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EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE:

UM ESTUDO ETNOGRÁFICO DE ALUNOS BOLIVIANOS NA REDE


PÚBLICA DE ENSINO PAULISTANA

Janaina Silva; Ana Keila Mosca Pinezi

Universidade Federal do ABC, E-mails: silva.janaina@ufabc.edu.br; ana.pinezi@ufabc.edu.br

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, as migrações internacionais vêm se destacando no cenário mundial em


função de diversas transformações ocorridas a partir da década de 1980 em âmbito econômico,
social, político, cultural e ideológico (Baeninger, 2003). O Brasil, que desde o início de sua
colonização até o início do século XX, era um destino atraente para diversos imigrantes, retomou
sua inserção neste contexto de migrações internacionais a partir da década de 1990. Com isso, a
entrada de estrangeiros no país ganhou novamente destaque.
O aumento da presença estrangeira se dá em todos os espaços sociais e, obviamente, não é
diferente no espaço escolar. Tendo isso em vista, neste trabalho buscamos compreender as
interações entre estrangeiros e brasileiros neste ambiente. Optamos por focar no grupo étnico mais
representativo nas escolas da cidade de São Paulo, o de bolivianos.
De acordo com SILVA (2006), a presença boliviana na cidade de São Paulo remonta à
década de 1950, com a vinda de estudantes para participar do Programa de Intercâmbio Cultural
Brasil-Bolívia. Essa imigração ganhou destaque a partir da década de 1980, com a chegada de uma
população majoritariamente jovem atraída pelas promessas de bons salários nas indústrias de
confecção da cidade.
Apesar dos inúmeros problemas encontrados ao chegar a São Paulo, tais como falta de
documentação, jornadas de trabalho exaustivas e abusivas e dificuldade de acesso a bens e serviços,
essa população se estabeleceu na cidade, especialmente nas regiões do centro e nas zonas leste e
norte. “À medida que eles vão se estabelecendo na cidade, inicia-se um processo de reunificação
familiar, com a vinda de irmãos, parentes e pais, muitas vezes pessoas oriundas do campo e com
pouco domínio do espanhol” (SILVA, 2006, p. 160).
Os anos se passaram e a imigração boliviana ainda é marcante em São Paulo, em
decorrência da manutenção do fluxo migratório e das possibilidades no mercado de trabalho
brasileiro. A forte presença desses estrangeiros na cidade também se destaca no espaço escolar. De
acordo com dados da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, no ano de 2014 havia 36141
alunos estrangeiros matriculados na rede, sendo quase 2700 bolivianos.
Considerando a importância que a instituição escolar possui na sociedade contemporânea e
que se trata do lócus, por excelência, que possibilita a integração de pessoas de diferentes culturas,
escolhemos esta instituição para pensar as relações interculturais entre bolivianos e brasileiros.
Nossa pesquisa parte da dimensão intercultural da educação e se concentra nos anos iniciais
do processo de escolarização, especificamente no ciclo de alfabetização.
A perspectiva intercultural surgiu com movimentos sociais em diferentes países, a partir de
denúncias de discriminações e com reivindicações de igualdade de acesso a bens e serviços e
também reconhecimento político e cultural. Desde a década de 1990, esses movimentos adquiriram
especial relevância na América Latina.
Fleuri (2003) aponta que a dimensão intercultural ganhou destaque na educação brasileira
com a publicação dos temas transversais (especialmente, a pluralidade cultural) dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs). De acordo com o autor, os temas transversais dos PCNs
possibilitaram diversas iniciativas e propostas de educação para a paz e os direitos humanos.
O conceito da interculturalidade não é unânime entre os estudiosos sobre o assunto. Candau
(2012, p. 242) explica que
[...] uma primeira questão que é necessário abordar é a da relação entre
multiculturalismo e interculturalidade. Para alguns autores, estes termos se
contrapõem, o multiculturalismo sendo visto como a afirmação dos diferentes
grupos culturais na sua diferença e o interculturalismo pondo o acento nas inter-
relações entre os diversos grupos culturais. Há também aqueles que usam estas
palavras praticamente como sinônimos, o termo multiculturalismo sendo mais
próprio da produção acadêmica do mundo anglo-saxão e a interculturalidade da dos
países de línguas neolatinas, particularmente o espanhol e o francês.

Por conta disso, a autora considera fundamental a explicitação da concepção adotada pelo
pesquisador ao se tratar das abordagens culturais. Candau (2008) destaca três perspectivas do

1 Dados atualizados em 31/07/2014.


multiculturalismo: o assimilacionista, o diferencialista ou plural e o interativo ou interculturalidade.
Na perspectiva assimilacionista entende-se que vivemos em uma sociedade multicultural, com
desigualdade de condições e acesso e que, por isso, uma política assimilacionista visa que grupos
marginalizados sejam incorporados à cultura hegemônica, sem alteração na matriz da sociedade. Já
o multiculturalismo diferencialista enfatiza o reconhecimento da diferença. Algumas posições nessa
concepção “terminam por ter uma visão estática e essencialista da formação das identidades
culturais. [...] Na prática, em muitas sociedades atuais terminou-se por favorecer a criação de
verdadeiros apartheids socioculturais” (CANDAU, 2008, p. 51). A última perspectiva, a do
multiculturalismo interativo ou interculturalidade, que é adotada pela autora e também é a
concepção que privilegiaremos nesta pesquisa, compreende as culturas em contínuo processo de
construção e reconstrução, admite diferentes configurações da realidade e compreende que as
relações interculturais estão permeadas pelos mecanismos de poder.
Considerando que a instituição escolar, especialmente a pública, é um espaço de trocas
culturais, entendemos que “a adoção de uma perspectiva intercultural pode repercutir no cotidiano
das instituições educacionais, favorecendo o diálogo entre as diferenças e problematizando
discursos que essencializam as identidades”. (SANTIAGO; AKKARI; MARQUES, 2013, p. 24).
Tendo isso em mente e diante da constante presença de crianças bolivianas na rede
municipal de São Paulo, o objetivo da pesquisa é analisar as relações que são travadas entre elas,
seus colegas brasileiros e os educadores no espaço escolar. Em resumo, buscamos compreender
como se dão as relações interculturais no ambiente escolar a partir da presença de estudantes
bolivianos no ciclo de alfabetização de uma escola pública paulistana, tendo como fundamentação
os princípios da educação intercultural.

2. METODOLOGIA

Para realizar a pesquisa proposta, selecionamos uma escola pública regular paulistana de
ensino fundamental que contém uma quantidade considerável de alunos bolivianos no ciclo de
alfabetização. Optamos por um estudo etnográfico com observação participante por considerar que
seria o mais interessante para compreender com maior profundidade essas relações.
Em fevereiro deste ano (2015), começamos a acompanhar as atividades das sete turmas de
1º a 3º ano da escola. Observamos os alunos em sala de aula, nos intervalos e em todos os outros
espaços e momentos escolares. A próxima etapa do trabalho de campo será a realização de
entrevistas com os professores desses alunos e a coordenação da escola. Pretendemos entrevistar
todos os educadores diretamente envolvidos na escolarização dos alunos bolivianos do ciclo de
alfabetização nessa escola. As entrevistas serão semiestruturadas e abordarão questões sobre
diversidade cultural e diferenças.
Considerando a faixa etária dos educandos, além da observação participante, realizaremos
também rodas de conversa com todos os alunos para tratar da questão da diversidade cultural de
forma lúdica. As conversas serão propostas a partir da leitura de obras literárias infantis que tratam
dessa temática. A análise dos dados coletados está sendo realizada à luz das teorias da Antropologia
da Criança e de estudos sobre Educação Intercultural.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa está em andamento e o trabalho de campo ainda não foi concluído, por isso
algumas análises que apresentaremos são apenas preliminares.
Apesar de um número considerável de alunos bolivianos na escola e de outras
nacionalidades também (há alunos de mais de dez nacionalidades distintas), não percebemos que há
uma postura clara desta instituição em pensar em novas possibilidades pedagógicas para atender a
esses educandos. Nas três turmas do 1º ano, percebemos algumas dificuldades de interação entre
alunos brasileiros e bolivianos, especialmente no caso de alunos recém-chegados ao Brasil. A
língua demonstra ser um fator que dificulta a interação e também o processo de aprendizagem.
Podemos destacar algumas cenas em que os alunos bolivianos tentam falar algo ao professor e não
são compreendidos. Eles acabam desistindo e voltam para o lugar sem conseguirem comunicar o
que gostariam. Essa dificuldade de comunicação pode ajudar a entender melhor porque é tão
comum observar agrupamentos de bolivianos na hora do recreio, especialmente no intervalo dos 1ºs
e 2ºs anos. Observamos que alguns alunos que falam bem o português e o espanhol interagem não
só com os bolivianos, mas também com os brasileiros. Conversando com as crianças, descobrimos
que muitas se aproximam na hora do recreio (mesmo sendo de turmas diferentes) por já se
conhecerem. Geralmente, são parentes ou vizinhas. Algumas até dividem a mesma moradia, como
ocorre com alguns primos. Outra questão percebida foi em relação à situação econômica dos
bolivianos. Tivemos acesso aos dados do perfil das famílias de alguns alunos e a maioria das fichas
de bolivianos analisada apresentou uma renda familiar entre 1 e 3 salários mínimos por mês;
algumas declaram ganhar menos de 1 salário mínimo mensal. Com dificuldade de acesso a serviços
básicos, algumas crianças bolivianas são discriminadas por sua condição. Algumas falas
demonstram que há uma série de preconceitos dos pais das crianças brasileiras em relação aos
bolivianos e que são reforçados em suas orientações aos filhos no que se refere a certo afastamento
das crianças bolivianas. Alguns educadores também fizeram comentários em relação à higiene e à
saúde dos alunos bolivianos, pois muitos apresentam o rosto com algumas manchas e alguns dentes
comprometidos por cáries. Um discurso recorrente entre os educadores é de que as famílias
bolivianas são mais participativas e mais comprometidas do que as brasileiras. Há uma visão de que
os bolivianos seriam mais esforçados e valorizariam mais a escola por precisarem mais dela.

4. CONCLUSÕES

A conclusão preliminar a que chegamos é a de que a instituição escolar analisada, apesar de


ter um corpo discente com um número grande de estrangeiros, ainda não criou novas possibilidades
pedagógicas para ações que valorizem a interculturalidade. Observamos que muitos bolivianos têm
dificuldade para se expressar na escola, especialmente na sala de aula. Geralmente, são bem calados
e retraídos, pouco participativos nas atividades propostas, o que dificulta a interação com seus
pares. É visível que alguns já conseguiram romper algumas barreiras, mas isso é visto com mais
frequência entre as crianças maiores, que falam bem o português e que estão há mais tempo no
Brasil.
A instituição escolar mostra-se como um espaço de trocas culturais, por isso salientamos a
importância da adoção de uma perspectiva intercultural no espaço escolar, pois a compreendemos
como elemento fundamental na construção de sociedades mais democráticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros:
CANDAU, Vera Maria Ferrão (Org.). Diferenças Culturais e Educação: construindo caminhos. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2011. v. 1.

______. Educação Intercultural e Cotidiano Escolar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

SANTIAGO, Mylene Cristina; AKKARI, Abdeljalil; MARQUES, Luciana Pacheco. Educação


Intercultural: desafios e possibilidades. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de


Janeiro: LTC, 2008.

OLIVEIRA, Gabriela Camargo de; BAENINGER, Rosana. A segunda geração de bolivianos na cidade
de São Paulo. In BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de
Estudos de População-Nepo/Unicamp; Fapesp; CNPq; Unfpa, 2012.

Artigos de revista:

BARBOSA, Maria Carmen Silveira. A ética na pesquisa etnográfica com crianças: primeiras
problematizações. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 9., nº 1, p. 235-245, jan/jun 2014.
Disponível em:<http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/viewArticle/6389>.
Acesso em: 20 fev. 2015.

FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 23, Ago. 2003.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a02.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2014.

PIRES, Flávia. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa
antropológica. Rev. Antropol., São Paulo , v. 50, n. 1, Junho 2007. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/ra/v50n1/a06v50n1.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2015.

SILVA, Sidney Antonio da. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estud. av., São
Paulo, v.20, n.57, Ago. 2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v20n57/a12v2057.pdf>.
Acesso em: 03 set. 2014.

Sítio:

BAENINGER, Rosana. O Brasil na rota das migrações internacionais recentes. Jornal da


Unicamp. Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2003/
ju226pg2b.html>. Acesso em: 20 mar. 2015.

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