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CHAPTER 1

AS LEIS DA DINÂMICA

Certamente, os sistemas fı́sicos mais interessantes são aqueles cujos estados que o
caracterizam se alteram com o passar do tempo. Em mecânica, alterações não triviais
dos estados são vistas como movimentos não uniformes e o estudo dessas evoluções
temporais, em associação com suas causas, compõe o escopo da dinâmica. Dentre as
abordagens possı́veis para os problemas de dinâmica, está a mecânica newtoniana1 , a
qual é baseada em três axiomas cuja simplicidade é a principal razão de seu extenso
uso. Neste capı́tulo construiremos uma base lógica para a dinâmica newtoniana e
discutiremos as origens, signicados e limitações destes princı́pios.

1.1 Enunciados de Newton

Naquela que é a primeira obra em fı́sica teórica e, certamente, uma das mais im-
portantes na história da Ciência2 , Newton enunciou as leis básicas da mecânica da
seguinte forma:

1 As outras abordagens formam a chamada mecânica analı́tica, a qual não será tratada neste curso.
2 I. Newton, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687).

1
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2 AS LEIS DA DINÂMICA

1. Todo corpo preserva seu estado de repouso, ou de movimento retilı́neo uni-


forme, a menos que seja compelido a mudar por alguma força impressa.
2. A mudança no movimento é proporcional à força impressa.
3. Para cada ação existe uma reação de mesma magnitude e oposta.
Do ponto de vista operacional, essas três leis são totalmente funcionais. Entre-
tanto, elas apresentam algumas diculdades do ponto de vista lógico. Como o mo-
vimento dependente do referencial, a segunda lei não deixa claro em qual referen-
cial ela se aplica. Mesmo assumindo que seja nos chamados referenciais inerciais,
precisamos saber quem são estes. Para Newton, um referencial inercial é qualquer
referencial transladando com vetor velocidade constante em relação ao espaço abso-
luto. No entanto, o caráter metafı́sico deste espaço que não pode ser acessado, que
é imóvel e imutável, consiste em uma das grandes crı́ticas ao trabalho de Newton na
época e deve ser preferencialmente evitado.
A m de abordar os problemas de dinâmica de maneira prática, a segunda lei é
escrita matematicamente como
d(mv)
F= ,
dt
onde F é a força impressa resultante no corpo, m é a massa do corpo e v sua velo-
cidade. A segunda lei relaciona os conceitos de força e massa e é necessário, por-
tanto, que ao menos um deles esteja bem denido. Além da necessidade de uma boa
denição dos termos presentes na segunda lei, temos que a primeira lei, da maneira
que foi enunciada acima, é apenas um caso particular da segunda. Considerando uma
partı́cula e anulando o lado esquerdo da equação acima, o lado direito nos diz que o
vetor velocidade da partı́cula é constante.
Por m, os termos ação e reação na terceira lei podem sugerir uma relação de
causa e efeito que nem sempre existe. Quando duas partı́culas se atraem gravita-
cionalmente, por exemplo, não é a força de uma que causa a reação da outra. Não
sabemos qual é a ação e qual é a reação. Devemos evitar qualquer sugestão de relação
causal entre o par de forças entre partı́culas mutuamente interagentes.

1.2 Lei da inércia e os referenciais inerciais

Há mais de uma interpretação e formalização das leis básicas da dinâmica. Adotare-
mos a visão devida a Ernst Mach3 , a qual possui conteúdo lógico e auto consistente.
Chamamos de partı́cula um corpo cujas dimensões são desprezı́veis e sua estru-
tura interna é ausente ou irrelevante, de modo que sua localização pode ser dada sim-
plesmente por um ponto no espaço. Em geral, a validade desta idealização depende
do contexto. Por exemplo, a Terra está longe de ser uma partı́cula no que diz res-
peito a fenômenos acontecendo no próprio planeta. Entretanto, sua estrutura interna

3 E. Mach, The Scicence of Mechanics (1883)


LEI DA INÉRCIA E OS REFERENCIAIS INERCIAIS 3

e dimensões são irrelevantes no que diz respeito ao sistema solar, podendo assim
ser considerada uma partı́cula. Outra idealização importante é o conceito partı́cula
isolada. Esse é o caso de uma partı́cula sucientemente distante de qualquer outra,
de modo que a existência das demais é incapaz de afetar a partı́cula de interesse.
Na mecânica newtoniana, o universo é um espaço euclideano tridimensional. O
vetor posição da partı́cula, r, vai de uma origem arbitrária até a posição da partı́cula,
podendo ser parametrizado pelo tempo t. Suas componentes são dadas pelas projeções
sobre três eixos linearmente independentes. Os sistemas de coordenadas mais co-
muns, os quais usaremos, são o cartesiano (x, y, z), o polar (r, φ, z) e o esférico
(r, φ, θ)4 . Desta forma, podemos denir um sistema de coordenadas quadridimensi-
onal que caracteriza o referencial da partı́cula e, sem ambiguidade, localiza a posição
e o tempo de qualquer evento associado à partı́cula. Podemos ainda denir o vetor
velocidade como a taxa de variação do vetor posição,

dr
v= ,
dt
e o vetor aceleração como a taxa de variação do vetor velocidade,

dv d2 r
a= = 2,
dt dt
ambos com respeito a um dado referencial ou à mesma origem de r.
Dados os conceitos preliminares recém estabelecidos, podemos enunciar o pri-
meiro princı́pio da dinâmica newtoniana:

Lei da Inércia: Existem referenciais, ditos inerciais, nos quais toda partı́cula iso-
lada possui vetor velocidade constante.

É importante ressaltar que esse princı́pio é tanto uma denição, se toda partı́cula
isolada possui aceleração nula em relação a um dado referencial, então ele é dito
inercial, quanto um fato empı́rico, pois arma que tais referenciais existem. Qual-
quer partı́cula isolada possui aceleração nula com respeito a um referencial inercial.
Devemos dar à lei da inércia o seu devido caráter fı́sico ou empı́rico. Não é óbvio
que devesse existir tal referencial onde todas as partı́culas isolada mantém seu estado
de movimento. Note ainda o grau de abstração necessário para seu enunciado, uma
vez que uma partı́cula isolada é uma idealização.
A grande beleza do enunciado de Mach para a lei da inércia reside na caracterização
dos referenciais inerciais sem a necessidade do conceito de espaço absoluto. Se há
um referencial onde toda e qualquer partı́cula isolada possui vetor velocidade cons-
tante, então ele é inercial. Todos os referenciais em translação uniforme, ou seja,
com vetor velocidade constante, em relação a este, também são inerciais, pois as
partı́culas isoladas continuam tendo vetores velocidade constantes nesse novo re-

4 Nas coordenadas esféricas, adotaremos φ como o ângulo azimutal (varia de 0 a 2π) e θ como ângulo
polar (varia de 0 a π)
4 AS LEIS DA DINÂMICA

ferencial. Em particular, um referencial xo em alguma partı́cula isolada também


é inercial. Se um dado referencial rodar, em relação a um referencial inercial, as
partı́culas isoladas fora do eixo de rotação possuem velocidade não uniforme neste
referencial, logo, ele não pode ser inercial. Esse referencial é não é homogêneo, pois
as partı́culas aceleram com taxas diferentes dependendo da sua distância até o eixo de
rotação. Além disso, se o referencial transladar de maneira não uniforme em relação
a um referencial inercial, ele também não pode ser inercial, visto que uma partı́cula
em repouso no referencial inercial estará acelerada no referencial que translada. Ou
ainda, dizemos que esse referencial não é isotrópico, uma vez que uma partı́cula,
neste referencial, irá mover-se de maneira acelerada ao longo da linha comum aos
referenciais, enquanto permanecerá em repouso, ou seja, com velocidade constante,
em numa direção perpendicular, mesmo na ausência de interação. Os referenciais
não homogêneos e não isotrópicos são chamados de não inerciais.
A dinâmica também é invariante sob transformações envolvendo diferentes refe-
renciais inerciais, os quais possuem velocidade relativa constante. Como notado por
Galileu5 , é impossı́vel, por meio de experimentos mecânicos, detectar o movimento
absoluto. Não há referencial inercial preferencial. Este princı́pio é conhecido como
princı́pio da relatividade de Galileu e a invariância das leis da mecânica com respeito
a tais transformações é chamada de invariância de Galileu. Para dois referencias
inerciais S e S ′ , tal que o segundo possui velocidade V constante em relação ao
primeiro, as posições da partı́cula nos referenciais com e sem linha relacionam-se
através de
r(t) = R(0) + Vt + r′ (t),
onde R é o ventor descolamento entre as origens O e O′ . Já o tempo é o mesmo em
ambos os referenciais,
t = t′ 
Chamamos estas transformações entre referenciais, t → t′ e r → r′ , de transformações
de Galileu. Note como a aceleração da partı́cula, a derivada segunda do vetor posição,
é a mesma nos dois referenciais inerciais. Portanto a segunda lei de Newton ca in-
variante nos dois referenciais, resultando na mesma evolução dinâmica.

1.3 Lei da interação mútua e a massa inercial

Na construção lógica de Mach, o próximo axioma é a lei da interação mútua, a qual


está associada à terceira lei, e proporciona a denição do conceito de massa inercial.
Chamaremos de interação qualquer coisa capaz de alterar o estado de movimento
da partı́cula, caracterizado pela velocidade em relação a um referencial inercial. Con-
sidere uma coleção de partı́culas tal que aij denota a aceleração da partı́cula i indu-
zida pela interação com a partı́cula j, em relação a um referencial inercial. Para uma
classe de interações, as quais chamaremos de mecânicas, qualquer par de partı́culas
i e j, interagindo apenas mutuamente, apresenta acelerações aij e aji com sentidos

5 G. Galilei, Discourses and Mathematical Demonstrations Relating to Two New Sciences (1638)
LEI DA INTERAÇÃO MÚTUA E A MASSA INERCIAL 5

opostos e cuja razão aij aji  = Cij é uma constante positiva6 independente da
interação ou das posições e velocidades das partı́culas, podendo depender apenas
das partı́culas. Além disso, verica-se que as acelerações induzidas por interações
mútuas satisfazem a seguinte relação de consistência,

aij  ajk  aki 


= 1
aji  akj  aik 

Uma maneira de escrever a razão entre as acelerações de acordo com os dados


empı́ricos recém expostos é
aij  mj
= ,
aji  mi
onde mi é uma grandeza intrı́nseca da partı́cula i, a qual chamaremos de massa iner-
cial7 . Assim, podemos enunciar o próximo axioma da dinâmica newtoniana:

Lei da Interação Mútua: A interação mútua de todo par isolado de partı́culas induz
acelerações, em relação a um referencial inercial, opostas e cujas razões são dadas
pelas razões entre as massas inerciais das partı́culas correspondentes.

Aqui, já podemos entender o signicado matemático da massa inercial. Se as partı́culas


i e j, em interação mútua, possuem acelerações de mesma magnitude, ou seja, pos-
suem mesma massa inercial, e o mesmo ocorre com as partı́culas j e k, então as
partı́culas i e k também possuem mesma massa inercial. A comparação das massas
inerciais das partı́culas particiona o conjunto de partı́culas em subconjuntos mutu-
amente disjuntos chamados classes de equivalência. Todas as partı́culas na mesma
classe de equivalência possuem a mesma massa inercial, a qual é um rótulo para esta
classe. Fica claro que a rotulagem das classes de equivalência é, em princı́pio, com-
pletamente arbitrária, desde que os rótulos sejam números reais positivos distintos.
Podemos eliminar parte desta ambiguidade denindo, de maneira arbitrária, a massa
inercial de uma partı́cula de referência. Assim, a massa inercial m de uma partı́cula
qualquer ca determinada medindo-se a magnitude de sua aceleração a durante a
interação mútua com a partı́cula de referência 0, ou seja,

a0 
m= m0 
a

Note a semelhança da lei da interação mútua com a Lei Zero da termodinâmica.


A última arma que se o corpo A está em equilı́brio térmico com o corpo B, e
este está em equilı́brio térmico com o corpo C, então A está em equilı́brio térmico
com C. Esse fato empı́rico também particiona o conjunto de corpos em classes
de equivalência, cada uma delas sendo rotulada por um numero real chamado de

6 Assumimos que nenhuma partı́cula possui aceleração innita.


7A igualdade aij /aji  = m∗i /m∗j também satisfaz a relação de consistência. Nesse caso, a massa
inercial da partı́cula seria 1/m∗ .
6 AS LEIS DA DINÂMICA

temperatura. A vericação do equilı́brio térmico é análoga à vericação da igualdade


entre as magnitudes das aceleração e a temperatura faz o papel da massa inercial.
A lei da interação mútua apresentada acima está na sua chamada forma fraca,
ou seja, as acelerações não são, necessariamente, colineares. Uma forma mais res-
tritiva, chamada de forte, requer que as acelerações estejam ao longo da linha que
une as partı́culas. Para muitos sistemas, dentre aqueles que envolvem interações não
mecânicas, no entanto, sequer a forma fraca é satisfeita.

1.4 Lei da aceleração e a força de interação

Chamamos de força de interação a quanticação da interação, a qual independe do


referencial. Nos referenciais inerciais todas as forças são de interação. Entretanto,
nos referenciais não inerciais há forças que não são de interação, sendo chamadas
de forças de inércia. Discutiremos este tipo de força com mais detalhe no capı́tulo 6
onde estudaremos a dinâmica em referenciais não inerciais.
Seja v a velocidade da partı́cula em relação a um ponto qualquer. Então denimos
o momento linear, ou quantidade de movimento, da partı́cula, em relação ao mesmo
ponto, como
p = mv (1.1)
Dessa forma, podemos enunciar a última lei da dinâmica da seguinte maneira:

Lei da Aceleração: Em um referencial inercial, a força de interação resultante sobre


a partı́cula é igual à taxa de variação temporal de seu momento linear.

Por ”em um referencial inercial”, no enunciado acima, devemos entender que o mo-
mento linear é medido em relação a qualquer ponto inercial, ou seja, qualquer ponto
que possui velocidade constante em relação a um referencial inercial. Matematica-
mente a lei acima é expressa como

dp
F= , (1.2)
dt
sendo F a força de interação resultante sobre a partı́cula. No caso de uma partı́cula,
como a massa inercial é constante, temos que

F = ma

Como já sabemos o que são referenciais inerciais, massa inercial, bem como quanti-
dades cinemáticas como a velocidade, temos que a lei da aceleração nos fornece uma
denição de força de interação. Além disso, agora podemos entender o signicado
fı́sico da massa inercial. Como ela corresponde a uma constante de proporciona-
lidade entre a força de interação resultante e a aceleração, ela é uma medida da
resistência a alteração do estado de movimento da partı́cula. Dito de outra forma, ela
mede a inércia da partı́cula e daı́ o seu nome.
CONSERVAÇÃO DOS MOMENTOS LINEAR E ANGULAR 7

Denimos o momento angular da partı́cula em relação a um ponto qualquer como

L = r × p,

onde r e p denotam a posição e o momento linear relativos ao dado ponto de re-


ferência. Derivando em relação ao tempo e assumindo que o ponto de referência é
inercial, obtemos
L̇ = r × F
Denindo o torque da força F, relativo ao ponto de referência, sobre a partı́cula como

τ = r × F,

temos que
dL
τ =, (1.3)
dt
onde o torque nesta equação é o resultante. A equação acima é versão correspon-
dente à dinâmica rotacional da segunda lei de Newton. Observe como o torque é o
correspondente rotacional da força, enquanto o momento angular é o correspondente
rotacional do momento linear. No contexto de partı́cula, os conceitos de torque e
momento angular tornam-se supéruos na maioria dos casos8 , porém eles serão in-
dispensáveis no tratamento de sistemas de partı́culas. É importante, ainda, ressaltar
que o conceito de posição e, portanto, todos os seus derivados, como velocidade,
momento linear, momento angular e torque, são relativos. Eles sempre dependem do
um ponto de referência.

1.5 Conservação dos momentos linear e angular

Considere agora um ponto inercial qualquer. Se a força resultante sobre a partı́cula é


nula em uma direção n̂ qualquer, a Eq. (1.2) resulta em

dp
· n̂ = 0,
dt
ou seja, a componente do vetor momento linear, ao longo da direção n̂ e em relação
ao dado ponto inercial, é conservada no tempo. Em qualquer instante ela possui
o mesmo valor. Em particular, se a força resultante é identicamente nula, o vetor
momento linear, em relação ao ponto inercial, é conservado. De maneira análoga,
quando o torque resultante ou uma de suas componentes se anula, o momento angular
da partı́cula, em relação ao ponto inercial, ou a respectiva componente se conserva.
As conservações dos momentos linear e angular, quando existem, são de enorme
utilidade em problemas de dinâmica. Em muitos casos, elas possibilitam a obtenção
de estados de um sistema de partı́culas sem a necessidade da resolução explı́cita da

8 Um exemplo onde estes conceitos são de grande relevância, mesmo para uma partı́cula apenas, é no

estudo da dinâmica da partı́cula sob ação de campos de força centrais.


8 AS LEIS DA DINÂMICA

segunda lei de Newton. No decorrer deste livro, em particular no Cap. 5, abordare-


mos esta ideia em detalhe.

1.6 Princı́pio da equivalência fraco

Se g é a magnitude do campo gravitacional, então o coeciente mg presente na força


peso, F = mg g, é chamado de massa gravitacional, a qual deve ser interpretada
como a intensidade da interação da partı́cula com a gravidade, da mesma forma como
a carga elétrica representa a intensidade de interação entre uma partı́cula e um campo
elétrico, F = qE. Assim como a carga elétrica é completamente diferente da massa
inercial, a massa gravitacional, ou seja, a carga ou fonte gravitacional, é fundamen-
talmente diferente da massa inercial, apesar de ambas possuı́rem a mesma unidade
fı́sica. No entanto, por um capricho da natureza, essas duas massas, para qualquer
corpo, parecem coincidir numericamente, fato vericado experimentalmente, pelo
menos, desde 1589, quando Galileu rolava esferas em planos inclinados ou, supos-
tamente, lançava massas do alto da Torre de Pisa9 . Considere, por exemplo, uma
partı́cula de massa inercial mi e massa gravitacional mg solta, a partir do repouso,
de uma altura h acima da superfı́cie, cuja força de resistência gerada pelo ar é des-
prezı́vel. Para pequenas alturas assumimos que o campo gravitacional é constante,
logo, orientando o eixo para baixo,

dv
mg g = mi ,
dt
cuja solução satisfazendo v(0) = 0 é

dz mg
v= = gt
dt mi
Integrando novamente e aplicando a condição inicial z(0) = 0 obtemos

mg gt2
z= 
mi 2
Ao completar a queda temos z = h e, assim,

mg 2h
= 
mi g∆t2
Medindo-se o intervalo de queda, ∆t, para diferentes partı́culas e alturas, obtém-se
que a razão entre a massa gravitacional e a massa inercial resulta sempre na mesma
constante. Em particular, podemos denir a massa gravitacional de referência, a

9 João Filopono, no século VI, já era contrário a visão aristotélica de que o tempo de queda livre de

um corpo é inversamente proporcional à sua massa e Simon Stevin, em 1586, reportou que corpos de
massas diferentes levam o mesmo tempo para atingir o solo. No entanto, Galileu foi o primeiro a associar
resultados experimentais com formulações matemáticas.
LIMITES DA MECÂNICA NEWTONIANA 9

partir de uma dada partı́cula, de modo que seu valor seja igual ao de sua massa
inercial. Isso implica que a massa gravitacional é igual a massa inercial para qual-
quer partı́cula ou, em outras palavras, diferentes massas em queda livre adquirem
a mesma aceleração. Essa igualdade entre as massas inercial e gravitacional é cha-
mada de princı́pio da equivalência fraco, princı́pio da equivalência galileano ou ainda
princı́pio da universalidade da queda livre. Os testes mais precisos do princı́pio da
equivalência fraco, atualmente, fazem uso da queda livre no vácuo ou de balanças de
torção. Com a primeira técnica consegue-se a vericação da igualdade das massas
com precisão de uma parte em 1010 , ou seja, um erro experimental de 10−10 . Já com
a segunda, conrma-se o princı́pio com precisão de uma parte em 1013 . Atualmente
há projetos para realização de experimentos utilizando interferômetros no espaço que
poderão vericar se o princı́pio da equivalência é respeitado ou violado em até uma
parte em 1018 .

1.7 Limites da mecânica newtoniana

As seguintes hipóteses são assumidas implı́cita ou explicitamente na formulação dos


princı́pios fundamentais da mecânica clássica: o espaço é absoluto, o tempo é ab-
soluto e universal, vale o princı́pio de superposição, a ação se dá a distância e a
mecânica clássica é determinı́stica. São as falhas, em certos limites, dessas hipóteses
que impõem restrições aos princı́pios da dinâmica e, portanto, impõem limites de
validade à própria mecânica clássica.
Para Newton, o espaço é absoluto no sentido de não possuir relação externa (me-
tafı́sico), ser imóvel e imutável. Para ele, o espaço absoluto seria o referencial iner-
cial fundamental. Independentemente do número de partı́culas e de suas posições no
Universo, todas elas teriam seu estado de movimento determinados. A formulação
de Mach para a primeira lei dispensa a necessidade de um espaço absoluto no sentido
de algo que não pode ser vericado externamente e que tem o papel de referencial
inercial fundamental. Se existisse apenas uma partı́cula no Universo, esta não te-
ria um estado de movimento bem denido. Por outro lado, Mach ainda admite um
espaço absoluto no sentido de algo imóvel e imutável. Comprimentos são assumi-
dos invariantes em qualquer lugar e em qualquer instante, o que, sabe-se hoje, não é
satisfeito na teoria da relatividade de Einstein.
O tempo é absoluto, não possui relação externa e é uniforme e universal, ou seja,
independe da presença de partı́culas e ui à mesma taxa em todos os pontos do
espaço e indenidamente. Novamente esses carácteres são violados em teorias rela-
tivı́sticas, onde sequer pode haver espaço e tempo independentes.
As alterações impostas pela teoria da relatividade no conceito de espaço-tempo
levam a implicações importantes na dinâmica das partı́culas. A segunda lei de New-
ton permanece inalterada na sua forma (1.2), no entanto o momento linear passa a
ser dado por
1
p=  mv,
1 − (vc)2
o que implica que F = ma, não é mais válida.
10 AS LEIS DA DINÂMICA

Se r1 (t) e r2 (t) são soluções de (1.2) quando a partı́cula está sujeita às forças
F1 e F2 , respectivamente, então o Princı́pio de Superposição arma que, sob a ação
de F1 e F2 , simultaneamente, a posição da partı́cula será r(t) = r1 (t) + r2 (t). A
presença de uma segunda interação, não altera a atuação da primeira. Esse princı́pio
decorre do fato que (1.2) é linear na força. Para muitos fenômenos isso corresponde a
uma aproximação. Para três partı́culas interagindo gravitacionalmente, por exemplo,
a força entre qualquer par é, no limite da Gravitação Newtoniana, independente dos
outros pares. Esse limite corresponde a uma aproximação válida para pequenas mas-
sas e baixas energias. Quando as massas dessas partı́culas tornam-se sucientemente
grande, o Princı́pio de Superposição deixa de ser uma boa aproximação, ao mesmo
tempo que a dinâmica do sistema passa a ser regida pelas equações de Einstein da
Relatividade Geral, as quais são não lineares. No formalismo de Einstein, a interação
entre duas partı́culas se deve, na verdade, à deformação do espaço-tempo causada pe-
las massas e pela energia de interação. Duas massas M1 e M2 interagindo entre si
possuem uma energia de ligação. Como essa energia gera uma deformação adicio-
nal ao espaço-tempo, a deformações total experimentada por uma partı́cula teste de
massa m não corresponde simplesmente à soma das deformações geradas por M1 e
M2 , isoladamente10 . É uma situação análoga à que acontece com esferas condutoras
carregadas eletricamente com cargas de mesmo sinal11 . Quando temos duas esferas
xas interagindo, as cargas se moverão até atingir o equilı́brio eletrostático. Adici-
onando uma terceira esfera, todas as cargas se redistribuem em busca do equilı́brio.
Como as posições das cargas nas duas primeiras esferas, em geral, se alteram, a força
entre elas também se altera. O Princı́pio de Superposição também falha, em geral,
em fı́sica de altas energias, como a que descreve fenômenos nucleares.
É também em sistemas relativı́sticos que a hipótese de ação a distância falha. A
teoria da relatividade especial impõe um limite na velocidade de propagação das
interações, a velocidade da luz no vácuo, a qual é nita, enquanto a ação à distância
pressupõe uma velocidade innita para as interações, ou seja interações instantâneas.
Considere, por exemplo, duas partı́cula de cargas elétricas q e q ′ movendo-se com
velocidades v e v′ , como mostrado na gura 1.1. Os campos magnéticos B e B′ são
dados pela Lei de Biot-Savart, enquanto a força de Lorentz nos dá F e F′ . Vemos que
o eletromagnetismo, em geral, não respeita a lei da ação e reação. Com a existência
de uma velocidade limite, resta às interações serem transmitidas por campos ou por
mediadores. É o retardo nessa transmissão que resulta na violação da terceira lei. Na
gura 1.2 temos um exemplo retratando esse retardo e mostrando como a terceira
lei passa a valer, como uma excelente aproximação, no limite não-relativı́stico. No
instante t, Sol e Terra encontram-se, respectivamente, nas posições S e T . A Terra
envia um mediador da interação gravitacional, propagando-se com a velocidade da

10 Assumindo que a interação gravitacional é mediada por grávitons, podemos entender essa falha do
Princı́pio de Superposição para a gravitação pelo fato de que os grávitons interagem entre si. Essa
interação corresponde a energia, a qual corresponde a mais grávitons.
11 Nesse caso, as esferas não constituem um sistema de partı́culas, pois a movimentação das cargas na

superfı́cie constituem uma estrutura interna. O eletromagnetismo satisfaz o Princı́pio de Superposição no


caso de partı́culas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 11

z T’
B′
F′T
q
v y
q′
F
F′ θ
x v′ B
S F′S T

Figura 1.1 Figura 1.2

luz, o qual carrega a informação sobre a massa e a posição da Terra nesse instante.
No mesmo instante, o Sol envia um mediador em direção a T ′ contendo informação
sobre sua massa e posição. No instante t′ ' t + 8 min a Terra encontra-se em
T ′ e, ao receber a mensagem enviada pelo sol em t, sente a força F′T . Por outro
lado, o Sol recebe a mensagem enviada pela Terra e sente a força F′S . Claramente
o par ação e reação F′T e F′S violam a terceira lei. Porém, no intervalo de 8, 3
minutos, o planeta desloca-se ao longo de sua órbita em torno do Sol. Assumindo
que a velocidade é constante ao longo da órbita aproximadamente circular, o que
é uma boa aproximação, encontramos que o ângulo θ corresponde vale cerca de
5 · 10−3 o , o que é desprezı́vel. Em um sistema relativı́stico, o campo que leva a
informação de uma partı́cula à outra carrega momento linear, o que altera a soma dos
momentos lineares das partı́culas. Como a taxa de variação do momento linear total
das partı́culas é igual a soma das forças de interação entre elas e isso é diferente de
zero, obtemos que o par ação e reação não se cancela.
Mais dramáticas ainda são as alterações provenientes da teoria quântica, a qual
abandona conceitos como o de trajetória e o próprio determinismo em prol de uma
interpretação probabilı́stica do mundo microscópico.

Referências Bibliográcas

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Norton, 1971.
[2] R. D. Gregory, Classical Mechanics. Cambridge University Press, 2006.
[3] J. M. Knudsen and P. G. Hjorth, Elements of Newtonian mechanics: including
nonlinear dynamics. Springer Science & Business Media, 2012.
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velopment. Open court publishing Company, 1907.
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Wesley Publishing Company, 3rd ed., 1971.
12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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J. Phys., vol. 29, p. 698, 1961.

Exercı́cios e problemas

1 - Considere um referencial inercial S0 , no qual toda partı́cula, de um conjunto de


N partı́culas, possui vetores velocidade constantes. Mostre que todas as velocidades
relativas entre as partı́culas também são vetores constantes. Feito isso, considere um
novo referencial S, xo em uma das partı́culas. Mostre que todas as partı́culas pos-
suem vetores velocidade constantes em relação a S e, portanto, ele é um referencial
inercial.

2 - Uma mola é usada para acelerar cavaletes em um trilho de ar. Com a mola
na horizontal e uma extremidade em contato com a traseira do cavalete, empurra-se
a mola de modo que ela que contraı́da e com um comprimento constante. Reali-
zando o procedimento no primeiro cavalete, de massa 100 g, nota-se que, partindo
do repouso, ele atinge 4ms em 2s. Seguindo exatamente o mesmo procedimento
no segundo cavalete, mede-se 3ms em 2 s. Calcule a massa do segundo cavalete.
R: 400
3 g.

3 - Quando uma pessoa A, de massa inercial 80 kg empurra uma pessoa B, am-


bas sobre sobre uma pista de gelo (desconsidere, portanto, o atrito com o chão), A e
B adquirem acelerações de magnitude 7 ms 2 e 8 ms 2 , respectivamente. Se B se
suspender por um dinamômetro, qual será a leitura do aparelho nas situações abaixo?
Assuma que o dinamômetro foi calibrado na superfı́cie da Terra, mas possui uma es-
cala dada em kg. Considere a aceleração da gravidade 10ms 2 ).
a) Na superfı́cie da Terra.
b) Em um elevador acelerado a 2ms 2 para cima, próximo à superfı́cie da Terra.
c) Em um elevador acelerado a 2ms 2 para baixo, próximo à superfı́cie da Terra.
d) Identique, nas situações acima, o que é massa inercial, massa gravitacional e
peso.
R: a) 70kg , b) 84kg , c) 56kg .

4 - Uma partı́cula de massa m desliza sobre o eixo x, sob ação de uma força de
atrito cinético F = −F î. Para cada um dos seguintes pontos, calcule, separada-
mente, o torque sobre a partı́cula e o momento angular da partı́cula, assumindo que
ela possui velocidade v. Em seguida verique explicitamente que o torque encon-
trado é igual a derivada temporal do momento angular obtido.
a) Origem;
b) Ponto de coordenadas (x = 0, y = b, z = 0);

5 - Obtenha a relação entre massa inercial e massa gravitacional para um pêndulo


simples de comprimento l e perı́odo T realizando pequenas oscilações, sob ação do
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 13

campo gravitacional de magnitude g, em torno do equilı́brio.

6 - Prove que a força magnética sobre uma partı́cula carregada, F = qv × B, onde


µ0 qv×r̂
B = 4π r 2 , v é a velocidade da partı́cula e r é o raio vetor indo da partı́cula (fonte
de campo) até o ponto onde estamos calculando o campo, não satisfaz sequer uma
forma muito fraca da terceira Lei de Newton, a qual armaria que apenas as magni-
tudes do par ação e reação são iguais.

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