura ou à Arquitetura; o elemen to criador está, nele, em tais casos, ros quadros abstratos, a pintura islâmica antiga, provavelmente
314 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 315

por causa de preceitos religiosos, apresenta casos de quadros que esta é mais humana, rica e variada, possibilitando um campo
parecem ter sido feitos de acordo com as teorias de Mondrian; muito maior à invenção e à imaginação, que pode inclusive,
inclusive, em alguns deles, somente retângulos são usados, como dentro de um quadro figurativo, reservar trechos enormes à
formas abstratas, geométricas e exclusivas. ornamentação realizada através de formas puramente abstratas.
Assim, o problema da preferência pela Pintura abstrata ou
pela figurativa não é uma questão de legitimidade ou ilegitimi-
dade, é uma questão de gosto e temperamento. Se a Pintura Pintores "Lineares" e "Pictóricos"
abstrata acentua o valor dos elementos puramente plásticos, isto
é, as linhas, as cores, as formas etc., o que, em si, é legítimo, isso Assim como distinguimos, em Escultura, a linhagem intimista
não significa que a figurativa deixe de lado esses valores: a Pin- e a ornamental, e, na Arquitetura, a racional e a orgânica, na
tura é uma Arte abstratizante por natureza, isto é, interessa-se Pintura o esteta alemão Wõlfflin distinguiu duas famílias de pin-
muito mais pela forma das coisas do que pelas coisas, mesmo, tores: os que seguem o caminho linear e os do pictórico.
isto quer se trate de formas abstratas, quer de formas inspiradas Na Pintura linear, o artista pinta, quase sempre, claro em
pela Natureza. Por outro lado, recorde-se que as formas inven- fundo claro. Os objetos são contornados, destacando-se bem,
tadas por Kandinsky e por outros pintores mais recentes, come- uns dos outros e do fundo do quadro. Não existem grandes
çaram a se revelar menos inventadas do que se julgava a princípio, contrastes de luz e sombra nem a representação das grandes
depois que a aparelhagem técnica moderna tornou possível a profundidades. Há uma tendência à representação de figuras em
fotografia, pelo microscópio, das estruturas de tecidos vegetais repouso, e mesmo quando o quadro representa uma batalha, os
e animais, cujas camadas e células são distribuídas de um modo homens e animais são imobilizados numa atitude idealizada. É uma
talvez até mais rico e inventivo do que o daquelas. A reação Pintura, portanto, de tendência mais hierática e apolínea do que
plasticista, abstratizante e formalista do século XX dirigiu-se, dionisíaca.
antes, contra um entendimento falso da Pintura figurativa, Saliente-se, porém, que, nesse caminho linear, nós vamos
transformada, por um academicismo de segunda ordem, numa encontrar duas sublinhagens principais, que se diferenciam prin-
repetição monótona e sem força de temas que tinham sido cipalmente pelo problema do relevo, da perspectiva e da pro-
admiravelmente representados por uma Pintura verdadeira e vi- fundidade. A Pintura grega primitiva, a etrusca não grecicizante,
gorosa. Que pintor abstrato excedeu o teor de valorização a românica catalã, a asiática e outras semelhantes tendem para
puramente plástica das formas representadas de Piero della Fran- o achatamento do quadro, no qual, ordinariamente, as figuras
cesa, pintor figurativo? ou são pintadas sem relevo ou têm relevo apenas ligeiramente
Que se deixe, então, de tomar essas posições sectárias: em indicado. A mesma coisa acontece com a perspectiva e a ilusão
Arte, tanto é prejudicial o academicismo conservador, como essa de profundidade: ou não existem, ou são apenas indicadas. E é
nova forma de academicismo moderno, sectário e esterilizante curioso notar como, no século XX, os quadros pintados por um
em que alguns artistas e teóricos estão caindo ao reagir contra o Chagai ou um Matisse aproximam-se muito mais dessa linha-
outro. E se a Pintura abstrata é mais pura do que a figurativa, gem da Pintura medieval, primitiva e asiástica do que do espíri-
316 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 317

to da Pintura renascentista. Já um pintor como Ingres pertence, tada, antes de cor do que de luz, de fi guras contornadas por fortes
também à família dos lineares, mas procura representar o relevo e toscos traços escuros. Isso levou Salvador Dalí - que, entre
e a profundidade, se bem que, neste último camin ho, jamais os modernos, é o pintor mais preocupado, talvez, com o ap rer.-
chegue aos exageros da linhagem pictórica. dizado de um ofício e de uma técnica tradiciona is - , a dizer,
Esta é a de pintores como Rembrandt, Goya, Tintoretto e EI que "de todos os alunos de Gusrave Nloreau, o melhor é, a inda,
Greco. Nos quadros dessa linhagem, a pincelada é larga e vio- o professor"
lentos são os contrastes de luz e sombra. O contorno dos obje-
tos é impreciso e não definido por linhas, de modo que a
transição do objeto para o fundo do quadro é gradativa: eles se Pintura e Técnica
interpenetram, o objeto praticamente funde-se com outro que
lhe esteja próximo ou com o fundo do quadro, de maneira que Essa frase de Salvador Dalí faz-nos voltar às reflexões feitas
somente a uma certa distância é que o olhar distingue bem umas anteriormente a respeito da técnica, em Pintura, e da pureza, 11<1
coisas das outras. A composição preocupa-se de tal maneira com Arte. Não vamos, por comodismo, aceitar as idé ias vul gares de
a perspectiva e a ilusão da profundidade que é quase cenográfica, que "a Pintura moderna carece de técnica" . Ela possui sua téc-
porque lembra um cenário ou um palco de Teatro. Há uma ten- nica especial e um p intor como Chagai! desenha tão bem quan-
dência para se criar a ilusão do movimen to, e, por isso mesmo, to qualquer mestre antigo. O desenho das fi guras das cavernas é
uma preocupação maior em se aproximar o quadro do real. tão forte, belo, expressivo e harmonioso quanto o de qualquer
Daí terem os abstracionistas se insurgido mais cont ra os pin- mestre da Renascen ça. Cada pinror desenha e pinta segundo a
tores desta tendência: com o dramatismo resultante de todas técnica que convém à expressão de seu nz1111do. E se o desenho e
essas características enumeradas, a linhagem pictórica da Pintu- técnica de Sal vador Dalí se aproximou da dos antigos foi por-
ra era, naturalmente, muito mais "impura", muito menos exclu- que isso era indi spensável à expressão do mundo imerio r do
sivamente plástica, muito mais "literária e teatral" do que a linear. artista, aparentado, ao mesmo tempo, com o de Vermeer de Delft
Não parece haver, no século XX, nenhum pintor significati- e o de Jerô nimo Bosch.
vo seguindo, a rigor, essa tendência: talvez somente se possa dizer Feita essa ressalva, porém, temos que reconhecer é que a
que um ou outro dos expressionistas apresenta, às vezes, algu- técnica da Pintura moderna pode levar os pinrores a um desca-
mas das características da linhagem pictórica. O mestre de al- so pelo ofício, que pode terminar sendo altamente prejudicial à
guns dos maiores pintores contemporâneos, Gustave Moreau, Pintura. Já c itamos, antes urnas palavras de Degas, que rep eti-
tinha um parentesco acentuado com Rembrandt, um Rembrandt mos agora indo m ais adiante no seu pensamento. Diz o grande
modificado pelo "decadentismo" da transição do século X IX pintor pós-impressionista fra ncês : "Hoje em dia é uma coisa
para o XX; tinha, portanto, ligações acentuadas com a linha- assentada que rodos nós re mos gênio. M:is o que é cerro é que
gem pictórica. Apesar disso, seus discípulos, seguiram caminhos não sabemos mais desenhar uma mão e ignoramos tudo a res-
bastante diferentes, um deles, Rouault, aliando-se, antes, à tra- peito de nosso ofício. Foi porque dom inavam seu ofício que os
dição vitralista e realizando, por isso, uma pintura chapada, acha- antigos puderam consegui r aquela ma téria maravi lhosa e as co-
318 AR IANO SUA SSUNA I NICIAÇÃO À ESTÉTICA 319

res límpidas cujo segredo nós procuramos sem resultado. E eu que fundamental, se bem que não exclusiva, da Arte. N ão con-
temo que não sejam as teorias modernas que vão nos revelar fundamos, portanto, certas exaltações estranhas à Beleza com a
aquele segredo." seren a alegria que a apreensão do quadro n os proporciona por
Esse depoimento de Degas é tanto mais importan te porque si mesma. Tudo tem servido de motivo para os grandes pinto-
parte de um pintor que, como se vê, se preocupava essencial- res : desde a sensualidade aos motivos religiosos; desde as dra-
mente com a matéria, com a tessitura p lástica do quadro, e que, máticas composições de El Greco a os retratos d e corte de
portanto, se era figurativo por um lado, por outro tinha essas Velasquez; das carnações exuberantes das cocotes de Manet aos
preocupações tão caras aos p intores abstratos ou abstratizantes, protestos proletários ou religiosos de Daumier ou de Rouault.
os mais puramente "plásticos". E não deixa de ser pa radoxal que Não existe, assim, ass unto proibido à Pintura. O fundamen-
esses pintores, que procuram, antes de tudo, a valorização ex- tal é que o assunto seja expresso através de uma matéria plástica
clusiva dos elem entos puramente plásticos, sejam os mesmos que que mergulhe o assunto no universo da Pintura que, assim, faça
ignoram o ofício que serve de suporte e expressão a tais elemen- dele um quadro, isto é, uma forma que pelo simples fato de se
tos, à matéria do quadro. Enquanto isso, Degas, antes ligad o a entregar à intuição faça nossa imaginação se inflamar p elo êxta-
uma pintura figurativa e cheia de sugestões que os abstracionistas se tranqüilo que é próprio da Pintura e que constitui, por si, uma
radicais consideram "literárias" e extrapictó ricas, fica, como se das mais nobres deleitações do espírito.
viu, terrivelmente preocupado com os rumos d e uma Pintura
que quer deixar o ofício de lado em nome de todos os tipos de
"facilitações" modernas. De fato, para Degas, a Pintura era liga-
da fund amentalmente à expressão total do humano, o que o
levava a dizer : "Um quadro é uma coisa que requer ta nta astú-
cia, malícia e vício quanto a perpetração de um crime '', frase
que, por si só, traria, talvez, para ele, a condenação dos abs-
tracionistas sectários e estreitos, infensos a qualquer preocupa-
ção que não seja, no quadro, ligada aos elementos puramente
plásticos.
No caso dos pintores com o Degas ou Salvador Dalí, o peri-
go seri a o de ceder a injunções de caráter estranho à sua Arte,
- religiosas, políticas, sociais, meta físicas, psicanalíticas-, para
fazer da Pintura cavalo d e batalha, com prejuízo para si e para
as idéias a que ela, em tais casos, pretende servir. Essas preocu-
pações podem estar presentes no quadro, desde que exigidas pelo
universo interior do artista, d esde que integradas no valor plás-
tico primordial do quadro: a Beleza será sempre a pedra de to-
CAPÍTULO 31
A MÚSICA

Música Apolínea e Música Dionisíaca

Foi um pouco de propósito que escolhemos a Música para


dela falar imediatamente depois de termos analisado as Artes
plásticas: é que estas são, por natureza, Artes abstratizantes, e a
Música - ou, pelo menos, a Música pura - é a mais abstrata
de todas as Artes. Falamos em Música pura, aqui, no sentido de
Música puramente instrumental, considerada isoladamente do
canto e das palavras.
Por outro lado, assim como estabelecemos, com base em
Wolfflin, duas linhagens principais para a Pintura, podemos fa-
zer o mesmo em relação à Música, distribuída em duas linha-
gens, a apolínea e a dionisíaca.
A Música apolínea corresponde, no caso, ao caminho linear,
da Pintura. É a Música clássica, ou melhor, a Música feita pelos
compositores de temperamento clássico, equilibrada, harmonio-
sa, serena, racional, luminosa, ordenada, clara e límpida. É a mais
pura de todas. É a Música dominada pelo espírito e pela forma
do contraponto. Nesse sentido, podemos dizer que a pintura se-
rena e linear de Botticelli corresponde à música de Vivaldi.
Já a Música dionisíaca corresponde à linhagem pictórica que
estudamos no campo da Pintura. É Música de contrast<:>s violen-
322 ARIANO SUASSUNA INIC IAÇÃO À ESTÉTICA 323

tos que chegam à dissonância; dramática, vibrante, mais harmô- pio, ou daqueles nos quais a influência d e Vivaldi está ma is pre-
nica do que contrapontística, violenta, "impura" pela presença sente. Po r outro lado, encontram os outra linh agem, a dos
quase "literária" de sentimentos e expressões estranhas ao cam- oratórios e "paixões'', cm que as grandes massas corais, fundi n-
po da Música; nela, a harmonia é conseguida como uma vitória do-se com a música o rq uestral, anuncia, já, o barroco bachian o
sobre a desordem, como uma união de contrários, para usar a com o primeira manifestação romfrnrica de disso luçiío do clássi-
expressão de Santo Agostinho. Assim, podemos comparar a mú- co. Esta última linhagem é a responsável pela comparação que
sica de Beethoven, que pertence a esta linhagem, com a pintura tem sido feira da música d e Bach com uma cated ra l. Mas, para
d e Goya, Miguelângelo ou EI Greco. ser preci so , é somen te com o primeiro grande r omâ nt ico,
Beeth oven, que vamos encontrar o espírito dioni síaco realmen -
te liberto, numa exa ltação que vai encontrar seu auge na Nona
Música Clássica, Barroca e Romântica
Si11(011ia, obra na qual os elementos literários e teatrais da músi-
ca de Beeth oven se tornaram tiío violentos que ele sentiu neces-
Aqui temos de fazer, como antes em relação ao Dramático,
sidade de recorrer às palavras para exp ressá-los. E isso nos leva
algumas referências ao problema da terminologia usada em re-
a examinar outra face cio problema do qual esta mos tratando: o
lação à Música, principalmente por causa da palavra clássico que
elas reb ções en tre as duas linhagens musicais com a música ins-
é, normalmente, usada com dois ou três sentidos diferentes.
rrurn enral e com o c:rnto.
Ordinariamente, chama-se clássica à Música que se opõe à po-
pular. Como, porém, isso causaria confusão, está começando a
ser adotado para ela o nome mais geral e amplo de Música eru- A Música Pura e o Canto
dita, s ubdividida em clássica, barroca, romântica e tc.
Mesmo feita esta ressalva, porém, a inda temos que fazer Lembremos, cm prim eiro luga r, que a Arte musical, em suas
outra advertência a respeito da terminologia musical: é que, no relações com as palanas e com os sentimen tos e acontecimen-
campo da Música, existe uma espécie de descompasso em relação tos por elas expressos, tem quatro tipos fun damentais : a i'v1úsi-
às outras Artes. Foi por isso que, há pouco, falando da linhagem ca puramente instrumental, a mais abstrata, pura e plástica, se
apolínea da Música, preferi dizer que ela era característica dos se pode dizer assim, isto é, aquela que se baseia exclusivamente
temperamentos clássicos: preferi dizer assim porque, enquanto na combinaçiio e nos efeitos de ritmos, timbres, frases musicais
no campo da Pintura, os barrocos são claramente d ionisíacos, no etc.; a /\1í1sica q ue, sendo instrumental, pretende, poré m, "des-
da M úsica compositores barrocos, como Vivaldi, são ainda ar- creve r" cerras coisas ou " expressar" sentimentos, como Clair de
tistas de temperamento clássico, apolíneo, harmonioso e linear. L1111e, de Debussy, ou como o poem a sinfôn ico Os Prelúdios, de
É verdade que, num barroco como Bach encontramos, por Liszr; a /\ 1í1sica qu e se \'ale ela Poesia pa ra descrever ou expres-
sar esses sentimen tos mais d iferen ciados da alma humana; e fi-
um lado, uma cerra linhagem mais apolínea, mais "pura", mais
nalmente a Ópera, que ao se valer da açiio teatral, form a, já, uma
límpida, a legre e, no sentido que acabamos de explicar, "clássi-
outra Arte, pertencente ao grupo das Artes de Sínr~se. Esta úl ti-
ca": é a linhagem dos "concertos brandemburgueses'', por exem-
324 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃ O À ESTÉTICA 325

ma está, portanto, fora do campo estritamente musical, e será O Poema Sinfônico


examinada depois, juntamente com as outras Artes de seu grupo.
A Música que chamamos apolínea inclina-se, como é eviden- Aliás, tudo isso fica bastante claro se analisamos historica-
te, pelo tipo mais puro e abstrato de composição. É bastante mente o desenvolvimento da obra de Beethoven: partindo-se das
ouvirmos um concerto de violino de Vivaldi para verificar que suas primeiras sinfonias, aquelas nas quais a influência clas-
a valorização dos elementos formais e puramente musicais é uma sicizante e apolínea de Mozart e Haydn está ainda presente,
característica fundamental do artista. Os compositores desse tipo, vemos o caráter sentimental e dramático acentuar-se cada vez
mesmo quando fazem músicas cantadas, fazem do canto, se as- mais até chegar à Nona Sinfonia na qual os sentimentos e a re-
sim podemos nos expressar, um elemento mais musical do que flexão exigiram uma expressão tão diferenciada que o composi-
literário. As palavras são tratadas mais como elementos de tor teve de recorrer a um poema de Schiller para dizer o que
musicalização de um ritmo poético do que, mesmo, como sig- pretendia. Com a Nona Sinfonia o chamado "drama lírico" de
nos da expressão literária. Quer dizer: mesmo na Música de canto Wagner - obra operística e, portanto, pertencente, já, ao cam-
apolínea do período do Barroco musical, se podemos discernir po das Artes de Síntese - estava anunciado. Beethoven, se ti-
vesse vivido mais, teria, talvez, partido para ele. E sabe-se, aliás,
algum sentimento será um daqueles três ou quatro sentimentos
da influência extraordinária que a Nona Sinfonia exerceu nas
fundamentais da alma humana: o da melancolia austera, o da
concepções musicais e teatrais de Wagner, que consagrou a ela
alegria serena, o da profunda e grave exaltação religiosa; mes-
um estudo minucioso e entusiástico.
mo isso, porém, expresso através de elementos puramente mu-
Outro fato significativo a respeito do assunto do qual estamos
sicais.
tratando foi a aparição, no campo da Música, do "poema sinfô-
Já a Música composta pelos artistas de espírito dionisíaco é
nico", característico do romantismo do século XIX e que surgiu,
bastante diferente. Pode-se dizer, mesmo, que aqui ocorre o
ao que parece, por influência do mesmo estilo beethoveniano.
contrário: na Música apolínea, mesmo quando o artista lança
O "poema sinfônico" é uma música aparentemente instrumen-
mão do canto, existe, como acabamos de dizer, um predomínio
tal, mas na qual, de fato, apesar da ausência de palavras, o ele-
dos elementos mais puramente musicais; na Música dionisíaca,
mento literário é preponderante, como, aliás, seu próprio nome
mesmo quando o compositor faz composições puramente or-
demonstra. Aliás, voltando-se um pouco para trás no tempo e
questrais, sentimos, nelas, a tentativa de descrever paisagens ou
revelando como, mais uma vez, o Barroco é a primeira manifes-
estados de espírito, sentimentos diferenciados da alma e até re-
tação romântica de dissolução do Clássico, podemos rastrear pelo
flexões filosóficas sobre o destino humano, por exemplo. Para
menos uma obra barroca antecessora da Sinfonia Pastoral, de
prova disso, basta ouvir o Stabat M~ter, de Pergolesi; apesar de
Beethoven: é As Quatro Estações, de Vivaldi, que, às vezes, pa-
ser uma música na qual o compositor lançou mão das palavras,
rece ter levado seus ecos ao movimento que, na Sexta Sinfonia,
trata-se, sem dúvida, de obra essencialmente musical e plástica.
descreve a tempestade. Mas, deixando isso de lado, e também
Já as sinfonias de Beethoven, mesmo sem se falar da Nona, são
sem se falar na Pastoral, obra em que as descrições literárias são
músicas "literárias" e meio "dramáticas", umas descritivas, como
realizadas de propósito, podemos dizer que as sinfonias de
a Pastoral, outras mais teatrais, como a Quinta Sinfonia.
326 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉ TICA 327

Beethoven são, já, de fato, os primeiros "poemas sinfônicos". sobre o "significado" da obra, dificilmente este seria encontra-
Na maior parte delas, são inúmeros os qualificativos próprios do em alguns casos. Por exemplo: sempre que se vai tocar num
das Artes literárias que se atribuem à música de Beethoven: dra- concerto o poema sinfônico de Liszt ao qual acabamos de nos
mático, trágico etc. Até mesmo a respeito das sonatas, forma por referir, costuma-se colocar, no programa, o texto do poema de
natureza mais puramente musical, uma delas é chamada de So- Lamartine que, segundo Liszt, sua obra expressa musicalmente.
nata Patética. Mas eu duvido muito de que, sem isso, os ouvintes atingissem o
Na verdade a música de Beethoven, principalmente a orques- estado emocional e fizessem todas as reflexões que o poema
tral, vasada em grandes massas harmônicas e contrastes de todo desperta. Para que se tenha uma idéia clara, transcrevo o texto
tipo, é quase uma obra literária ou teatral expressa em termos de Lamartine:
musicais. Pode-se perfeitamente observar, nela, sentimentos e
idéias lutando por uma forma musical de expressão. "Será a nossa vida alguma coisa a mais do que uma série de
Mas o "poema sinfôn ico" não se contenta somente com isso. prelúdios a esse canto desconhecido, cuja primeira e solene nota
é entoada pela Morre? O Amor forma a aurora encantada de
Vai mais longe, procurando apoio na Pintura, na Poesia ou mes-
toda existência. Mas qual é a alma cruelmente ferida que, ao
mo em ambas, e ainda em outro suporte qualquer, até histórico,
sair de uma dessas tempestades, não procura repousar suas lem-
às vezes. Tudo lhe serve, contanto que a Música não valha por si branças na calma tão doce da vida dos campos? Entretanto, o
mesma e o espírito dos ouvintes seja preparado, por todas as homem não se resigna a fruir por muito tempo da benfazeja
formas sentimentais e literárias, para uma forma de encantação ternura que o encantou primeiro no seio da Natureza. E quan-
complexa e, de certa forma, estranha ao campo musical. O Ro- do as trombetas fazem soar o sinal de alarme, ele corre ao pos-
mantismo teve papel saliente no aparecimento do "poema sin- to do perigo, mesmo que seja, a Guerra que o chame às fileiras,
fônico '', tendo sido Liszt, ao que parece, o principal responsável a fim de reencontrar no combate a inte ira consciência de si
por sua popularização. É conhecidíssimo seu poema sinfônico mesmo e a plena possessão de suas forças ."

Os Prelúdios, pretensamente uma versão musical de um poema


célebre de Lamartine. Isto sem se falar nos inúmeros sonetos de Não acredito que, sem o texto, pelo simples fato de ouvir a
Dante que Liszt procurou, não musicar, mas sim reinterpretar música de Liszt, o ouvinte chegue a formular idéias e sentimen-
através de peças pianísticas sem palavras. tos tão literariamente diferenciados e definidos quanto aqueles
O perigo dessas obras musicais que pretendem descrever que o próprio poema desperta.
paisagens, sentimentos ou acontecimentos é, primeiro, o do pi- Note-se, mais uma vez, que não se trata, no caso, de discutir
a legitimidade ou ilegitimidade do "poema sinfônico" ou da
toresco; e, depois, o de querer substituir ou compensar as falhas
música descritiva. O poema sinfôn ico é legítimo, desde que
da realização musical através de sentimentos literários. A peça que
a música valha por si mesma, como música. É ele uma espécie
deveria ser apreciada de um ponto de vista mais musical, come-
de elemento de ligação entre a Música instrumental pura e a
çam a ser acrescentados artificialmente valores não-musicais.
Ópera. A obra de Debussy intitulada Clair de Lune é de grande
Note-se que, se pelo título, ou através de explicações dadas por
qualidade musical. O que eu acho pouco provável é que, no caso
escrito nos programas dos concertos, não se dessem indicações
328 ARIANO SUASSUNA

d e Debussy não ter dado esse nome à sua composição, os ouvin-


tes chegassem, somente pela música, à conclusão de que ali ha-
via uma alusão a o luar. Vamos mais longe, até : se o autor não
tivesse dado esse nome à obra, nós poderíamos atribuir-lhe uns
quatro ou cinco igualmente convenientes, inclusive sem colo-
car, entre e les, o de Clair de Lime. E provavelmente os ouvintes CAPÍTULO 32
seguiria m as outras sugestões literárias com a mesma docilidade A DANÇA E A MÍMICA
com que seguem as que o autor insinuou através do título.
Coisa semelhante ocorre com a Sonata ao Luar, d e Bee-
thoven, send o que, neste caso, o autor nunca lhe deu esse nome:
originalmente a obra chamava-se Sonata quase Fantasia. Com a
A Dança Pura
exacerbação do espírito romântico foi que, posteriormente, li-
garam o movimento inicial da sonata ao " luar", acrescentando
a isso uma porção de histórias sentimentais a respeito de uma Quando falamos a respeito da Pintura, aludimos às preocu-
bela moça cega a quem Beethoven pretendera dar a idéia - para pações teóricas e práticas - mais teóricas do que práticas, diga-
ela, de outro modo, impossível - de luar. mos a bem da verdade - hoje existentes a respeito da "pureza"
O risco que se corre aí é, portanto, esse: o de fazer da Lite- da Pintura, numa forma de sectarismo que tem prejudicado bas-
tante essa Arte. Coisa semelhante podemos assinalar a respeito
ratura - nem sempre boa, aliás - uma espécie de muleta para
da Dança: deixando de lado o Balé - Arte de síntese e, por
compensar as fal has da Música. Fora daí, e lembrando sempre
conseqüência, mais complexo e "impuro" por natureza - no
apenas que a Música é a mais pura de todas as Artes, é perfeita-
campo da própria Dança as preocupações da "pureza" começa-
mente legítimo que os compositores de temperamento mais
ram a despojar essa Arte de tudo o que não fosse o gesto e o
complexo, menos abstr ato, lancem mão de sugestões estranhas
movim ento. Primeiro, acharam que qualquer acontecimento ou
ao campo mais estritamente m usical, da mesma maneira que os
incidente, mesmo mínimo, narrado ou esboçado na Dança, era
pintores figurativos se valem dos objetos e figuras da Natureza
uma "impureza" literária e narrativa, e aboliram -no. Depois, as
como assunto de seus quadros.
músicas ligadas à Dança também foram consideradas como "im-
purezas" - e a união da Dança com a Música também foi proi-
bida. Finalmente, nos últimos a nos, disseram que, como na
Pintura, a simples presença da figura humana no palco sugeria
"impurezas" literárias e teatrais: então, vieram os teóricos da
Dança abstrata que vestiam os dançarinos de figuras geométri-
cas - cubos, pol iedros, pirâmides etc. - para, assim, atingirem
a pureza final da Dança.
330 ARIANO SUASSU NA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 331

A Dança, a Música e o Balé aventada por Maurice Nédoncelle de considerá-las Artes tácteis-
musculares, juntamente com os Esportes.
De tudo isso, porém, a única coisa que vai ficar, ao que pa- Devemos, portanto, distinguir a Mímica da Dança, pois,
rece, é a existência da Dança, isto é, de uma Arte baseada essen- como se pode verificar à primeira vista, são elas Artes muito
cialmente nos gestos, movimentos e ritmos executados pelo próximas, com muitos pontos de contacto, o campo de uma
corpo humano; intimamente ligada à Música, por um lado, e à entrando muito facilmente pelo da outra, pela própria natureza
Mímica, e ao Balé, por outro; mas, no entanto, independente e das duas. Ambas supcem a presença de figuras humanas em
diferente das três. Quer dizer: uma coisa é a Música e outra é a movimento, num palco; são, ambas, Artes visuais e temporais,
Dança, é claro; a primeira é uma Arte auditiva, a segunda é vi- ambas lançam mão da Música como Arte auxiliar, não indispen-
sual; mas apesar das experiências dos teóricos modernos, a sável, mas muito importante; e ambas são Artes nas quais os
Música é, no caso da Dança e da Mímica, uma Arte auxiliar in- autores e os "atores" - digamos assim - renunciam volunta-
dispensável, que, através do ritmo e da própria beleza das frases riamente à palavra, como meio de expressão.
musicais, acentua e enriquece os movimentos, criando no espí- Vamos, portanto, examinar cada uma delas isoladamente
rito dos contempladores uma disposição psicológica favorável para, assim, esclarecer a natureza de cada uma delas e as dife-
à recriação de todos os elementos de Beleza presentes naquela renças existentes entre ambas.
obra de arte.
Por outro lado, também não é difícil pressentir a diferença
existente entre a Dança e o Balé: na Dança, a narrativa ou está A Dança
ausente ou é um elemento acidental, muito simples e sem im-
Digamos primeiramente que a Dança, já feita sua distinção
portância; já num balé verdadeiro, como O Lago dos Cisnes, por
do Balé, é uma Arte na qual o elemento de expressão fundamen-
exemplo, a narrativa entra na obra de arte como um elemento
tal são os movimentos do corpo humano enquanto integrados
de enorme importância: é, mais ou menos, a mesma diferença
no ritmo.
que ocorre entre o Canto camerístico puro e a Ópera, desempe-
Aceitamos, portanto, a afirmação de que, na Dança, o mo-
nhando, a narrativa, um papel fundamental nesta, e acidental e
vimento do corpo humano é o elemento essencial e mais impor-
quase sem importância naquele.
tante; mas, como já dissemos antes, é um exagero sectário de
purismo querer considerá-lo o único e exclusivo elemento do
As Artes do Gesto: a Dança e a Mímica qual essa Arte pode lançar mão. Essa tendência moderna teve
suas virtudes e seus defeitos. Por um lado, serviu para acentuar
Alguns estetas têm proposto o nome de Artes do Gesto para o que é essencial, na Dança, que estava sendo desvirtuada de-
mais no sentido de se tornar uma Arte narrativa de caráter sen-
a Dança e a Mímica, assim como o de Artes da Linguagem para
timental e falsamente "literária". Mas, por outro lado, como já
as Artes Literárias. São ambas, a Dança e a Mímica, Artes visuais,
vimos, terminou por cair num exagero em que a pureza e
pois, como acentuamos antes, não nos parece correta a idéia
332 AR IANO SU ASSUNA I N ICIAÇÃO À ESTÉTICA 333

despojamento deixaram de ser encarados como meios de servir No caso ela D ança, por·ém, d ificilmente se encontrará um
à Dança para se tornarem um fim buscado por si mesm o: a Dança artista que se dediq ue única e exclusivamente a "escrever " coreo-
passa a ser aceita e considerada pura somente quando desacom- grafias: quase sem pre o artista, no caso ela Dança, é, ao mesmo
panhada de músicas e despojada de qualquer elemento ex- tem po, au to r - isto é, coreógra fo - e inté rprete - isto é, cl:rn-
pressional de histórias ou sentimentos. E aí, a respeito da Música, çarin o .
devemos dizer que, em relação à Dança, ela não é apenas um
acompanhamento musical: antes formam, as duas, uma unida-
de nascida do ritmo; q uando a dança é verdadeiramente Dança, A Mímica

é de tal forma ligada entranhadamente à m úsica que a acompa-


nha que não se pode entender aquela dança determinada sem No c:iso cl;1 1\ [ í111ica também ;Ko1Jtece assim : quase sempre
aquela música. o mímico é, ao mesmo tempo, auror e intérprete ele su.1 ob1;1.
Aliás, o ideal, mesmo, seria que o autor, o coreógrafo, fosse, Como na D<lllÇ<I, o iJcal seria que a obra su rgisse especialmente
também, músico, assim como, no Teatro, o ideal seria que o autor dest inada :1 ;\.lí111ic1. M:1s ;1co11 tcce, também , que gran des obr:l;
fosse, também, o encenador e ator de suas peças, como sucedia de arte surjam colllo "aJapuçõe~" de obras reatra is o u li tcr:ir i;1>
com Moliêre. Como, porém, o comum é isso não acontecer, é à .'v!ím ica.
fundame ntal q ue, na Dança, o coreógrafo tenha o sentido per- Po r isso podemos di zer q ue foi enorme o pa pel que a co111-
feito da M úsica a fim de fazer sua obra como expressão plástica 111edia del/'arte e o teatro de b11/evar ri1·e1·am no dese nvolvi mento
e visual da Música, realizada através do ritmo dos movimentos ela M ímica , no calllpo da r\ rte ocid rn ral. No da Arte o ri ental
humanos. parece ter sido a inda mais im port ame, mas fa lr:im-me info rma-
Ora, já que tocamos nesse assunto da autoria no campo da ções mais seguras a respeito ela sorte cb ;\.-1írn ica como Arre in-
Dança, voltemos à análise, ante riormente feita, das idéias de depende nte nos p a íses de C ul tu ra as i:ltica. No Ocide nte, as
Nédoncelle sobre a Dança e os Esportes. Naquele momento dis- experiências de i'vl arcel h·brccau e o mros têm clcYaclo a ;\.1ím i-
semos que, na Dança, o aut or era o coreógrafo. Isso pode pare- ca a uma independência e uma clign icl:.1de talvez muito r:ira111 en-
cer estranho para as pessoas habituadas a pensar somente no te pretendida antes. Por o urro lado, o C inema mudo dese nvoh-eu
autor que trabalha no campo de outras Artes - como a Litera- a Mímica ainda mais do que o Teatro o fi zera an tes, bas~a!1 clo
tura, por exemplo. É que existem Artes nas quais o autor não lembr:ir, par:i prova desse fato, q u:m to a arte de C harles C haplin
precisa de intérprete para chegar ao Público: a Poesia e o Ro- tem ele p ur:i M ímica.
mance pertencem a este grupo. Noutras, é necessário o intér- Seri a cnr:\O a partir das rcspccri1·as relações com a Música C'

prete, mas o trabalho do autor é facilmente separável da atuação algumas Artes de Síntese como o Tc:m o que podcrí:im os prcs·
daquele: é o caso da Música ou do Teatro, por exemplo. Exis- sentir as d ifere nça s p rincipais entre a Dança e ah 1í111ica.
tem compositores que são, ao mesmo tempo, intérpretes, mas o No ca~o da Da nça, di ssc m o~ q ue, em seu campo, a h l ú~ica

caso não é comum; pelo contrário: o normal é que raramente forma co111 ela uma unidade de c~1rne
e sangue, a mbas surgi Jas
o com positor seja um instrumentista excepcional. essencial111enrc do ri rmo expresso pelo mo1·i111 enro. i'\'o c;1111po
334 ARI ANO SUASSUNA

da Mímica, a Música é, muito mais, um simples acompanhamen-


to, ali colocado como o objetivo de acentuar certos efeitos, cer-
tas expressões do rosto etc.
Por outro lado, o espírito da M ímica é muito mais aproxi-
mado do Teatro e do Cinema mudo: é uma Arte muito mais li-
gada à narração de acontecim entos e à expressão de movimentos CAPÍTULO 33
interiores d o espírito human o. É por isso que, na Dan ça, os A LITERATURA
movimentos do corpo são muito mais importantes do que a
expressão da máscara facial que, na Mímica, tem uma impor-
tância bem maior, mostrando as ligações desta última Arte com
o Teatro e a narr ação.
Isso não significa nem que o ritmo esteja ausente da Mímica A Poesia e a Prosa
nem que a narração e a expressão de sen timentos sejam ausen-
tes da Dança. É uma questão de predom inância e é através daí Já afirmei várias vezes, no corpo deste manual de Estética,
que podemos pressentir a diferença essencial entre essas duas que as distinções teóricas têm importância quase que só pura-
Artes tão semelhantes e tão intimamente ligadas: a Dança é, mente didática; e que, por outro lado, o problema da termino-
então, essencialmente mais rítmica do que nar rativa, enquanto logia, desde que não se chegue ao exagero de querer deixá-lo
que na Mímica a narração e a expressão plástica e exterior de ao arbítrio puramente individual pelo simples anseio de origi-
sentimentos de caráter "teatral" passam para o primeiro plano, nalidade, é mais ou menos secundário. Entretanto, feita esta
sendo o ritmo e os movimentos do corpo colocados a serviço ressalva, é preciso dizer, também, que as diferenças essenciais
da expressão e da narração. entre as categorias da Beleza e entre as diversas Artes existem e
podem ser definidas pela reflexão estética. E digamos, também,
já que chegamos, agora, ao campo da Literatura, que é necessá-
rio esclarecer uma porção de problemas a respeito da Poesia,
seja que a consideremos isoladamente, seja que a encaremos em
suas relações com a Prosa.
Do ponto de vista terminológico, podemos encarar primei-
ro a Poesia no sentido grego de "criação", isto é, como o espíri-
to criador que se encontra na raiz de todas as Artes. Este, porém,
é um sentido muito amplo e que merece ser apenas referido;
porque, a partir do momento em que a Poesia passou a ser uma
Arte literária, o nome deve ficar reservado a essa Arte.
'136 AR IANO SU ASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 337

Ainda assim, porém, alguns pensadores, principalmente q ue para distingui-la da Prosa. Aprofundando-se então um pou-
aqueles ligados à tradição da Estética alemã, adotam o nome de co a reflexão estética, chega-se à conclusão de que as característi-
Poesia para designar todas as Artes literárias, ou Artes da Lin- cas essenciais da Poesia, aquelas que verdadeiramente a disti nguem
guagem. É ainda uma decorrência da tradição do pensamento da Prosa, são o ritmo e a imagem, principalmente a metáfora.
mediterrâneo, agora com uma repercussão mais restrita: a Poe- Como já dissemos a respeito de o utras Artes, não é que o ri tmo e
sia seria o espírito criador que se encontra por trás de todas as a imagem não estejam presentes na Prosa. É uma questão de pre-
Artes literári as, sejam estas realizadas através da prosa ou do dominância: na Poesia, existe uma predominância do ri tmo e da
verso. É neste sentido que se diz que Cervantes é o "Poeta nacio- imagem, em benefício da criação daquela Beleza encantatória e
na l da Espanha", assim como Shakespeare é o da Inglaterra , isto daquela espécie de "Lógica superior" ou supralógica que levaram
apesar de a obra-prima de Cervantes, o Dom Quixote, aquela um grande poeta a afirmar, certa vez, que a Poesia era o resultado
que lhe vale o título, ser escrita em prosa. " dos melhores momentos dos mais altos espíritos".
Aqui, usamos a terminologia mais comum, chamando todas Já na Prosa, a p redominância da exposição e da narração é
essas Artes da Linguagem de Literatura e considerando-as em maior do que a do n tmo e das imagens. A Prosa é, por isso, menos
dois gêneros distintos, a Poesia e a Prosa. É evidente, como já pura e elevada do q ue a Poesia; em compensação, é mais rica,
temos repetido à respeito de o utras Artes, que as duas mantêm ma is complexa, ma is h umana e, co nseqüentemente, ma is dota -
relações estreitas e as fronteiras que as separa m não são estrei- da de p oder de comunicação com a ma ioria.
tas nem rígidas. M as as diferenças entre uma e outra existem e Três são as espél:ies pri ncipais de Poesia: a lírica, a épica e a
vamos tentar estabelecê-las aqui. filosófica. A lírica é mais pessoal, subjetiva e confessional; nela ,
para usar a expressão de James Joyce, "o poeta manifesta sua
imagem em relação consigo mesmo". Na Poesia épica, o poeta
A Poes ia fala a respeito de o utros, ou, mais precisamente, das ações d e
outros. É uma Poesia narrativa, ligada q uase sempre às ações
A princípio, procurava-se distinguir a Poesia da Prosa por heróicas, aos grandes movimentos de uma coletividade, de uma
um critério puramente form alístico: a Poesia era realizada atra- comunidade grande ou pequena, não importa, desde q ue a ação
vés do verso e este caracterizava-se pela presença da métrica e seja, ao mesm o tempo, excepcio nal e rep resentativa. As Elegias
da rima. Essa distinção mostrou-se ineficaz quando alguns pen- de Duino, ou os Quatro Quartetos, de T. S. Elior, são exemplos
sadores começaram a lembrar, primeiro, que a Poesia grega era típicos de Poesia lírica. A Ilíada, e a Odisséia, de H omero, são
metrificada, mas não rimada; depois, alguns Poetas românticos poemas caracterizadamente épicos.
ressuscitaram o verso chama do branco, isto é, metrificado mas A Poesia fil osófica é mais reflexiva e conceituai do que as
não rimado, e outros m ais recentes aboliram n ão só a métrica o utras. Seria, quase, uma espécie de meio-termo entre as duas:
mas também a rima. enq uanto na lírica o poeta fala de si mesmo, e na épica dos ou-
Com isso, ficou claro que a métrica e a rima não podiam ser tros, na fil osófica ele reflete sobre o mundo, sobre o destino d o
elementos considerados essenciais à Poesia, nem pedras de to- homem em geral e sobre o seu em particular.
338 A RI ANO SUA SSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 339

Mas, como já dissemos antes, essas distinções são teóricas e de ações, de acontecimentos, de incidentes; enquanto que, num
a Arte excede sempre tudo isso: às vezes, numa o bra só, o poeta romance, a ação exterior tem importância na medida em que
faz uma síntese de todas essas espécies poéticas e consegue, ain- desencadeia, no universo psicológico do personagem, seus con-
da assim, fundir todas elas numa unidade superior. É o que acon- flitos e problemas.
tece, para ficar nu m exemplo que basta para tod os, com A Divina Assim, o Dom Casmurro, de Machado de Assis, apesar de
Comédia, de Dante, na qual o personagem principal é o pró- ser uma obra curta, é um romance; e Guerra e Paz, de Tolstoi,
prio poeta, que, revelando seu mundo in terior, refl ete sobre o apesar de imensa, é uma novela épica típica. Madame Bovary,
d estino do homem no mundo, narra uma ação muito peculiar e de Flaubert, é um romance; e Dom Quixote, de Cervantes, ape-
termina, assim, criando um universo no qual entramos e do qual sar do seu tamanho, é uma novela épico-humorística, cujas fon-
saímos como de uma caminhada épica, de um sonho poderoso tes, enraizadas principalmente na novela de cavalaria, na novela
e estranho.
picaresca, na epopéia e nos contos italianizantes da Renascen-
ça, tinham que levar necessariamente essa obra gigantesca para
O Rom a nce, a Novela e o Conto os caminhos de ação e incidentes da novela. Já na obra literária
de Stendhal, encontramos fundidas as d uas tendências: mas, se
Dura nte muito tempo, a d istinção entre Romance e Novela A Cartuxa de Parma tende mais para a novela, O Vermelho e o
foi feita pelo taman ho da obra: uma novela era um romance Negro é mais roma nce, no sentido de que a parte mais impor-
co ntado em poucas páginas. Mas é suficiente raciocinar mos um tante da obra é dedicada à análise psicológica de Julien Sorel e
pouco para ver que tal distinção não satisfaz. Ela se baseia na dos outros personagens importantes como a Senhora de Renal
p ura quantidade; e, depois, vem o problema de decidir qual é o e Matilde de La Mole.
limite de palavras passado o qual a novela seria "promovida" a A respeito do Conto, distingue-se ele do Romance e da
romance. Novela porque estes apresentam, na ação, vários incidentes
Os críticos e estetas contem porâneos, a pe rcebend o-se d a da vida de um personagem, enquanto que a ação do Conto
insuficiência desse critério p rocuraram outro: estabeleceu-se que g ira em torno de um incidente só. O s contos tradicionais,
a distinção entre o Romance e a N ovela deveria ser feita através feitos à maneira das narrativas orais das quais eles procedem,
da natur eza de ambos e, a parti r daí, começaram as investiga- são mais aparentados com o espírito épico, de ação e inci-
ções no sentid o de enco ntrá-la. dental das novelas. É o que acontece, por exemplo, com os
Parece que, até agora, a melhor distinção é aquela que afir-
contos de Boccaccio, nos quais o acontecimento é mais im-
ma ser o Romance mais psicológico, mais introspectivo, e a
portante do qu e as reações psicológicas dos personagens.
Novela mais incidental e de ação. Lembremos ainda uma vez: é
Mod erna mente, os contos de um James Joyce, para fi car num
uma questão de predominância. A afirmação feita não significa
só caso, são mais aparentados com a introspecção do Romance
que, numa novela, não se cui de da psicologia dos personagens.
e com o espírito confessional da Poesia lírica.
Significa, a penas, que, nela, J psicologi::i é revelada mais através
340 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 341

O Ensaio "Polixena, a filha de Príamo, ou então Ulisses, sutil e velhaco,


amarrado ao mastro, a fim de ouvir sem risco o canto das se-
A meio caminho entre a Prosa criadora - a do Romance, reias, ou percorrendo o Aqueronte, no qual espectros de pei-
do Conto e da Novela - e a Crítica que se pretende "cientí- xes se debatem nas águas límpidas; ou ainda mostrando os
fica", temos essa forma do Ensaio, mais pessoal do que a Crí- Persas, revestidos de saios e mitras, fugindo dos Gregos, em
tica. Era aquela forma de Prosa à qual Oscar Wilde chamava Maratona, e as galeras chocando-se com as proas de bro nze
na estreita baía de Salamina... A Vida inteira, aliás, pertencia-
de "Crítica mais elevada". As idéias de Oscar Wilde sobre o
lhes, desde os vendilhões dos mercados aos camponeses recli-
assunto estão reunidas no diálogo intitulado ''A Crítica e a
nados sobre seus mantos nas encostas das colinas; desde a ninfa
Arte - Com algumas notas sobre a importância de nada fa-
oculta entre os loureiros e o fauno tocador de flauta, até o Rei
zer." Nesse diálogo, um dos personagens afirma a superiori-
que os escravos conduzem sobre seus ombros reluzentes de
dade da Arte, que é criadora, sobre a Crítica, meramente óleo, em um palanquim ornado de cortinas verdes e que é
interpretativa. Diz ele: abanado por ventarolas feitas de plumas de pavão. Homens
e mulheres ... desfilavam diante deles, que os analisavam e se
"Nos melhores tempos da Arte não havia crítica de arte. assenhoreavam de seus segredos. Com a forma e a cor, eles
O escultor arrancava do bloco de mármore os membros al- edificavam um novo mundo."
vinitentes do grande Hermes que nele dormitava ... Faziam
vazar o bronze em fusão no molde de terra, e a lava in- Num caso ou noutro, continuava o personagem - Ernesto,
candescente resfriava-se em nobres curvas e tomava os con- de nome - a grande vantagem que os artistas levavam, fossem
tornos do corpo de um deus... O artista era livre. Apanhava pintores ou poetas, era não serem perturbados em seu trabalho
no leito do rio um pouco de argila plástica e, com auxílio de de criação pelas conversas pedantes dos eruditos de toda espé-
um instrumento de ouro ou de madeira, dava-lhe formas tão cie. Diz ele:
admiráveis que ela ia servir de brinco aos mortos ... Depois
pintava efebos vermelhos e pretos, em atitude de quem cor- "Ninguém perturbava o trabalho do artista... Conselhos não o
re; cavaleiros, armados com exóticos escudos heráldicos e aborreciam... Não havia tolos congressos ... dando aos medío-
elmos estranhos, conduzindo carros em forma de conchas ou cres oportunidade de gritar..."
cavalgando ginetes empinados; deuses tomando parte em
festins ou realizando prodígios; heróis vitoriosos ou abati- O outro personagem, Gilberto, está de acordo com o amigo
dos pela dor. " a respeito da tolice dos eruditos. Mas sustenta que somente a
crítica deles é que é inferior à Arte, como forma de criação.
Isto, quanto à criação nas Artes plásticas. Na Literatura, se- A forma elevada de Crítica, que é o Ensaio feito a partir das obras
gundo o mesmo personagem do diálogo de Wilde, sucederia coisa de arte, esta é, talvez, a forma mais pura e refinada de Arte. Sua
semelhante. Os Poetas trágicos ou épicos, como Homero, po- opinião vem da tese de que a Vida é grosseira e desorganizada;
diam· reoresen tar a Arte, recriando a Vida, torna-a mais bela e mais perfeita; en-
342 ARI A NO SUASSUNA

tretanto, como mantém ainda, com a Vida, uma relação próxi-


ma, possui, ainda alguma coisa da grosseria da Vida; já o En-
saio, que parte das reflexões feitas, não a partir da Vida, mas a
partir do universo já mais recriado e purificado da Arte, é mais
refi nado e mais puram ente artístico do que a Arte e a Literatu-
CAPÍTU LO 34
ra. Diz el e:
As ARTES DE ESPETÁCULO

"A Vida é info rme e suas catástrofes atingem de fo rma odiosa


os que menos as merecem. H á um horror grotesco em suas co-
méd ias, e suas tragédias são uma grande farsa ... Quão d iferente
é o mundo da Arte!... Não há estados de alma ou paixões de
A Ação e o Espetáculo
qua lquer espécie que a Ar te não possa nos proporcionar, e aque-
les de ntre nós que descobriram seu segredo podem estabelecer
antecipadamente o que as suas experiências vão produzir." Quando falamos a respeito da classificação das Artes esboçada
por Dessoir, referi-me, de passagem, ao fato de que não conside-
Esse perso nagem de Wilde diz que, enquanto os escritores rava muito apropriado o nome de "associações" que aquele pen-
e artistas criadores têm que parti r do m undo e da vida para a sador reserva ao Teatro, ao Cinema, à Ópera e ao Balé. O de "Artes
criação de sua o bra, os ensaístas, g raças ao trabalho anterior de síntese" preferido por outros estetas é melhor. Mas, de qual-
dos artistas, podem desviar "os olhos do tumultuoso caos da quer maneira, ainda dá idéia de que essas Artes são formadas atra-
existência real". Mas, involuntariamente talvez, termina pres- vés de sínteses de outras Artes, reunidas num todo mais complexo.
tando sua reverência aos ve rdadeiros criado res, porque os Assim, se adotamos, aqui, uma vez ou outra esse último nome é
melho res trechos de sua prosa são aqueles nos quais ele resu- somente para facilitar a comunicação do pensamento aqui exposto
me as Epopéias gregas e a Divina Co média, de Dante, e tam- com outros livros que tratam do mesmo assunto.
bém porque, na sua definição, o Ensaio é " uma criação fe ita a De fato, em nossa opinião pessoal, o nome que convir ia
partir de outra criação", o que a proxima sua Arte da Arte menor melhor às Artes do tipo do Cinema, do Teatro, da Ópera e do
dos atores ou instrum entistas, isto é, daqueles que partem do Balé seria o de Artes de Espetáculo. Em todas elas, está presente
texto teatral ou das composições dos outros a fim de realiza- uma ação, a narrativa de um acontecimento sucedido a perso-
rem sua o bra, na q ua l o elem ento de interpretação predomina nagens; e se isso acontece também com o Romance, a Novela e
sobre o de criação. o Conto, estes não possuem, porém, a presença de figuras hu-
manas atuando num cenário único ou variado, num conjuntÓ
de espetáculo que, com as variantes naturais convenientes à es-
sência de cada um deles, é, porém, característica comum e fun-
damental do Cinema, do Teatro, da Ópera e do Balé.
344 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 345

A Ópera e o Balé tra mais musical, apolínea e pura. Uma ópera como Otelo, de
Verdi, pertence ao primeiro grupo: nela, a ação teatral e a vio-
De qualquer maneira, mesmo que se conserve o nome de lência das paixões recebem um tratamento especial, possuem um
Artes de Síntese, devemos lembrar que tais Artes devem cor- relevo quase tão importante quanto o da peça original. Já nas
responder a ele, isto é, devem as obras ligadas a elas resultar óperas de Mozart, a música é mais importante do que o desen-
realmente de uma síntese e não de uma mistura, o que é coisa rolar da ação, que n ós quase esquecemos, podendo ouvi-las,
bastante diferente. Por exemplo: a se aceitar a idéia de que o somente, sem grande perda para a fruição. Wagner tentou um
Teatro resulta de uma síntese da Literatura com as Artes plásti- desenvolvimento paralelo e uma atenção igual dispensados à
cas, uma peça não deve ser a mistura de uma Novela com a Ar- parte musical e à teatral da Ópera. Não esqueçamos, porém, que
quitetura do cenário e com aquela espécie de Escultura e Pintura uma coisa é o Teatro que lança mão da Música como Arte auxi-
animadas presentes no palco através dos personagens e das rou- liar - como sucedia, entre outras, com a Tragédia grega - e
pas; tudo isso deve ser fundido e plasmado, através de uma sín- outra coisa é a Ópera, Arte aparentada com o Teatro mas que
tese, na criação de uma outra Arte. não é mais Teatro.
Por outro lado, as tentativas artificiais de reunir duas ou mais Coisa semelhante podemos dizer a respeito do Balé, resulta-
Artes para a criação de outras novas, buscadas unicamente pelo do da síntese efetuada entre a Música, a Dança e a narrativa, a
desejo de inovar a qualquer preço, devem ser encaradas com ação do Teatro: num balé como O Lago dos Cisnes, por exem-
cautela. As Artes de síntese já estão mais ou menos estabilizadas plo, a importância da ação teatral e dionisíaca é muito grande;
e as que apareceram até agora foram aquelas que o espírito hu- já no Balé mais moderno, esboça-se uma preferência pela linha-
mano exigiu. Esta afirmação, porém, não implica num desco- gem mais musical e plástica, isto é, uma busca maior da pureza
nhecimento das possibilidades de renovação pelo progresso rítmica e do equilíbrio apolíneo da Dança.
técnico em certas áreas da Arte: o aparecimento do Cinema, por
exemplo, trazendo a possibilidade do flagrante do rosto huma-
no aumentado e trazido para bem perto do público veio trazer O Teatro e o Cinema
uma contribuição enorme à Mímica, permitindo, muito mais do
que num palco, que o ator expresse uma paixão sem palavras, O Teatro tem estreito parentesco com o Cinema, mas, ao
mediante a exclusiva expressão da fisionomia. mesmo tempo, os dois possuem características próprias e dife-
Uma outra observação a se fazer sobre as Artes de síntese é renças bastante acentuadas. O parentesco principal consiste no
que, em virtude mesmo de seu caráter complexo, todas elas fato de ambos resultarem de uma síntese de espetáculo visual,
apresentam duplicidade de linhagens, predominando, em cada por um lado, e de ação desempenhada por personagens, por
uma, ora o espírito de uma ora o de outra das Artes considera- outro. Entretanto, as diferenças entre os dois são também subs-
das como fundidas na Arte nova. A Ópera, por exemplo, seria tanciais, como acabamos de acentuar.
resultado da fusão do Teatro com a Música. Por isso, no seu Em primeiro lugar, o papel que o espetáculo visual exerce
campo, teríamos uma linhagem mais teatral e dionisíaca, e ou- no Teatro é menos importante do que a ação narrada através
346 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 347

das falas e atos dos personagens; no Cinema sucede o contrá- - guardemos de suas palavras essa diferença fundamental en-
rio, existindo até alguns teóricos radicais que só consideram puro tre Cinema e Teatro, o primeiro mais visual e plástico, o segun-
o C inema mudo. do mais verbal e literário. É por isso que, no Teatro, a parte
Maurice Nédoncelle faz a respeito dessa predominância do literária é tão importante que, apesar de uma peça só se com-
espetáculo visual no Cinema uma observação muito aguda, quan- pletar mesmo com a encenação, a leitura de seu texto oferece,
do afirma: ao leitor, o que a obra tem de fundamental. Essa parte literária,
de ação e verbal da peça é imutável e sobrevive, se a peça é boa,
"Um cego pode entender uma peça, ou mesmo representá-la, aos variados tipos de encenação em moda durante a passagem
sem perder sua substância. Ele adivinha os gestos, a não ser que do tempo.
se trate de uma grande máquina. Acredito mesmo que é preciso Já a leitura do argumento de um filme dificilmente dará idéia
fechar os olhos para compreender certas belezas de Berenice e da obra. O argumento, em vez de ser, como a peça escrita, a parte
fruí-las completamente. Uma peça que resiste ao radioteatro (isto mais importante da obra toda, é apenas um roteiro inicial, do
é, que mostra que é capaz de dispensar o espetáculo visual e qual o diretor partirá para a criação da obra verdadeiramente
viver somente pelos diálogos) provou suas qualidades: foi es- cinematográfica, que só estará realizada no mais essencial de-
crita por quem entende do ofício. No filme, ao contrário, o pois que tudo aquilo for transformado em imagem. Enquanto
centro organizador é visual, apesar de todos os recursos de sín- "clássico'', em Teatro, é o texto de Sófocles ou Shakespeare, em
tese de que ele dispõe ou que restam ai nda por descobrir. Nele, Cinema será a grande montagem visual e plástica, de ação e
as palavras e a música são feitos para uma moldagem espacial. movimento, de Eisenstein ou Chaplin .
Sobretudo se dispuser, um dia, de relevo, a ponto de transpor- Agora, aqui, como sempre, é preciso evitar que as radica-
tar os cenários para a sala, o Cinema afirmará sua originalidade lizações e "purezas" geométricas das definições teóricas preju-
em relação ao Teatro, oferecendo o espaço condutor de uma diquem o campo da criação. Se o Cinema é mais visual e plástico
idéia e dando-o, assim, pela predominância de uma encantação do que verbal, isso não significa que o único Cinema legítimo
visual que não nos fixa num lugar só mas sim que nos transpor- seja o mudo. Aliás, o Cinema nunca foi inteiramente mudo:
ta para todos. O Cinema é uma Escultura animada com pode- mesmo os filmes de Chaplin, por exemplo, de vez em quando
res mágicos, uma Escultura com diálogos, ai nda por cima. lançavam mão de letreiros para explicar situações ou para co-
O Teatro não é tão invasor: ele aspira o expectador, em vez de municar diálogos indispensáveis ao entendimento da história.
se estender até ele. Apenas reforma o espaço cênico; atrai a pla-
O que deve ser lembrado sempre é que, num filme, só devem
téia para o palco e sua autoridade mais distante é antes de mais
entrar, mesmo, as palavras indispensáveis, isto é, o filme deve
nada verbal, e apenas subsidiariamente gesticular e visual."
ser concebido como se o Cinema ainda fosse mudo, sendo, po-
(Introduction à /'Esthétique, ed. já cit., p. 118-119 .)
rém, substituídos os letreiros que eram usados nos primeiros
tempos do Cinema, por breves palavras que os substituam.
Deixando de lado as possibilidades técnicas futuras, a que
Por outro lado, no Teatro, se se levar a extremos o aspecto
Nédoncelle parece atribuir demasiada importância - uma vez "literário" do texto, o espetáculo terminará negligenciado e o
que o relevo não trará mudança essencial nenhuma ao Cinema
348 ARIANO SUASSUNA INICI AÇÃO À ESTÉTICA 349

próprio Teatro entrará em decadência. Todas as grandes fases de Creio que se deve, no caso, fazer uma distinção cuidadosa:
criação no Teatro de todos os países têm sido momentos em que a pedra de toque para avaliar a questão será sempre a predomi-
os grandes autores teatrais souberam unir as grandes criações nância, em cada caso, da criação ou da divulgação. Se uma obra
poéticas da Comédia ou da Tragédia ao senso do espetáculo, à é feita para o Cinema, em termos de criação da Beleza, através
vida do palco, com atores e cenas que tinham muito de Circo, de uma ação narrada principalmente através da imagem, temos
com o texto literário formando uma unidade harmoniosa com o Cinema como Arte, colocada em pé de igualdade com todas
vários outros elementos espetaculares de encantação - a músi- as outras. Se, porém, o aspecto predominante é o da divulgação
ca, o malabarismo dos atores, o ritmo, o canto. Guardemo-nos ou da informação, então temos o Cinema como Arte menor ou
das estreitezas sistemáticas dos teóricos que, se tivessem vez no mesmo como mero meio de comunicação de massas, caso em
tempo em que surgiu o Cinema, talvez tivessem condenado os que perde toda, ou quase toda, sua importância estética.
filmes de Chaplin, dizendo que aquilo não era Cinema, e sim Seria, portanto, alguma coisa de semelhante ao que ocorre com
Mímica filmada - do mesmo jeito que hoje condenam certas o Teatro, verdadeiramente artístico e criador, comparado com o
obras-primas cinematográficas chamando-as de "peças de teatro sociodrama ou com o psicodrama; e para ficar em poucas pala-
filmadas". É verdade que existe um Teatro intimista e psicológico vras sobre um assunto complexo, baste o que aqui fica dito.
que não abre perspectivas ao Cinema em suas obras. Mas existem
outras formas de Teatro, mais épicas, que já têm fornecido assun-
to para grandes filmes. Basta citar o caso do Teatro japonês, do
qual saíram os filmes de "samurai", uma das grandes contribui-
ções oferecidas ao mundo moderno pela arte do Cinema.

Cinema -Arte e Meio de Comunicação

Finalmente, para concluir, examinemos um problema que


tem sido ultimamente posto em moda pelos teóricos contem-
porâneos: o de saber se o Cinema é uma Arte ou um meio de
comunicação.
É claro, antes de mais nada, que toda e qualquer Arte é um
meio de comunicação: mas não é neste sentido que o problema
e seus termos são colocados. Trata-se, antes, de colocar o Cine-
ma, juntamente com a Televisão e o Rádio, entre os instrumen-
tos de que se vale uma sociedade tecnologicamente desenvolvida
para a comunicação de massas.
LIVRO VI

Os MÉTODOS DA ESTÉTICA
CAPÍTULO 35
A ESTÉTICA FILOSÓFICA

Os Princípios Axiológicos da Estética

As reflexões que reuniremos aqui completam, de certa forma,


a introdução metodológica que procuramos fazer, no Livro !, aos
problemas estéticos. Conforme acentuamos ali e noutras ocasiões,
talvez o problema fundamental da Estética seja, por um lado, o de
encontrar princípios axiológicos firmes que fundamentem seu es-
tudo; por outro, o de conciliar o objetivismo q ue se exige de um
ramo do conhecimento com os dados estéticos, os dados da expe-
riência e da criação artística, instáveis e variados, complexos e
muráveis por sua própria natureza; e finalmente, em terceiro lugar,
distinguir as variações legítimas do gosto individual daquilo que os
estetas pós-kantianos mais radicais q uerem chamar de relatividade
do juízo estético. Moritz Geiger chega, mesmo, a dizer:

"Poderia se considerar a história da Estética como a históri a das


tentativas feitas para resolver o dilema causado pela relativida-
de do juízo e da experiência, por um lado, e a objeti vidade da
ciência por outro, fixando esse instável material de experiên-
cias e juízos relativos no rígido conjunto de um sistema estético
objetivo." (Ob. cit., p. 17.)
354 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 355

A Estética que acredita ser isso possível é a chamada filosó - gras da Arte é que são mais práticas, concretas e determinadas;
fica, também chamada, às vezes, normativa, metafísica, "estéti- sendo que, mesmo neste campo, já se disse, antes, que o papel
ca de cima" etc. Antes, porém, de passar à análise de seus fundamental é o da imaginação criadora, ligada à intuição da
princípios fundamentais, é necessário precisar certas coisas a forma. Desse modo, o que a Estética filosófica reivindica, quan-
respeito do texto de Geiger, acima citado. to a esse assunto, é, por exemplo, o direito de

"julgar o valor das escolas artísticas, assim como a verdade ou a


Princípios da Estética e Regras da Arte falsidade, a influência boa ou má de seus princípios''. Qacques
Maritain,Arte e Escolástica, ed. cit., p. 185, nota 92 ao cap. VI.)
Esclareça-se, antes de mais nada, que uma coisa é a relativi-
dade do juízo estético - de existência bastante discutível, con-
form e já estudamos antes - e outra coisa são as legítimas O Esteta e o Artista
variações de gosto pessoal; em segundo lugar, lembremos que a
palavra "ciência" só deve ser empregada, a respeito da Estética, Eis aí, resumido por Maritain, um exemplo típico da manei-
no sentido amplo de "conhecimento", da mesma maneira que ra de proceder pela qual deve se pautar a verdadeira Estética
acontece com a Filosofia em geral; finalmente, recorde-se que a filosófica. O pensador analisará, para ficar num caso a que já
verdadeira Estética filosófica não pretende, de maneira nenhu- aludimos, o princípio geral das relações da Arte com a Natureza
ma, fixar os dados da experiência, da criação artística e do juízo e chegará à conclusão de que "em certa medida, o artista faz
estético "no rígido conjunto de um sistema estético objetivo", sempre violência à Natureza" (Maritain), de que "a representa-
porque a Estética filosófica é objetiva, mas não é um "sistema ção de um objeto é a condição prévia, mas não o conteúdo de
rígido": é mais orgânica do que sistemática. Parte de princípios seu valor artístico" (Geiger). Afirmado esse princípio de ordem
definidos e de afirmações; depois daí, porém, é a mais aberta de geral - e, portanto, um dos chamados primeiros princípios do
todas as Estéticas, pois abre portas a todos os métodos, que ela campo estético - pode o esteta condenar, como ilegítima, a
termina por incorporar a seu todo orgânico. afirmação dos "naturalistas" de que a Arte deve proceder como
As Estéticas sistemáticas que se afastem dessa linha geral são a Ciência, na pura e simples imitação da Natureza e na análise
apenas contrafações da Estética filosófica. Como já foi salienta- da Vida e do Mundo pelo método experimental.
do antes, a nenhuma pessoa de bom-senso ocorrerá a idéia de Agora, nem por isso, o esteta que mereça esse nome vai con-
que a Estética filosófica pretenda ou possa ensinar ao artista as denar as obras de arte "naturalistas''. Estas não se originam da
regras que deverão orientá-lo em seu trabalho criador. teoria errada da "escola naturalista", mas sim da imaginação
Assim, é necessário distinguir, no campo estético, os primei- criadora do artista que, a despeito de si mesmo, apesar dos er-
ros princípios, de caráter filosófico, axiológicos, abstratos, e as ros de seu pensamento abstrato, pode criar uma grande obra.
nonnas da Arte. Aqueles, ficam situados numa posição bastante Condenar o princípio, não importa em deixar de r econhecer que
afastada da criação artística e são puramente abstratos; as re- um artista que sustenta esse princípio falso pode ser um grande
356 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO Ã ESTÉTICA 357

artista e criar uma obra genial. Como afirma, ainda, o mesmo é tão grande corno eles pensam. É verdade que uma pessoa pou-
Jacques Maritain, co familiarizada com a Arte pode julgar feia urna obra que, ape-
nas, apresenta uma forma nova de Beleza, uma forma à qual ela
"para julgar o artista ou o poeta, estas considerações (teóricas) não está habituada e que, portanto, estranha, por ser diferente.
são radicalmente insuficientes: o que interessa, antes de tudo, é É verdade, também, que cada época e cada Cultura tem seu gosto
discernir se, no caso, se trata de um artista, de um poeta, isto peculiar. Mas a própria experiência empírica, a própria obser-
é, de um homem que possui, verdadeiramente, a virtude da Arte, vação dos fatos estéticos em tempos e espaços variados, termina
virtude prática e criadora, e não especulativa. Um filósofo, se
revelando uma unanimidade dos melhores espíritos a respeito
seu sistema é falso, não vale nada, porque então só pode en-
dos artistas colocados acima da média, isto qualquer que seja o
contrar a Verdade por acaso. Já um artista, se seu sistema é fal-
tipo de Cultura ao qual eles pertenceram. Com o desenvolvi-
so, pode ser algo e algo grande, porque pode criar a Beleza
mento dos estudos estéticos, vemos hoje, claramente, que os
apesar de seu sistema e a despeito da escola de arte em que se
apóia". (Ob. e p. cits.) miniaturistas persas ou irlandeses, que os gen iais pintores anô-
nimos das cavernas de Altarnira, que os escultores hindus ou os
pintores australianos que pintam seus deuses em cascas de árvores
A Relatividade do Juízo Estético realizam a Beleza a seu modo, da mesma maneira que Migue-
lângelo na Capela Sixtina. Também é comum que um ciclo cultu-
Fica portanto bastante claro que a Estética filosófica não pre- ral considere o que o antecedeu "decadente', "errado" ou "feio",
tende deduzir regras diretamente aplicáveis à criação da obra de no que concerne às criações do campo estético: mas passada a
arte: se o pretendesse, estaria exorbitando de suas funções, sain- fase de paixão, o sereno julgamento estético reabilita aquela
do do campo especulativo, que é o seu, para entrar no criador, época "decadente" de Cultura, mostrando que aquilo que jul-
que é da Arte. Para usar uma expressão de Derisi (em O Eterno e gavam errado e feio, nela, era, apenas, uma maneira diferente
o Temporal na Arte, p. 35), seria, esse, um absurdo igual ao "da- de encarar a Beleza. É o que acontece, para ficar num caso recen-
queles que pretendem deduzir, da Filosofia da Natureza, a classi- te, com os pré-rafaelitas e com a chamada "arte nova" do tem-
ficação de determinado ser vivo na escala zoológica". po do "ferro batido", ambos reabilitados pelos críticos e estetas,
Os pensadores que não aceitam os fundamentos da Estética às vezes até contra a má vontade dos artistas contemporâneos, a
filosófica, objetam, porém, que, mesmo nesse campo dos pri- maioria deles orientada numa direção bastante diferente.
meiros princípios, as variações do gosto individual se ampliam Assim, ressalvadas as dificuldades de caráter psicológico e
até uma relatividade do juízo estético, que não permite as afir- social - preconceitos, falta de familiaridade e de convivência
mações, para eles dogmáticas, da Estética normativa. A tais pen- com as obras de a rte, d iferenças culturais, distância no tempo e
sadores, devemos lembrar de novo, primeiro, que uma coisa é a no espaço etc. - existe um acordo, uma unanimidade mesmo,
variação do gosto, segundo as épocas e os indivíduos, e outra quanto às afirmações essenciais do campo estético. O gosto,
seria a relatividade do juízo estético; em segundo lugar, acentue- encarado desse modo, não é arbitrário como se pensa, d e modo
mos que, mesmo assim, a margem de erro nos julgamentos não que, nem que fosse por isso, não deveria ser alargad~ até a afirma-
358 A RIANO SUASS UNA INI CIAÇÃO À ESTÉTICA 359

ção da relatividade d os juízo s estéticos. Existe a possibilida- cessidade da Estética filosófica". Aí ele conclui suas idéias de
de de erro, é verdade, mas somente quando não se levam em m o do veemente, dizendo:
conta as ressalvas já feitas. Além d isso, mesmo um esteta que,
com o Kainz, não tem grande simpatia pela Estética filosófi- "Será missão da Estética futura volver a ligar cautelosamente
ca, afirma que a margem de erro pode ser controlada e ultra- com a Filosofia os fios que Fechner cortou com tanta arrogân-
passada. D iz ele: cia. Para chegar a pontos de vista axiológicos, os únicos que
podem fazer, da Estética, não uma caixa de alfaiate, mas uma
"É perfeitamente possível valorar... as valorações estéticas, os disciplina sistemática, não é o método empírico o indicado. Só
juízos de gosto, distinguindo-os, neste sentido, em bons e maus, da Filosofia se pode esperar a salvação". (Ob. cit., p. 115.).
amadurecidos e imaturos, cultivados e incultos. Daí a possibili-
dade de considerar como erros certas falsas valorações em ma-
téria de Estética. Entretanto, também os erros têm suas leis e o As Essências na Estética e na Arte
conhecimento não precisa fugir diante deles, uma vez que não
são algo simplesmente fortuito, arbitrário e irracional". (Ob. cit., Na verdade, por maiores que sejam as desconfianças con-
p . 257-258.) temporâneas contra a Filosofia, há de se reconhecer que os pro-
blemas e os termos que povoam o campo estético têm de ser
Em suma, o que a Estética filosófica pretende é, tão-somen- definidos pela Filosofia - ou não serão definidos de modo ne-
te, o direito de afirm ar esses primeiros princípios e as essências, nhum. É à Filosofia que temos de recorrer quando discutimos
sem os quais a Estética seria apenas uma mera apreciação em- se a Arte pode ser aristocrática, isto é, dirigida a uma elite espi-
pírica das obras de arte, da criação e da fruição. Como veremos ritual, ou se qualquer Arte que não vise à educação do Povo (ou
depois, foi a isso que quase nos levaram as idéias dos estetas não esteja à altura de ser por ele entendida e aceita) é por natu-
empiristas, tendo, à frente, a figura de Gustav Theodor Fechner. reza condenável. É também da Filosofia que temos de nos valer
Por mais respeitáveis e úteis que tenham sido seus esforços, por para estudar se a Arte é um jogo ocioso e gratuito, ou não; se a
um lado, por outro lado eles introduziram um verdadeiro caos Arte é uma forma pura de deleitação e de prazer estético, ou se
no campo da Estética, e as primeiras cautelosas manifestações deve obrigatoriamente ter objetivos didáticos, de natureza éti-
de regresso a uma Estética filosófica começam a despontar nos ca, religiosa ou política; as relações da Arte com o Estado e o
melhores espíritos contemporâneos. O mesmo Kainz, por exem- Poder, com a Moral e com a Ciência - tudo isto só pode ser
plo, já se afastando dos estetas psicologistas que tanto o marca- estudado sob o ponto de vista filosófico.
ram, afirma, à certa a ltura, que "a Estét ica se distingue da Finalmente, uma outra diferença de posição existente entre
Psicologia porque nela se faz valer o ponto de vista do valor". os estetas filosóficos e os empiristas, consiste no fato de que os
E Moritz Geiger - que não é, no sentido estrito, um adepto da primeiros sustentam a existência de essências firmes e imutáveis,
Estética filosófica - vai mais longe, chegando a dedicar todo presentes por trás e colocadas como fundamento das existên-
um parágrafo de sua excelente obra ao que ele chama de "ne- cias particulares que são as obras de arte. Os estetas filosóficos
360 AR IANO SUASSUNA I NICIAÇÃO À ESTÉTICA 361

afirmam, por exemplo, que as tragédias ap resentam, durante os dias e dramas como se fossem uma coisa só, Paulo Mendonça,
séculos, as variações acidentais próprias a cada época e a cada contradiz as duas afirmações feitas acima quando afirma:
Cultura, mas têm, todas, a unificá-las e a defini-las como tragé-
dias, uma essência imutável, o Trágico. "No entanto, apesar da dificuldade que muitos encontram para
aceitar esta verdade, todos esses autores, por desigual que seja
Já os empir istas sustentam a não existência d as essências:
o seu valor, por díspares que tenham sido os seus motivos e suas
para eles não existe o Trágico; existem a t ragédia grega, a in-
intenções, para não falar de seus processos de realização, es-
glesa elizabetana, a "tragédia moderna" etc. Quer d izer: para
creveram tragédias no mais verdadeiro sentido do termo". (Ob.
eles, o Trágico - a concepção geral da tragédia - varia com cit., p. 16-17.)
o tempo. O brasileiro Paulo Mendonça, por exemplo, é um
desses, pelo que se depreende de seu ensaio A Tragédia - Hi- Ora, só existe uma maneira de considerar a existência de
póteses e Contradições Surgidas na Procura de uma Definição, "tragédias no mais verdadeiro sentido do termo": é definir o
Anhembi, São Paulo, 1953. Ele afirma a existência de tragé- Trágico, isto é, aquilo que existe de essencial e comum em todas
dias, mas diz que "a Tragédia propriamente dita é apenas uma as tragédias, por mais que difiram elas no que existe de aciden-
palavra" (p. 19). Depois, ainda por esse fato de não aceitar a tal; aquilo que está presente nas tragédias de Sófocles, de
existência do Trágico e de, conseqüentemente, não distingui- Shakespeare e de Racine, assim como o Dramático está presen-
lo do Dramático, Paulo Mendonça enumera, como perten- te nos dramas de lbsen ou Strindberg.
centes a um gê nero só, tragédias, como as de Sófocles, e Agora, é verdade que, durante muito tempo, principalmen-
dramas como os de Strindberg. Diz ele, considerando o Trá- te por influência dos teóricos franceses classicizantes, coisas que
gico como uma coisa "fluida'', isto é, variável d e acordo com são acidentais, na Tragédia, foram tomadas como essenciais do
as épocas e as cu! tu ras: Trágico: a regra das três unidades foi uma delas. Depois, esses
mesmos franceses, com Boileau à frente, tiveram uma preocu-
"A concepção da tragédia, por participar da natureza fluida pação sectária de "pureza" da tragédia que os gregos, de fato,
das concepções em geral, modificou-se com o dissolver das ge-
nunca su stentaram: a tragédia grega é muito mais "impura" do
rações, acomodando-se sucessivamente em diferentes moldu-
que a tragédia jansenista de Racine, por exemplo. Foi por causa
ras, a ponto de não a reconhecermos, quase, passando de
desse entendimento sectário, desse fato de tomar por essencial
Sófocles a Shakespeare, de Shakespeare a Racine, de Racine a
Dumas Filho, de Dumas Filho a Strindberg ou lbsen, de Ibsen o que era acidental, que Voltaire chegou ao absurdo de conside-
a Eugene O' Neil ou Jean Anouilh". (Ob. cit., p. 16.) rar Shakespeare inferior a Racine, por ser "impuro", compara-
do com este. Ele diz que Shakespeare, nisso semelhante a Lope
O ensaio de Paulo Mendonça é excelente e cheio de suges- de Vega e Calderon de la Barca, é "uma bela natureza, mas bas-
tões; o que eu disse até aqui sobre ele não implica em restrições tante selvagem". E continua, manifestando sua estranheza de
à sua qualidade, mas apenas numa diferença de posição. Inclu- francês: "Nenhuma regularidade, nenhuma postura, nenhuma
sive, apesar desse, a meu ver errôneo, agrupamento de tragé- arte; baixeza misturada com grandeza, bufoneria com o terrível:
362 ARIANO SUASSUNA

é o caos da tragédia ... " Quer dizer: Voltaire não se apercebeu


de que o Trágico é a categoria fundamental das tragédias, mas
não é, de modo nenhum, a exclusiva. Rebela-se contra a exis-
tência de cenas cômicas nas tragédias de Shakespeare e diz: "Não
existem bufões no Édipo e na Electra de Sófocles." É verdade
CAPÍTULO 36
que, nas tragédias shakespeareanas o contraste entre o trágico
FECHNER E A ESTÉTICA EMPIRISTA
fundamental da ação e as cenas cômicas é mais acentuado; mas
não é verdade que nas tragédias gregas não houvesse a presença
de outras categorias, além do Trágico; nas tragédias de Racine,
sim, existe um equilíbrio e uma pureza muito maiores: em com-
pensação, elas são muito menos fortes e complexas do que as de Kant e a Estética Filosófica
Shakespeare; e mesmo numa tragédia como a Antígona, de
Sófocles, o soldado que vem comunicar a Creonte o sepultamen- Em relação à Estética, Kant desempenha um papel que não
to do cadáver de Polinices é um meio-bufão que empresta um deixa de ser curioso: considerado um esteta "metafísico", "idea-
matiz cômico bastante acentuado às duas cenas em que aparece. lista" etc. - em vista das características de sua análise trans-
Assim, e lembrando mais uma vez o que já foi dito sobre isso cendental - foi, porém, de suas teorias sobre a Beleza que
anteriormente, acredito que somente uma Estética filosófica que decorreram as tentativas de destruir a Estética filosófica. Aliás,
defina firmemente os princípios gerais e as essências, pode abrir essa contradição marca todo o pensamento kantiano: e apesar
caminhos para a ordenação e a sistematização dos dados e pro- de Heidegger afirmar que, na Crítica kantiana, se encontram,
blemas estéticos. Principalmente porque, como dissemos antes, implícitos, os fundamentos de uma verdadeira Metafísica, não
a Estética filosófica, depois de aceita sua proposição inicial, é a são poucos os pensadores que acusam Kant de ter intentado, com
mais aberta de todas e incorpora ao estudo do campo estético ela, a destruição da Metafísica e da própria Filosofia.
as contribuições trazidas por todas as outras. De fato, foi depois que Kant afirmou ser a Beleza uma cons-
trução do espírito do sujeito que se estabeleceu, como dogma, a
relatividade do juízo estético, segundo os pós-kantianos inteira-
mente dependentes do gosto particular de cada pessoa. Como
decorrência, logo viria a impossibilidade de qualquer julgamen-
to objetivo e do estabelecimento de qualquer norma que servisse
de fundamento ao juízo estético.
Outra decorrência fatal da Estética kantiana seria a de trans-
formar a Estética num capítulo da Psicologia: se a Beleza é uma
construção do espírito do sujeito, a Estética deve ser uma Psi-
364 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 365

cologia da criação e da fru ição da Arte; não pode estudar a Be- estéticos. Isso somente viria a ser conseguido se a Estética pro-
leza nos objetos estéticos - quadros, poemas, sinfonias, escul- cedesse pelo cam inho oposto: em vez de deduzir, de cima para
turas, romances etc. - porque ela não se encontra ali, mas sim baixo, princípios gerais para apli car ao cam po estético, a Es-
no espírito do sujeito. E como o advento dessa idéia coincidisse tética deveria partir do es tudo dos fatos estéticos, através do
método psicológico e exper imental; e assim, procedendo de
com o momento em que começam as suspeitas levantadas con-
baixo para cima, isto é, do estudo dos objetos particulares, é
tra a própria Filosofia, foi esse, também, o momento em que se
que se encontrariam os princípios gerais, não mais deduzidos
começou a considerar como única Psicologia legítima aquela que
abstratamente da Filosofia, mas sim determinados indutiva-
fosse praticada de acordo com "o rigor e os métodos experimen-
mente pela experimentação.
tais da Ciência". O pensador que se encarregou de codificar a
nova Estética, chamada científica ou empirista, foi Gustav
Theodor Fechner. A "Secção de Ouro" e a Beleza

Fechner ilustra, a seu modo, a maneira de proceder da Esté-


Método Dedutivo e Método Experimental
tica empirista, enquanto oposta à da Estética filosófica, a partir
da antiga fórmula grega que define a Beleza como "unidade na
Repitamos, mais uma vez, a idéia central de Kant, tantas vezes
variedade''. Diz Fechner q ue a fórm ula bem pode expressar u ma
já analisada aqui. Para Kant, segundo Victor Basch,
verdade; mas que, assim como é, simplesmente afirmada e
d eduzida abstratamente de reflexões fil osóficas, não contém o
"o caráter estético de um objeto não é uma qualidade deste
selo, a garantia da Ciência.
objeto, mas uma atividade do nosso eu, uma atitude que assu-
Então, partindo da célebre forma retangular da "secção de
mimos em face desse objeto". (Cit. por Denis Huisman, A Esté-
o uro", Fechner resolveu mostrar como, a seu ver, deveria pro-
tica, ed. cit., p. 79.)
ceder uma Estética empirista e científica. A "secção de ouro" era
u ma antiga preocupação de matemáticos, arquitetos e pintores
Ora, segundo Fechner, era partindo da idéia oposta - a de
que a Beleza é uma propriedade do objeto - que os Estetas fi- antigos. Na Renascença, foi retomada como uma das formas mais
losóficos faziam suas reflexões. Segundo Fechner, a Estética filo- comuns de composição em Pintura, sendo que a relação mate-
sófica parte de princípios metafísicos gerais, superiores e, daí, mática dos lados e do corre do retângulo, ficou indissoluvelmente
por meio do método dedutivo, de cima para baixo, aplica a re- ligada ao nome do matemático Fibonacci. Segundo a série
flexão ao campo estético, procuran do, assim, encontrar as leis fi bonacciana, o retângulo da "secção de ouro" deveria ter seus
capazes de conferir à Estética sua firmeza no campo do conhe- lados organizados de acordo com uma relação crescente, no qual
cimento. o termo inicial de uma fosse o último da outra, sendo o segun-
Entretanto, continua Fechner, é exatamente essa firmeza do formado pela soma dos dois. A série, portanto, seria a se-
que a re fl exão fi losófica não consegue conferir aos estud os guinte, a partir da menor: 2/3, 3/5, 5/8, 8/13, 13/21 etc.
366 AR IANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 367

Organizado o retângulo de acordo com uma dessas relações, A Beleza, Segundo Fechner
seria ele, ainda de acordo com a série, cortado em dois, de ma-
neira que o retângulo total está para o maior assim como este Aliás, a definição dada por Fechner à Beleza já mostra, mui-
para o menor. Toda uma série de quadros clássicos tem sua com- to bem, a direção fundamental que iria ele imprimir à Estética
posição baseada no "retângulo áureo", na "áurea proporção", empirista. Diz ele:
nomes pelos quais também é conhecido o "corte de ouro".
Nesses quadros, a "secção de ouro" e seguida consciente- "Beleza é tudo aquilo que tem a propriedade de suscitar um
prazer superior, um prazer não só sensível mas que resulta di-
mente, deliberadamente. Fechner observou, porém, que o "re-
retamente do sensível". (Cit. por Moritz Geiger, ob. cit., p. 77.)
tângulo áureo" era seguido, de maneira inconsciente, no formato
de uma porção de coisas feitas pelo homem, como capas de li-
Note-se que esta definição resume, perfeitamente, os dois
vros, janelas, mesas etc. Era como se o retângulo correspondesse
esteios iniciais da Estética empirista. Na primeira parte,
a um impulso natural à própria psicologia humana. E Fechner
resolveu comprovar esse impulso, através de um processo psi- Fechner, influenciado por Kant, considera como Beleza "tudo
aquilo que é capaz de suscitar um prazer": isto significa que,
cológico; experimental.
Primeiro, fez uma série de cartões em forma de quadrilátero: para ele, é muito mais importante a reação do sujeito diante
as proporções entre os lados, porém, iam do retângulo mais es- do objeto do que as qualidades do objeto mesmo. Na segun-
treito possível até o quadrado. Então, depois de prontos os car- da parte, quando Fechner observa que o sentimento estético
tões, ele os submeteu, num inquérito, ao maior número de pessoas "resulta diretamente do sensível'', está acentuando, já, a pri-
de gosto "normal'', constatando que a grande maioria dessas pes- mazia do estudo dos dados sensíveis no estudo da Estética,
soas repelia os extremos do retângulo estreito e do quadrado, sendo que, desses dados estéticos, os mais importantes, sem
demonstrando preferência pela forma do retângulo de ouro. dúvida, são os ligados à Psicologia da Arte, aos sentimentos
A conclusão de Fechner foi que, o retângulo por demais estreito, estéticos, isto é, a criação da Arte e o prazer despertado p ela
exagerava na variedade, enquanto que o quadrado tinha unidade contemplação das obras de arte.
demais, ou melhor, representava aquela forma pobre de unidade Outra observação importante para entender o pensamento
que é a uniformidade. Enquanto isso, o "retângulo de ouro" re- de Fechner é a de que ele fazia duas recomendações aos que
sumia, melhor do que todos os outros quadriláteros, unidade na empreendessem o estudo da Estética pelo método psicológico e
variedade, e esse era o motivo da preferência demonstrada por experimental: em primeiro lugar, os dados postos em questão
ele. Ficava, assim, comprovado que Beleza era, realmente, "uni- nos inquéritos, deveriam ser simplificados ao máximo; daí veio
dade na variedade"; não porém por uma simples fórmula abstra- seu interesse pelos retângulos, formas simples que poderiam ser
ta, pressentida pelo método dedutivo da Filosofia, mas sim por apreciadas e julgadas por todos. Em segundo lugar, nos mesmos
meio de uma experimentação científica que, de baixo para cima, inquéritos, deveriam ser postas de lado as pessoas de gosto ex-
formulara a lei geral indutivamente, partindo do estudo da expe- cepcional, fosse esse excepcional tomado no sentido positivo ou
riência e dos dados estéticos. negativo. A esse respeito, explica Lalo:
368 ARIANO SUASS UNA IN ICIAÇÃO À ES TÉTI CA 369

"Para atingir, assim, as leis gerais, é preciso (segundo Fechner), experiência estética do sujeito, procurando explicar a natureza
primeiro simplificar as experiências que a complexidade ordi- do prazer que se experimenta na fruição das obras de a rte:
nária dos objetos de arte tornaria confusas. Em seguida, é pre-
ciso submetê-las a um grande número de indivíduos médios, a 1 º) Princípio do limiar estético: determina que a primeira con-
fim de eliminar as particularidades de gostos pessoais e excep-
dição para as coisas nos causarem prazer é q ue as impr es-
cionais ou anormais que impediriam de distinguir as relações
sões delas procedentes possuam uma certa intensidade; tal
necessárias que derivam da natureza das coisas. Ao contrário,
efeito, não muito forte, só atinge o limiar da consciência.
uma estatística dos resultados coletivos, permite estabelecer um
tipo médio ou normal do gosto e as curvas de suas variações".
(Ob. cit., p. 13.) 2°) Princípio da ampliação estética: da convergência não in i-
bida d e condições de prazer qu e, isoladas, pouco produ -
zem, nasce uma resultante de prazer muito superior ao
O método empirista, exige, assim, primeiro a form ulação
cor respondente valor d e prazer d as d iversas condições
psicológica dos princípios estéticos, e por outro lado, o gosto
isoladas.
artístico e discernimento crítico necessários para o estudo siste-
mático dos dados empíricos do campo estético, guiado tudo isso
3°) Princípio da síntese unitária do múltiplo : este p ri ncípio re-
pelo método experimental. Muitos pensadores, porém, têm cri-
fere-se àq uela análise já referida que Fechner fez da Beleza
ticado, em Fechner, exatamente essa simplificação que ele con-
como "unidade na variedade" e pode ser resumido assim :
siderava fun damental para a Estética científica. Indagam: "Será
a un idade agrada, a uniformidade desagrada; a variedade
que um inquérito feito sobre retângulos pode fornecer alguma
- ou multiplicidade - agrada, e a mudança sem nexo
conclusão aplicável a uma obra como A Divina Comédia? E a
desagrada.
conclusão vem, cortante: a Estética experimental pode ter êxi-
to a respeito de certas formas simples ou de certas obras ligadas
4°) Princípio da não-contradição, ou da ver dade: quando per-
a Artes por natureza puras e mais "simples'', como a Pintura;
cebemos a mesma coisa em circunstâncias d iversas e ela
falha, porém, completamente, no que concerne às obras mais
evoca em nós complexos imaginativos diferentes, sentimos
complexas e "impuras'', como o Teatro ou o Romance.
prazer se notamos sua não-contradição, e desprazer se no-
tamos o contrário:
Os Princípios da Estética de Fechner
5°) Princípio da clareza, suprem o princípio formal: em todos
Fechner formulou, ainda, alguns princípios que ele conside- os princípios precedentes, o essencial é que se tenha cons-
rava fundamentais para a ordenação e a sistematização dos da- ciência clara de cada u m, quando se tornarem efetivos.
dos estéticos, princípios entre os quais se destaca, como mais
importante, o da associação. Esses princípios são seis e, como 6°) Princípio da associação, único que determina o conteúdo do
era de esperar de um esteta psicologista, são todos ligados à prazer estético: sempre que qualquer coisa excita em nós
370 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 371

prazer estético, atuam conjuntamente para isso duas espé- tico abstrato" (cf. Charles Lalo, ob. já citada, p. 15). O método
cies de elementos - os externos, como cor, forma etc., e experimental é importante, mas empregado apenas como meio
os internos, imagens reproduzidas de experiências passa- auxiliar nos estudos estéticos: transformado em sistema único e
das - que nós fundimos num todo global. rígido, equivaleria, ainda segundo Lalo, a

Comentando este último princípio, através do qual Fechner "urna Biologia que, para estudar a digestão, começasse por ana-
pretendia explicar o fundamento do prazer estético, diz Geiger lisar, à parte, cada ãtorno do oxigênio ou do azoto de nossos
que, quando nós olhamos uma laranja pintada num quadro, o órgãos ... Fechner e seus sucessores'', conclui Lalo, "não pude-
prazer que experimentamos não é puramente derivado da for- ram tornar até agora para fazer seus testes senão algumas for-
mas simples, corno os retângulos e as elipses ... Mas o método
ma contemplada; este está presente, mas a ele se associam ou-
continua impotente para a exploração das formas mais concre-
tros, o que Geiger explica dizendo:
tas das obras (de arte)." (Ob. cít., p. 15-16.)

"Fechner distingue o prazer produzido pelo objeto imediata-


mente perceptível e o prazer que provocam as associações
enlaçadas naquilo que é percebido. Urna laranja (pintada numa
tela) não nos agrada somente como mancha amarela e redonda
- fator direto do prazer estético - mas precisamente como
laranja: nós intuimos mentalmente um objeto de cheiro exci-
tante, de fresco sabor, numa árvore bela, crescida em bela ter-
ra, sob um céu quente". (Ob. cit., p. 77.)

Ora, mesmo a se adotar os pontos de vista radicalmente psi-


cológicos de Fechner, a fórmula do princípio de associação, se-
gundo acentua o mesmo Geiger, não distingue, no prazer, o que
é estético do que não é estético. Para Geiger, Fechner, a ser coe-
rente com suas teses, teria que admitir dentro de uma só fórmula
e como se fossem coisas da mesma natureza tanto a exaltação
estética que se experimenta diante de um quadro, de uma escul-
tura ou de uma tragédia, quanto "o edificante sentimento religio-
so daquele que escuta um sermão e o entusiasmo patriótico de
outro que assiste a uma comemoração cívica". (Loc. cit.)
Por outro lado, a redução da Estética exclusivamente ao
método experimental significa "uma espécie de atomismo esté-
CAPÍTULO 37
A ESTÉTICA PSICOLÓGICA

Fechner e as Estéticas Psicológicas

Como se viu, foi Fechner quem formulou a idéia central das


Estéticas psicológicas: a Beleza não sendo, como dissera Kant,
uma propriedade do objeto, é uma espécie de entidade psíquica
que, portanto, deve ser estudada pela Psicologia. Esta, não mais
filosófica e sim experimental, é que deve fornecer os princípios
superiores que permitem o estudo e a ordenação dos fatos esté-
ticos numa disciplina sistemática e dotada do rigor da Ciência.
Note-se que a Estética psicológica n ão se limita a ressalta r a
importância dos fatores psicológicos - principalmente a cria-
ção e a fruição da Arte - em Estética: essa importâ ncia é admi-
ti da por todo mundo. O que os estetas psicologistas pretendem
é muito mais: querem reduzir toda a Estética a isso. Segundo
De Bruyne, a Estética psicológica

"considera a Arre, o prazer estético e a criação como fenôme-


nos de consciência. Ora confundindo a fruição da Arte com a
satisfação estética, ora olhando a primeira corno urna forma da
segunda, o psicólogo procura, não a definição do fenômeno
objetivo, mas a noção e as leis das atividades psíquicas". (Ob.
cit., p. 66.)
374 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTI CA 375

É preciso, pois, distinguir os psicologistas radicais da Estética a "do jogo", a da "endopatia'', a "psicanalítica" etc. Isso leva
psicológica daqueles que, simplesmente, conscientes da Impor- Geiger a afirmar:
tância da Psicologia da Arte, se preocupam, dentro da Estética,
com esses problemas. A teoria aristotélica da "catarse", por exem- "Dentro desse marco comum (o de considerar a Beleza uma
plo, foi uma contribuição decisiva para o estudo psicológico da entidade psíquica e a Estética um capítulo da Psicologia), a Es-
tética psicológica move-se em direções muito divergentes. As-
fruição do Trágico, nem por isso Aristóteles pode ser considera-
sim, um Lipps e um Fechner têm somente em comum esse ponto
do um adepto da Estética psicológica; ele era um esteta filosófi-
de partida: o de considerar a experiência estética como centro
co de gênio, isso sim. Moritz Geiger interpreta a idéia central da investigação". (Ob. cit., p. 76.)
da Estética psicológica fazendo uma pergunta a que ele próprio
responde nos seguintes termos: Já analisamos as idéias de Fechner, por um lado acentuando
o caráter subjetivo da Beleza e por outro afirmando o método
"O que é que existe de comum entre a Vênus de Milo e um psicológico e experimental como o único legítimo para o estu-
retrato expressionista, entre um madrigal e uma tragédia gre-
do da Estética. Fechner é, portanto, o verdadeiro iniciador da
ga? Um só traço: o de ter sido motivo de experiência estética
Estética psicológica. Mas seu grande sistematizador é Lipps, o
(por parte de um sujeito)... Pois o que chamamos de objeto es-
outro esteta alinhado aí, por Geiger, ao lado de Fechner.
tético não é, em si, senão uma entidade psíquica... A Estética
Lipps é o criador da Estética da "projeção sentimental'',
será, portanto, uma parte da Psicologia, ou uma Psicologia apli-
ou da "endopatia". Esta e a Estética psicanalítica - criada a
cada". (Ob. cit., p. 75-76.)
partir dos estudos estéticos de Freud - são as mais destaca-
das entre todas as Estéticas psicológicas. A idéia central da
Lipps e as Diversas Estéticas Psicológicas Estética da "projeção sentimental" consiste em considerar o
fundamentó da criação e da fruição artísticas como uma
A Estética psicológica parte, assim, do ponto de vista kan- exteriorização dos impulsos interiores do artista ou do con-
tiano e pós-kantiano de que a Beleza é uma experiência templador: ao criar a obra, o artista projeta, nela, o conjunto
psíquica. Abandona, de vez, os caminhos filosóficos, poden- de sua consciência; mais ainda: o artista como que se me-
do, portanto, ser considerada dentro da Estética empirista. tamorfoseia na obra, identificando-a consigo mesmo, com os
Esta, porém, tomou vários rumos, dos quais o método psico- traços profundos de sua vida psicológica interior. Ao se colo-
lógico é apenas um. Mas mesmo a Estética psicológica, assim car diante da obra, acontece o mesmo com o contemplador:
que cortou, ou pretendeu cortar, suas ligações com a Filoso- ele se identifica com ela, transforma-se nela, projetando, na
fia, viu seu próprio campo fragmentado. Assim, mesmo man- obra, sua própria psicologia profunda, os movimentos de sua
tendo, todas elas, o ponto de vista comum de considerar a consciência. É, portanto, da projeção dos sentimentos do
Beleza como uma entidade psíquica, são bastante diferentes artista e do contemplador na obra que surgem a criação e a
entre si as várias Estéticas psicológicas - como, entre outras, fruição das obras de arte.
376 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 377

Entretanto, não é somente quanto à Arte que a teoria da por ele corno aferidor do gosto médio e corno prova de que a
projeção sentimental afirma isso: todo e qualquer sentimento Beleza era, realmente, explicável corno " unidade na varieda-
estético é apresentado como sendo, em sua essência, uma proje- de" . Pois bem: Lipps, fiel a seu radicalismo psicológico da
ção da vida interior do sujeito nos objetos exteriores, m esmo os projeção sentimental concorda com Fechner quando este diz
da Natureza . Quando uma pessoa olha uma paisagem ou a for- que tal retângulo agrada à ma ioria; mas discorda quanto ao
ma de um rochedo, só pode criar a Beleza dentro de si projetan- motivo. Dizia ele que, quando olhamos para o " retângulo
do nelas sua vida interior, seus sentimentos. É por isso que De áureo", sentimos uma sensação de prazer, mas tal sensação
Bruyne afirma que, segun do a Estética da endopatia, o sentimen- surge " porque, nessa figura, nós sentimos, da maneira mais
to estético não é perfeita, que nos tornamos retângulos". E Lipps sai a esse
ponto do simples bom-senso, d ando, para tanto, a seguinte
"nem a impressão passiva da Beleza das coisas, nem a criação com-
explicação:
pletamente ativa do espírito. Nós dizemos que uma coisa é bela,
quando, nela, nós contemplamos e sentimos nossa própria vida.
"Esta figura, mais do que nenhuma outra, une a graça à solidez
Nós sofremos e nos regozijamos diretamente com nosso próximo,
e é por isso que nós a achamos bela: vemos nela realizado um
identificando-nos com o herói de um romance ou de um drama;
ideal subjetivo. Reencontra-se aqui a idéia fundamental da
personificamos simbolicamente toda a Natureza; sentimo-nos ale-
Endopatia: graças ao sentimento de simpatia, dois seres (o
gres e satisfeitos com os pássaros; elevados com a árvore; tristes
contemplador e o objeto) se fundem num só". (Cf. De Bruyne,
diante de uma paisagem de outono brumoso; abatidos e ansiosos
loc. cit.)
diante das colunas maciças de uma arcada baixa... Ora, por um
lado, as coisas não são, em si mesmas, nem tristes, nem alegres,
Quer dizer: como teoria da contemplação e do prazer esté-
nem delicadas nem brutais. Por outro lado, o prazer estético não
decorre da consciência de meus próprios sentimentos, a qual é de tico - e principalmente como psicologia da criação e da fruição
ordem prática. Temos de concluir, então, que o prazer resulta do de certas Artes (principalmen te das literárias) - a Endopatia
fato de que eu animo com meus próprios sentimentos, com minha esclarece muita coisa. Mas falha completamente quando quer
própria vida, as coisas que contemplo. Eu me metamorfoseio nos reduzir toda a Estética a isso. Mesmo porém quanto à criação e
objetos, sinto minha humanidade na Natureza bruta, transporto à fruição do Romance ou do Teatro, a endopatia pode explicar
para aquilo que não sou eu toda a vida da minha consciência. Eis alguns aspectos desses problemas, mas deixa muitos outros de
a endopatia''. (Ob. cit., p. 89.) lado. D e fato, nós podemos identificar nossos sentimentos, nos-
sas idéias e nossa personalidade com os do personagem de um
romance. Mas pode ocorrer o contrário, também, e nem por isso
Crítica à Estética da Endopatia
deixarmos de experimentar a alegria causada pela apr eensão da
obra de arte como objeto belo. Corno diz o mesmo Edgard De
Já nos referimos, antes, às exp eriências que Fechner fez
Bruyne,
com o retângulo baseado na "secção de ouro", considerado
378 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 379

"no sentimento estético aparecem outras atividades da consciên- em simples figuras geométricas, totalmente dessemelhantes das
cia que não têm nada a ver com a projeção sentimental. Assim, nossas próprias formas corporais e dos nossos movimentos".
nós podemos gostar de uma peça de teatro opondo-nos inteira- (E. Meumann, A Estética Contemporânea, trad. portuguesa de
mente ao herói ou à heroína. Às vezes, nós nos identificamos com P. Luis Feliciano dos Santos, Coimbra, Imprensa da Universida-
eles; noutras vezes, nós nos distinguimos claramente". (Loc. cit.) de, 1930, p. 82.)

A mesma crítica pode-se fazer a outras Estéticas psicológi- Foi talvez uma consideração desse tipo que levou Wilhelm
cas, como a da psicanálise, por exemplo: é verdade que o artis- Worringer a formular sua célebre tese "Abstração e Natureza", um
ta, dotado de sensibilidade mais aguda do que a maioria, e dos primeiros pontos de apoio teórico da Pintura abstrata. Wor-
ringer diz que, ao contrário do que julgou Lipps, a projeção de
perdido nos extravias da noite criadora da vida pré-consciente
nossa consciência, de nossa vida interior, nas coisas da Natureza
do intelecto, tem uma tendência a ser mais marcado por trau-
e dos objetos da Arte, não é a única base de toda a experiência
mas e complexos. Ou melhor: os traumas e complexos, comuns
estética, é apenas um dos seus dois pólos. Existe outro, tão impor-
a todo homem, são mais vivamente sofridos por ele. Mas, se os
tante quanto este e cuja essência é, mesmo, contrária a ele: é o
traumas e humilhações explicassem a criação da Arte, todo neu-
desejo de abstração. Existem artistas e escritores de temperamen-
rótico era artista, o que não acontece. Existem correlações evi-
to egocêntrico que partem, para a criação artística, da projeção
dentes entre a neurose, a loucura e a frustração por um lado, e de suas consciências. Mas existe um outro tipo que vê o mundo e
aquela espécie de "universo paralelo" em que se movem a vida sua própria vida interior como uma espécie de caos desordenado
e a imaginação do artista e do escritor. Mas nem por isso elas cuja contemplação só pode causar desgosto. Estes artistas prefe-
são a mesma coisa: a Estética psicanalítica explicou muita coisa rem criar um outro universo, mais puro porque mais abstrato e
sobre a criação artística, mas, de fato, se excede quando preten- mais afastado, tanto das formas caóticas do mundo, quanto de
de identificar com isso toda a Arte e a Estética inteira. sua desordenada e impura subjetividade.
Mas onde a Estética da projeção sentimental realmente fa- Como se vê, tanto a Estética da endopatia, quanto a psica-
lha é quando procura estender certos aspectos da criação literá- nalítica ou quanto a da abstração de Worringer, aclaram vários
ria à fruição estética dos objetos brutos da Natureza, chegando aspectos de muitos problemas estéticos. Assim entendidas, trazem
Lipps, como se viu, a dizer que, olhando para a "secção de ouro", contribuição valiosa aos estudos estéticos. Entendidas porém
nós temos a sensação de graça e solidez unidas e experimenta- num sentido radical e sectário, podem prejudicá-los seriamen-
mos em sentimento de prazer por nos sentirmos retângulos. te, levando-nos a recordar a advertência de Meumann, na mes-
A esse respeito, comenta Meumann: ma obra que acabamos de citar:

"Um defeito desta explicação (isto é, a da Estética da endopatia) "Corremos arualmente o perigo de perder a unidade interna e a
está, evidentemente em não se compreender porque é que so- vista de conjunto deste domínio, e de dissolver a Estética num sem-
mos capazes de projetar os nossos sentimentos em semelhantes número de investigações parciais, desconexas". (Ob. cit. p. 12.)
formas inorgãnicas (como rochedos e ondas do mar), ou ainda
CAPÍTULO 38
A ESTÉTICA HISTORICISTA E A SOCIOLÓGICA

Fechner e o Geneticismo Estético

Repitamos que, segundo a Estética psicologista, a Beleza e a


Arte - e portanto todo o campo estético - se confundem com
a atividade do sujeito: por isso seus adeptos, depois d e Fechner,
tentaram r eduzir a Estética ao estudo da na tureza íntima do
processo criador, do prazer estéti co etc.
Mas logo começaram a aparecer aqu eles que, concordando
com a afirmação inici al de Fechner, discordavam, porém, das
outras ilações dela decor rentes. Achavam que Fcchner tinha ra-
zão ao querer desligar a Estética da Filosofia; mas discordavam
de sua afirmação de que a Psicologia deveria fornecer os princí-
pios superiores, indispensáveis para o estudo, a ordenação e a
sistematização científica dos faros estéticos.
Duas foram as tendências em q ue se dividiram, logo, esses
estetas cmpiricistas, que possuem em comum um dado impor-
tante: todos são concordes em afirm a r que a essência de um
fenômeno só se alcança pelo estudo de su a origem. E aq ui, como
fizemos antes cm relação à Estética psicológica, convém distin-
guir entre aquele que, dentro de uma Estética ampla, se preocu-
pa com os problemas da origem da Arre, por exemplo, e o esteta
geneticista que quer reduzi r toda a Estética à investigação da
382 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 383

origem histórica ou social da Arte. Os estudos feitos no primei- va. Destacou-se, entre eles, o método evolucionista, fundamen-
ro sentido são perfeitamente legítimos: o risco está na segunda tado nas teorias de Darwin. Hoje, porém, com o darwinismo
posição, nos radicalismos semelhantes ao de Taine, que exami- cada vez mais cambaleante, estão sendo abandonados aos pou-
naremos a seguir. cos os exageros de querer atingir a essência da Arte através do
estudo das origens da Arte, e o método historicista tende, cada
vez mais, a se tornar uma simples "indagação da origem da Arte
O Método Historicista em si mesma".

Quando Fechner empreendeu sua tentativa de superação da


Estética filosófica, surgiu-lhe de imediato um problema pela fren- A Estética Sociológica
te: foi o de tornar possível a sistematização dos fatos estéticos.
Fechner procurou isso através da Psicologia experimental. Mas, Mais radicais, porém, foram aqueles que, dentro do em-
como vínhamos dizendo, surgiram, logo, aqueles que discorda- pirismo pós-fechneriano, quiseram reduzir a Estética a um capítu-
vam disso e afirmaram que o estudo e a sistematização dos da- lo da Sociologia. Segundo eles, a coletividade é mais importante
dos do campo estético deveriam ser feitos de acordo com pontos do que o indivíduo, motivo pelo qual a Sociologia, e não a Psi-
de vista genéticos. Geiger sintetiza esse ponto de vista dizendo cologia é que deve fornecer os princípios que sistematizam os
que, depois de Fechner, estudos estéticos. A Estética sociológica - ou melhor, os so-
ciologistas radicais - preconizam uma espécie de determinismo
"alcançar um critério estético absoluto deixou também de ser o segundo o qual a Arte de uma sociedade pode ser até prevista
objetivo próprio da investigação. Foi ele substituído pela análi- em suas formas, desde que o estudioso possua informações sufi-
se e pela sistematização das experiências e dos juízos empíricos. cientes sobre as condições em que ela se forma.
Mas, com a simples enumeração deste material, inabarcável
É pena que esse radicalismo sociológico tenha se tornado
imediatamente, nada se teria ganho para o conhecimento. Quais
célebre graças ao grande crítico literário que foi Hipólito Taine.
são os princípios, que permitirão introduzir a ordem nessa
Quem lê o admirável ensaio que Taine dedicou a Balzac, por
multidão caótica de fatos? Quais as idéias diretrizes, capazes de
imprimir a eles a unidade da Ciência? Este foi o problema que exemplo, pode ter uma idéia de como o gosto daquele grande
se ofereceria a uma Estética empírica e ao qual se podia res- espírito superou os preconceitos sociológicos de seus princípios
ponder de suas maneiras: antes de tudo, as transformações da estéticos que, hoje, nós ficamos admirados d e ver defendidos
experiência estética podem se compreender como fato históri- por ele. Segundo Geiger, a Estética sociológica
co e sistematizar-se também de acordo com pontos de vista his-
tóricos, genéticos" ... (Ob. cit., p. 60.) "não reconhece problemas imanentes da Arte, nem nenhuma
realização artística que não esteja predeterminada. Em todas as
Esse método histórico tomou vários aspectos, de acordo com épocas, de acordo com Taine, nasce aproximadamente o mes-
as tendências particulares de cada investigador que o emprega- mo número de indivíduos bem dotados para a Arte. O fato de
384 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 385

que cheguem a desenvolver seus dotes e a forma pela qual o mais ou menos importante, isto é, mais ou menos elementar e
fazem dependem do ambiente, do estado geral do espírito e dos estável, este livro é mais ou menos belo, e ireis ver as camadas
costumes. Mas! por sua vez, esta temperatura espiritual de cada de geologia moral comunicar às obras literárias que as expri-
época é resultado da raça, do clima e dos produtos culturais mem o grau próprio de potência e duração". (Do Ideal na Arte,
anteriores". (Ob. cit., p. 68.) Companhia Brasil Editora, Rio, 1939, sem indicação do nome
do tradutor, p. 32-68.)
É a famosa teoria da raça, do meio e do momento, os três
fatores que, segundo Taine, determinam o tipo de escultura, Essas idéias e mais aquela, muito comum, de que a Arte do
romance ou pintura que um artista é capaz de criar. A Estética Feio é, por natureza, inferior à Arte do Belo, levam Taine a di-
deve ser, portanto, empírica, descritiva e sociológica, devendo zer que as obras de arte que representam pessoas saudáveis e belas
proceder, aquele que se dedica a seus estudos, como o botânico são necessariamente superiores àquelas que representam homens
ou o zoologista que analisam as plantas ou a escala dos seres feios e doentes. Afirma ele:
animais.
"Consideremos agora o homem físico com as artes que o mani-
festam e procuremos quais são para ele os caracteres benéficos.
O primeiro de todos, sem dúvida, é a saúde perfeita, e mesmo
A Normalídade como Valor Estético Fundamental
a saúde florida. Um corpo depauperado, emagrecido, lângui-
do, extenuado, é mais fraco ... Desde a época de Cômodo e
Entretanto, como acaba sempre por acontecer, os estetas
Diocleciano, vedes alterar-se profundamente a Escultura: os
sociológicos ficam afinal preocupados com o problema do va- bustos imperiais ou consulares perdem a severidade e a nobre-
lor estético, isto é, de como organizar numa escala, ou numa za. O azedume, o atordoamento e a fadiga, o aspecto balofo
hierarquia, os princípios e os dados estéticos. Taine, apesar de das faces e o alongamento do pescoço, os tiques do indivíduo e
seus dogmatismos empiristas, termina querendo que a Estética os desgostos do ofício substituem a saúde harmoniosa e a ener-
julgue os diferentes estilos e escolas de arte, classificando-os gia ativa (da arte clássica e pagã dos gregos, atraídos, graças à
numa ordem que, para ele, d everia corresponder à ordem dos raça, ao meio e ao momento, pelos corpos jovens e saudáveis).
Pouco a pouco, chegais aos mosaicos e pinturas da arte bizantina,
valores físicos. Afirma ele, textualmente:
aos Cristos e Panagias emaciados, encolhidos, rígidos ... verda-
deiros esqueletos, cujos olhos encovados, grandes córneas bran-
"Consoante esta ordem de valores físicos podemos classificar
cas, lábios adelgaçados, rosto afilado, fronte estreita e mãos
as obras de arte que representam o homem físico, e mostrar que,
débeis e inertes dão idéia de um asceta tísico e idiota". (Taine,
em condições de igualdade quanto ao mais, as obras terão maior
ob. cit., p. 65-69.)
ou menor beleza conforme exprimam de modo mais ou menos
completo os caracteres cuja presença significa benefício para o
Quer dizer: levado por seus preconceitos e por algumas idéias
corpo ... A escala dos valores morais corresponde, grau por grau,
muito em voga no século X IX, Taine pretende estabelecer uma
a escala dos valores literários. Em condições de igualdade quanto
escala estética "científica" d e valores, porém o mais que conse-
ao mais, conforme o caráter posto em relevo por um livro seja
386 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 387

gue é tentar uma justificativa para seus gostos pessoais em Arte. mais bem entendida originaram, outrora, tipo mais nobre, de mais
É legítimo que Taine prefira a Arte grega à bizantina: mas não é orgulhosa calma, serenidade mais augusta, movimento mais com-
legítimo que ele queira considerar esta última objetivamente binado e livre, de perfeição mais fácil e narural; serviu de mode-
inferior à primeira, e muito menos fornecer, para esse juízo de lo aos artistas da Renascença, e a arte que admiramos na Itália
não passa de um renovo menos direito e menos alto do loureiro
valor, um fundamento físico, baseado em idéias de maior ou
jônio transplantado noutro solo". (Ob. cir., p. 75-77.)
menor saúde dos modelos. Taine revela, ao mesmo tempo, uma
profunda incompreensão da Arte bizantina e medieval e um cri-
Daí d izer De Bruyne que, para Taine,
tério de julgamento absolutamente arbitrário, quando afirma :

"à escala dos valores físicos, corresponde, degrau por degrau,


''A mesma doença perdura através de toda a arte da Idade Mé-
uma escala de valores plásticos. Como a planta é superior ao
dia; parece, se se olharem os vitrais, as estátuas das catedrais,
mineral, na ordem do universo, e o animal é superior à planta,
as pinturas primitivas, que a raça humana tenha degenerado e
assim, na ordem plástica, Atenas rem mais valor do que Floren-
que se lhe empobrecera o sangue: santos descarnados, mártires
ça, Florença mais do que Veneza e Veneza mais do que Paris".
desconjuntados, virgens de peito chato, pés compridos demais,
(Ob. já cit., p. 72.)
mãos nodosas, solitários, dessecados e como vazios de substân-
cia ... procissões de personagens amortecidos, gélidos, tristes, nos
Seguindo o exemplo de Taine, os estetas sociológicos que
quais se imprimiram rodas as deformações da miséria e todas as
violências da opressão". (Ob. cit., p. 69.) vieram depois dele tentaram, todos, estabelecer um princípio
superior capaz de ordenar uma escala de valores. A grande maio-
Foi preciso que o século XX - através de pintores como ria deles, influenciada ao mesmo tempo pela Sociologia e pelas
Gauguin, Modigliani, Picasso, Chagall ou Rouault - fizesse uma experiências de Fechner, procura firmar esse princípio no gosto

revolução no gosto, para que os estetas se apercebessem de que da maioria. É aí que chegamos ao radicalismo do termo médio,
a Pintura "primitiva" ou a medieval não eram inferiores, eram se podemos dizer isso, o qual chega à sua maior expressão no

apenas diferentes da grega ou da renascentista. Para Taine, po- momento em que Durkheim afirma que a Beleza é o normal, e o
rém, a questão era clara e os julgamentos definitivos: normal é expresso pelo número médio, isto é, pelo gosto médio
da maioria.
"Olhai o São Vicente de Fra Bartholomeu, a Madona do Sacco,
obra de Andrea dei Sarro, a Escola de Arenas de Rafael, o túmulo
Variação da Beleza pela Aprovação da Maioria
dos Médicis e a abóbada da Capela Sixrina de Miguelângelo: eis
os corpos que deveríamos ter; perto desta raça de homens, as
outras são fracas, ou lânguidas, ou grosseiras, ou mal equilibra- No século XX, essas interpretações radicalmente sociológi-
das... E contudo Florença é apenas a segunda pátria do Belo; cas da Estética encontraram acolhida, de maneira de certo modo
Atenas é a primeira ... Civilização mais espontânea e simples, raça estranha, no espírito de Charles Lalo. Lalo, tão compreensivo e
mais equilibrada e fina, religião mais apropriada, culrura física aberto em certos momentos, mostra-se, talvez, ainda mais radi-
388 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 389

cal do que Taine e Durkheim, ao afirmar que a Beleza só existe Assim, para Lalo, uma obra de arte, logo ao ser criada, tem
depois de receber a aprovação social. Ao ser criada, a obra pode apenas uma expectativa de Beleza, que somente se torna Beleza
ser feia, se como tal é considerada pela maioria. Se, passado o ve rdadeira quando, depois da aprovação coletiva, deixa de ser
tempo, a maioria muda de opinião e aprova a obra de arte antes ideal para ser normal. A respeito desse ideal ou normal futuro,
condenada, ela se torna bela. comenta De Bruyne:
Trata-se, como se vê, de uma transposição, para o plano
sociológico, das idéias kantianas e da Estética psicológica que "Trata-se, bem entendido, de uma simples hipótese : nós admi-
surgiu em conseqüência delas. Segundo os psicologistas, a Bele- timos que a posteridade julgará assim, e não de outro modo,
za não está no objeto, é criada pelo espírito do sujeito que olha uma obra de arte. Se ela o faz, nossa hipótese se verificou e se
para ele; segundo Charles Lalo, a Beleza não está no objeto: só transforma em lei: a obra de arte requer, de fato, um valor so-
aparece quando a sociedade o aprova. Lalo chega, assim, ao cial e torna-se bela". (Ob. cit., p. 72-73 .)
absurdo de afirmar que um mesmo quadro pode ser feio, em
determinado momento, para, depois, se tornar belo, por ter Tudo o que estamos dizendo, porém, não importa nem no
recebido a aprovação coletiva que antes lhe faltava. Mais preci- desconhecimento do valor pessoal de Taine ou de Charles Lalo,
samente: no momento em que o artista realiza uma obra, se ela nem em preconceitos contra o método sociológico, que, afasta-
contraria o gosto da maioria, o mais a que seu autor pode aspi- dos os exageros e os radicalismos apontados, trouxe, e ainda
rar é ao ideal, ao normal futuro, isto é, àquilo que, no futuro, poderá trazer, valiosas contribuições à investigação estética.
poderá vir a ser considerado normal e portanto belo, de acordo
com a idéia antes exposta por Durkheim. O ideal se torna nor-
mal pelo consentimento coletivo. É assim que afirma Lalo:

"As obras de Baudelaire ou de Nietzsche, de J. S. Bach ou de


Wagner, foram muito tempo desconsideradas. Quando vivas,
não eram normais senão para um público restrito de especialis-
tas. Julgamos que elas tinham para o público de seu tempo uma
formidável riqueza de futuro, isto é, o valor de um ideal. A obra
ideal é aquela que vai além do público, ou aquela na qual seu
autor, em progresso, se sente exceder-se a si próprio e criar
futuro em lugar de se repetir. A obra clássica é aquela que se
adapta normalmente a todos os públicos, ou, pelo menos, ao
maior número, enquanto que as outras experimentam as maio-
res flutuações de acordo com a moda. Os pastiches acadêmicos
ou pseudoclássicos acreditam-se eternos somente porque são
antiquados. Eles teriam sido normais em certas gerações ante-
riores". (Noções de Estética, ob. já cit., p. 24.)
CAPÍTULO 39
A ESTÉTICA FENOMENOLÓG ICA

A Indução e a Intuição

A Estética chamada lógica pretende ser um meio-termo, uma


conciliação entre a Estética filosófica e a empirista. Por um lado,
pretende fazer um estudo o mais rigoroso possível dos fatos es-
téticos, como preconiza a Estética empirista; por outro lado,
como a Estética filosófica, pretende atingir a essência dos dados
que formam o objeto de seu estudo.
Sem dúvida a corrente mais interessante dentro dessa Esté-
tica lógica é a Estética fenomenológica. Os fenomenologistas
afirmam que seu método

"não busca seu caminho afastando-se por completo dos outros


métodos. Ames ocupa, a rigor, uma posição intermediária.
Aproxima-se da Estética empírica, à qual ele se une por fazer
finca-pé na observação mais minuciosa possível, no desejo de
descrever, sem construção alguma, a realidade efetiva. Mas tal
realidade efetiva não é, para este método, o conteúdo da ob-
servação isolada e ocasional, mas sim a essência que, no caso
isolado, se encontra e se realiza. E, com isto, a Estética fe-
nomenológica se aproxima também, por sua vez, da Estética
filosófica". (Moritz Geiger, ob. cit., p. 156.)
392 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTI CA 393

A Estética lógica pretende portanto unir a observação dos O Método Intuitivo dos Fenomenológicos
fatos à procura e ao encontro das essências. Ao fazer isso, pro-
cede por dois métodos - o indutivo e o intuitivo, este últ imo Assim, discordando do método indutivo, os estetas fenome-
defendido pelos estetas fenomenológicos. nológicos pretendem atingir a essência pelo exame de uma só
Tanto os adeptos da indução quanto os da intuição preten- obra particular. Para ficarmos no caso que estamos analisando:
dem, como na Estética filosófica, encontrar as essências. A dife- os fenomenologistas dizem que para encontrar a essência do
rença está apenas no processo de reflexão empregado. O s estetas Trágico não se deve examinar o maior número de tragédias pos-
lógicos adeptos da indução acham, por exemplo - como os sível; deve-se, antes, apreender numa só obra, intuitivamente, a
estetas filosóficos ou os fenomenológicos - que, para a Estéti- essência geral. Para Moritz Geiger,
ca, não interessam as tragédias, as obras de arte particulares; o
que interessa é determinar a essência do Trágico, isto é, aquilo "deve ser possível achar a essência do Trágico já na obra indi vi-
que está por trás e constitui o fundamento de toda e qualquer dual, e não numa série de peças ... E esta é outra particularida-
tragédia. Para isso, os adeptos do método indutivo procuram de do método fenomenológico: não extrai suas normas, ou leis,
estudar o m aior número possível de tragédias particulares : se- partindo de um princípio supremo (como faz a Estética filosó-
parando aquilo que todas elas têm em comum, separam a noção fica); nem por acumulação de casos individuais (como preconi-
abstrata do Trágico, isto é, a essência procurada. Geiger, que não zam os adeptos da indução); mas sim apreendendo no caso
aceita o método da indução, assim resume esse método: individual a essência geral, a lei geral". (Ob. cit., p. 147-148.)

"A fim de estabelecer a essência geral do Trágico, vai-se procu- No mesmo sentido, encontramos palavras bem claras de
rando o trágico em Sófocles, em Racine, em Shakespeare, em Edgard De Bruyne. Diz ele que a Estética fenomenológica
Schiller etc., e aquilo que se descubra em todas as partes e em
todos, será justamente a essência do Trágico". (Ob. cit., p. 147.) "pretende captar, por uma espécie de intuição, a estrutura pro-
funda ou a essência de não importa que caso particular. Refletin-
Indagam porém os fenomenologistas aos adeptos do méto- do sobre uma obra de arte qualquer, acredita poder chegar a dizer
do indutivo: "Mas como é que esses pensadores sabem que de- o que é a Arte em sua natureza íntima". (Ob. já cit., p. 64.)
vem procurar a essência do Trágico nesses auto res e não noutros?
Por que sabem que não devem procurá-la em Moliêre o u em
Goldoni"? E respondem: "É que, por inttúção, eles estão fami- Crítica ao Método Fenomenológico

liarizados com a essência do Trágico ao se deparar com ela numa


só e única tragédia". Ou, para usar as palavras textuais de Geiger: De modo que a Estética fenomenológica pretende empre-
gar apenas a intuição, aplicada a uma obra particular para en-
"Para poder assinalar o Trágico num só poeta é necessário, im- contrar, assim, as essências - o Trágico, o Cômico, o Dramático,
plicitamente, estar já fami liarizado com a essência do Trágico". o Sublime, o Grandioso, o Gracioso, o Belo etc. É claro que, ao
(Ob. e p. dts.) lado disso, essa intuição deve ter a seu serviço um dom inato,
394 ARIANO SUASSUNA IN ICIAÇÃO À ESTÉTICA 395

por um lado, e o estudo mais rigoroso e sistemático a apoiá-la, tos reais, mas sim somente na medida em que se dão como fe-
por outro. Mas, de qualquer maneira, assim treinada e resguar- nômenos". (Geiger, ob. cit., p. 142.) Nisso, ela se afasta das vias
dada, a intuição é capaz, segundo os fenomenologistas, de en- objetivistas e se aproxima, de certa maneira, da teoria da "apa-
contrar a essência do Dramático não estudando uma série de rência estética" de Schiller. Entretanto, os fenomenologistas
dramas, mas sim apreendendo-a, pela intuição, no exame de um insistem em que, apesar de certa semelhança, existe também entre
drama só. as duas uma distinção fundamental. Para a Estética fenomeno-
Ora, Geiger critica o método indutivo porque, segundo ele, lógica, "é indiferente que a intérprete de Margarida seja velha
quando o pensador escolhe uma série de tragédias para, nelas, ou feia ... O que importa é a aparência, não a realidade" - e aí
procurar o Trágico, tal atitude revela já uma familiaridade ante- ela, realmente, se aproxima bastante da teoria da "aparência
rior com o Trágico - familiaridade que se criou provavelmente estética"; mas, para esta, segundo Geiger,
quando o esteta entrou em contacto com a primeira tragédia que
conheceu. Se não fosse assim, pergunta Geiger, como se explica "em seu aspecto fenomênico, o objeto estético não é aparência
que o teórico vá procurar o Trágico precisamente em Hamlet ilusória. No caso da ilusão, atribui-se ao fenômeno uma reali-
ou Macbeth? Aí, porém, é que achamos que a mesma indagação dade que ele não possui. Pelo contrário, no caso do estético, a
se pode fazer aos adeptos da Estética fenomenológica: "Mesmo paisagem num quadro não se concebe como realidade, como
que se possa encontrar a essência do Trágico, intuitivamente, coisa real que depois aparece como irreal, mas sim como paisa-
numa tragédia só, como reconhecer o trágico nessa primeira e gem representada, como paisagem que se nos dá como repre-
única tragédia sem já estar familiarizado com ele? Como é que o sentada". (Ob. cit., p. 143.)
pensador sabe que o Trágico está em tal peça e não noutra, cô-
mica"? A Estética fenomenológica afasta-se, portanto, da Estética psi-
A resposta só pode ser uma: é que, talvez mesmo sem que- cológica porque esta considera a obra de arte como um amontoa-
rer, usando a indução ou a intuição, a mente humana, nem que do de sensações, enquanto que, para aquela, o dado importante
seja de maneira rudimentar, já formulou um princípio geral, não é a sensação, é o objeto: apenas, para os fenomenologistas, esse
superior, captado na vida pela reflexão filosófica, o qual lhe diz objeto é e deve ser encarado como aparência, como fenômeno, e
que o Trágico faz parte do campo do Doloroso e tem tais e não não como realidade. Afasta-se também a Estética fenomenológica
quais características. da Estética puramente empirista porque, diferentemente dela, pre-
tende atingir as essências. Afasta-se, ainda, do método indutivo
porque o seu é intuitivo. Mas, apesar de duvidar da possibilidade
Fenomenologia e Aparência Estética de se atingir a essência dos objetos estéticos reais, aceita a necessi-
dade da Estética filosófica. Segundo os fenomenologistas, seu mé-
A Estética fenomenológica, além de empregar o método in- todo abarca somente a Estética "enquanto ciência autônoma".
tuitivo, parte do princípio de que "o valor ou desvalor estético, A esta cabe demonstrar, pela análise intuitiva, que se repete sempre
qualquer que seja sua modalidade, não pode se atribuir aos obje- um pequeno número de princípios estéticos. Não vai além disso e,
396 ARIANO SUASSUNA

a partir daí, o campo pertence à reflexão filosófica. É, portanto,


um acordo com a Estética filosófica que eles propõem, quando
afirmam, pela voz de Geiger:

"Isto é a última coisa que a Estética pode alcançar como ciência


particular e autônoma: abarcar todo o terreno estético com ajuda
de um pequeno número de princípios axiológicos. A Estética
como ciência particular não pode ir mais longe : deixa a cargo
da Estética como disciplina filosófica o problema do significa-
do e origem desses princípios". (Ob. cit., p. 157-158.)

Considerações Finais

Segundo já explicamos em outra ocasião, a Estética Filosófi-


ca não tem dificuldade de reconhecer a importância dos métodos
particulares - do psicológico, do sociológico, do psicanalítico,
do fenomenológico etc. Não se conforma, porém, em ser, ape-
nas, um a mais entre esses vários métodos: pretende ser o méto-
do superior, aquele que disciplina e orienta toda a investigação
estética, tornando possível o estabelecimento dos princípios su-
periores e a ordenação dos valores no campo estético.
Além disso, os adeptos da Estética Filosófica não aceitam a
afirmação de Geiger segundo a qual seu método é dedutivo: a ver-
dadeira Estética filosófica emprega, ao mesmo tempo, o método
intuitivo, o indutivo e o dedutivo, considerando que, dada a com-
plexidade dos estudos estéticos, quanto mais sutil e penetrante
for o caminho empregado para o cerco da verdade, mais se torna
possível pressentir a essência da Beleza e da Arte - esse objetivo
supremo, duro, belo, enigmático e fascinante da Estética.

Recife, 16.VI.56
16.VI.73

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