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APÊNDICE 3:

GOLDMANN E ADORNO:
GOLDMANN E ADORNO: DESCREVER, ENTENDER E EXPLICAR1

Adorno: Senhoras e senhores, em primeiro lugar, gostaria de dizer que


não estou apresentando uma exposição preparada, mas vim apenas para
aprender sobre o assunto das mesas-redondas. Tudo o que vou dizer trará a
marca do improviso.
Uma observação preliminar. Um pensador dialético rigoroso não deveria,
de fato, falar de método, pela simples razão – que hoje quase desapareceu
inteiramente de vista – de que o método deve ser uma função do objeto, não o
inverso. Essa noção, que Hegel elaborou de maneira muito convincente, foi
simplesmente reprimida pelo espírito positivista, de modo que a
supervalorização do método é verdadeiramente um sintoma da consciência do
nosso tempo. Sociologicamente falando, está intimamente relacionado com a
tendência geral de substituir fins por meios. Em última instância, essa
tendência está relacionada à natureza da mercadoria: ao fato de tudo ser visto
como funcional, como um ser-para-outro e não mais como algo que existe em
si.
No entanto, é verdade (e também interessante pelas dificuldades em que
até mesmo o pensamento dialético se envolve) que os grandes textos da
dialética moderna, antes de tudo a Fenomenologia de Hegel, mas também O
capital de Marx, não podem prescindir de reflexões metodológicas. Permanece
verdade que o método desempenhava então uma função completamente
diferente: uma função única de permitir que o pensador veja claramente o que
ele é e o que ele está fazendo. Idealmente, pelo menos, essa autorreflexão
deveria extinguir-se no objeto; ao passo que o ideal do cientificismo moderno é
o método menos problemático, mais fechado em si mesmo, que se move
logicamente como se fosse sobre rodas. É um método para o qual o objeto é
secundário em todos os sentidos.
Mas é necessário insistir, no entanto, que a reflexão não pode distorcer
o método. Em meu próprio trabalho, tenho me sentido repetidamente

1 Tradução livre para uso exclusivo em sala de aula.


1
constrangido por considerações metodológicas, nem que seja apenas para
mostrar que certas pressuposições básicas dos métodos mais antigos, como a
sucessão de um princípio pelo que é derivado dele e todas as concepções
derivadas da noção ideal de uma prima philosophia, não são mais adequados ao
pensamento dialético. O que é necessário é uma espécie de metodologia para
traçar os limites do pensamento tradicional.
As ideias particulares que desejo expor sobre o método da sociologia da
literatura não constituem uma resposta sistemática aos diferentes problemas
que meu amigo Goldmann levantou. Desejo contribuir apenas com algumas
notas marginais e resistir a dizer coisas que possam ser consideradas mais ou
menos independentes.
Em primeiro lugar, algumas palavras sobre a descrição. Acredito que no
objeto literário certas categorias, como descrever e compreender, nunca podem
ser dissociadas, porque cada texto literário é ele mesmo um conjunto de
elementos que remetem ao espírito, qualquer que seja seu caráter: para poder
descrever isso, é preciso entendê-lo. A separação entre descrição e compreensão
tem, então, algo completamente arbitrário que não pode ser seriamente
sustentado. Mas gostaria de ir ainda mais longe e acrescentar algo provocativo:
creio que não só é impossível descrever sem compreender, mas que, ao
contrário da opinião dominante, é impossível compreender sem o momento da
crítica. Se a crítica é um momento interno à própria literatura, isso também vale
para a metodologia de reflexão sobre a literatura: se tomarmos o conceito em
seu sentido mais rigoroso, compreender não significa senão apreender a coerência
na estrutura de uma obra e, finalmente, seu conteúdo de verdade. Mas essa
coerência só é possível como uma distinção entre coerência e incoerência; e
apreender o conteúdo de verdade sempre significa a capacidade de distinguir o
conteúdo de verdade do falso. Portanto, eu diria categoricamente que a crítica
é sempre inerente àquelas categorias que, como descrever e compreender,
parecem ser fundamentais.
Quanto ao conceito de compreensão, parece-me que nos materiais
literários a compreensão se faz por níveis (sei que isso remete a uma antiga
terminologia teológica). Assim, se alguém deseja entender uma peça, por
exemplo, é preciso antes de tudo entender qual é a situação. Se se trata de O
pato selvagem, de Ibsen, então primeiro temos que entender os elementos da
ação, a motivação que impulsiona os vários personagens em seu
comportamento e todas aquelas coisas que estão situadas mais ou menos em
um nível factual, mas que, na peça dada, nem sempre emergem imediatamente
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como factuais, são expressos apenas semanticamente e, portanto, devem ser
deduzidos.
O segundo nível, então, seria o do significado. No caso de um drama
psicológico como O pato selvagem, é preciso entender, por exemplo, qual é a
intenção do poeta ao fazer seus personagens dizerem certas coisas. É preciso
entender que, quando Hjalmar Ekdal prometeu à filha (que não é filha dele)
levar para casa o menu miserável do jantar de gala de Werle, o esquecimento
de fazê-lo é uma omissão que revela seu caráter autista, basicamente incapaz
de amar. Existem inúmeros desses elementos neste trabalho tão complexo.
Se você me permitir continuar com esta peça, o terceiro nível de
compreensão seria o de apreender sua ideia. Isso novamente compreende vários
momentos. Por um lado, há a questão de desenvolver concretamente o conceito
de “mentira da vida” [Lebenslüge] que é a única que permite que as pessoas
existam. Por outro lado, indo mais longe, chegamos à ideia dialética da peça:
que o homem que tenta eliminar a mentira e basear a vida na veracidade e na
consciência da realidade, só consegue causar a maior de todas as infelicidades;
e, por fim, que a única pessoa humana em toda a peça, a única que não se
envolveu no nó da culpabilidade dos demais personagens, é vitimada
justamente por seu esforço em eliminar a mentira.
A crítica literária tradicional costuma se contentar com tais momentos;
mas tudo isso ainda é basicamente provisório. Um dos maiores erros da crítica
literária acadêmica atual, além de seus muitos outros erros, parece ser que, nas
obras que analisa, recupera apenas o que o autor colocou nelas. Trata-se
basicamente de uma reificação de fatos quase tautológica. Grandes obras de arte
são tratadas essencialmente como filmes comerciais – como nada mais do que
a quintessência de todas as motivações e, para usar uma bela expressão, de
todas as “mensagens” que os senhores malignos que fabricam esse lixo em seus
escritórios têm investido neles.
Me referindo a Thomas Mann, que é um objeto particularmente favorito
desse tipo de crítica literária, certa vez caracterizei esse negócio dizendo que,
no caso dele, o ponto essencial é entender “o que não se encontra no Guide Bleu”
– isto é, o que não foi uma ideia, o que não foi conscientemente investido em
seu trabalho. E é sobre esse nível decisivo que desejo falar agora. Aqui está em
questão o que eu chamaria de conteúdo de verdade de uma obra de arte. Se eu
quisesse ilustrar este ponto simplesmente por meio de O pato selvagem, teríamos
enormes dificuldades. Mas acredito que o que de fato decide a qualidade
estética de uma obra é se ela tem ou não conteúdo de verdade. Acredito também
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que é no conteúdo de verdade, e somente nele, que os conteúdos das obras de
arte se comunicam com a filosofia, mas de maneira que ela não se encontre
suspensa como uma abstração para além da obra. Pelo contrário, existe apenas
indiretamente; ou seja, nunca existe sem as configurações concretas dos
momentos pragmáticos de que já falei.
Digamos, por exemplo (só para lhe dar uma ideia do que quero dizer, e
sem pretender dar uma determinação adequada do conteúdo de verdade da
soberba peça de Ibsen) que o conteúdo de verdade desta obra é a representação
do mundo burguês como um todo que é sempre mítico, por causa do nó de
culpa constituído pelas relações da sociedade burguesa: que ele é sempre, no
fundo, uma questão de destino cego reinando no sombrio mundo primitivo, do
qual a figura da criança na peça emerge de uma maneira efêmera e débil apenas
para se tornar, novamente em um sentido mítico, a vítima desse nó de
culpabilidade. Com isso, talvez tenha designado o nível que pode ser chamado
de conteúdo de verdade. Mas mesmo que esteja vinculado a conceitos
filosóficos como destino, mito, culpabilidade e reconciliação, isso não significa
que esses conceitos sejam expressos de forma abstrata: eles são expressos
apenas pela configuração de elementos nesta peça particular. Falo assim apenas
para dar uma ideia geral do que entendo por conteúdo de verdade.
Quanto ao conceito de explicação, eu diria que é simplesmente a
quintessência ou o desenvolvimento daqueles momentos sobre os quais tentei
dar uma ideia esboçada. Tal conceito de explicação incluiria o momento
anteriormente chamado de comentário, bem como o momento da crítica. A
explicação de uma obra tomaria, com efeito, a forma de comentário, mas seria
impelida à sua própria consciência de si mesma, de modo que todos os níveis
que eu de alguma forma estabeleci e distingui arbitrariamente entrariam neste
ponto.
Gostaria ainda de falar brevemente sobre a relação desse programa com
a polêmica sobre a “análise imanente” [werkimmonente Betrachtung]. A análise
imanente marca, sem dúvida, um enorme progresso sobre aquelas análises
filológicas que se acreditavas dizer algo essencial sobre as obras e seus conteúdos
de verdade com base em sua gênese. E acredito que você notou que todas as
determinações que lhe dei foram orientadas primeiro pelo conceito de uma
análise imanente.
Mas é preciso levantar alguns pontos específicos aqui. Em primeiro lugar,
se levarmos a sério os conceitos de descrição e compreensão, não podemos
partir do pressuposto de que o leitor compreensivo seria uma espécie de tabula
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rasa. Ele mesmo traz para as obras um número infinito de pressupostos, uma
massa infinita de consciência. Sua tarefa não consiste simplesmente em
esquecer tudo o que traz e tornar-se um idiota estúpido diante da obra, mas,
em vez disso, mobilizar de alguma forma todo o conhecimento transcendente
que traz para a obra e fazê-lo desaparecer na experiência da própria coisa
durante a experiência imanente. análise.
Deixe-me dar um exemplo impressionante do que quero dizer, por meio
de uma experiência pessoal. Alguns anos atrás, em Los Angeles, assisti a uma
apresentação de Johann Strauss'La chauve souris, que, na Europa, eu tanto amava
por sua música. Tal peça está relacionada – não apenas em termos de público,
mas também em termos de sua própria forma – a muitas convenções e
tradições. Quando alguém a vê repentinamente separada de seu contexto, em
Los Angeles, onde ninguém sabe ou mesmo suspeita do menor “contexto”, o
que é claro também é comunicado na própria peça, então esta obra, em toda a
sua falibilidade e debilidade, desaparece num palco empobrecido, um pouco
lamentável e frio. Penso em alguém que se depara com a peça em si e não se
sabe o que fazer com ela. Isso deve nos mostrar que a análise imanente tem um
limite inerente o qual deve necessariamente transgredir. Se eu não trouxer
todos esses pressupostos externos para La chauve souris, não posso entendê-lo
puramente em si mesmo; e Deus sabe que não é uma obra-prima difícil.
O paradoxo é que para compreender uma coisa puramente em si, de
maneira imanente, é preciso já ter visto e conhecido algo mais do que aquilo
que surge da própria coisa. Mas isso é ainda mais verdadeiro pelo que tentei
esboçar, talvez de maneira grosseira e insuficiente, como conteúdo de verdade.
O conteúdo de verdade é o que realmente transcende a obra. Em meu exemplo,
utilizei conceitos como mito, sociedade de troca, nó de culpabilidade, vítima –
categorias que, é claro, não aparecem nesta forma categórica na obra. Quero,
portanto, dizer que para apreender o conteúdo de verdade, isto é, para atingir o
mais alto nível de compreensão, é preciso transgredir novamente a pura
imanência da obra de arte, assim como no início foi necessário trazer
conhecimento pré-imanente ao próprio trabalho imanente para dominá-lo.
Isso parece estar relacionado com a determinação da obra de arte, pois a
obra de arte tem um caráter duplo. É simultaneamente um “fato social” e
também – e é precisamente isso que o torna um fato social – algo mais em
relação à realidade, algo que é contra ela e de alguma forma autônomo. Esta
ambiguidade da arte, enquanto pertencente à sociedade e enquanto dela
diferente, leva a que o mais alto nível da arte, o seu conteúdo de verdade e o
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que finalmente lhe confere a qualidade de obra de arte, não pode ser uma
questão puramente estética. Pelo contrário, o próprio conteúdo de verdade – e
é por isso que eu disse que basicamente só a filosofia pode apreendê-lo – conduz
para além das obras precisamente porque caracteriza o momento da arte em
que a arte, em sua verdade, é mais do que arte. E creio que tornar visível essa
dialética, concretizá-la na experiência estética particular, seria algo como a base
de um programa para um método de crítica literária digno do homem; o
momento social, o momento da transcendência da arte além de seus próprios
limites, deveria cair como um fruto maduro nas mãos de tal crítica.

Goldmann: Acho que vou deixar de lado meu comentário preparado para
tomar posição em relação ao que Adorno acabou de dizer. Ontem, diante de
Agnes Heller, defendi constantemente as posições de Adorno contra a tese
lukacsiana do realismo da obra de arte e da necessidade de participar do sentido
da história. Mas hoje penso fazer o contrário e estabelecer precisamente aqueles
pontos em que sou lukacsiano em relação a Adorno.
O primeiro ponto é aquele em que estou perfeitamente de acordo com
ele: o método não é um fim em si mesmo. Apresentar o método como
autônomo é positivismo no pior sentido. Discutimos o método simplesmente
na medida em que está subordinado à coisa, à necessidade de compreender os
fatos; mas no debate com outras ideologias, é preciso colocar problemas
metodológicos em relação à nossa própria maneira de entender os fatos. Aqui
talvez esteja a primeira diferença central, um desacordo que não é puramente
acidental, entre as posições dos primeiros Lukács e as de Adorno. Concordo
com Adorno, em primeiro lugar, no fato de que a descrição verdadeira, a única
descrição cientificamente válida, é abrangente. A descrição é interessante,
valiosa e um instrumento viável de pesquisa, apenas na medida em que nos
permite entender. Mas quando separei externamente a descrição do
entendimento, é porque hoje temos toda a escola estruturalista que promove
um modo de acesso à obra que é de ordem descritiva, mas que renuncia ao
entendimento.

Adorno: Isso é muito durkheimiano.

Goldmann: É mais do que durkheimiano: é um método descritivo que nos


dá estruturas nas quais existem simples inversões, relações e combinações que
não precisam de significado. É em relação a isso que devemos nos posicionar; e
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quando falei de explicação – e creio que é aí que reside nossa discordância
imediata – tomei “explicação” justamente em relação ao que transcende o texto.
Adorno entendia explicação no sentido de “explication de texte”: explicar o texto,
comentá-lo, etc. Ele abordou o problema da transcendência mais tarde. Tudo
procede desse problema da transcendência e de nossa divergência sobre ele.
Porque quando Adorno nos diz “é preciso transcender o texto”, ele viu a
transcendência absoluta apenas no espírito crítico. Um transcende o texto com
base em seus elementos culturais; pode-se entendê-lo em relação à crítica. O
elemento mais importante para o valor da arte é a categoria de Wahrheitsgehalt
(conteúdo de verdade): um conhecimento que não é estético, que supera a arte
como arte e que se situa ao nível da estrutura geral da crítica. Há uma palavra
que Adorno não usou — “sistema” — e essa é toda a diferença entre nós. Na
mesma linha, Adorno disse, em relação ao estudo da genética, que o retorno à
imanência da obra foi um avanço inquestionável. Mas isso parece
profundamente questionável para mim pessoalmente, assim como para Lukács
e todos os marxistas tradicionais. É basicamente a velha discussão entre a
crítica de Marx e a Kritische Kritik de Bauer, retomada no plano contemporâneo.
É claro que Adorno coloca as questões de forma muito mais refinada e sutil,
mas, sistematicamente e filosoficamente, a questão está nesse nível.
É com base nisso que gostaria de abordar o problema do estatuto da obra
de arte. Adorno nos diz que é preciso superar a obra de arte para compreendê-
la, mas superá-la no sentido da filosofia – da cultura filosófica e do
conhecimento crítico. Minha posição é exatamente oposta: eu diria que existe
uma estreita relação e uma diferença entre a obra de arte e a filosofia. A obra
de arte não é filosófica: é um universo de cores, sons, palavras e personagens
concretos. Não há morte, há Phaedra morrendo; há uma mesa de uma certa cor,
mas quando o crítico fala dessa obra de arte deve recorrer a conceitos. Ora – e
gostaria de começar aqui a minha exposição – já que todo crítico, seja ele quem
for, fala em conceitos de uma obra que não é conceitual, e a traduz, só há uma
tradução válida: a sua tradução em um sistema filosófico. A obra de arte é um
universo total que dá valor, se posiciona, descreve e afirma a existência de certas
coisas; quando traduzido, seu corolário é um sistema filosófico. Não é uma
cultura filosófica que transcende a obra de arte; ao contrário, é uma filosofia no
mesmo plano que a obra – e para estar no mesmo plano, a filosofia deve assumir
uma forma sistemática.
Eu diria que talvez a maior diferença entre Theodor Adorno e eu seja que
sempre insisti na necessidade de levar em conta dois elementos paralelos,
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dogmatismo e crítica, e no perigo de negligenciar qualquer um deles. Expliquei
que, mesmo no nível do pensamento científico, é impossível contornar a criação
de objetos. Correlacionar certas sensações envolvidas na criação de um objeto
e, a partir disso, criar visões de mundo e sistemas – eis a ordem do dogmatismo,
introduzida pelo espírito para se orientar.
Em resposta, impelido ao limite extremo, o espírito crítico nega a própria
existência do objeto – desta cadeira, por exemplo. Assim, o dogmatismo
envolve o claro perigo de querer conservar a qualquer preço sistemas já não
adaptados à realidade, mas também o perigo de não manter um espírito crítico
de confrontação com cada sistema: não discutir o facto de que embora este
sistema esteja adaptado ao realidade, ainda é possível superá-la porque, como
“dogma”, como criação do espírito e como visão de mundo, ela tem apenas um
caráter provisório. Mas os dois elementos estão sempre lá. E embora Lukács (o
Lukács de hoje, não o primeiro Lukács) possa ser censurado por ter aceitado
um elemento, pode-se também levantar claramente o problema do excesso de
espírito crítico, a recusa do sistema, que pode ser bastante útil em um dado
momento. momento, mas não pode ser defendido no nível filosófico.
Obras de arte e filosofia estão no mesmo plano; e – talvez Adorno
concorde comigo aqui – eu censuraria todas as diferentes formas de crítica
acadêmica, todas as formas de positivismo, psicologismo e explicação biográfica
ou temática, por subestimar os aspectos críticos e opositivos das obras,
traduzindo-as e traduzindo-as. em termos de conceitos ao nível da psicologia
ou do conhecimento científico. Quando se diz que o que importa, o que
constitui a tradução conceitual, digamos, de um romance, é a psicologia das
personagens, a descrição social, ou o conjunto de temas que ela manifesta,
elimina-se justamente o que essa obra possui como visão de mundo— ou seja,
como um questionamento e uma problemática da vida humana: em suma,
empobrece-se a obra. O princípio fundamental de toda crítica acadêmica é
justamente subestimar a função social, humanística e espiritual de uma obra.
Esta função é crítica, mas também dogmática, no sentido de que o dogmatismo
é a afirmação em cada obra de um ideal humano, das possibilidades plenas de
unidade na vida humana. A relação desse tipo de crítica com a própria obra é
precisamente da ordem da ciência, que transmite muitas verdades parciais de
importância fundamental; por outro lado, uma visão de mundo não apenas
constitui uma afirmação de uma verdade, mas é uma reflexão precisa, um
questionamento do mundo inteiro.

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Com base nisso, estou muito mais de acordo com Adorno, embora com
uma pequena diferença, no entanto, em relação a tudo o que ele disse sobre o
entendimento.
Aceito de bom grado tudo o que ele disse sobre os diferentes níveis, se
for acrescentado que os primeiros estágios são parciais e, como tais, são
incompletos e falsos na medida em que tudo que é parcial é falso. Adorno disse
isso no final. Simplesmente entender os personagens, as intenções do autor, e
assim por diante, é empobrecer e compreender falsamente a obra: é somente na
compreensão global de seu significado como um todo que podemos integrar
todos os outros níveis. Mas então – já que é isso que importa para Adorno –
não se trata de julgar a obra apenas pelo seu conteúdo de verdade. Arte é arte,
literatura é literatura; não é nada mais. Corresponde à filosofia apenas no nível
de sua visão de mundo. Mesmo que eu considere uma filosofia totalmente
errônea – se rejeito completamente a filosofia de Bergson ou Schelling – isso
não a impede de ser uma das possibilidades básicas, e não a julgo no mesmo
nível da teoria de Darwin. Posso dizer que a física de Aristóteles é obsoleta,
mas simplesmente não posso dizer que seu sistema é obsoleto e não nos
interessa mais. Como o trabalho artístico (e também como a práxis), o trabalho
filosófico tem duas linguagens diferentes, mas estão no mesmo plano, e afirma
possibilidades humanas fundamentais nas quais há claramente conteúdos de
verdade; mas o conteúdo da verdade não é a única coisa. Eu diria que é
intelectualismo fazer desses conteúdos de verdade o elemento essencial. Além
disso, o problema importante é perguntar: conteúdo de verdade em relação a
quê? Ao trabalho em si. Porque certamente posso acreditar que Bourdieu ou
Viggiani ou eu temos a verdade, mas isso requer um controle. O problema do
espírito crítico é antes de tudo a crítica de minha própria posição; e esse
controle não significa nada se não for científico e empírico. Sou contra todo
positivismo que acredita que um fato é um fato e que o espírito humano não
está envolvido em sua definição; mas, para determinar o conteúdo de verdade
ou a afirmação de uma obra, não conheço outro critério senão o de tomar o
texto e encontrar uma estrutura, um modelo – e aqui chegamos ao problema
do modelo generativo – que nos permita representam noventa por cento do
texto. Se alguém consegue contabilizar dez linhas a mais, temos que perguntar
se seu modelo não é melhor. É impossível dizer “isso é essencial; isso não tem
importância”, porque somente quando a interpretação foi estabelecida de
maneira puramente quantitativa (sabendo que o quantitativo não basta: este é
o círculo dialético) posso dizer qual interpretação é a mais valiosa, a mais
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objetiva possível. no atual estágio da pesquisa. Só assim posso dizer que nesta
obra, independente da intenção do escritor, isso é essencial e aquilo é
secundário. E neste ponto, surge o problema da explicação.
A explicação não se dá no nível do que eu mesmo julgo ser um
importante elemento filosófico, mas em relação à estrutura social que eu
também deveria compreender em sua estruturação sistemática. Ou seja, eu
explico a obra – justamente, eu a transcendo – não por meio do conhecimento
filosófico, pela minha perspectiva, ou pelos elementos da obra, mas pela
estrutura na qual todos eles estão inseridos. Explico Racine pelo jansenismo,
entendendo o jansenismo como uma estrutura. A explicação é um modo muito
preciso, abrangente - e funcional - de colocar as coisas em um relacionamento.
Assim como entendo o comportamento de um gato ao caçar um rato, em função
de sua fome, também entendo uma obra literária ou artística (que estudei
empiricamente, no nível do texto) como uma totalidade em si mesma,
equivalente a e sobre ao mesmo nível da obra filosófica, ao colocar a obra em
relação funcional com um conjunto de fatos, uma estruturação global, que me
explica como ela nasceu. Entendo esse trabalho, então, em função das
aspirações humanas dentro de uma dada estrutura social; Entendo, também,
que essa função pode ser recorrente como possibilidade humana, e que como
tal (mesmo que não concorde com ela, mesmo que acredite que seu
Wahrheitsgehalt é hoje muito débil), ela pode um dia retornar em outra situação
— tudo isso porque, afinal, o número de visões de mundo é limitado e
corresponde a posições humanas básicas.
Nesse sentido (aqui concordo com Adorno), a única descrição válida é a
abrangente. Sem isso, chega-se a um esquema geral em que, ao apreender a
estrutura de todas as histórias ou de todos os romances, perco o que é específico
dos contos de Perrault ou de Anderson, ou dos romances de Cervantes ou de
Stehdahl – perco o que é no entanto, muito importante distinguir. É necessário,
então, que a descrição abarque o conjunto e seja abrangente. Mas, em segundo
lugar, minha resposta é precisa: em princípio e em abstrato, posso conceber a
compreensão de noventa por cento de um texto considerando-o
imanentemente, se tivermos um certo grau de conhecimento cultural; mas, na
realidade, não conheço nenhum exemplo disso. Na verdade, tais resultados, que
obtive em vários casos, vêm apenas por uma explicação genética, ou seja, pela
inserção da obra em uma sistematização mais global, uma estrutura
significativa mais vasta. Aqui expressarei simultaneamente meu respeito,
minha admiração e minha reserva em relação às análises de Adorno. Adorno
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tem um imenso conhecimento cultural, uma imensa capacidade intuitiva;
sempre que o leio sobre um determinado escritor, percebo que ele tem
percepções brilhantes às quais devemos recorrer. Quando estudo um autor, leio
os textos de Adorno como matéria-prima, porque ele vê significações parciais;
mas, embora eu não conheça toda a sua obra, acredito que ele nunca se prenda
a tomar um escritor obra por obra, passagem por passagem — a analisar uma
obra em sua sistematização, em termos do que há de inevitavelmente
sistemático nela. Quando ensinei em Berlim, todo um grupo de alunos de
Adorno me repreendeu por ser positivista. Não sou positivista, mas sou muito
positivo: a tese que quero estabelecer é que para se chegar a uma compreensão
positiva de noventa por cento de um texto em pesquisa, é preciso manter o
controle, passo a passo. Mesmo que eu esteja convencido de que esse controle
levará a confirmações simples, a inserção crítica deve ser em um nível em que
eu possa entender e explicar ao mesmo tempo. Este é o problema fundamental.
Acredito que todas as observações de Adorno – esse é o seu grande
mérito em relação à crítica tradicional – tendem a investigar o conteúdo
filosófico, a fazer uma tradução conceitual da obra. Mas ele situa esse conteúdo
em relação à sua filosofia, em relação ao espírito crítico de hoje, e não em
relação à afirmação dogmática, atrelada ao seu tempo, que a obra pode conter.
Claro que se pode julgar esta afirmação mais tarde, mas à partida, trata-se da
própria dimensão estética da obra, que se situa ao mesmo nível da filosofia ou
da política (é esta a ideia central que Heidegger tirou de Lukács, ao preço de
deformar isto). Não há subordinação nem do estético nem do filosófico em
relação ao outro; enquanto o intelectualismo, ou a posição crítica, é sempre
orientado para uma subordinação da arte à verdade.
Agora, muito brevemente, alguns pontos que parecem importantes
especificar em relação à discussão de ontem e desta manhã. Greimas me disse
que não entende – que gostaria de entender, mas não pode – o que poderia
significar o problema do sujeito coletivo no nível da ciência positiva. Eu
respondo com o exemplo mais simples possível: esta mesa é pesada e são
necessárias duas pessoas para levantá-la. Portanto, o sujeito que a levanta não
é a pessoa A ou a pessoa B, mas A e B. O fato de a mesa ter sido levantada só é
compreensível em relação a um sujeito coletivo. Diante de uma obra de arte
cuja estrutura global e significado eu desvencilho, minha pergunta será sempre
a mesma, ou do mesmo tipo: em relação a qual grupo humano a obra é
compreensível? Porque se eu coloco a questão do conhecimento em relação ao
indivíduo, se eu pergunto sobre a funcionalidade de uma peça de Racine em
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relação ao Racine individual, aparecem duas dificuldades básicas que anulam
esse tipo de pesquisa. Em primeiro lugar, a personalidade de Racine é muito
complexa para que se possa realmente estudá-la cientificamente e mostrar a
funcionalidade da obra. Em segundo lugar, se eu pudesse obter uma hipótese
de funcionalidade por esses meios, não teria nada a ver com o caráter literário
ou cultural da obra. Seria uma funcionalidade como a da pintura de um louco
em relação ao seu criador, ou a escrita de um medíocre em relação à sua própria
psicologia. O sujeito coletivo, por outro lado, é um problema empírico: qual é
o grupo social cuja ação global – que posso estudar como ação global, tendência
global e consciência virtual [bezogenes Bewusstsein] – me dá esse tipo de
estruturação mental como uma realidade funcional, cujo estudo é
absolutamente indispensável para a compreensão da estrutura interna da obra?
Alguém me disse que ontem não fui claro o suficiente sobre o problema
do que constitui o valor de uma obra de arte. Eu acredito nisso
é outro ponto em que discordo de Adorno. Ele nos diz que, em última
instância, o valor da obra é sua função crítica e seu Wahrheitsgehalt, seu conteúdo
de verdade. De minha parte, ainda mantenho a definição kantiana mantida e
historicizada por Lukács no sentido hegeliano e marxista, de uma tensão
superada entre uma riqueza extrema e uma unidade extrema, entre um
universo riquíssimo e uma estruturação rigorosa. Essa tensão não pode ser
superada por uma estruturação rigorosa, mas – eis o que acrescentaria agora –
apenas por uma visão de mundo, que é precisamente uma das possibilidades
básicas da humanidade (isso explica por que em certos momentos pode
reaparecer uma estruturação semelhante). Eu discordaria de Kant (e
concordaria com Hegel e Marx) ao dizer que a unidade não é puramente formal,
válida em relação a categorias permanentes e eternas do espírito humano, mas
que constitui uma visão de mundo que, no caso do grupos privilegiados que são
classes, ou no caso de quaisquer outros grupos criadores de cultura, é funcional
para a vida desses grupos humanos em dadas situações históricas. Hegel nos
diz que essa unidade é histórica, que as estruturações estéticas são históricas.
Hegel acabou subordinando essa unidade à filosofia e à verdade; Marx e Lukács
romperam com ele ali. No lugar dessa história do espírito autônomo, Marx, e
depois dele Lukács, colocaram a existência da história real dos humanos como
seres vivos e como grupos que desejam se manter, que desejam existir e que,
em uma situação dada, com categorias dadas, tentam elaborar uma atitude
funcional cuja tradução para grupos privilegiados é, repito, filosofia e arte. A
obra de arte tem, assim, uma função ao mesmo tempo análoga e muito diferente
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da função individual que Freud via no imaginário. Freud explicou que a função
do imaginário é compensar as frustrações da vida por meio da satisfação
imaginária ou simbólica. A obra de arte e o imaginário, então, têm uma função
precisamente análoga na medida em que a obra de arte permite a criação de um
mundo imaginário de forma e estrutura rigorosas em relação ao grupo, que é
composto por indivíduos obrigados a fazer todo tipo de de compromissos de
vida e introduzir todo tipo de aproximações e misturas em sua aspiração de
coerência na visão e na realidade. Mas enquanto na psicanálise se trata de o
indivíduo contornar a consciência social para obter a satisfação que a sociedade
lhe proibiu – trata-se de afirmar o indivíduo em relação ao grupo – na obra de
arte, ao contrário, essa compreensão imaginária ajuda a reforçar a consciência
do grupo porque se situa especificamente em relação a essas aspirações grupais,
porque reside não na posse de objetos, mas na coerência, na categoria da
totalidade. Assim, tem sua função social específica que, no caso das grandes
obras de arte, é pelo menos parcialmente, e às vezes até totalmente progressiva.
O progresso social, porém, pode significar duas coisas: a nova criação de uma
nova ordem, a aspiração a uma ordem adequada ao novo grupo ou, se o grupo
for conservador, a conservação da velha ordem; mas também a rejeição dos
grupos aos quais se opõe, uma rejeição da opressão e das frustrações, e também
das estruturas que correspondem a um passado e não correspondem mais à
atualidade imediata. Nesse sentido, nada é mais importante no pensamento
científico, na filosofia e na obra de arte do que esse equilíbrio necessário entre
a estruturação, o ordenamento que segundo o espírito crítico é, se quiserem,
dogmatismo (talvez a palavra dogmatismo seja não é a escolha certa; devo dizer
racionalidade), e a oposição que é a crítica.

Adorno: Se bem entendi, a primeira crítica que Goldmann me fez foi que
no último nível que mencionei em meu esboço, no nível referente ao conteúdo
de verdade da obra, eu introduziria de forma ilegítima, sub-reptícia, sedutora o
puro subjetividade da crítica.

Goldmann: Isso não era o mais importante. O primeiro ponto foi que você
introduziu o conteúdo de verdade indo além da arte.

Adorno: Sim.

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Goldmann: Você situou a transcendência no conhecimento, no excedente
do conhecimento e não fora deste conhecimento; assim, em última análise, a
arte torna-se conhecimento e não é colocada no mesmo nível da filosofia; como
a crítica, a filosofia torna-se, digamos assim, uma afirmação.

Adorno: Não, aí fui mal interpretado. O que eu queria dizer é que por
intermédio do conteúdo de verdade, arte e filosofia convergem.

Goldmann: Não entendi mal. Tudo o que eu disse foi o seguinte: você disse
que não se pode compreender sem ser crítico, e que a transcendência está
situada na consciência crítica, no elemento e não no sistema.

Adorno: Eu gostaria de responder especificamente a esse ponto. Essa


transcendência além da obra de arte está na própria obra. Poderia citar a frase
de Goethe no diário de Ottilie em Afinidades Eletivas, de que tudo que é
perfeito transcende seu gênero: é exatamente isso que quero dizer. Por sua
participação no conteúdo de verdade, a obra de arte é mais do que é, e o que o
conhecimento da arte deve fazer é explicar – de alguma forma dando esse
movimento à obra de arte – o que está cristalizado na própria obra. Não quero
dizer que se trate de uma questão de verdade conceitual, pois, por um lado, a
verdade tal como a encontramos na filosofia e nas ciências, enquanto conceito,
ignora inteiramente o fato de que, por um lado, está presente na obra de arte -
mas apenas, se você quiser, presente cegamente. E a própria ideia da verdade é
algo que provavelmente só pode ser apreendido de maneira fragmentária.

Goldmann: O que significa dizer que existe cegamente, que não é


conceitual, que não é consciente? A minha pergunta, então — para terminar a
discussão do que foi dito e ir direto à discussão — é esta: pode a obra de arte
ser grande mesmo que sua validade no plano da tradução conceitual, da verdade
conceitual, seja muito fraco?

Adorno: Não. Nesse ponto, eu diria categoricamente que não. Uma obra
de arte que, nesse sentido extremo, não tem conteúdo de verdade, não pode ser
concebida como uma verdadeira obra de arte.

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Goldmann: A definição de verdade ainda precisa ser conhecida, é claro.
Quem julga a verdade?

Adorno: A questão é que o movimento da verdade é objetivo. Mas


primeiro, a questão do sistema. Eu diria que a obra de arte é, em certo sentido,
um sistema, na medida em que é uma unidade auto-fechada de uma
injultiplicidade. Mas, ao mesmo tempo, as obras de arte são sempre também o
contrário de um sistema: na medida em que vivemos em uma sociedade
antagônica, em virtude de seus pressupostos pragmáticos, nenhuma obra de
arte pode atingir inteiramente essa unidade. E é precisamente neste ponto que
eu colocaria a questão do nível ou qualidade das obras de arte. Eu diria que a
categoria ou a qualidade das obras de arte é medida – se é que se pode empregar
este termo simples – de acordo com o grau em que os antagonismos são
formados dentro da obra de arte e em que sua unidade é alcançada através de
antagonismos. em vez de permanecer externo a eles.

Goldmann: Permita-me fazer uma proposta. Temos algumas dificuldades


de linguagem, mas como acredito que ainda temos tempo, discutirei esse ponto
em alemão com Adorno antes de começarmos novamente amanhã.

Adorno: Há alguns pontos aos quais gostaria de responder rapidamente,


apesar das dificuldades semânticas.

Goldmann: Então, outra pergunta. Hegel: isso é um sistema? É um


sistema que integra antagonismos no plano da filosofia.

Adorno: Isso os integra demais.

Goldmann: Talvez, mas mesmo assim é um grande sistema, que não


elimina os antagonismos. Se é preciso pegar um escritor concreto, então
vejamos Beckett, sobre quem Adorno tanto trabalhou. Acho que se algum dia
eu fizesse um estudo sobre Beckett (já trabalhei com escritores da mesma
época, Genet e Gombrowicz; o mesmo poderia ser feito com Beckett),
provavelmente acabaria mostrando que onde é ótimo, A obra de Beckett integra
antagonismos, dificuldades e fragmentos dentro de uma visão de mundo que é
global e que pode, apesar de tudo, ser reduzida a um sistema. Creio que não há
oposição entre as duas visões, e que diante do perigo que Adorno aponta - e é
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bastante real - do sistema superficial que simplifica e elimina os antagonismos,
existe o outro perigo da crítica que consiste em eliminar o sistema.

Adorno: Desejo acrescentar apenas uma coisa. Aquelas obras de arte que
atingem mais plenamente a unidade na multiplicidade não têm, de modo
algum, automaticamente o valor mais alto. Existem algumas obras de arte que,
justamente por seu caráter fragmentário – e considero o fragmento como uma
forma – se elevam acima dessa unidade sistemática e possuem qualidades que
superam a unidade. Mencionarei apenas os últimos quartetos de Beethoven;
Também poderia citar algumas das últimas obras de Goethe nas quais – e por
razões muito profundas – essa unidade é suspensa. Mais precisamente, acredito
que, de fato, essa suspensão da unidade na multiplicidade em obras de altíssimo
nível é de alguma forma o ponto ou lacuna através do qual seu conteúdo de
verdade aparece nelas.
Eu também gostaria de dizer uma palavra sobre os conceitos de
significado e incompreensibilidade. Você disse que na arte existem estruturas
que devem ser aceitas como tais e que não são propriamente compreensíveis.

Goldmann: Eu disse que é por isso que discordo dos estruturalistas.

Adorno: Então é o estruturalismo que faz essa afirmação.

Goldmann: O estruturalismo busca estruturas sem exigir que elas tenham


significado. Descrevem-se estruturas, mas o significado funcional desaparece.

Adorno: Eu diria que é justamente nesse ponto que se situa o problema


da significativa arte moderna avançada. Pois a arte moderna radical – e não
apenas a literatura – é aquela que, em oposição ao momento afirmativo da arte
tradicional, recusa o sentido: aquela que se privou de sentido e que se apresenta
como destituída de sentido. Mas em tais obras pode-se compreender a função
da negação do sentido: aqui, a negação do sentido é o próprio sentido. E é por
isso que, com plena consciência da questão, intitulei uma obra sobre Beckett
de “Ensaio sobre a compreensão do fim do jogo”. Compreender não significa
que se compreenda a função do incompreensível. Nesse ponto, de fato, vejo um
limite para a liquidação do sentido, e acredito que se é verdade que o
estruturalismo simplesmente renuncia a todo sentido, então ele recai a um nível
aquém da arte, a um nível pré-estético.
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Ainda outra palavra sobre a relação entre filosofia e arte. O que chamei
de conteúdo de verdade é encontrado na obra de arte apenas na medida em que
é mediado - apenas na medida em que surge através da estrutura da própria
obra, e não conceitualmente. Mas o que assim emerge converge de facto com a
filosofia e, por isso, com toda a realidade extra-estética, incluindo a sociedade
e a práxis política.
Uma última palavra sobre o problema que Lucien levantou sobre a
relação entre minhas análises particulares e trabalhos teóricos fundamentais.
Tudo o que posso dizer é que tentei articular essa relação em meus escritos
teóricos. Mas se e quão bem consegui isso certamente não cabe a mim decidir;
ali minhas pequenas análises devem se sustentar e se defender.

Goldmann: Para falar rapidamente, Adorno levantou três pontos. Sobre a


primeira, sobre estruturalismo e significado, estou de pleno acordo. Quanto ao
fragmento, admito que muitas vezes uma obra é muito valiosa quando é
fragmentária - analisei fragmentos duas vezes (Penseis de Pascal e Fragmentos
de Valery) -, mas em cada caso, trata-se de colocar esse caráter fragmentário na
totalidade da obra que é traduzida em um sistema. Não há oposição entre
sistema e fragmento; na tradução filosófica, um fragmento pode ser um
elemento de sistematização.
Sobre o último ponto, há um mal-entendido que devemos discutir juntos.
Não disse o que Adorno pensou que eu disse; a objeção não era de forma alguma
nesse sentido.

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