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AS LEIS DA DINÂMICA
Certamente, os sistemas fı́sicos mais interessantes são aqueles cujos estados que o
caracterizam se alteram com o passar do tempo. Em mecânica, alterações não triviais
dos estados são vistas como movimentos não uniformes e o estudo dessas evoluções
temporais, em associação com suas causas, compõe o escopo da dinâmica. Dentre as
abordagens possı́veis para os problemas de dinâmica, está a mecânica newtoniana1 , a
qual é baseada em três axiomas cuja simplicidade é a principal razão de seu extenso
uso. Neste capı́tulo construiremos uma base lógica para a dinâmica newtoniana e
discutiremos as origens, signicados e limitações destes princı́pios.
Naquela que é a primeira obra em fı́sica teórica e, certamente, uma das mais im-
portantes na história da Ciência2 , Newton enunciou as leis básicas da mecânica da
seguinte forma:
1 As outras abordagens formam a chamada mecânica analı́tica, a qual não será tratada neste curso.
2 I. Newton, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687).
1
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2 AS LEIS DA DINÂMICA
Há mais de uma interpretação e formalização das leis básicas da dinâmica. Adotare-
mos a visão devida a Ernst Mach3 , a qual possui conteúdo lógico e auto consistente.
Chamamos de partı́cula um corpo cujas dimensões são desprezı́veis e sua estru-
tura interna é ausente ou irrelevante, de modo que sua localização pode ser dada sim-
plesmente por um ponto no espaço. Em geral, a validade desta idealização depende
do contexto. Por exemplo, a Terra está longe de ser uma partı́cula no que diz res-
peito a fenômenos acontecendo no próprio planeta. Entretanto, sua estrutura interna
e dimensões são irrelevantes no que diz respeito ao sistema solar, podendo assim
ser considerada uma partı́cula. Outra idealização importante é o conceito partı́cula
isolada. Esse é o caso de uma partı́cula sucientemente distante de qualquer outra,
de modo que a existência das demais é incapaz de afetar a partı́cula de interesse.
Na mecânica newtoniana, o universo é um espaço euclideano tridimensional. O
vetor posição da partı́cula, r, vai de uma origem arbitrária até a posição da partı́cula,
podendo ser parametrizado pelo tempo t. Suas componentes são dadas pelas projeções
sobre três eixos linearmente independentes. Os sistemas de coordenadas mais co-
muns, os quais usaremos, são o cartesiano (x, y, z), o polar (r, φ, z) e o esférico
(r, φ, θ)4 . Desta forma, podemos denir um sistema de coordenadas quadridimensi-
onal que caracteriza o referencial da partı́cula e, sem ambiguidade, localiza a posição
e o tempo de qualquer evento associado à partı́cula. Podemos ainda denir o vetor
velocidade como a taxa de variação do vetor posição,
dr
v= ,
dt
e o vetor aceleração como a taxa de variação do vetor velocidade,
dv d2 r
a= = 2,
dt dt
ambos com respeito a um dado referencial ou à mesma origem de r.
Dados os conceitos preliminares recém estabelecidos, podemos enunciar o pri-
meiro princı́pio da dinâmica newtoniana:
Lei da Inércia: Existem referenciais, ditos inerciais, nos quais toda partı́cula iso-
lada possui vetor velocidade constante.
É importante ressaltar que esse princı́pio é tanto uma denição, se toda partı́cula
isolada possui aceleração nula em relação a um dado referencial, então ele é dito
inercial, quanto um fato empı́rico, pois arma que tais referenciais existem. Qual-
quer partı́cula isolada possui aceleração nula com respeito a um referencial inercial.
Devemos dar à lei da inércia o seu devido caráter fı́sico ou empı́rico. Não é óbvio
que devesse existir tal referencial onde todas as partı́culas isolada mantém seu estado
de movimento. Note ainda o grau de abstração necessário para seu enunciado, uma
vez que uma partı́cula isolada é uma idealização.
A grande beleza do enunciado de Mach para a lei da inércia reside na caracterização
dos referenciais inerciais sem a necessidade do conceito de espaço absoluto. Se há
um referencial onde toda e qualquer partı́cula isolada possui vetor velocidade cons-
tante, então ele é inercial. Todos os referenciais em translação uniforme, ou seja,
com vetor velocidade constante, em relação a este, também são inerciais, pois as
partı́culas isoladas continuam tendo vetores velocidade constantes nesse novo re-
4 Nas coordenadas esféricas, adotaremos φ como o ângulo azimutal (varia de 0 a 2π) e θ como ângulo
polar (varia de 0 a π)
4 AS LEIS DA DINÂMICA
5 G. Galilei, Discourses and Mathematical Demonstrations Relating to Two New Sciences (1638)
LEI DA INTERAÇÃO MÚTUA E A MASSA INERCIAL 5
opostos e cuja razão aij aji = Cij é uma constante positiva6 independente da
interação ou das posições e velocidades das partı́culas, podendo depender apenas
das partı́culas. Além disso, verica-se que as acelerações induzidas por interações
mútuas satisfazem a seguinte relação de consistência,
Lei da Interação Mútua: A interação mútua de todo par isolado de partı́culas induz
acelerações, em relação a um referencial inercial, opostas e cujas razões são dadas
pelas razões entre as massas inerciais das partı́culas correspondentes.
a0
m= m0
a
Por ”em um referencial inercial”, no enunciado acima, devemos entender que o mo-
mento linear é medido em relação a qualquer ponto inercial, ou seja, qualquer ponto
que possui velocidade constante em relação a um referencial inercial. Matematica-
mente a lei acima é expressa como
dp
F= , (1.2)
dt
sendo F a força de interação resultante sobre a partı́cula. No caso de uma partı́cula,
como a massa inercial é constante, temos que
F = ma
Como já sabemos o que são referenciais inerciais, massa inercial, bem como quanti-
dades cinemáticas como a velocidade, temos que a lei da aceleração nos fornece uma
denição de força de interação. Além disso, agora podemos entender o signicado
fı́sico da massa inercial. Como ela corresponde a uma constante de proporciona-
lidade entre a força de interação resultante e a aceleração, ela é uma medida da
resistência a alteração do estado de movimento da partı́cula. Dito de outra forma, ela
mede a inércia da partı́cula e daı́ o seu nome.
CONSERVAÇÃO DOS MOMENTOS LINEAR E ANGULAR 7
L = r × p,
τ = r × F,
temos que
dL
τ =, (1.3)
dt
onde o torque nesta equação é o resultante. A equação acima é versão correspon-
dente à dinâmica rotacional da segunda lei de Newton. Observe como o torque é o
correspondente rotacional da força, enquanto o momento angular é o correspondente
rotacional do momento linear. No contexto de partı́cula, os conceitos de torque e
momento angular tornam-se supéruos na maioria dos casos8 , porém eles serão in-
dispensáveis no tratamento de sistemas de partı́culas. É importante, ainda, ressaltar
que o conceito de posição e, portanto, todos os seus derivados, como velocidade,
momento linear, momento angular e torque, são relativos. Eles sempre dependem do
um ponto de referência.
dp
· n̂ = 0,
dt
ou seja, a componente do vetor momento linear, ao longo da direção n̂ e em relação
ao dado ponto inercial, é conservada no tempo. Em qualquer instante ela possui
o mesmo valor. Em particular, se a força resultante é identicamente nula, o vetor
momento linear, em relação ao ponto inercial, é conservado. De maneira análoga,
quando o torque resultante ou uma de suas componentes se anula, o momento angular
da partı́cula, em relação ao ponto inercial, ou a respectiva componente se conserva.
As conservações dos momentos linear e angular, quando existem, são de enorme
utilidade em problemas de dinâmica. Em muitos casos, elas possibilitam a obtenção
de estados de um sistema de partı́culas sem a necessidade da resolução explı́cita da
8 Um exemplo onde estes conceitos são de grande relevância, mesmo para uma partı́cula apenas, é no
dv
mg g = mi ,
dt
cuja solução satisfazendo v(0) = 0 é
dz mg
v= = gt
dt mi
Integrando novamente e aplicando a condição inicial z(0) = 0 obtemos
mg gt2
z=
mi 2
Ao completar a queda temos z = h e, assim,
mg 2h
=
mi g∆t2
Medindo-se o intervalo de queda, ∆t, para diferentes partı́culas e alturas, obtém-se
que a razão entre a massa gravitacional e a massa inercial resulta sempre na mesma
constante. Em particular, podemos denir a massa gravitacional de referência, a
9 João Filopono, no século VI, já era contrário a visão aristotélica de que o tempo de queda livre de
um corpo é inversamente proporcional à sua massa e Simon Stevin, em 1586, reportou que corpos de
massas diferentes levam o mesmo tempo para atingir o solo. No entanto, Galileu foi o primeiro a associar
resultados experimentais com formulações matemáticas.
LIMITES DA MECÂNICA NEWTONIANA 9
partir de uma dada partı́cula, de modo que seu valor seja igual ao de sua massa
inercial. Isso implica que a massa gravitacional é igual a massa inercial para qual-
quer partı́cula ou, em outras palavras, diferentes massas em queda livre adquirem
a mesma aceleração. Essa igualdade entre as massas inercial e gravitacional é cha-
mada de princı́pio da equivalência fraco, princı́pio da equivalência galileano ou ainda
princı́pio da universalidade da queda livre. Os testes mais precisos do princı́pio da
equivalência fraco, atualmente, fazem uso da queda livre no vácuo ou de balanças de
torção. Com a primeira técnica consegue-se a vericação da igualdade das massas
com precisão de uma parte em 1010 , ou seja, um erro experimental de 10−10 . Já com
a segunda, conrma-se o princı́pio com precisão de uma parte em 1013 . Atualmente
há projetos para realização de experimentos utilizando interferômetros no espaço que
poderão vericar se o princı́pio da equivalência é respeitado ou violado em até uma
parte em 1018 .
Se r1 (t) e r2 (t) são soluções de (1.2) quando a partı́cula está sujeita às forças
F1 e F2 , respectivamente, então o Princı́pio de Superposição arma que, sob a ação
de F1 e F2 , simultaneamente, a posição da partı́cula será r(t) = r1 (t) + r2 (t). A
presença de uma segunda interação, não altera a atuação da primeira. Esse princı́pio
decorre do fato que (1.2) é linear na força. Para muitos fenômenos isso corresponde a
uma aproximação. Para três partı́culas interagindo gravitacionalmente, por exemplo,
a força entre qualquer par é, no limite da Gravitação Newtoniana, independente dos
outros pares. Esse limite corresponde a uma aproximação válida para pequenas mas-
sas e baixas energias. Quando as massas dessas partı́culas tornam-se sucientemente
grande, o Princı́pio de Superposição deixa de ser uma boa aproximação, ao mesmo
tempo que a dinâmica do sistema passa a ser regida pelas equações de Einstein da
Relatividade Geral, as quais são não lineares. No formalismo de Einstein, a interação
entre duas partı́culas se deve, na verdade, à deformação do espaço-tempo causada pe-
las massas e pela energia de interação. Duas massas M1 e M2 interagindo entre si
possuem uma energia de ligação. Como essa energia gera uma deformação adicio-
nal ao espaço-tempo, a deformações total experimentada por uma partı́cula teste de
massa m não corresponde simplesmente à soma das deformações geradas por M1 e
M2 , isoladamente10 . É uma situação análoga à que acontece com esferas condutoras
carregadas eletricamente com cargas de mesmo sinal11 . Quando temos duas esferas
xas interagindo, as cargas se moverão até atingir o equilı́brio eletrostático. Adici-
onando uma terceira esfera, todas as cargas se redistribuem em busca do equilı́brio.
Como as posições das cargas nas duas primeiras esferas, em geral, se alteram, a força
entre elas também se altera. O Princı́pio de Superposição também falha, em geral,
em fı́sica de altas energias, como a que descreve fenômenos nucleares.
É também em sistemas relativı́sticos que a hipótese de ação a distância falha. A
teoria da relatividade especial impõe um limite na velocidade de propagação das
interações, a velocidade da luz no vácuo, a qual é nita, enquanto a ação à distância
pressupõe uma velocidade innita para as interações, ou seja interações instantâneas.
Considere, por exemplo, duas partı́cula de cargas elétricas q e q ′ movendo-se com
velocidades v e v′ , como mostrado na gura 1.1. Os campos magnéticos B e B′ são
dados pela Lei de Biot-Savart, enquanto a força de Lorentz nos dá F e F′ . Vemos que
o eletromagnetismo, em geral, não respeita a lei da ação e reação. Com a existência
de uma velocidade limite, resta às interações serem transmitidas por campos ou por
mediadores. É o retardo nessa transmissão que resulta na violação da terceira lei. Na
gura 1.2 temos um exemplo retratando esse retardo e mostrando como a terceira
lei passa a valer, como uma excelente aproximação, no limite não-relativı́stico. No
instante t, Sol e Terra encontram-se, respectivamente, nas posições S e T . A Terra
envia um mediador da interação gravitacional, propagando-se com a velocidade da
10 Assumindo que a interação gravitacional é mediada por grávitons, podemos entender essa falha do
Princı́pio de Superposição para a gravitação pelo fato de que os grávitons interagem entre si. Essa
interação corresponde a energia, a qual corresponde a mais grávitons.
11 Nesse caso, as esferas não constituem um sistema de partı́culas, pois a movimentação das cargas na
z T’
B′
F′T
q
v y
q′
F
F′ θ
x v′ B
S F′S T
luz, o qual carrega a informação sobre a massa e a posição da Terra nesse instante.
No mesmo instante, o Sol envia um mediador em direção a T ′ contendo informação
sobre sua massa e posição. No instante t′ ' t + 8 min a Terra encontra-se em
T ′ e, ao receber a mensagem enviada pelo sol em t, sente a força F′T . Por outro
lado, o Sol recebe a mensagem enviada pela Terra e sente a força F′S . Claramente
o par ação e reação F′T e F′S violam a terceira lei. Porém, no intervalo de 8, 3
minutos, o planeta desloca-se ao longo de sua órbita em torno do Sol. Assumindo
que a velocidade é constante ao longo da órbita aproximadamente circular, o que
é uma boa aproximação, encontramos que o ângulo θ corresponde vale cerca de
5 · 10−3 o , o que é desprezı́vel. Em um sistema relativı́stico, o campo que leva a
informação de uma partı́cula à outra carrega momento linear, o que altera a soma dos
momentos lineares das partı́culas. Como a taxa de variação do momento linear total
das partı́culas é igual a soma das forças de interação entre elas e isso é diferente de
zero, obtemos que o par ação e reação não se cancela.
Mais dramáticas ainda são as alterações provenientes da teoria quântica, a qual
abandona conceitos como o de trajetória e o próprio determinismo em prol de uma
interpretação probabilı́stica do mundo microscópico.
Referências Bibliográcas
[6] R. Weinstock, “Laws of classical motion: What’s f? what’s m? what’s a?,” Am.
J. Phys., vol. 29, p. 698, 1961.
Exercı́cios e problemas
2 - Uma mola é usada para acelerar cavaletes em um trilho de ar. Com a mola
na horizontal e uma extremidade em contato com a traseira do cavalete, empurra-se
a mola de modo que ela que contraı́da e com um comprimento constante. Reali-
zando o procedimento no primeiro cavalete, de massa 100 g, nota-se que, partindo
do repouso, ele atinge 4ms em 2s. Seguindo exatamente o mesmo procedimento
no segundo cavalete, mede-se 3ms em 2 s. Calcule a massa do segundo cavalete.
R: 400
3 g.
4 - Uma partı́cula de massa m desliza sobre o eixo x, sob ação de uma força de
atrito cinético F = −F î. Para cada um dos seguintes pontos, calcule, separada-
mente, o torque sobre a partı́cula e o momento angular da partı́cula, assumindo que
ela possui velocidade v. Em seguida verique explicitamente que o torque encon-
trado é igual a derivada temporal do momento angular obtido.
a) Origem;
b) Ponto de coordenadas (x = 0, y = b, z = 0);